O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Desbloquear o urbano: a audiência da Nova Luz e o Estatuto da Cidade

Os dez anos que o Estatuto da Cidade, lei federal n. 10257, completará em 2011 revelam bem o público segredo do idealismo jurídico: as normas jurídicas, por si mesmas, não resolvem problemas sociais.
Isso não quer dizer que o Direito não importe, muito pelo contrário, e sim que ele não deve ser o substituto da ação, e sim que ele deve ser prática social. Se é importante que o Estatuto da Cidade exista, é também necessário que ele seja aplicado e o direito à cidade seja implementado.
O urbanismo é um campo que bem mostra que a simples conjugação dos egoísmos individuais não gera o bem coletivo, e sim algo como as grandes cidades brasileiras: falta de planejamento, corrupção, injustiça, degradação.
O direito urbanístico é algo que nasceu muito tarde no Brasil, muito depois de a maioria da população brasileira ter-se tornado urbana. Afinal, tivera nascido antes,
talvez tivesse imposto algumas restrições ao capital imobiliário, como restrições de uso, de aproveitamento do terreno... Pois o capital imobiliário quer simplesmente maximizar o lucro sem se importar com o impacto urbano, que deverá ser suportado pela coletividade.
A primeira legislação federal sobre loteamentos, o decreto-lei n. 58 de 1937 (da ditadura de Vargas), simplesmente ignorava as questões urbanísticas; concentrava-se nos aspectos privados da relação entre o vendedor e o adquirente do lote.
A moradia é uma questão complexa demais para ser reduzida à simples negociação entre particulares - negociação em que prevalecerá a parte economicamente mais forte. A expansão urbana, com forte base nos loteamentos, simplesmente se deu com a venda de lotes sem infraestrutura, de forma muitas vezes ilegal, sem que houvesse instrumentos jurídicos para eficazmente combatê-la.
Na ditadura seguinte, o decreto-lei n. 271 de 1967 não chegou, nem de longe, a resolver o problema. Avanço maior foi a lei n. 6766 de 1979, que, no entanto, ainda não era a lei geral de urbanismo necessária. Juristas colaboradores do regime, como Miguel Reale, insistiam que os Municípios não poderiam legislar a respeito do direito urbanístico - mas a Constituição de 1969 era omissa a respeito.
Havia, de fato, uma omissão. Rocha Lagôa gostava de lembrar que a palavra cidade inexistia no código civil brasileiro então vigente - embora códigos contemporâneos, em outras partes do mundo, não apresentassem tal lacuna.
De uma lado, para o capital imobiliário, de fato, é melhor que não haja regulamentação, que sempre trará alguma restrição a sua atividade; por outro lado, a população mais pobre não pode conter com políticas de habitação social, sem o suporte jurídico - essa é uma das razões pelas quais o direito importa.
Os movimentos pela reforma urbana, sabedores disso, conseguiram que a Constituição de 1988 tivesse um capítulo da política urbana no título da ordem econômica e financeira, que previa diversos instrumentos urbanísticos.
Começou, então a luta pela eficácia, em dois planos: o municipal e o federal. No primeiro, era necessário aprovar o plano diretor. No segundo, uma lei que fixasse as diretrizes gerais da política de desenvolvimento urbano.
Os grupos que lucram com o caos urbanístico lograram por muito tempo vencer nos dois planos. Veja-se o Município de São Paulo, vanguarda do atraso nacional na matéria, que somente veio a ter plano diretor no governo de Marta Suplicy.
No plano federal, a vitória da ineficácia veio até 2001 - somente nesse ano o artigo 182 da Constituição foi regulamentado com a aprovação do Estatuto da Cidade. Somente no século XXI o Brasil passou a ter uma lei geral de urbanismo! Isso era vital porque o Supremo Tribunal Federal decidiu que os instrumentos urbanísticos previstos pela Constituição, mesmo que estivessem regulamentados nos planos diretores municipais, seriam ineficazes sem a lei federal...
Muitos Municípios, todavia, continuavam sem plano diretor mesmo após o Estatuto, que previu um prazo de cinco anos para sua aprovação, sob pena de improbidade administrativa.
Hoje, que a maior parte dos Municípios possui o plano diretor, e temos a lei federal, a luta é pela implementação dessas normas, ou seja, a realização das políticas públicas previstas pela lei. Não basta a simples eficácia formal das leis. Sem essas políticas, o direito à moradia não se efetuará, como escrevi neste livro da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e da Jornada em Defesa da Moradia Digna, disponível gratuitamente na internet, e que conta com textos de Ermínia Maricato, Nabil Bonduki e outros importantes urbanistas.
Além desses nomes importantes, há também um texto meu sobre a hipocrisia oficial dos poderes públicos, que recusam a legalidade instituída, e a luta dos movimentos sociais para que as promessas do direito sejam cumpridas. A questão das classes sociais é evidente:

A ação dos movimentos sociais de moradia, que, em sua retórica jurídica, pleiteiam que os direitos constitucionais sejam “levados a sério”(para usar a expressão de Dworkin), bem como o Estatuto da Cidade, a que os Municípios em geral não têm dado cumprimento, corresponde, defende este trabalho, a um pluralismo paradoxal. Os movimentos não reivindicam uma outra ordem jurídica, e sim a efetividade da ordem oficial, enquanto as autoridades públicas, no Judiciário e no Executivo decidem e agem de forma a violar o direito estatal. De baixo para cima, é preciso violar o Direito para tentar que ele seja cumprido – as ocupações(e isso as distinguiria, segundo os movimentos sociais, de simples invasões) seriam o instrumento, embora formalmente ilícito, de dar efetividade ao Direito: a própria legalidade precisa ser construída de forma ilegal. De cima para baixo,temos,ao contrário,a recusa à efetividade do direito constitucional, bem como a violação pura e simples da legislação infraconstitucional e de tratados internacionais sobre direitos sociais pelas autoridades públicas – a produção legal da ilegalidade.


Uma implementação democráticas de políticas públicas depende da participação popular, prevista no Estatuto. O caráter exuberantemente pouco democrático da atual administração municipal que os eleitores de São Paulo escolheram transparece no projeto da Nova Luz.
A atual administração perseverou em uma política de entrega do planejamento urbano a corretores e empreiteiras, por meio de concessões urbanísticas, nomeações para o secretariado, alienações do patrimônio público etc. Isso redundou no aprofundamento do colapso do que é público na cidade: transporte, saúde, defesa contra intempéries (afinal, elas afetam mais os pobres...) etc. A Cracolândia, altamente expandida nos governos Serra (um ex-ministro da Saúde, mas de que governo mesmo?) e Kassab, caminha para se tornar a mais completa tradução da cidade de São Paulo.
E o projeto da Nova Luz, que extinguiria a Cracolândia? O caráter pouco democrático da atual administração do Município revela-se, entre outros exemplos, no pouco apreço às audiências públicas: em 14 de janeiro de 2011, depois de anos, o projeto teria sua audiência, que acabou sendo cancelada por excesso de público - comerciantes e moradores mobilizaram-se e pegaram as autoridades de surpresa. O Município queria ir em frente (com centenas de pessoas do lado de fora querendo entrar), mas a Polícia Militar (em geral, mais lúcida nessas horas do que os representantes do governo) ajudou a convencer de que não havia condições, no auditório da Fatec, de que os trabalhos fossem realizados.
Estive lá e pude ver faixas muito significativas como "Cimento não cura crack".
Ela foi remarcada para hoje, dia 28 de janeiro, às 18h, no auditório Celso Furtado do palácio de convenções do Anhembi.
Cancelar audiência pública por excesso de público não seria um belo exemplo do "excesso democrático" segundo Rancière? De qualquer forma, é auspicioso que a população se mobilize, ainda mais neste momento em que o prefeito abandona o seu partido para buscar novos horizontes (quem sabe o governo do Estado?) na base aliada da presidenta Dilma Rousseff.
Não poderei ir, mas tenho certeza de que a mobilização se manterá.

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