O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Desarquivando o Brasil CLVIII: Literatura, pesquisa e catástrofe: Seminário no IEL-Unicamp e artigo na ELBC

Agora que sabemos que a investigação do assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes foi barrada na portaria do condomínio de J. e C. Bolsonaro, e que a investigação está com uma promotora bolsonarista do Ministério Público do Rio de Janeiro, seria previsível que E. Bolsonaro, sinalizando tanto o acuamento quanto a esperança dessa família, evocasse a ditadura militar e o AI-5 para uma das jornalistas preferidas da extrema-direita. Continuamos atolados no terreno da apologia ao crime político e de sua impunidade.
Faz parte da catástrofe explícita que está no poder, situação em que o ocupante da presidência da república anuncia abertamente que estimulou o crime ambiental e a destruição da Amazônia ("Bolsonaro diz que 'potencializou' queimadas por nova política para Amazônia"), que o imaginário e os instrumentos da ditadura seja a todo o tempo convocados para a legitimação da plutocracia tornada em escatocracia (proponho esta palavra agora, pensando em escatologia).
Faz parte da catástrofe no poder o ataque à pesquisa e à universidade - outra floresta que a escatocracia que tomou o poder deseja ver reduzida a cinzas.
Fiz uma pesquisa de pós-doutorado no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas sob a supervisão de Eduardo Sterzi sobre justiça de transição e literatura brasileira contemporânea. Por essa razão, participarei do I Seminário dos Pesquisadores de Pós-Doutorado em Teoria e História Literária do IEL-Unicamp, que ocorrerá em 11 e 12 de novembro de 2019. Vejam a programação:


Um dos resultados da minha pesquisa foi este artigo publicado pela revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, "Poéticas da migrância e ditadura: exílio e diáspora nas obras de Julián Fuks e Francisco Maciel". Transcrevo o resumo:
O artigo trata da questão dos exílios e das migrações, em relação à ditadura militar, em dois autores da literatura brasileira contemporânea: Julián Fuks e Francisco Maciel. O romance A resistência (Fuks, 2015) é analisado segundo os conceitos de pós-memória (Hirsch, 2008) e privatização do trauma (Seligmann-Silva, 2014). Este romance, em sua tentativa de construir a memória da família relacionada ao exílio de pais argentinos e à adoção de um filho, retrata, nas dificuldades formais de escrever o livro, os problemas políticos do processo de justiça de transição no Brasil, em comparação com a Argentina. Na obra de Francisco Maciel, a discriminação racial contra a população negra é um tema central. A repressão política considerava que o movimento negro representava ameaça contra a segurança nacional. O artigo analisa a questão das migrações dos negros na obra de Maciel em termos de diáspora (Hall, 2003), e explica como ela não se torna apenas tema, mas também forma literária, no romance Não adianta morrer (Maciel, 2018). 
Interessaram-me as articulações entre a forma literária e o processo de transição política no Brasil, bem como as continuidades do imaginário autoritário, que agora assumiram o poder. Pretendo tratar ao menos desses autores e de Micheliny Verunschk no dia 11 de novembro. Espero ver como estarão o país e a progressão da catástrofe até lá; fato é que a situação não poderá ser sustentada nos atuais termos; precisa mudar para manter-se, ou então será erradicada.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O crime, os poderosos, o ridículo

O twitter de J. Bolsonaro publicou um vídeo ridículo com uma leão banguela e hienas o rodeando. Li diversos comentários sobre mais este pobre espetáculo de mau humor e catástrofe eleito em 2018 para produzir e gerir o caos, porém o elemento que me parece mais relevante é ele afirmar claramente que as grandes ameaças ao ocupante da presidência da república (digo ao ocupante, e não à própria presidência, ou ao Estado, já que ele reduz tudo o que é público ao que é pessoal e familiar), além do sistema partidário (não se trata apenas da oposição, pois ele inclui o próprio agrupamento político no balaio de inimigos, parece óbvio que seu problema continua sendo a democracia) não é o crime, mas as instituições que combatem o crime. Por isso entraram como inimigos o Supremo Tribunal Federal, que tem nominalmente a função de defender a Constituição do Estado, mas também pessoas jurídicas que têm como objetivo garantir o princípio da publicidade, que é, segundo já dizia Kant, a garantia do direito público: veículos de imprensa e também os partidos políticos.
A publicação recente de áudio do motorista Fabrício Queiroz, autor de cheques para a atual primeira dama e soi-disant negociador de cargos públicos no Senado, queixando-se de que o alegado autor da facada no então candidato Bolsonaro estava "hiperprotegido", mas ele, Queiroz, não, certamente impressionou não só em termos jurídicos e éticos como estilísticos. O país parece diminuído e ridicularizado com as pessoas e os fatos que estão a ocupar as pautas do noticiário.
A impressão continua com a revelação de mais uma suspeita de laços do ocupante da presidência da república com os assassinos de Marielle Franco (https://twitter.com/jairmearrependi/status/1189398735903772672), que certamente se tornará em escândalo mundial e outro vexame para o Brasil.
Em resposta, era previsível que a rede bolsonarista atacasse a liberdade de imprensa, ainda mais porque os aliados já sabiam de que a notícia irromperia, avisados por aquele ocupante. Por seu turno, o advogado daquele político falou de "forças ocultas" e ato terrorista "sem precedentes na história deste país", o que não me parece fazer sentido em relação à lei antiterrorismo.
Nunca entendi bem por que teriam sido justamente os perfis de apoio àquele então candidato à presidência da república que disseminaram milhares de notícias falsas sobre Marielle Franco, sem nem mesmo se importar de divulgar fotos que obviamente não eram dela.


Os apoiadores de políticos da extrema-direita precisam ter como alvo não só o que é verdadeiro, mas a própria noção de verdade; dessa forma, dinamitam a esfera pública, condição necessária para implodir a democracia.
A ação coletiva de criminalização da vítima e da esquerda incluiu a desembargadora Marília de Castro Neves Vieira, que espalhou a inverdade de que a vereadora executada estava "engajada com bandidos" e teria sido eleita com apoio de um grupo do crime organizado. Por sinal, a magistrada foi chamada a explicar-se neste ano por referir-se a uma "execução profilática" de um dos exilados políticos do bolsonarismo, Jean Wyllys, e deixar um coraçãozinho em ameaças a Guilherme Boulos. Ela reclamou da falta de humor da esquerda. Essa defesa é bem humorada ou ridícula?
Em reação às novidades (para o grande público) das investigações sobre a execução de Marielle Franco, que também resultou na morte do motorista Anderson Gomes, o ocupante da presidência gravou um vídeo destemperado que, apesar da gravidade do momento do país e do empenho histriônico do político, soa ridículo. Ele voltou a acusar garantes do princípio da publicidade, por algum motivo mencionou uma possível prisão de um de seus filhos, afirmou que não tinha motivo para matar ninguém no Rio de Janeiro, mas... algo leva ao riso do espectador, não obstante a seriedade do assunto e do momento do país.
Como o ridículo pode aparecer em discussões sobre crimes, até mesmo em crimes políticos? Alguns certamente lembrarão que o bolsonarismo acentuou a crise estética por que passa o Brasil, e que o belo desta "nova era" resulta de um grotesco (às vezes, de um kitsch) que pode suscitar o riso.
Concordo com essa opinião, mas acabei por lembrar de outra relação entre o crime e o ridículo, em contexto bem diferente, não brasileiro. Hannah Arendt, em sua última entrevista, dada a Roger Herrera em 1973, comentou uma reflexão de Brecht. Para esse escritor, se as classes dominantes permitem a um pequeno golpista engrandecer-se, isso não lhe conferiria uma posição privilegiada na história, mesmo que seus atos gerassem grandes consequências, pois esses chamados grandes criminosos políticos não têm grandeza alguma, seus crimes é que são imensos. Por isso, essas figuras devem ser expostas ao ridículo; Brecht arrematava com a afirmação de que a tragédia lidava com o sofrimento humano de forma menos séria do que a comédia.
Arendt reconhecia que essa afirmação era "chocante", mas concordava inteiramente com ela: "não importa o que ele faça, que ele tenha matado dez milhões de pessoas, ele ainda é um palhaço". Reconhecendo a importância do ofício do palhaço, poderíamos modificar a formulação da filósofa e sugerir que o golpista, por mais alto que tenha ascendido, continua ridículo.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Lançamento de O desvio das gentes no dia 24 de outubro

Nos idos do semestre passado, lancei um livro de poesia, Canção de ninar com fuzis, que foi objeto de resenha de Dirce Waltrick do Amarante, "Poeta critica o espírito bélico que tomou o país em livro", publicada em 28 de setembro n'O Estado de S.Paulo.
Em 24 de outubro, lançarei outro, O desvio das gentes, pela editora Patuá, com espírito diferente, pois trata de questões afetas ao cosmopolitismo como refugiados, tratados de livre comércio, união monetária, terrorismo, ajuda humanitária internacional, pandemias, declarações de direitos humanos e, claro, guerra. A Canção tinha muitos poemas que já haviam sido publicados, aqui ou alhures, no livro novo há bem menos.
Ele será lançado em São Paulo a partir das 18h30 na Biblioteca Pública Municipal Álvaro Guerra, Av. Pedroso de Moraes, 1919 (Pinheiros). Esse projeto foi realizado com apoio da Secretaria Municipal de Cultura - 2ª. Edição do Edital de Publicação de Livros na Cidade de São Paulo.



O título faz uma evidente alusão à expressão "direito das gentes", mas acho que ninguém havia ainda feito esse desvio.
No projeto aprovado, propus a criação de um blogue temático da criação da obra. Nunca havia feito nada de parecido (este blogue, embora tenha recebido o título de meu primeiro livro, só foi criado bem depois de seu lançamento, e nunca o teve como objeto), mas achei quase divertido criá-lo: https://odesviodasgentes.blogspot.com/
Nele, além de alguns poemas, podem-se ler a orelha escrita por Taís Franciscon, a notícia de que o lançamento será compartilhado com o do novo livro de Ruy Proença, Monstruário de fomes, uma notícia sobre Rinoceronte de Ronald Polito e, claro, entre outros assuntos, apontamentos sobre o projeto.
Na lista de blogues ao lado direito deste texto, pode-se acompanhá-lo, não parei de escrever lá.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Amazing Jessye

Jessye Norman morreu, aos 74 anos, no último dia 30 de setembro. Eu me lembro quando ouvi a voz dela pela primeira vez na adolescência, nos anos 1980, em um programa dedicado a vozes na Rádio MEC. Sérgio Britto, que, como se sabe, também foi uma grande diretor de ópera, explicava que não fazia sentido compará-la a Callas e que ela não iria bem se cantasse certos papéis da cantora grega.
A comparação não fazia sentido, claro, era coisa de jornalistas tentando achar alguma etiqueta na artista que eles passavam a conhecer. Jessye Norman tinha um repertório bem mais diverso, não só em termos de gênero (Callas cantou quase somente ópera, e sua única incursão em oratório foi gravada, mas apagada pela rádio), de estilos de época (cantou barroco e música contemporânea), mas também no campo dos idiomas, pois boa parte de suas melhores interpretações foram cantadas em alemão, francês e inglês.
Naquela década, as possibilidades vocais de Jessye Norman continuavam no auge. Eu nunca a vi ao vivo, embora tenha vindo ao Brasil, pois os ingressos eram caros. O primeiro elepê que tive dela foi o das 4 últimas canções de Richard Strauss, com Kurt Masur regendo a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig. Eles as gravaram, com outros Lieder (canções) em 1983. Comprei-o usado e fui depois à casa de um colega da faculdade por causa de um trabalho acadêmico, ele quis ouvir e ficou pasmo com a beleza do timbre. Essa era uma das primeiras impressões que Jessye Norman deixava, bem como a força da voz. O timbre permanecia profundo mesmo no pianíssimo.
Quando ela começa este poema de Hermann Hesse, "Frühling" (Primavera), com o verso "In dämmrigen Grüften", o grave impressiona; comparem esta frase inicial com a de Kiri te Kanawa, outra grande intérprete de Richard Strauss.
Kanawa, sem dúvida, tinha uma voz de soprano. Não era o caso de Jessye Norman que, embora tenha estreado como Elisabeth na ópera Tannhäuser de Wagner, um papel de soprano, e haja cantado outros papéis desse tipo vocal (nunca os mais agudos), sempre interpretou repertório de meio-soprano e de contralto. Quando Norman podia escolher uma tonalidade para interpretar determinada peça (o que, em regra, não é possível fazer em ópera, mas sim no gênero da canção), ela costumava escolher tonalidades, por assim dizer, medianas.
Uma coisa é extensão, outra é a tessitura. Um meio-soprano pode perfeitamente atingir os agudos de soprano; o problema é que não lhe será confortável ficar muito tempo na região mais aguda, ou suas notas não serão tão boas quanto as outras de sua extensão. Com o passar do tempo, a extensão no agudo de Norman diminuiu, o que é comum, e ela teve de deixar papéis como o de Sieglinde ou o de Ariadne na ópera de Richard Strauss, em que ela foi particularmente sublime. Felizmente, ela os pôde cantar por bastante tempo (assim como Waltraud Meier, uma mezzo, conservou por muitos anos Isolda no seu repertório - personagem que Norman não chegou a cantar no palco). Não porém, os do repertório italiano do século XIX e do início do século XX, que são, em geral, mais agudos. Provavelmente por isso, ela não seguiu o caminho de Leontyne Price (que foi Tosca, Aida, as duas Leonoras de Verdi...) e escolheu um caminho próprio, original, que incluiu a Alceste de Gluck, a Hélène de Offenbach, a Euryanthe de Weber e a Joana d'Arc de Tchaikovsky, em francês.
Algumas das notícias que saíram com sua morte, com a ignorância que predomina na imprensa diária, chegaram a declarar que Norman foi grande intérprete de... Aida, de Verdi, e Carmen, de Bizet. Absurdo, isso significa ignorar os tesouros que a cantora deixou, que estão em outros repertórios. Ela cantou Aida, mas logo deixou essa ópera, que nunca gravou, por sinal; nos registros ao vivo, via-se que ela alcançava o dó agudo de "O patria mia", mas a tessitura do papel era alta para ela (aqui, ela parece mais mezzo do que Fiorenza Cossotto, que canta Amneris; no dueto com o tenor, que não indico aqui, ela está realmente pisando em ovos; mas sua voz já tinha quebrado no início de "Ritorna vincitor"...). É sinal de surdez ou de ignorância sobre a carreira da cantora que parte da imprensa dos EUA também tenha destacado essa ópera. Ou de clichê racial: por ser uma cantora negra, logo ela teria que ser uma Aida, assim como Martina Arroyo e Leontyne Price...
Ela mesma declarou que recebeu diversas ofertas para cantar Aida, como Leontyne Price, mas que preferia as músicas francesa, alemã e austríaca, de Poulenc, Schubert, Mahler, Strauss e Wagner (por exemplo, nesta entrevista dada ao Finantial Times depois que ela publicou sua autobiografia, Now stand up straight and sing!, que ainda não tenho).
Em relação a Carmen, cuja tessitura é confortável para um meio-soprano, ela deixou um disco bem dispensável.
Sua voz, fundamentalmente, era de um meio-soprano com uma extensão excepcional, que lhe permitiu interpretar papéis de soprano durante bastante tempo e lhe franqueou incursões no registro de contralto. Ela pôde cantar sem problemas tanto a parte de contralto da Canção da Terra de Mahler (ouçam o final de "Da beleza") quanto o solo de soprano do Réquiem Alemão de Brahms. Tanto a parte de soprano quanto a de mezzo em Gurre-Lieder de Schönberg. Ou papéis, em ópera, cantados por essas duas vozes, como a Dido na ópera de Purcell (por exemplo, dublando a si mesma neste especial). Vejam como ela audivelmente está em casa cantando a "Chanson perpétuelle", de Chausson, em registro de meio-soprano. Essa interpretação e outras de música francesa (Ravel, Debussy, Offenbach, Poulenc...) bastariam para que os franceses escolhessem esta cantora estadunidense, com justiça, para vestir a bandeira francesa e cantar a Marselhesa no bicentenário da Revolução.
Alec Ross escreveu que o auge de Norman foi relativamente curto e que, nos anos 1990, ela já apresentava dificuldades vocais, especialmente no agudo. Discordo; para um meio-soprano que cantava papéis de soprano, suas notas mais altas resistiram bastante tempo, e só temos a agradecer que ela tenha se aventurado nesse repertório a que ela chegou mediante sua técnica vocal, e melhor do que outras intérpretes que, naturalmente, tinham vozes agudas.
Um exemplo disso: este crescendo quilométrico em "Beim schlafengehen", outra das 4 últimas canções de Richard Strauss (repertório que praticamente apenas os sopranos cantam), no trecho "Und die Seele". Aqui, ela conta uma história ótima sobre esse trecho, que é precedido por um solo de violino, cuja melodia é retomada pela voz. Jessye Norman faz outras cantoras, não tão providas de possibilidades de dinâmica, parecerem afônicas. Logo depois, quando ela canta "schweben", a voz parece realmente flutuar; em "tief", o grave faz-nos ouvir a profundidade dessa voz; e o agudo é seguro e radiante. O curioso é que a cantora faz tudo isso muito lentamente (seu controle respiratório era excepcional), os tempos adotados por Masur são bem mais largos do que os de outras gravações. Provavelmente Richard Strauss não imaginava ouvir tais canções assim, tampouco as outras que estão nesse disco (que inclui uma interpretação grandiosa de "Ruhe, meine Seele"), mas o que os intérpretes fazem nele me parece completamente convincente, e a voz de Jessye Norman soa incomparável.
No entanto, como sempre com os grandes intérpretes, a graça de Jessye Norman não estava tanto no quanto ela podia atingir, mas em como ela o fazia. A outra impressão que ela causava, confirmada quando a víamos cantar, era a de nobreza. Ela era uma rainha no palco, mesmo sem montagem cênica. Vejam-na neste concerto, cantando a Balada da Senta em O Holandês Errante (ou O Navio Fantasma), de Wagner: https://www.youtube.com/watch?v=2VBa3jj2Lwc
Nesse "como", estava sua dicção; ela tinha que ir para a canção de câmara. Certamente a abertura da boca contava para isso.Tiveram a boa ideia de destacar este trecho de uma masterclass de Thomas Quasthoff com o soprano Yana Eminova, e ele pede para a estudante imitar Norman na consciência de que o corpo é um instrumento. Vejam-na, em outro trecho daquele especial, dublar a si mesma na célebre canção de Schubert "Erlkönig", em que ela tem que encarnar três personagens, além do narrador. Ela interpreta com todo o corpo, mesmo com a economia de movimentos.
Nos papéis em que essa nobreza ficava deslocada, a cantora não costumava se destacar. Ela mesma dizia que não cantava o personagem principal da Carmen no palco por não ter o físico do papel; no entanto, decidiu gravá-lo com a regência de Ozawa, e a gravação é completamente dispensável, em boa parte por causa dela, que canta a Habanera como se fosse uma oração (houve quem selecionasse este momento como exemplo de canto entendiante)... Mesmo em recital, ela podia destruir esse ritmo de dança e interpretá-la lentissimamente.
No final da Balada, vê-se que o agudo está presente e estável, mas não é o de um soprano dramático como Birgit Nilsson. Norman destacou-se nos papéis que os alemães chamam de jovem soprano dramático, como Elsa (de Lohengrin, de Wagner) ou a Elisabeth. Os papéis mais pesados estavam fora de seu alcance; ela tentou gravar Isolda, tendo cantando algumas vezes a cena final (aqui, Karajan cria, antes do clímax, que é realmente fortíssimo, um som quase camerístico para a cantora), mas desistiu, e não aconselho a ver a tentativa de cantar a Imolação de Brünnhilde com Masur regendo, pois ela transpôs para baixo todos os agudos. Nem em estúdio ela fazia muito bem, como notou Paul Corfield Godfrey nesta resenha ao disco Wagner que ela gravou com Klaus Tennstedt.
Jessye Norman estreou em Berlim em 1968 no papel de Elisabeth; ela conta como foi a curiosa história dessa audição nesta palestra no Instituto Aspen. Com isso, ela repetiu o destino de tantos grandes cantores líricos nascidos nos EUA, o de terem que ir para a Europa para poder fazer, depois, carreira no país natal. Aconteceu com Maria Callas, mas também, nos dias de hoje, com Joyce DiDonato. Uma vergonha para o Metropolitan Opera House que Norman só tenha estreado lá em 1983, como Cassandra na ópera Os Troianos, de Berlioz (papel muitas vezes cantado por meio-sopranos). Somente hoje, quando decidi escrever esta lembrança, descobri que existia este vídeo da queda de Cartago!
Assim como é interessante notar que tantos dos maiores intérpretes de Wagner foram judeus, a começar, na vida do compositor, por Lili Lehmann e Hermann Levi, era divertido ver como Norman, uma cantora negra, destacava-se em um repertório germânico que os racistas e/ou neonazistas acreditariam reservado para as intérpretes brancas. Ela não foi, porém, a primeira a triunfar no mundo da ópera. Em 1961, Grace Bumbry foi a primeira cantora negra a cantar no templo de Wagner, o teatro de Bayreuth, no papel de Vênus em Tannhäuser. Leontyne Price, na mesma época, cantou com Karajan em Salzburgo e em outras cidades. Shirley Verrett, Reri Grist e Martina Arroyo também, nos anos 1960, destacavam-se no repertório lírico. Entre os homens, lembro agora de Jess Thomas, que estreou em Bayreuth como Parsifal em 1961, e Simon Estes.
De qualquer forma, Jessye Norman também teve de superar as barreiras do racismo e o fez não só interpretando essa música europeia, mas também a música negra estadunidense, o jazz (este gênero, com mais ênfase nos últimos anos, quando praticamente não cantava mais ópera) e especialmente o spiritual, que ela transportou a alturas transcendentes. Ela costumava interpretar spirituals nos seus concertos com piano, e um de seus êxitos mais populares foi o concerto que fez com outra cantora lírica estadunidense, Kathleen Battle, dedicado apenas a esse repertório, com regência de James Levine. É muito bonito ouvir o contraste entre o soprano de Battle e o meio-soprano de Norman.
À diferença de outras divas, Norman não recuava diante da música do século XX e cantou tanto Stravinsky (que ela apreciava tanto quanto Mozart) quanto Schönberg (incluindo o monograma atonal Erwartung; é interessante o que ela diz sobre a peça nesta conferência em 2007 a partir dos 22 minutos), bem como nomes posteriores.
Entre várias apresentações públicas, Jessye Norman cantou, na comemoração pública dos 70 anos de um dos maiores líderes políticos do século XX, Nelson Mandela, "Amazing grace" (ela não escolheu, evidentemente, uma tonalidade para soprano). Como ela gostava de terminar seus recitais com um spiritual ou com algum hino cristão, em homenagem à grande artista, escolho o mesmo hino do século XVIII, mas numa interpretação mais íntima: https://www.youtube.com/watch?v=dneH1XPT4z8

P.S.: Como ela não dava apenas um bis, deixo ainda uma passagem de contralto que Jessye Norman iluminava imensamente tanto acompanhada por piano quanto por orquestra, no contexto da Terceira Sinfonia de Mahler, "Urlicht". É lindíssima e diz, com toda simplicidade, "eu vim de Deus, eu voltarei para Deus".

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Se o acidente fosse um Stradivarius, ou Vitor Ramil em viagem com Angélica Freitas

Assisti, no dia 26 de setembro, no SESC 24 de Maio, em São Paulo, ao espetáculo "Avenida Angélica". Vitor Ramil, sozinho no palco (acompanhado, por assim dizer, das interessantes projeções de Isabel Ramil), apresenta as composições que fez a partir dos poemas de Angélica Freitas. Uma delas é esta, "stradivarius", que gravou em seu último disco, "campos neutrais": https://www.youtube.com/watch?v=YwaqSMl-Flc
O espetáculo, que estreou em julho deste ano em Porto Alegre, parece estar em transformação. Algumas das composições, Ramil anunciou, haviam sido terminadas há apenas duas semanas. Com voz e violão, ou só com a voz, ele apresentou, naquele dia, as canções correspondentes aos seguintes poemas:
1 - ringues polifônicos;
2 - o que passou pela cabeça do violinista em que a morte acentuou a palidez ao despenhar-se com sua cabeleira negra & seu stradivárius no grande desastre aéreo de ontem [como canção, ganhou um título mais curto, "stradivarius", sem acento como no original em latim];
3 - cosmic coswig mississipi;
4 - treze de outubro;
5 - siobhan 4;
6 - "ai que bom seria ter um bigodinho";
7 - uma mulher insanamente bonita;
8 - mulher de rollers;
9 - "só";
10 - a mina de ouro de minha mãe & de minha tia;
11 - família vende tudo;
12 - mulher de malandro;
13 - r.c;
14 - rilke shake.
O músico sugeriu que o público pedisse bis; foi atendido e voltou para mais estas:
15 - versus eu;
16 - "é o poema da mulher suja";
17 - vida aérea.
Com exceção dos números 8, 12 e 16, de Um útero é do tamanho de um punho, os poemas pertencem ao livro Rilke shake. O espetáculo conta com vídeos e projeções de Isabel Ramil, filha do músico, que incluem a curiosa ilustração e o método para "ai que bom seria ter um bigodinho", um homem que retira mil objetos de uma casa, e uma furiosa escovação de dentes, bem no espírito da poesia da autora, com seu forte ativismo de gênero.
Impressiona que um homem tenha conseguido, com sucesso, musicar estes poemas com uma agenda feminista tão destacada. O fenômeno explica-se porque o importante músico (e romancista, autor de Satolep) Vitor Ramil demonstra desde sempre uma séria veia literária, não só nas letras do próprio punho, mas na escolha dos autores que musicou, como Borges, António Botto e Khlébnikov em tradução de Haroldo de Campos. Não é de estranhar que, desde 2008, ele esteja se dedicando a sua conterrânea de Pelotas.
Curioso, no entanto, notar que o primeiro poema que se transformou em canção, o segundo do espetáculo, gravado em "Campos neutrais", tenha sido justamente o poema que revelou, por assim dizer, a vocação de Angélica Freitas. Isso ocorreu em uma oficina literária ministrada por Carlito Azevedo. Ela já contou a história mais de uma vez, deixo aqui a referência desta conversa com Alexandra Lucas Coelho: "Diz-me com quem te deitas, Angélica Freitas". O poema foi escrito a partir do célebre "O desastre aéreo de ontem", de Jorge de Lima, como exercício de escrita, e deu tão certo que agora caiu de vez no campo da música.
O motivo do poema é uma viagem interrompida por acidente. No palco, curiosamente, estavam as poltrona de uma van, sugerindo que todo o espetáculo era também uma viagem (não aérea, no entanto). Ramil, com efeito, conta dos poemas que musicou em viagens nesse veículo. Há muita cidade na poesia de Angélica Freitas, evidentemente, e o músico toma a imagem da "Avenida Angélica" em "ringues polifônicos". Não se trata apenas do logradouro de São Paulo "entre paulistas voadores e portadores esvoaçados/ de baseados no bolso das calças jeans", mas os caminhos abertos pela poética da autora, que parece prometer uma via acidentada aos leitores; lembro de "mulher de rollers":
"essa daí vai acabar
como na música do chico"
"vai passar na avenida
um samba popular?"
"não, atrapalhando o tráfego"
A peculiar aliança da graça da escrita de Angélica Freitas com o seu fundo sério, o de que a poesia nos move e encarna um perigo mortal (por isso a referência a "Construção", de Chico Buarque, no último verso, a canção-memorial da morte de um operário de construção) deve ser o que mais choca os conservadores, na literatura e/ou na política. Exemplo recente foi o de certo deputado estadual de Santa Catarina, do partido de extrema-direita do ocupante da presidência da república, que propôs em setembro de 2019 uma moção de repúdio, não aprovada, a Um útero é do tamanho de um punho.
Ao longo do espetáculo "Avenida Angélica", vários transportes são referidos, alargando o espectro da imagem. Foi incluído o belo poema sobre a namorada estrangeira, "siobhan 4", que ela conheceu no exterior. Ademais, a poesia de Freitas, com suas diversas referências à música (Stravinsky, Rita Lee, Roberto Carlos), tirou Ramil de seu lugar único de "astronauta lírico" e o fez compor, pela primeira vez, blues ("cosmic coswig mississipi"), bem como alguns sambas e, ele o diz no palco, algo inusitado para quem declarou não ouvir as "canções do rádio" (ao contrário de Angélica), uma canção à maneira de "r.c.". Sobre este caso, Vitor Ramil fez a  justa ressalva de que "tem umas palavras que ele [o r.c.] não diria", tendo em vista, imagino, o caráter demasiadamente convencional daquele velho compositor que agradeceu a Pinochet.
O espetáculo também é uma viagem no sentido de que está se movimentando: novas canções estão sendo compostas, duas canções ainda estão sem harmonia, vemos um "trabalho em progresso".
Se esta poesia fez este Ramil transportar-se para outras paragens musicais, foi porque ele a leu bem: a viagem é uma das ideias mestras desta poesia. Provavelmente continuará sendo: eu vi a poeta no ano passado apresentar-se com Juliana Perdigão, sua esposa (que também a gravou no disco "Folhuda"), um poema com base na morte do padre que alçou voo com balões. Trata-se de um correlato ainda mais inusitado do acidente aéreo que faz pensar nas notas musicais. Na revista Piauí, em abril de 2018, Angélica Freitas publicou "Canções de atormentar", em que diz:
quem vai para o mar terá medo
que o seu navio se espatife num rochedo
quem é do mar e vai para a terra
sabe que no final se ferra
à sua cauda não se aferra
nem na grécia, nem na inglaterra
Novamente, o acidente e a viagem; o que se espatifa com eles, a nacionalidade? Tentei pensar algo a respeito em um ensaio que publiquei primeiro na revista portuguesa Telhados de vidro, depois em um livro organizado por Gustavo Silveira Ribeiro, Tiago Guilherme Pinheiro e Eduardo Horta Nassif Veras, Poesia contemporânea: reconfigurações do sensível.  Em "A perda da terra e a poesia contemporânea brasileira", escrevi, em contraste com a noção de nacional por subtração de Roberto Schwarz, que "na poesia de Angélica Freitas temos algo muito diverso: a experiência da nacionalidade no sentimento de ser estrangeiro, e a reação a isso por meio do acolhimento do outro na própria poesia, e esse é o sentido cosmopolita da literatura.".
Creio que Vitor Ramil soube interpretar bem esse duplo sentido de acolhimento e de estranhamento na poesia de Angélica, que foi apresentado, de forma bem adequada, em uma série de música de fronteira coordenada por Benjamin Taubkin no SESC-SP.