O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Terra sem lei VIII: Os Guarani Kaiowá e o gozo perverso da solução final


Foi recentemente encomendada pela CNA uma pesquisa sobre os índios no Brasil a uma empresa especializada no ramo cuja metodologia é, às vezes, criticada (por exemplo: http://www.redebrasilatual.com.br/blog/blog-na-rede/datafolha-da-empate-blogueiros-apontam-erros-tecnicos).
Curiosamente, o próprio jornal a que se liga essa empresa, e a presidenta da CNA, uma das colunistas desse periódico, passaram a veicular estranhos textos com um arrazoado mais ou menos neste sentido:

a) Índio quer tevê;
b) Quem quer tevê não é índio;
c) Se não é índio, não precisa de terra indígena;
d) Se não há mais terra indígena, liberou tudo para os amigos do poder, isto é, grileiros e empreiteiras.

Não tenho acompanhado toda essa campanha de inspiração racista; sei que tais ataques inspiraram uma campanha que cobra direito de resposta em uma revista semanal de variedades, que já, no passado recente, inventou declarações contra os índios que teriam sido dadas pelo grande Eduardo Viveiros de Castro. O antrópologo mostrou a falsidade da matéria da revista.
Vejam aqui a campanha:

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21278

Sobre a letra a do arrazoado estatístico-jornalístico, podem-se apontar diversas inconsistências já no mero plano técnico. As diversas deficiências metodológicas da pesquisa foram devidamente ressaltadas pelo ISA (Instituto Socioambiental) em CNA lança cortina de fumaça sobre disputa por terras indígenas:

http://www.socioambiental.org/nsa/direto/direto_html?codigo=2012-11-15-164702

Note-se que há um empate técnico com a questão da terra, e, para algumas regiões, essa era a questão mais importante, mas isso foi ocultado pelo jornal, pois comprometeria os itens c e d.
Há outro problema, de fundo: quem disse que o índio deixa de sê-lo por querer tevê? Este artigo do professor Renzo Tadei, Guarani Kaiowá e as perversidades do senso comum,bem ataca a a equivocada premissa:  http://envolverde.com.br/ambiente/artigo/guarani-kaiowa-e-as-perversidades-do-senso-comum/

A questão se apresenta de forma pervasiva até entre gente politicamente progressista: na Cúpula dos Povos da Rio+20, uma grande amiga, ativista, me confidenciou ter ficado espantada ao ouvir de lideranças indígenas que eles gostariam de ter energia elétrica, saneamento, escolas. Eram afirmações que contrariavam suas expectativas “romanceadas”, nas suas próprias palavras, a respeito dos índios.
Por que é tão difícil aceitar a ideia de que quando o índio diz querer escola, ele não está fazendo nenhuma declaração sobre a sua identidade? Porque, dentre muitas outras coisas, identidade é paranoia de não-índio, mas não (necessariamente) paranoia de índio. Aqui começamos a chegar a algum lugar: é muito incômodo conviver com alguém que não compartilha nossas paranoias.
No caso dos índios, temos uma organização não-estatal (segundo Pierre Clastres, "contra o Estado"), e uma forma de vida que tem um caráter de radical alteridade às sociedades estatais. De acordo com Eduardo Viveiros de Castro, trata-se de sociedades contra o Um; o antropólogo vê no múltiplo dos índios um projeto de futuro, não uma relíquia do passado.
Esse projeto de futuro, claro, é contrário aos parasitas do Estado, isto é, aquelas empreiteiras e grileiros, bem como seus porta-vozes. Volto ao texto de Tadei, que sustenta que a recusa dos índios ao Estado é a recusa a uma lógica que os tornaria marginais, marginais como são os "urbanitas ocidentalóides":

Os índios resistem à ideia de que o centro do mundo passe a residir em outro lugar – em Brasília, por exemplo. Ou seja, resistem ao processo que os faz marginais. A marginalização, tomando a expressão de forma conceitual (ou seja, fazendo referência a quem está nas margens, nas bordas ou periferia), pode se dar deslocando-se alguém para a periferia do mundo, ou deslocando o centro de lugar, de modo que quem era central passa a ser periférico, e, portanto, marginal. De certa forma é exatamente isso que o Brasil oferece aos indígenas. Mas quem é que quer ser marginal? O que a imensa maioria de nós, urbanitas ocidentalóides, não percebemos é que é isso, exatamente, que o Estado faz conosco.
Temos que lembrar que a campanha de inspiração racista contra os Guarani Kaiowá e outros grupos indígenas no Brasil decorre, em parte, da proteção constitucional que suas terras receberam com a Constituição de 1988. Devido a essa proteção jurídica, entende-se que a presidenta Rousseff tenha decidido dificultar as demarcações de terras indígenas (http://oglobo.globo.com/pais/dilma-dificulta-demarcacao-de-terras-indigenas-4786861), o que levou ao 19 de abril de 2012 ter passado em branco em nível federal, sem demarcações novas, e que o Congresso Nacional discuta um projeto de emenda para transferir as demarcações para os Estados, onde as pressões locais dos empreiteiros e grileiros podem ser ouvidas com mais persuasão.
A revista Veja, em matéria de bem outro nível intelectual, reclamou, assim como a presidenta da CNA, de que antropólogos eo CIMI querem que os índios continuem pobres. Há limites para a falta de inteligência, mas eles são muito vastos e conseguem abrigar essa reportagem. A pobreza existe em sociedades de classes, o que não é o caso dos índios, que não precisam de ajuda do Estado se têm terra para sobreviver - assim mostram as pesquisas. São os índios sem terra que precisam de subvenções.
Esses que desejam tirar a terra dos índios e torná-las em fator de produção querem exatamente arremessar essas populações ao mundo da sociedade de classes, ao universo da pobreza, sob a máscara de um devastador progresso.
Enfim, essa campanha nos meios de comunicação, sob as máscaras do progresso e da produtividade econômica, é uma espécie de gozo perverso da solução final: "Veja, conseguimos exterminar os índios no Brasil, a tal ponto que nem os índios não se reconhecem mais como tal; e, se incautos insistirem no erro de identidade, nossas estatísticas mostrarão que estão errados, nossas liminares judiciais também, assim como nossas balas."
Genocídio é crime no direito internacional, e até no direito brasileiro (como expliquei aqui: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/01/belo-monte-e-mautner-kaos-em-favor-da.html). Vangloriar-se dele, que é o que se faz em tais campanhas derivadas da estranha pesquisa encomendada, em nome da "civilização", da "expansão do consumo", do crescimento da classe média de 291 reais do mundo maravilhoso do IBGE, é deplorável.
Por isso, deve tanto incomodar que diversos brasileiros estejam adotando Guarani Kaiowá nos nomes em redes sociais, como eu mesmo acabei fazendo, convencido pela posição contrária de um professor de filosofia da FAAP e da PUC de São Paulo (bem como colunista daquele jornal). Trata-se da afirmação simbólica de uma identidade, contra o extermínio simbólico (também está ocorrendo na ordem do real, os dois caminham juntos) dessa etnia pelos veículos de comunicação e pelo Estado brasileiro.
Aquele professor de filosofia, Pondé, cuja ignorância de Foucault já mostrei em outra nota neste blogue (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/02/policia-direitos-humanos-e-o-lugar.html), cai direto na medicalização do poder dizendo que esses que lutam contra o extermínio simbólico dos indígenas são "doentes mentais". E aventa razões como falta de sexo para essas pessoas que não acham, como ele, que deve haver extermínio da cultura indígena (à qual não deveríamos nada, ele ousa dizê-lo) por meio da integração a nosso mercado de trabalho...
Foucault logo entenderia a estratégia desta retórica mais jornalística do que filosófica, e diria que é esse mesmo o papel desses lacaios do poder, desses intelectuais a soldo. É a forma como podem gozar.

P.S.: A imagem que me serve de rosto neste blogue é de uma máscara feita por índios argentinos, da qual tirei foto no Museu de La Plata. Eu já estava nessa de volta às origens (sim, tenho ascendência indígena) antes de ser decretado doente pelos pensadores da direita nacional... 

P.S. 2: José Ribamar Bessa Freire explica como a ressignificação da "abreugrafia" por Kátia Abreu gerou um corte epistemológico sem precedentes na Antropologia: http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1008

P.S. 3: Eliane Brum mandou duas perguntas a pessoas de diferentes áreas, inclusive eu mesmo: 1) O que significa dizer nas redes sociais “Sou Guarani Kaiowa”, assim como acrescentar “Guarani Kaiowa” ao próprio nome?; 2) Por que há um movimento tão forte e abrangente nas redes sociais neste momento, quando o processo de genocídio dessa etnia indígena vem ocorrendo há décadas?
As respostas dos antropólogos Luísa Molina e Eduardo Viveiros de Castro, da filósofa Marcia Tiburi, do professor de Letras Idelber Avelar, da psicanalista Rita de Cássia de Araújo Almeida e de ex-senadora e ambientalista Marina Silva podem ser lidas no texto Sobrenome: "Guarani Kaiowa", bem como as considerações do antropólogo e Guarani Kaiowá Tonico Benites sobre sua própria identidade: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/11/sobrenome-guarani-kaiowa.html

2 comentários:

  1. Pádua disse tudo o que eu ainda não tinha ouvido nem pensado. O projeto de lançar os indígenas à sociedade de classes é tão etnocida que nem chega a ser pensado como tal - simplesmente é, porque na indigência antropológica em que fomos habituados a pensar, o pensamento de que é possível viver sem pertencer a uma 'classe' se tornou impossível. Perfeita análise: "A pobreza existe em sociedades de classes, o que não é o caso dos índios, que não precisam de ajuda do Estado se têm terra para sobreviver - assim mostram as pesquisas. São os índios sem terra que precisam de subvenções.". Com o mérito de, ainda, desclassificar o inclassificável, porque bizarro, Pondé. abr, Adriana

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  2. Obrigado, Adriana. Acho que Pondé apenas ecoou um senso comum de inspiração racista de que os índios seriam preguiçosos e não quereriam trabalhar. Tal senso comum tem toda relação com a sociedade de classes. Quando a antropóloga Abreu diz que os índios são pobres, na verdade ela parece expressar um desejo de que eles deixem suas terras e tornem-se pobres nas cidades. E, claro, a terra, que é um milhão de coisas para as culturas indígenas, será tomada e rebaixada à condição de mero fator de produção, até que a devastação não permita nem isso.
    Abraços, Pádua

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