O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

O impacto do Brasil contra o Sistema Interamericano de Direitos Humanos: Belo Monte e a ditadura militar

O grande jurista espanhol Bartolomé Clavero chamou a atenção para a recentíssima carta sobre os "Posibles retrocesos de medidas cautelares en casos de proyectos a gran escala".
Dezoito povos índigenas em Guatemala estão tendo sua água poluída pela extração mineral - um grande mina de ouro a céu aberto chamada Mina Marlin. Os ambientalistas estão sofrendo ameaças e os índios também. Em 7 de dezembro de 2011, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos modificou a cautelar para revogar a ordem de suspensão do projeto, depois de o governo ter prestado informações de que tudo estava correndo bem.
As 233 organizações, das Américas e da Europa, que assinam o protesto verificaram esse retrocesso no mecanismo de medidas cautelares (que deve funcionar quando há casos urgentes de violação dos direitos protegidos pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos) justamente nos casos em que comunidades são ameaçadas por megaempreendimentos, projetos em grande escala. Qual é o precedente de a Comissão ter passado a ceder diante da mega-aliança dos poderes públicos com essas grandes empresas? O caso de Belo Monte! Ufana-se o país, que se destaca mais uma vez nos fóruns internacionais!

En agosto de 2011 la CIDH también modificó su resolución de medidas cautelares para el Gobierno de Brasil, en la que se solicitaba suspender la construcción de la represa hidroeléctrica de Belo Monte actualmente en contrucción sobre el Río Xingu, estado de Pará, la cual perjudicará a cientos de comunidades indígenas y campesinas. El gobierno de Brasil, en un claro intento de presionar a la CIDH, reaccionó ante las medidas cautelares retirando a su embajador ante la Organización de Estados Americanos (OEA) y suspendiendo su aporte financiero anual. Según la prensa brasileña, el gobierno normalizará sus relaciones con la OEA sólo "después de que la CIDH, entidad responsable del conflicto, sea reformada." Del mismo modo, el gobierno se ha negado a dialogar con las víctimas y con la CIDH, y no se presentó a una reunión de trabajo con la CIDH en Washington, para la cual una dirigente indígena viajó desde el Amazonas.


Trata-se do que, na Comissão, foi classificado como o caso MC 382/10 - Comunidades Indígenas da Bacia do Rio Xingu, Pará, Brasil, sobre que escrevi em outra nota, sublinhando as diversas ilegalidades do empreendimento no plano internacional. Leiam aqui a notícia da Comissão, em português, sobre a mudança no caso em 29 de julho de 2011. Há várias no plano nacional também, e o Ministério Público Federal está tentando agir, apesar da tradicional dificuldade ou inapetência do Judiciário brasileiro em aplicar os direitos humanos.
Quem quiser ler a resposta do governo brasileiro que serviu de pretexto para a Comissão iniciar o retrocesso, reconhecerá uma das taras do direito brasileiro. É claro que governo federal repete o mantra de que os índios não serão atingidos por Belo Monte e que foram realizadas corretamente todas as audiências públicas. No entanto, a maior parte do arrazoado sem razões dedica-se a dizer que os direitos dos índios estão garantidos e a natureza está protegida porque... há previsão em lei!
A lei, porém, nem mesmo a brasileira, prevê o genocídio dos índios Guarani Kaiowá, cuja situação de violência em que vivem no Mato Grosso do Sul destaca-se no mundo, tampouco determina às autoridades policiais que deixem de trabalhar quando são vítimas de homicídio índios, como o cacique Nisio Gomes.
A tara no direito, que serve para encobrir tais crimes, tem nome: idealismo jurídico. Os problemas sociais ficam milagrosamente "resolvidos" ou "suspensos" pela simples existência formal de legislação (que pode nem mesmo ter eficácia formal)!
A ideia é estúpida, porém, por deformação profissional, profissionais do direito que podem ser inteligentes em outras ocasiões repetem esse tipo de postura, esse "secreto horror a nossa realidade", para citar Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. No caso do governo federal, faz parte da estratégia: como a realidade é obscena, prefere-se ignorá-la citando lei, constituição, portaria... Como é embriagadora, em sua profusão mais ou menos iletrada e bastante comprometida, a legislação brasileira...
O cinismo é tão maior quando se lembra que a resposta vem de um Estado que sistematicamente viola garantias fundamentais e que se vale de um mecanismo constitucional de violar o financiamento dos direitos sociais - mas sobre isso devo tratar depois.
O Brasil continua um Estado fora-da-lei também no caso da impunidade da ditadura militar. Neste ponto, o Brasil também se destaca - negativamente - na América Latina.
Mal começou o governo Rousseff, manifestei dúvidas sobre o interesse da presidenta em avançar na questão dos desaparecidos.
Lei federal, de número 12528, em novembro do ano passado, previu a criação da Comissão da Verdade, medida de justiça de transição determinada pela Corte Interamericana de Drieitos Humanos com a condenação do Brasil no chamado caso Araguaia (Gomes Lund e Outros vs. Brasil). A presidenta ainda não conseguiu encontrar os sete nomes de "brasileiros, de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com a defesa da democracia e da institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos" para constituí-la (entende-se a dificuldade), e o segredo e a mudez caem sobre o assunto. Alguns jornalistas imaginam que ela está em atividade, mas isso não ocorreu ainda.
Em contrapartida, os militares da reserva pronunciam-se. Houve um manifesto, de 16 de fevereiro, dos clubes militares contra o que consideraram como revanchismo das ministras Maria do Rosário e Eleonora Menicucci, esta, recém-empossada.
Foi publicado que a Carta teria saído do ar, desautorizada pelo governo federal. Os clubes teriam recuado. No entanto, no momento em que escrevo, ela bem continua no sítio do Clube Militar.

P.S.: Leio na Folha de S.Paulo do dia 25 de fevereiro Eliane Cantanhêde comemorando a retirada da carta dos Clubes Militares; agora são 23:24h, e o jornalismo continua fora do ar, exatamente o contrário do que ocorre com a carta.

2 comentários:

  1. Pádua,

    Importante post,

    O Brasil, que é signatário de um grande número de pactos, não efetiva os mais ordinários direitos fundamentais. E agora, com esses projetos megalomaníacos, sobrepõe de forma recorrente os interesses do Estado em detrimentos dos direitos dos indivíduos.

    Dois aspectos: o descumprimento das obrigações de fazer, no sentido positivo, para a implementação dos direitos dos grupos mais vulneráveis, e, considero pior, o descumprimento das obrigações de não-fazer para observar os direitos fundamentais sem intervenções indevidas nas esferas da autonomia do indivíduos.

    Assim, quando necessário o Estado faz pouco, por outro lado, quando indevido, faz em demasia.

    Ab.
    Samuel Martins.

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  2. Sim, Samuel.
    A propósito, acabaram retirando a carta no dia 27 de janeiro. Mas fizeram outra:
    http://www.averdadesufocada.com/index.php?option=com_content&task=view&id=6622&Itemid=95
    E o governo vai dizendo isto:
    http://www.defesanet.com.br/defesa/noticia/4967/Amorim-manda-punir-100-oficiais-da-reserva
    Abraços, Pádua.

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