O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Uma vaia dada: Restos de "Don Giovanni", de Mozart (30 dias de ópera: Dia 7)

O público de ópera pode ser bem exigente com o que vê. Em música popular, não sei bem com quem comparar, pois o nível de indulgência com desafinação, erros em geral é muitas vezes maior nessa área, permitindo que a fraude seja adotada como método artístico, e que façam carreira pessoas que não conseguem executar ao vivo o que é produzido em estúdio. Trata-se antes de commodities do que músicos, e têm seus representantes na indústria de entretenimento para defender que a dublagem não passa de mero "recurso a ser usado".
É provável que o público de heavy metal seja ainda mais severo do que o de ópera, ao menos em termos de objetos jogados no palco. Foi histórica a vaia sofrida, acompanhada de projéteis, por Lobão no Rock in Rio em 1991, em uma noite dos metaleiros. O músico e sua banda tiveram de deixar o palco depois da segunda música. Dito isso, o público operístico também é capaz de, além de vaiar, perseguir o artista para espancá-lo, como aconteceu, por exemplo, com um Tannhäuser regido por Karajan em Viena em 1956. Max Lorenz, que estava em fim de carreira e não cantava mais esses papéis heroicos, teve de salvar o espetáculo na récita seguinte e foi muito aplaudido.
Sou contrário a esse tipo de violência, mas a favor da vaia. Viva a vaia, ademais. Nos regimes despóticos ela é proibida - ou imposta aos inimigos do poder.
Na conhecida Vida de Rossini de Stendhal, há uma passagem que cruza inesperadamente o mundo do espetáculo com a teoria política. Isabella Colbran, em crise vocal, não era vaiada em Nápoles porque era protegida do diretor do teatro e do rei:
A senhorita Colbran começava uma ária; ela cantava tão desafinado que era impossível suportar. Eu via meus vizinhos abandonarem a plateia, os nervos irritados, mas sem dizer nada. Que se negue depois disso que o terror é o princípio do governo despótico! e que esse princípio não opere milagres! obter silêncio dos napolitanos em cólera! Eu seguia meus vizinhos, nós iríamos fazer um passeio no Largo di Castello, e voltávamos depois de vinte minutos para ver se poderíamos surpreender algum duetto ou número de conjunto em que a inevitável protegida do senhor Barbaja e do rei não fizesse ouvir sua soberba voz em decadência. Durante o efêmero período do governo constitucional de 1821, a senhorita Colbran somente ousou reaparecer em cena precedida das mais humildes desculpas [...]
Montesquieu, em Do espírito das leis, explica o princípio dos governos despóticos. De fato, vaiar a eles ou a seus representantes implica arriscar a própria vida. Pois há estes momentos na História em que uma ópera se associa a um governante. Entre as vaias que marcaram época, estão as dirigidas contra o Tannhäuser em Paris, que era tanto direcionada à ópera em si (nisso, havia a história de o balé dessa obra ter sido realizado no primeiro ato e não no segundo, contrariando as tradições da cidade) quando contra Napoleão III, que havia decidido que a obra seria programada. Para Wagner foi dirigida parte da insatisfação com o governante.
O governo constitucional permite as vaias, nem sempre justas, é verdade, mas esse é um preço da democracia... Cecilia Bartoli foi vaiada em 2012 no Scala de Milão, em concerto regido por Daniel Barenboim depois de 19 anos sem cantar naquele teatro. Em resposta, ela deu um bis com uma peça que causou controvérsia (o final de La Cenerentola de Rossini)... Depois do concerto, afirmou que ser vaiada ali dava sorte e citou alguns dos exemplos: Herbert von Karajan, Maria Callas, Franco Corelli, Luciano Pavarotti... No caso dela, escolhida recentemente para chefiar a Ópera de Montecarlo a partir de 2023, realmente não se podem negar a sorte e o talento.
Em geral, não vejo grande problema se a voz de um cantor quebra ao tentar executar uma parte difícil. Como muitas vezes no repertório operístico estamos diante dos limites da voz humana, costumo admirar a valentia do intérprete em tentar realizar algo difícil. Já vi isso acontecer várias vezes e nunca vaiei por essa causa. Presenciei, sem tomar parte, um Rigoletto em que o tenor errou muito audivelmente na cadência de "La donna è mobile" e foi vaiado (não por mim, mas por um bom número do público). Achei curioso que o cantor assumisse uma cara de deboche diante da plateia, apesar do erro evidente, o que não deixava de ter relação com o personagem que encarnava, o cínico duque...
Ademais, a cadência não corresponde ao que Verdi, o compositor, originalmente escrevera. Ouçam o original, muito mais simples, e a cadência que a tradição colou à famosa ária, nos dois casos com Roberto Alagna. Às vezes, a vaia decorre de o maestro ter escolhido executar a obra original, em desacordo com a expectativa do público. Aconteceu com o tenor Salvatore Licitra, já falecido, a quem o regente Riccardo Muti impôs cantar a famosa ária "Di quella pira", da ópera Il Trovatore, sem aqueles dós agudos do final, que não foram escritos por Verdi. Ouçam o que o compositor escreveu e comparem com o que a tradição de execução da obra criou (é verdade, porém, que aqueles dós não soam tão bem na voz lírica de Licitra). Vaiaram cantor e maestro, mas o atingido foi o compositor, que não havia escrito aquelas notas extremas. Uma boa parte do público de ópera aceita a arte musical desde que ela se subordine a façanhas atléticas.
Pobres cantores, que cada vez mais têm de competir com os mortos, em razão das gravações.
A vaia mais colossal que já vi foi para um diretor cênico, Gerald Thomas; contei essa história em outra nota, sobre Tristão e Isolda, de Wagner. Thomas colocou cocaína (em vez do filtro amoroso; achei uma boa solução), psicanálise, moda e judeus ortodoxos naquela história trágica de amor. Bastante curioso, apesar do canto muito irregular, dos cortes na partitura e da regência. Os urros de insatisfação da plateia no Rio de Janeiro irromperam quando Thomas apareceu armado como uma Valquíria diante do público. Soaram tão fortemente que o ar pareceu ter-se solidificado. Os neonazistas ameaçaram o diretor. Neste caso, eu aplaudi o espetáculo.
Uma das vaias que eu dei, contei-a neste blogue, a propósito de uma produção paulista de Don Giovanni; não aos cantores, por certo (lembro que Andrea Rost destacou-se como Donna Ana), mas a toda a concepção do espetáculo, que, apesar de ridícula, não me arrancaria vaias se não tivesse cortado um personagem do final de uma cena (Leporello) e suprimido mais da metade da cena final. A estátua do Comendador, assassinado por Don Giovanni em duelo ao tentar impedir o estupro de sua filha pelo libertino, aparece para jantar, depois de ter sido jocosamente convidada pelo Don no cemitério. Mas ela não se alimenta do pão terrestre; o Comendador veio para exigir que o assassino se arrependa dos pecados. O servo, Leporello, apavora-se, mas permanece até o fim da cena trágica, em que Don Giovanni é arrastado aos infernos. Algumas representações até o início do século XX encerravam a ópera aí, com esse fim, apreciado pelos românticos. No entanto, há ópera tem mais uma cena, bem século XVIII, em que os outros protagonistas ainda estão a procurar o libertino para puni-lo; Leporello chega subitamente e narra o castigo que seu antigo senhor recebeu. Todos, então, entoam a moral da história: "Este é o fim de quem faz o mal". Só este conjunto final sobreviveu.
A mutilação da obra de Mozart teria sido fruto da exótica concepção do encenador ou simplesmente de falta de ensaio da música? Não vi explicação alguma, tampouco alguma nota na imprensa sobre o ocorrido. Uma eventual insuficiência de ensaios poderia explicar o corte de mais da metade da cena final; esse corte exigiria, para que Leporello trocasse de figurino, sua ausência na cena do Comendador (ele saía correndo sem cantar sua parte).
Se a cena final tivesse sido poupada da tesoura, o Leporello poderia ter cantado até a queda de Don Giovanni, pois ele demora um pouco para entrar, tendo em vista a arquitetura teatral bem planejada por Mozart e Da Ponte. No caso, comprometida pela encenação e pela direção musical. Vaiei ambas.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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