O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Desarquivando o Brasil CI: Audiência sobre a tortura, na Comissão da Verdade do Estado de SP

A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo realizará uma audiência na sexta-feira próxima, seis de fevereiro, uma audiência que apresentará pesquisa, feita por diversas organizações e entidades (Conectas, IBCCrim, Pastoral Carcerária, NEV/USP, ACAT Brasil), da jurisprudência sobre tortura entre 2005 e 2010 em Tribunais de Justiça brasileiros.
Não se trata do período da ditadura militar, porém, como será apresentada em uma Comissão da Verdade, creio que os pesquisadores farão uma conexão com o passado recente.
Tendo em vista que a prática da tortura não era um acidente, e sim parte da própria substância da ditadura militar, a qual não poderia manter-se sem a censura, graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade, recordo aqui alguns exemplos dessa prática.

Um caso é este ofício do II Exército sobre o guerrilheiro, então na organização clandestina ALN (Ação Libertadora Nacional, mas ele esteve em outras, como a Política Operária e a Vanguarda Popular Revolucionária) Eduardo Collen Leite, o Bacuri, capturado em 21 de agosto de 1970 e mantido preso ilegalmente, sob tortura, até a execução extrajudicial. Ele estava sendo entregue à Operação Bandeirante (Oban) "para as devidas providências", no eufemismo desta comunicação oficial.
Este documento não está reproduzido na biografia escrita por Vanessa Gonçalves (Eduardo Leite Bacuri. São Paulo: Plena Editorial, 2011). Ele é interessante, pois deixa praticamente explícita a prática de tortura:
4. Conforme suas declarações, possivelmente um sequestro de autoridades será realizado brevemente a fim de libertá-lo.
5. Considerando a possibilidade expressa no ítem [sic] anterior, o Comando do II Ex recomenda que sejam tomadas as devidas providências, no sentido de evitar possíveis explorações sobre seu estado físico.
Tanto pior para os que acham que "Existe um silêncio total a respeito da tortura nos milhões de interrogatórios, relatórios e informes produzidos pelo DOPS em nível nacional".

Trata-se de um documento do governo sobre um preso político. Houve também o oposto: mais de uma vez, os presos políticos lograram fazer denúncias das violações de direitos humanos sistematizadas pela ditadura militar. Já escrevi neste blogue e alhures sobre uma carta dos presos em São Paulo, em 1975, o "Bagulhão".
Esta é outra carta dos presos no Rio de Janeiro, terminada em 24 de novembro de 1976, dirigida ao Conselho Federal da Ordem dos advogados do Brasil, como os de São Paulo também fizeram. Já na apresentação, que reproduzo ao lado, deixam claro que "Assistimos de 65 para cá uma generalização e uma extrapolação crescente da repressão e da tortura por parte dos governos militares para fazer frente a qualquer tipo de Oposição."
Com efeito, a tortura não era destinada apenas aos guerrilheiros (veja-se, por exemplo, o deputado Rubens Paiva, assassinado pelo regime sem ter nunca pego em armas).

Os autores da carta viam a tortura como "sustentáculo da Justiça Militar", no sentido de "peça básica nas montagens dos inquéritos que vão instruir os processos da Justiça Militar", O Brasil: Nunca Mais chegou à mesma conclusão.
Os presos acrescentam: "A Justiça Militar funciona apenas nessa medida: que os processos andem e que sirvam para as condenações politicamente necessárias para o regime, independente de sua base jurídica e da evidência real das provas. Daí porque a tortura [é] o elemento necessário ao ao funcionamento da Justiça Militar."
A carta passa a descrever, sem, no entanto, a minúcia do "Bagulhão", as formas de tortura.

É importante lembrar de denúncias como esta, especialmente neste momento em que a Justiça Militar acusa a Comissão Nacional da Verdade (que já não pode mais responder, pois foi extinta com o fim de seu mandato) de ter cometido erros no relatório final ao indicar a relação dessa Justiça com os aparelhos de repressão. Em peculiaríssima nota que essa Justiça divulgou no fim do ano passado, ela sustenta que "assegurou os princípios garantistas e os direitos humanos" durante a ditadura militar.
Vejam, na conclusão, que os presos políticos (incluo nesta nota todas as assinaturas desta cópia da carta, guardada no Arquivo Público do Estado de São Paulo, assim como os outros documentos aqui reproduzidos) chamam a tortura e a Justiça Militar de "duas faces de uma mesma moeda", e veem nessa Justiça especializada o papel de dar legitimidade ao "Estado autoritário" por meio do direito de exceção vigente, sem deixar de violar as normas do próprio regime "quando os interesses políticos do sistema assim o exigem".
"Denunciar tal Justiça e as vinculações com a tortura é, portanto, fundamental". E os presos mostram-se céticos às iniciativas de reforma do Judiciário tomadas pela própria ditadura militar, sem a democratização do país. Creio que estavam corretos nessa avaliação.













A demanda pelo fim da tortura não era exclusiva dos presos políticos. O "Bagulhão", como já escrevi, denunciou as torturas e execuções dos presos comuns e o Esquadrão da Morte, cujo modus operandi espalhou-se por todo sistema de repressão. Lembremos do professor francês de tortura e execução, o General Paul Aussaresses, que afirmou que seu amigo General João Figueiredo, na época chefe do serviço Nacional de Informações (SNI), chefiava o Esquadrão da Morte.
E o primeiro tipo de tortura descrito no "Bagulhão" (reproduzo essa passagem da carta ao lado) foi o pau de arara, cuja origem estava na escravidão, como um dos tratamentos cruéis e degradantes aplicados contra os escravos.
Não à toa, como escrevi em outras notas, os movimentos negros na época da ditadura militar aparecem protestando contra a violência policial, ao lado das prostitutas e homossexuais, ainda alvos preferenciais do Estado no Brasil de hoje. Relembro o rapper Emicida, preso na significativa data de 13 de maio de 2012 por causa destes versos: "Tevê cancerígena aplaude prédio em cemitério indígena./ Auschwitz ou gueto? Índio ou preto?/ mesmo jeito, extermínio [...]".

A reivindicação pelo fim da tortura foi assumida por vários agentes sociais durante a ditadura militar, inclusive os movimentos pela anistia. Em novembro de 1978, realizou-se o Congresso Nacional pela Anistia, organizado pelo Comitê Nacional pela Anistia, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo.
No Manifesto do Congresso, afirma-se que "O Brasil é hoje uma nação dividida", aprofundou-se "a distância entre o regime e o povo". O povo brasileiro, afirmava-se, estava marginalizado política, econômica e socialmente.
O manifesto, de 5 de novembro de 1978, terminava com a exigência de "ANISTIA AMPLA, GERAL E IRRESTRITA", como era de praxe nos documentos do CBA, mas não se limitava a isso, no que fazia muito bem.
De fato, outras condições eram também necessárias para a democratização do país. Antes da exigência de anistia, três delas eram reivindicadas pelo CBA e, devemos ressaltar, o Brasil de hoje ainda não logrou atender completamente a nenhuma delas:

- fim da legislação repressiva, inclusive a revogação da lei de segurança nacional e da insegurança dos brasileiros;
- desmantelamento do aparelho de repressão política e fim da tortura;
- liberdade de organização e manifestação;


Não acabaram os inquéritos políticos visando a repressão às liberdades de organização e de manifestação, bem como a criminalização dos movimentos sociais. O inquérito criminal contra os 23 no Rio de Janeiro é um clamoroso caso recente, e bem revela o tipo de resposta do Estado brasileiro às demandas por direitos e democracia.
As manifestações continuam a ser espionadas. Ao lado, reproduzo parte de relatório do DOPS/SP, escrito em 6 de novembro de 1978, sobre o Congresso Nacional pela Anistia. É curioso ver Mário Pedrosa caracterizado como "crítico político". Certamente o investigador não sabia de quem se tratava.

Já escrevi diversas vezes, a partir da base documental, sobre o negacionismo histórico perpetrado pelo Supremo Tribunal Federal, em 2010, ao julgar a ADPF 153, sobre a lei de anistia. Ao contrário do que Ministros dessa Corte afirmaram, a campanha pela anistia tinha como objetivo "julgar judicialmente todos os agentes que praticaram torturas durante estes longos 14 anos da ditadura militar", como o agente do DOPS/SP deixa claro na última página do relatório.
Trata-se, enfim, do sucesso da transição brasileira sob o ponto de vista dos torturadores e assassinos do regime, e o fracasso democrático: as aspirações do movimento pela anistia, quase quarenta anos depois, ainda não se realizaram; não somente os torturadores não foram julgados, como a lei de segurança nacional continua em vigor (a dos tempos do governo do General Figueiredo, e mais legislação repressiva é anunciada, desta vez sob o pretexto de combate ao terrorismo), como as liberdades de organização e de manifestação são seguidamente reprimidas.
Alonguei-me nesta nota. Vejam abaixo o cartaz da audiência do dia 6 de fevereiro de 2015 e a lista dos participantes:



A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" realizará na próxima sexta-feira (6/2) uma audiência pública para debater o tema: Tortura. O evento faz parte do Ciclo de Debates "O Estado da dor". Os convidados vão falar sobre a pesquisa "Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos Tribunais de Justiça do Brasil (2005-2010)". 

O levantamento será apresentado por responsáveis pelo estudo que foi realizado pela Conectas, IBCCrim, Pastoral Carcerária, Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e ACAT Brasil. 

Participantes:

Adriano Diogo - presidente da Comissão da Verdade "Rubens Paiva"

Amelinha Teles - coordenadora da Comissão da Verdade "Rubens Paiva"

Representante da Conectas Direitos Humanos 

José de Jesus Filho - membro da Associação para Prevenção da Tortura (APT)

Nathércia Magnani - mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bacharela em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Advogada.

Audiência Pública sobre Tortura: Ciclo de debates "O Estado da dor"
Data: 
06/02
Horário: 14h. Local: auditório Paulo Kobayashi, andar Monumental
Endereço: Av. Pedro Álvares Cabral, 201, São Paulo-SP
A audiência terá transmissão ao vivo online pelo link:http://www.al.sp.gov.br/noticias/tv-alesp/assista/ (selecionar o auditório Paulo Kobayashi)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Desarquivando o Brasil C: Educação, livros marxistas e Ferreira Gullar, ou esqueçam o que escrevi

Ferreira Gullar é um grande poeta e foi um nome importante na crítica de arte. No entanto, sua prosa, incluindo as crônicas semanais, nunca chega à possibilidade de concentrar emoção em objetos inanimados, tampouco a capacidade de justapor planos temporais e geográficos diversos, qualidades presentes em sua poesia, o que torna seu livro autobiográfico Rabo de foguete decepcionante.
Rabo de foguete poderia ter apresentado uma crítica forte ao chamado socialismo real, uma vez que Gullar foi do PCB, ingressou nesse partido após o golpe, para marcar posição, conheceu União Soviética, viu os militantes do governo Allende e estava lá no momento do golpe de Pinochet.
Dito isso, é causa de lamento que, no fim de janeiro de 2015, tenha escrito uma crônica em que o lugar comum, esta substituição da reflexão, volta-se contra a poesia que já fez.
Ele afirma que viu na televisão um programa de tevê sobre o péssimo ministério de Rousseff. Depois, as pessoas do programa reclamaram da ideologia marxista com que seriam doutrinados os estudantes de ensino médio e de ensino superior no Brasil, numa "formação ideológica anticapitalista e antidemocrática" (capitalismo e democracia são sinônimos?); depois de se instruir dessa forma (ele não diz o programa, tampouco identifica os debatedores), Gullar acrescentou que seus contatos confirmavam que o "marxismo que saiu de moda continua respirando em parte do ambiente acadêmico".
A crônica segue dizendo que há aqueles que seguem acreditando no marxismo, embora ele seja inviável, e há os neopopulistas, que nada têm de idealistas, que gastam todo o dinheiro público em auxílios sociais e se mantêm no poder; quando o dinheiro acaba, chamam o Levy para consertar a casa.
A deriva para a educação não era necessária para esse argumento, mas, já que ele a fez...

1. Não me parece fazer sentido algum julgar que lições de "marxismo" seriam o grande problema do ensino médio ou do ensino superior. O grande problema provavelmente é bem outra: em regra, não se aprende nada, ou pouco somente, no ensino médio, quadro desastroso que inclui tanto a maioria das instituições públicas quanto das particulares. Não há nenhum risco de os alunos estarem a estudar David Harvey - o que seria uma boa ideia, de qualquer forma...
No tocante ao ensino superior, creio que considerações semelhantes podem ser feitas, com o sinal invertido: as particulares, em geral, são as piores, e tantas vezes, vivem de cobrar por um serviço lamentável, seja dos alunos, seja do governo federal, que teria criado "milionários em troca de má qualidade na educação", segundo Marcelo Pellegrini. Com o endurecimento das regras do FIES (por causa dos contingenciamentos da "pátria educadora", claro, e não em razão da qualidade do ensino), os milionários estão colocando pesquisadores sem lattes para chorar suas mágoas e estão processando o governo: cria cuervos...
Com o beneplácito dos sucessivos governos federais, não há contradição entre analfabetismo e ensino superior: não apenas analfabetos conseguem ingressar nas instituições privadas, como nelas se formam; imagino que isto seja de conhecimento geral:
[...] em geral lembro de antiga matéria da Carta Capital, "A miséria usa beca", em que um dos entrevistados, bacharel em direito que nunca foi aprovado no exame, afirmou que era analfabeto quando se formou: http://www.observatoriouniversitario.org.br/diversos/universidade_a_miseria_usa_beca.pdf
Afinal, é possível ingressar analfabeto no ensino superior, ao menos em universidades privadas (http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u7470.shtml); já ocorreu, nesse tipo de instituição, até mesmo a defesa do analfabetismo contra os estudos de pós-graduação: http://www.etudoteatro.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=86
Parece que a culpa desse quadro lamentável não pode ser atribuída ao marxismo; trata-se, afinal, de empresas capitalistas que estão a solapar o nível da educação superior, algumas delas com ações na bolsa de valores.
A meta 12 do Plano Nacional de Educação, aprovado pela lei 13005 de 25 de junho de 2014, ("elevar a taxa bruta de matrícula na educação superior para 50% (cinquenta por cento) e a taxa líquida para 33% (trinta e três por cento) da população de 18 (dezoito) a 24 (vinte e quatro) anos, assegurada a qualidade da oferta e expansão para, pelo menos, 40% (quarenta por cento) das novas matrículas, no segmento público), aparentemente modesta, que é a de fazer com que quase um terço dos estudantes em idade universitária estejam matriculados no ensino superior, é demasiado ambiciosa diante do índice que temos hoje (15%) e, mais grave ainda, é absurda porque o ensino médio não forma estudantes que possam cursar o ensino superior. Provavelmente o índice de dez por cento ainda seria demasiado no Brasil.
Vejam  o governo federal, que deixou alguns meses de pagar bolsa aos pesquisadores depois das eleições de 2014, embora tenha lançado a meta (em 2010!) de quadruplicar o número de mestres e doutores.

2. Não se trata da maneira mais inteligente de se referir ao "marxismo" dessa forma genérica, como se não houvesse diversos autores que se inspiraram em Marx e reclamaram (e reclamam) tal ascendência intelectual, embora pouco ou nada compatíveis entre si. Ignoro se o programa de tevê em que Gullar se informou cometeu uma falha tão tremenda, porém não me espantaria, tendo em vista a superficialidade e a frivolidade irresponsável de tantos porta-vozes da direita nesses veículos de comunicação.
Há aqueles que se consideram marxianos (ou seja, seguem o próprio Marx - porém, mesmo este não é um só) e há os diversos marxistas de mil linhas. A vocação da esquerda para fracionar-se infinitamente não encontra no campo do marxismo uma exceção...
Considerando que Gullar sabe pontuar, sua crônica apresenta uma curiosa armadilha: ele critica o "marxismo que saiu de moda". Como ele não usa vírgulas, a frase fica totalmente diversa desta: "o marxismo, que saiu de moda, continua respirando". Se estivesse escrito esta segunda frase, teria dito que todo o marxismo saiu "de moda".
Como não o fez, dá-nos a entender que ele pensa que há um marxismo que não saiu de moda. Na crônica, vemos que se trata do neopopulismo, que não é verdadeiramente anticapitalista e somente quer usar a miséria para manter-se no poder.
Chamar isso de marxismo parece-me vergonhoso e equivalente à loucura paranoica dos que dizem que o Brasil está sob uma ditadura comunista.

3. O curioso é que esse ataque ao marxismo no ensino, apesar de ele não estar mais em voga, evoca acontecimentos do passado recente.

No importante livro de Rodrigo Patto Sá Motta, As universidades e o regime militar: Cultura política brasileira e a modernização autoritária (Rio de Janeiro: Zahar, 2014), bem mais rico sobre o tema do que o relatório da Comissão Nacional da Verdade, lembra que havia setores da ditadura que desejavam acabar com o marxismo e os marxistas no ensino superior, o que não era a opinião do ministro Jarbas Passarinho, que tinha a "disposição para tolerar ideias esquerdistas", e que "iria tolerar professores marxistas competentes, desde que não usassem a sala de aula para fazer defesa dessas ideias". É claro que não se tratava de liberdade de cátedra, muito menos de unir teoria e práxis... De qualquer forma, havia poucos professores que "tinham conhecimento adequado do marxismo, inclusive os que se consideravam comunistas". O interesse vinha antes dos alunos. E as condições da modernização universitária empreendida pela ditadura, levaram, involuntariamente, a um "florescimento" do marxismo nos meios universitários.
Ao lado, incluí dois trechos de curioso documento do II Exército, feito em 1964, que reclamava que "O dispositivo comunista da Universidade de São Paulo está intacto, bem montado e em pleno funcionamento. O DOPS deteve apenas o Prof. MARIO SCHEMBERG, chefe ostensivo." O DOPS "foi ineficiente"; "a polícia secreta [...] não possui um só agente na Faculdade de Filosofia, coisa que, como é lógico, não terá passado desapercebida pelos comunistas.

Entre os professores comunistas, está listado Sérgio Buarque de Holanda. Emília Viotti é chamada de "Marxista furibunda". Vejam que os alunos eram obrigados a assistir às conferências, senão eram reprovados. Curioso conceito de violência para os militares, que inclui não poder gazetear (imposição dos professores), mas não tortura (prática dos órgãos de repressão). Carlos Guilherme Mota é um "Marxista violentíssimo". Imagino que ameaçasse os alunos com a leitura de O Capital inteiro. Mais outros eram incluídos, como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso (que havia fugido), como "marxistas conhecidos", e cuja cabeça era pedida.
Continuo a citar o livro de Rodrigo Patto Sá Mota: vários professores marxistas foram perseguidos e afastados do ensino, militantes do PCB (Mario Schenberg, "cuja prisão era de interesse dos Estados Unidos") ou não (Florestan Fernandes). Ademais, como era de se esperar no meio acadêmico, "oportunistas e delatores teriam se aproveitado da situação para fazer carreira com as vagas abertas, e pessoas influentes entre os militares se aproveitaram para eliminar desafetos."

Entre as pessoas influentes entre os militares que tinham interesse em afastar professores universitários, talvez o nome de maior destaque nos primeiros anos do regime tenha sido o de Gama e Silva (professor da faculdade de Direito da USP, foi Ministro da Educação por 2 semanas, reitor da USP e Ministro da Justiça), que fez expurgos da esquerda na USP, como já aludi em outra nota. Em outra, dei um exemplo de como a Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Educação e Cultura se preocupava com a literatura marxista nas universidades.
Vejam ao lado a preocupação, em 1969, com a possibilidade de greve dos estudantes em São Paulo em razão do afastamento forçado de professores por meio do AI-5 - que incluiu até Caio Prado Jr., embora ele não fosse professor da USP. O ato complementar que o sancionou teve que ser retificado...
No Informe secreto de 1964, a que antes me referi, já estava presente a informação de que Caio Prado não era professor da instituição.

A atividade dos ex-professores era acompanhada pelos órgãos da repressão. Vejam, no boletim do DOPS/SP de novembro de 1974, como se acompanhou o lançamento de livro de Paulo Emílio Sales Gomes (transformado pela polícia política em "Paulo Emidio"). Ele havia criado o primeiro curso superior de cinema, na Universidade de Brasília, em 1965, mas a experiência foi interrompida pela onda de cassações na UnB, que levou a uma demissão coletiva em protesto. Na ECA/USP, onde entrou em 1968, teve seu contrato cancelado, o que o fez pedir protestos de cinematecas de várias partes do mundo, e o reitor decidiu recontratá-lo.

A ofensiva contra o PCB no governo Geisel, que levou ao assassinato de alguns membros do partido, também se refletiu na área universitária, como todos sabem.
Um pequeno exemplo: vejam, neste pedido de busca confidencial do II Exército, de 15 de agosto de 1978, em que o governo acusava esse partido clandestino de fazer guerra psicológica adversa (segundo as categorias da doutrina de segurança nacional) empregando os intelectuais e os universitários:
a. O PCB vem realizando um intenso trabalho de recrutamento no meio de intelectuais e nos meios universitários, com resultados muito bons. Utiliza uma técnica muito eficiente e bem acobertada, tendo como palavra de ordem a de evitar ataques ao governo. Sua intenção é minar a infraestrutura moral, através de um trabalho de ação indireta.
b. Trata-se de difundir, sobretudo nos meios universitários temas que não sejam de ataque direto ao governo do Presidente GEISEL e sim contra as lideranças militares que devem ser acusadas de terem sido superadas pelas crises cíclicas internacionais e de não terem visão sociológica para a compreensão dos acontecimentos. Dessa maneira, essas lideranças são responsáveis por impedir que o Presidente GEISEL possa dar solução aos problemas econômico-financeiros que existem.
Impressiona a desfaçatez da ditadura de pretender que qualquer crítica ao governo fosse uma ação insidiosa comunista. Quanto à falta de "visão sociológica", este documento é uma das milhares de provas da cegueira governamental.
Em momentos como esse, é claro ver o papel dócil que a ditadura esperava que a universidade assumisse, ou seja, esperava-se que ela não fosse realmente uma universidade, e sim, talvez, um escolão, onde nenhum saber crítico possa nascer, ou seja, provavelmente o tipo de instituição que anuncia no programa de tevê a que o poeta Ferreira Gullar assistiu.

4. A respeito do poeta, que talvez tenha esquecido disto: faço notar que um eventual novo expurgo da literatura marxista no ensino superior (agora, em regime formalmente democrático, teria que ocorrer por outros meios, como decisões judiciais), não poderia deixar de banir os livros antigos de Ferreira Gullar.
Hoje, esse poeta não aprecia mais ensaios como Cultura posta em questão e Vanguarda e subdesenvolvimento, que considera exemplos de "aplicação um pouco esquemática do marxismo, que não tem mais validez", segundo entrevista que concedeu à Poesia Sempre (número 18, setembro de 2004). Na mesma entrevista, reclamou que os críticos dão valor excessivo ao caráter político de sua poesia, o qual só predominaria em Dentro da noite veloz (publicado em 1975).
É claro que, nessa afirmação, ele expurgou os fracos romances de cordel que escreveu nos anos 1960. No entanto, mesmo nos outros livros, haveria o que cortar. Vejam estes trechos do Poema sujo (1976):

__________pelo Brasil salve, salve
______Stalingrado resiste.



debaixo da pele, da carne,
combatente clandestino aliado da classe operária
______________meu coração de menino


e as bananas
__________fermentando
__________trabalhando para o dono - como disse
__________Marx -


e o obriga a apodrecer
_________________já que não pode fluir
_____debaixo das palafitas
_____onde moram os operários
de Fiação e Tecidos da Camboa


__________Prego a subversão da ordem
__________poética, me pagam. Prego
__________a subversão da ordem política,
__________me enforcam junto ao campo de tênis dos ingleses
 
_____________________________e que dizer das ruas
de tráfego intenso e da circulação do dinheiro
e das mercadorias
__________desigual segundo o bairro e a classe, e da
__________rotação do capital
__________mais lenta nos legumes
__________mais rápida no setor industrial [...]

Há mais; como falou a Ariel Jiménez, o livro tem esse título por que é "estilisticamente sujo", "é obsceno" e "porque fala de nossa miséria brasileira" (Ferreira Gullar conversa com Ariel Jiménez. Trad. Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2013). Há mais também nos outros livros. Vejam Na vertigem do dia (1980), que é concluído com uma promessa da revolução, "a espera":
Ninguém sabe de que forma desta vez a necessidade
se manifestará:
___________se como
___________um furacão ou um maremoto
se descerá dos morros ou subirá dos vales
se manará dos subúrbios com a fúria dos rios poluídos
Em Barulhos (1987), "O lampejo", em que o poema "acaba de ser expulso da Fazenda Itupu/ pela polícia"; ou "Sessenta anos do PCB", em que diz que desse partido que "quem contar a história de nosso povo e seus heróis/ tem que falar dele./ Ou estará mentindo." Nesse mesmo livro, "Omissão" caracteriza o eu lírico como "poeta político".
Acho genial esse poema: a "omissão" está na contemplação de frutas que apodrecem em cima da geladeira. O poeta estaria a adiar o futuro ao fazê-lo, deixando de lado a militância política? Não há omissão alguma: o poeta atento ao cotidiano doméstico, à materialidade e à morte é o mesmo que se interessou pelo cotidiano das ruas, à visão materialista da sociedade, e ao sofrimento social. Trata-se da mesma sensibilidade poética que o fez abordar tanto a luta de classes quanto os mecanismos naturais de devoração, apodrecimento e renovação. Fascinado, nesse poema, pelo "processo noturno da morte nas frutas", concede que
- é compreensível
que dês as costas à guerra das Malvinas
à luta de classes
e te precipites nesse abismo
de mel
que o clarão do açúcar nos cega
e diverte ser espectador da morte, que também é a nossa
Também é a nossa, ele afirma. Nas frutas apodrecendo, temos uma imagem da morte individual e da social, que se irradia, como o cheiro que, paradoxalmente, torna-se mais forte com o apodrecimento. Ademais, a memória é reativada nesse jogo - o que não surpreende, já que o pai de Ferreira Gullar possuía uma quitanda - e as frutas podres viram uma espécie de madeleine. e o fazem remontar à infância, como no genial "O cheiro da tangerina" de Barulhos, que cruza a  antiga casa em São Luís e atravessa a origem da flora, a cotação do dólar, o sexo anal, para enfim ele o provar.

Trata-se de uma poética materialista a seu modo, que, felizmente, não segue a ortodoxia de certas poéticas inspiradas no materialismo dialético.

Estaria o Ferreira Gullar cronista, hoje, seguindo uma ortodoxia reacionária e clichê? Ignoro. De qualquer forma, creio que sua poesia, tão mais complexa, nos fará esquecer das crônicas que escreveu. Talvez o próprio autor tenha pressentido algo dessa dualidade em Alguma parte alguma (2010): "Foi-se formando/ a meu lado/ um outro/ que é mais Gullar do que eu".

Nota: Os documentos foram pesquisados no Arquivo Público do Estado de São Paulo, com exceção do boletim do DOPS/SP, que encontrei do Arquivo Público Mineiro. Por sinal, ontem o portal deste Arquivo voltou a funcionar, depois do ataque eletrônico que sofreu há poucas semanas.