O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Desarquivando o Brasil XVII: Presos políticos e incomunicabilidade

Amanhã, dia primeiro, vou apresentar uma rápida comunicação (dez minutos) no V Congresso Brasileiro de História do Direito, que está sendo realizado pelo Instituto Brasileiro de História do Direito (IBHD) em Curitiba, no auditório da reitoria da UFPR.
O que falarei tem por título "Incomunicabilidade dos presos políticos durante a ditadura militar no Brasil". Como escrevi no resumo:

O direito de defesa, no tocante aos presos políticos, era comprometido pelo regime de incomunicabilidade, que era empregado geralmente pelas autoridades policiais como um período de torturas e abusos, que eram uma prática institucional, porém desprovida de formalização legal. O trabalho analisa documentos reservados, secretos e confidenciais do Ministério do Exército e da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (disponíveis no Arquivo Público do Estado de São Paulo), para mostrar como esse regime de incomunicabilidade era, na prática cotidiana dos órgãos de repressão política, usado para propiciar aqueles abusos, e como ele era instituído de forma ilegal, mesmo dentro dos parâmetros jurídicos da legislação de exceção.

Um pequeno trecho:

Ainda no governo Geisel, o problema permanecia. Entre as Resoluções do Congresso Nacional pela Anistia, de novembro de 1978, temos esta, do Programa Mínimo de Ação:

"Fim do tratamento arbitrário e desumano contra os presos políticos. Investigar as condições a que estão submetidos todos os presos políticos. Denunciar as arbitrariedades que contra eles se cometem e manifestar, por todos os meios, o seu protesto e o seu repúdio. Exigir a liberalização da legislação carcerária. Lutar contra a incomunicabilidade dos presos políticos."

A campanha pela anistia defendia o fim da incomunicabilidade, e era enquadrada como “propaganda adversa” contra o regime pelas autoridades policiais. Há diversos casos de indiciamento, [...] O panfleto, do CBA/SP (Comitê Brasileiro pela Anistia/ São Paulo), corretamente relacionava o período de incomunicabilidade com a prática de tortura:

"O CBA/SP, vem acompanhando com extrema preocupação todos esses fatos, e particularmente a situação das 6 pessoas presas arbitrariamente em Brasília desde a semana passada. Essa situação se torna ainda mais aflitiva quando sabemos que estes 6 companheiros estão mantidos em regime de incomunicabilidade. E este período garantido pela própria Lei de Segurança Nacional, tem servido quase sempre à prática das mais infames torturas, através das quais se procura inventar acusações e forjar processos."

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Desarquivando o Brasil XVI: Ministério Público Federal, cinema e direito à memória

Normalmente não transcrevo material alheio aqui, mas, na lista do Idejust, pediram para ajudar a divulgar este Ciclo de Filmes, Memória e Verdade, do Ministério Público Federal. Trata-se de uma iniciativa em prol da justiça de transição - vejam, no texto, à referência à condenação que o Estado brasileiro sofreu no Caso Araguaia pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Creio que a iniciativa é muito importante politicamente, juridicamente e pedagogicamente.
Depois de mais de dez anos dando aula, em geral a única ignorância que me surpreende é a minha; a dos alunos é, em geral, muito mais previsível (o inverso também vale: surpreendo-me muito mais com achados interessantes deles do que os meus, até porque os meus são poucos). Porém, na semana passada, levantei as sobrancelhas quando, depois que me referi a livro de Bruno Amaro Lacerda e Mônica Sette Lopes, Imagens da Justiça, que resenhei, um aluno ficou muito intrigado com a ideia de que problemas de direito poderiam ser tema de composições musicais!
Sem levar em consideração a ignorância musical do aluno (problema generalizado para quem só ouve música industrializada), pensei (eu, que gosto de levar música para a sala de aula) que o problema era mais profundo, o de não perceber que o direito faz parte dos elementos de uma cultura e, portanto, não se manifesta apenas nos autos. Trata-se da questão antropológica das sensibilidades jurídicas. É muito constrangedor para um aluno de direito não ter consciência disso - e, no entanto, essa grave deficiência é comum. Enfim, eu é que estava ignorante dessa quase "mutilação" cognitiva.
O ensino pseudotecnicista do direito, generalizado no Brasil (afinal, os bacharéis, em sua esmagadora maioria, formam-se incapazes de exercer a advocacia), gera uma cegueira grave também nesse aspecto. E a cegueira antropológica tolhe as inovações na técnica jurídica, evidentemente, pois a imaginação jurídica exige uma sensibilidade cultural aguçada. Não acredito em criação no direito desvinculada da sociedade e da cultura. Não se cria norma jurídica em tubo de ensaio.
Outra questão é a da criação artística - não defendo que se pise na garganta do canto (usando a expressão de Maiakóvski) em nome de uma ideologia. Prefiro algo mais complexo, como o que faz o jurista e poeta Julián Axat, membro da HIJOS, que já entrevistei aqui e alhures; ele não instrumentaliza a literatura em prol de determinado ideal político, e sim gera tensões e interfaces entre arte e política extremamente criativas.
O Ministério Público Federal brasileiro está a fazer a aposta certa neste Ciclo. E tem o mérito de não incluir apenas filmes brasileiros: assim como a onda de ditaduras foi continental, e os governos militares condoreiramente colaboraram entre si, é preciso ver os esforços para a justiça de transição no âmbito da América Latina - e também colaborar com essas redes internacionais.



25/08/11 – MPF exibe em São Paulo e Brasília filmes sobre ditaduras latinoamericanas


Ciclo de filmes Cine Memória e Verdade será exibido simultaneamente nas duas unidades do MPF na Capital e na PGR em 2 de setembro

Durante o próximo dia 2 de setembro, na Procuradoria Geral da República, em Brasília, e nas duas unidades do MPF na Capital de São Paulo (Procuradoria da República e Procuradoria Regional da República) será exibido o ciclo de filmes Cine Memória e Verdade, projeto desenvolvido pelo Grupo de Trabalho Direito à Memória e Verdade da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.

O objetivo do evento é, por meio de um dia de mobilização nacional, sensibilizar servidores e membros do MPF e todos os demais interessados para o tema da Memória e Verdade. Outras unidades do MPF pelo país também devem exibir os filmes*. O MPF está engajado em fazer a sua parte para que o Estado brasileiro cumpra a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes/Lund (Guerrilha do Araguaia), de novembro de 2010.

A sentença condena o Brasil a uma série de ações com caráter imediato, visando à localização dos corpos ainda desaparecidos, à abertura de arquivos, assim como reparações às famílias das vítimas. Também exige do Estado tanto medidas judiciais efetivas para a responsabilização individual pelos crimes cometidos, como outras de caráter mais geral objetivando o resgate da Verdade Histórica sobre os fatos ocorridos.

O ciclo de filmes antecede uma iniciativa da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, que realizarão, em conjunto com o Ministério da Justiça e o Centro Internacional para a Justiça de Transição (ICTJ), o I Workshop Internacional sobre Justiça de Transição, voltado para Procuradores da República, nos próximos dias 12 e 13 de setembro, em Brasília.

Antes de cada filme (a programação será idêntica em todas as unidades que exibirem o ciclo) será exibido o curta “Anistia 30 Anos” produzido pela Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça.

Segundo a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Gilda Carvalho, a exibição de filmes que retratam situações vivenciadas nesse momento histórico da República brasileira tem por objetivo chamar à reflexão os agentes públicos para que episódios como esses jamais voltem a ocorrer. O Procurador Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, Jefferson Aparecido Dias, ressaltou que “é extremamente importante que busquemos incansavelmente a verdade sobre o nosso passado para que, no futuro, não sejam cometidos os mesmos erros".

O Cine Memória e Verdade é uma iniciativa do Grupo de Trabalho Memória e Verdade da PFDC e é uma realização conjunta da PFDC e unidades do MPF. O evento tem apoio da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP).

* Além da PGR, PR-SP e PRR-3, já confirmaram que exibirão os filmes as Procuradorias Regionais da República da 1ª Região (Brasília), 2ª Região (Rio de Janeiro) e 5ª Região (Recife) e as Procuradorias da República nos estados do AP, CE, ES, GO, PA, PR, RJ, SC e SE.

PROGRAMAÇÃO - CINE MEMÓRIA E VERDADE

Programação - Procuradoria da República em São Paulo:

2 de setembro de 2011

11h - Sônia Morta e Viva
Documentário. Brasil. 1985. Direção: Sérgio Waisman. Duração: 45 min.
Trajetória da militante revolucionária Sônia Moraes Angel Jones.

13h - A História Oficial (La Historia Oficial)
Drama. Argentina. 1985. Direção:Luis Puenzo.
Elenco: Norma Aleandro, Héctor Alterio, Chunchuna Villafañe, Hugo Arana e Guillermo Battaglia
A História Oficial foi um dos dois filmes produzidos na América Latina a receber o Oscar de melhor filme estrangeiro (o outro foi O Segredo de Seus Olhos, em 2010). O filme conta a história de uma professora da classe média argentina que descobre que a criança que adotou pode ser filha de presos políticos da ditadura militar (1976-1983).

15h - Vala Comum
Brasil, 1994. Direção: João Godoy. Documentário. 30 minutos.
A partir de uma vala comum clandestina encontrada no Cemitério de Perus na cidade de São Paulo, um passado mantido oculto emerge para exumar uma parte da história recente do país.

17h - Que Bom te Ver Viva
Brasil, 1989. Direção: Lucia Murat. Parte documentário, parte ficção. 100 minutos.
Mistura os delírios e fantasias de uma personagem anônima, interpretada pela atriz Irene Ravache, alinhavando os depoimentos verídicos de oito ex-presas políticas brasileiras que viveram situações de tortura.

INGRESSOS GRÁTIS - Na Procuradoria da República em São Paulo (rua Peixoto Gomide, 768), os ingressos destinados ao público externo serão distribuídos uma hora antes de cada sessão, na recepção da unidade, ao lado do auditório, onde será exibido o filme.

Assessoria de Comunicação
Procuradoria da República no Estado de S. Paulo
Mais informações à imprensa: Marcelo Oliveira
11-3269-5068
ascom@prsp.mpf.gov.br
www.twitter.com/mpf_sp

Heine, orador público

Eu havia escrito que sairia uma tradução de excertos do livro Situações Francesas que Heinrich Heine publicou em 1832. Pois está nesta ligação.
Pensei originalmente em um certo filósofo suíço, mas achei que Heine era muito mais interessante para a revista, pois é muito menos traduzido no Brasil. Uma exceção recente é a antologia Heine, hein? Poeta dos contrários, que André Vallias traduziu e organizou.
O ideal seria traduzir o livro inteiro; fica a ideia para alguma editora de qualidade.
O livro tem uma de suas linhas de força na defesa do exercício público da razão pelos intelectuais e escritores em favor dos direitos humanos - isso teria sido feito na França, e foi muito importante para a Revolução. Já na Prússia, algo de bem diverso acontecia:

Hegel teve que justificar como racional a servidão, a ordem existente. Schleiermacher teve que protestar contra a liberdade e aconselhar a resignação cristã diante da vontade da autoridade. Revoltante e infame é esse uso de filósofos e teólogos, por intermédio de quem se quer influenciar as pessoas comuns, e que foram coagidos, por meio da traição à razão e a Deus, a se desonrar publicamente.

Heine, reagindo contra o influxo reacionário da repressão ao liberalismo alemão, da interdição de reuniões públicas, do cerceamento do direito de associação e do recrudescimento da censura, assume ele mesmo essa voz:

Por força de meu diploma acadêmico como doutor,[...] por força de meu dever como cidadão, [...] por força de minha autoridade como orador público, proponho minha queixa contra quem elaborou essa ordem, queixo-me em nome da majestade ofendida do povo, queixo-me pela alta traição contra o povo alemão.

Ele se queixa como diplomado em direito, como orador público e também como cidadão. Creio que esse ponto é fundamental: o intelectual não tem procuração para falar em nome dos cidadãos; ele fala nessa mesma condição dos outros.
O intelectual, dentro de sua especialidade, trará a contribuição do seu olhar e do seu saber. Os outros cidadãos também deverão fazê-lo.

sábado, 27 de agosto de 2011

Nuno Ramos e o trabalho do informe

Já escrevi sobre a literatura de Nuno Ramos até O pão do corvo, de 2001, em um artigo publicado pela antiga revista Rodapé. Aqui, neste blogue, ousei meter a colher na polêmica sobre Bandeira branca, obra que acabou tendo sua permissão cassada pelo mesmo e inacreditável órgão que autorizou o projeto possivelmente genocida de Belo Monte.
Os professores Simone Rufinoni e Tercio Redondo convidaram-me para participar de uma livro sobre literatura contemporânea, encomendando algo sobre aquele escritor. Eu iria escrever apenas sobre O mau vidraceiro, mas não resisti e incluí Ó, que é um livro de que gosto muito (reconhecendo, no entanto, que os interlúdios líricos são inferiores às outras partes).
O livro vai ter artigos muito mais interessantes do que o meu (sei que, além dos organizadores, ele contará com Viviana Bosi, Fábio de Sousa Andrade, Priscila Figueiredo e Fabio Weintraub - não sei quais são os outros); talvez o que eu tenha escrito de curioso seja a aproximação do informe em Nuno Ramos com o de Sérgio Buarque de Holanda. Cito apenas um trecho, que começa aludindo a "Eu", de O mau vidraceiro:

A desumanização do eu nesse impressionante texto, com sua transformação incessante em elementos inorgânicos como neve e chumbo até o nada, dá-se de forma paralela com a invasão da casa pelo patrão-senhor. O espaço da casa é indistinto do espaço do trabalho, a propriedade do empregado é indistinta do domínio do patrão, o corpo do empregado confunde-se aos elementos. Muito significativo é que na casa o patrão encontre o cupim: esse animal também se dedica a destruir as formas.
Na bela alegoria do nascimento presente em “Quem fala?”, o homem inventado passa por algumas formas até virar búfalo e pedir o cabresto: “Repito: quero o meu cabresto! Quero a minha língua molhada, inerte dentro da boca. Não a língua da fala, mas a língua que lambe o sal.” (p. 78). O cabresto servil? O voto de cabresto, pelo qual o trabalhador referenda a voz do patrão? A conversão do humano em animal serve de alegoria para a vedação do espaço público.
Em “Judas!”, uma vítima de bala perdida “em plena paulista” (p. 153), que não tem o projétil retirado de seu corpo, atrai inexplicavelmente a hostilidade de todas as pessoas (o que parece explicar o título) e termina deitada na calçada sob coisas que lhe atiraram ou a ela amarraram. Se ela está na calçada, local público, tudo o que se lhe amontoa são objetos privados: “meias, móveis, eletrodomésticos [...] e peixes de aquário.” (p. 155). A invasão do público no corpo – a bala perdida – é respondida ferozmente com a invasão pela esfera privada, que busca ocultar, com sua miríade de elementos domésticos, a pública chaga.
Podem-se ler, em momentos como esse, a recusa à política do Estado e a permanência das formas privadas de dominação, que subsistem por meio do “mundo sem forma”, que Sérgio Buarque de Holanda verificou na insuficiente ou frágil institucionalização da esfera pública no Brasil.
Ó apresenta momentos semelhantes. “19. Coisas abandonadas, gargalhada, canção da chuva, previsão do tempo, tecnologia, ida à Lua, ida à Marte” antecipa essa imagem de “Judas!” neste excerto: “Um amontoado de móveis no meio da rua deve ser deixado assim e a urina do cão que o lambuza, o mendigo que o habita, o mofo que vai aos poucos tomando conta do falso corino marrom ou da cambraia estampada são bem-vindos.” (p. 208). O mesmo estatuto é dado aos animais, aos homens e aos fungos na putrefação no/do espaço público.

Ainda não sei quando sairá o livro.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Matrimônio igualitário e o princípio da igualdade

O título parece redundante, mas tem sua razão. Escrevi neste mês para o Amálgama sobre o matrimônio igualitário, assunto que já ocupou cinco notas neste blogue (a última, a propósito de certo tributarista católico). Não se trata de um texto acadêmico, nem de longe; elaborei algo para o público em geral.
Nele, citei pareceres de constitucionalistas portugueses (principalmente Carlos Pamplona Côrte-Real), invoquei Bentham com o "aumento do estoque de prazeres que toda pessoa (homem ou mulher) tem em seu próprio poder" e fui aos tempos da Assembleia Constituinte que gerou o texto constitucional vigente (na área de história do direito, não há muita gente que trabalhe com esse material dos tempos da presidência de Sarney).
José Genoino apresentou emenda para que se incluísse, entre as vedações de discriminação, a por "orientação sexual". Ela acabou sendo derrubada. Enquanto ainda estava de pé, havia deputados-pastores que viam nela a consagração de uma anormalidade, e outros constituintes que a defendiam, no entanto, em termos discriminatórios. Um exemplo foi Alceni Guerra que, em 1º de junho de 1987, comentou o trabalho da Subcomissão VII-c (Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias), na qual atuou:

Uma abordagem sobre a criminalização da discriminação, que não existia na Constituição anterior, está premiada aí. E, no § 1º quando se específica que ninguém será prejudicado, ou privilegiado, em função de diversos fatores, eu chamaria a atenção para uma expressão extremamente polêmica e que foi uma das duas votadas no substitutivo, que é a palavra orientação sexual." A polêmica, ao redor dessa expressão, foi muito grande; foi objeto de votação e, por uma larga maioria, permaneceu, aqui, no nosso anteprojeto. A expressão "orientação sexual" que definiu uma prevalência, em relação a outras expressões, reivindicadas pelos homossexuais, que compareceram e expuseram suas razões na Subcomissão, ela tem uma força de expressão, uma força dialética, acentuada, inclusive, pelo Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais, que fez o Anteprojeto Afonso Arinos. S. Ex.ª acha que, realmente, a expressão "orientação sexual" é adequada para se colocar num texto constitucional, ao contrário de comportamento sexual, que daria outras interpretações, ao contrário de homossexualismo, que daria outras conotações. Parece-me que a razão dela estar aqui não é para configurar práticas, como casamento entre homossexuais, ou para permitir uma maior liberdade de atuação para os homossexuais; ao contrário, ela está colocada, aqui, neste texto, para se qualificar o homossexual como um indivíduo absolutamente igual aos outros, perante a lei.

Há um problema grave de raciocínio nesse trecho; ora, como o homossexual pode ser "igual aos outros, perante a lei", se lhe são vedados o casamento e os direitos dele derivados? A igualdade perante a lei deveria gerar direitos iguais; esse constituinte, pelo contrário, não queria "casamento entre homossexuais" e "uma maior liberdade de atuação para os homossexuais".
Outra deficiência flagrante do discurso é a violação de um mínimo senso de realidade; qualquer um poderia constatar em 1987 que não havia essa "liberdade de atuação". Houvera, o "armário" não precisaria existir; houvera, homossexuais não seriam mortos nem espancados devido a sua simples orientação sexual. E isso continua a acontecer em 2011.
O nome dessa particular incompatibilidade com a realidade e a razão chama-se homofobia.
No texto para o Amálgama, lembrei da eficácia normativa do princípio da igualdade. E ora leio Matrimonio igualitario: Intrigas, tensiones y secretos en el camino hacia la ley de Bruno Bimbi, que conta a trajetória que culminou na aprovação da lei argentina que acabou, naquele país, com a discriminação contra homossexuais no direito ao casamento.
Bimbi conta que foi a lei espanhola de 2005 que inspirou a militância argentina (mas nem todos militantes concordaram...) a seguir o caminho da luta pelo casamento, e não pela simples união civil.
Pedro Zerolo, assessor de Zapatero, havia convencido o Primeiro Ministro da Espanha a defender o projeto, enfim vitorioso, que acabou com aquela discriminação. Zerolo foi a Argentina em 2006 falar da lei espanhola na Câmara dos Deputados. Escreve Bimbi, que se encarregou da agenda do assessor de Zapatero daquele lado do Rio da Prata: "Pedro hablaba de matrinonio, explicando el porqué de la consigna 'Los mismos derechos con los mismos nombres' y contando cómo la derecha española, para impedir la conquista de la igualdad jurídica, había impulsionado la 'unión civil'[...]" [p. 31].
Se os cidadãos são iguais, devem ter "os mesmos direitos com os mesmos nomes" - não outra é a eficácia normativa do princípio constitucional. O matrimônio igualitário decorre do princípio da igualdade - é necessário repetir essa noção, para que os antolhos da homofobia não continuem a cercear a visão político-jurídica.
Do outro lado do Rio da Prata, as coisas andam mais atrasadas. No Congresso brasileiro, nem mesmo um status jurídico inferior para os casais do mesmo sexo foi aprovado ainda: a mera "união civil" ainda é o máximo que parlamentares de esquerda (com raras exceções como Jean Wyllis) parece aceitar, e muito mais do que a direita quer engolir. Já, na Espanha, foi a direita que desejava esse instituto...
No Brasil, tais conservadores espanhóis seriam considerados temerários progressistas, tamanha é a resistência contra a igualdade neste país em que os racistas negam a existência do racismo, e os homófobos dizem querer preservar-se da imaginária "heterofobia".

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Marcha do Estado Laico: a defesa da igualdade e do pluralismo



Ocorreram jornadas pelo Estado laico no Brasil neste domingo, dia 21 de agosto de 2011. Participei da de São Paulo, que se deu em um tempo frio com ventania. No entanto, pessoas saíram de casa para esta nova marcha democrática, que se seguiu à do dia anterior, de protesto contra Belo Monte. Nela, índios queimaram ritualmente um boneco que simbolizava a presidenta do Brasil.
Tirei fotos antes de ela começar, e poucas durante o percurso da Praça do Ciclista à Praça Oswaldo Cruz, porque estava ajudando a carregar faixas.
A faixa do resumo do artigo 19 da Constituição, que fotografei antes de a Marcha começar, serviu como frontispício da manifestação, atrás de uma personificação da Inquisição. Eis o texto constitucional:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
II - recusar fé aos documentos públicos;
III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

Trata-se do poder público: isto não significa que os cidadãos não possam participar desses cultos ou subvencioná-los - eles, nós, temos o direito de fazê-lo; mas, para que o possamos exercer livremente, o Estado não deve, ele mesmo, adotar um culto religioso. Trata-se de assunto da ordem privada, como defendeu Locke nas famosas Cartas sobre a tolerância.
O direito brasileiro já foi muito diferente, como se sabe; mencionarei nesta nota apenas algumas dessas diferenças.
Como herança do Antigo Regime português, a Constituição de 1824, a primeira do Brasil, outorgada por Dom Pedro I em nome da "Santíssima Trindade", dispunha que havia uma religião oficial:

Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.

Não havia, pois, liberdade de culto: as outras religiões deveriam ser escondidas, mesmo em termos arquitetônicos, para serem toleradas.
O próprio chefe de Estado deveria jurar defender aquela religião:

Art. 103. 0 Imperador antes do ser acclamado prestará nas mãos do Presidente do Senado, reunidas as duas Camaras, o seguinte Juramento - Juro manter a Religião Catholica Apostolica Romana, a integridade, e indivisibilidade do Imperio; observar, e fazer observar a Constituição Politica da Nação Brazileira, e mais Leis do Imperio, e prover ao bem geral do Brazil, quanto em mim couber.

Art. 106.0 Herdeiro presumptivo, em completando quatorze annos de idade, prestará nas mãos do Presidente do Senado, reunidas as duas Camaras, o seguinte Juramento - Juro manter a Religião Catholica Apostolica Romana, observar a Constituição Politica da Nação Brazileira, e ser obediente ás Leis, e ao Imperador.

Trata-se de uma época - a monarquia - em que não se conseguiu instituir o casamento civil; dessa forma, um casamento realizado no Brasil, para ter validade jurídica, deveria ser celebrado por um padre católico. Dessa forma, casamentos aqui feitos por sacerdotes de outras religiões não eram reconhecidos (casamentos no estrangeiro poderiam sê-lo, no entanto).
A união entre Estado e Igreja representava um grave obstáculo à liberdade de culto. Os membros do Conselho de Estado também deveriam prestar aquele juramento. Havia uma restrição ainda mais grave, no entanto, aos direitos políticos:

Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores são habeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-se
I. Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda liquida, na fórma dos Arts. 92 e 94.
II. Os Estrangeiros naturalisados.
III. Os que não professarem a Religião do Estado.

Trata-se de uma restrição importante aos direitos políticos, que visava impedir que um parlamento que, eventualmente, não tivesse maioria católica, pudesse mudar a Constituição e a religião oficial (nota: no portal da Presidência da República, que é uma fonte muito usada de pesquisa de legislação, esse artigo está truncado). A medida antidemocrática é típica de Estados onde não há separação entre Igreja e Estado.
Curiosamente, a Constituição de 1824 previa também isto:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
[...]
V. Ninguem póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não offenda a Moral Publica.

As condições do inciso V quase anulavam a suposta proteção a quem não fosse católico apostólico romano: afinal, a "ofensa à moral pública" era algo tão amplo que poderia incluir a restrição aos direitos políticos... O texto, pois, simultaneamente enuncia um direito e sua possibilidade de supressão pelo Estado.
Pimenta Bueno (ou Marquês de São Vicente), em um dos momentos clássicos de nonsense constitucional a serviço do poder no Brasil, escreveu, comentando esse inciso V:

Nossa disposição constitucional não só garantiu uma justa tolerância, mas concedeu a liberdade essencial, o culto não só doméstico, mas mesmo em edifícios apropriados e para isso destinados, não devendo somente ter formas exteriores de templos.
Essa liberdade é tanto mais preciosa quanto é certo que uma das primeiras necessidades do Brasil é a de uma numerosa colonização [...]

Não é necessário citar mais: Pimenta Bueno está de olho no imigrante protestante, e ousa defender que o Estado católico brasileiro respeitava a "liberdade essencial" de culto.
Esses imigrantes puderam notar que não havia esse respeito no Império brasileiro.
No tocante à Constituição de 1988, o artigo 19, de fato, é explícito em relação à laicidade. No entanto, ela não está presente apenas no que está explícito, mas em diversas medidas, e a menor não é o próprio princípio da igualdade: um Estado que toma um partido religioso discrimina os cidadãos que não compartilham da fé oficial.
O pluralismo político, fundamento da República segundo o inciso V do artigo 1º, é também incompatível com a adoção, pelo Estado, de uma doutrina religiosa - que também será política, pois teocrática. A promoção do "bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação", um dos objetivos fundamentais da República (inciso IV do artigo 3º), também colide com a adoção de uma religião pelo poder público: o privilégio de um culto incorrerá em discriminação dos outros cultos, bem como dos ateus.
Pode-se, no entanto, dizer que a laicidade decorre do próprio princípio democrático. Ou seja, o artigo 19 não resume a questão em termos constitucionais. E a constituição não a resume em termos jurídicos - pois há o direito internacional dos direitos humanos...

P.S.: Sugiro que leiam, no blogue de Marcelo Semer, o voto solitário, no Conselho Nacional de Justiça, que Paulo Lôbo proferiu em favor da retirada de símbolos religiosos nas salas de sessões e audiências do Judiciário brasileiro.

sábado, 20 de agosto de 2011

Portugal, Alberto Pimenta e o Desencantador


Portugal, nesta atual fase falimentar, apresenta mais um capítulo do seu abandono da nossa língua comum (não há nada de estranho que o Museu da Língua Portuguesa tenha aparecido no Brasil e não lá). Eduardo Pitta conta que seu país abandonou as cátedras de português no Canadá e nos Estados Unidos.
A ditadura salazarista usava o instrumento de demitir os Leitores de Português no exterior para pressionar aqueles que não seguiam as diretrizes do fascismo. Isso ocorreu com Alberto Pimenta (na foto abaixo), que, em Heidelberg, se recusou a fazer campanha pela guerra colonialista - porém, demitido pelo governo português em 1963, a Universidade contratou-o.
Embora as autoridades portuguesas tivessem pressionado os alemães para que demitissem Pimenta, tudo foi em vão (a tanto não chegava o colonialismo lusitano) e ele permaneceu no exílio até 1977, quando decidiu voltar para Portugal, já pós-fascista.
No entanto, o que era um instrumento de pressão política do fascismo está a virar medida generalizada decorrente da crise do capitalismo na Europa.

Pimenta lançou no início do ano Reality Show ou a Alegoria das Cavernas, livro que inclui disco com poemas do autor musicados por Alexandre Augusto, Pedro Soares e João Alves, na voz de Ana Deus.
O Desencantador, em belo projeto gráfico de Maja Marek (a sobrecapa deixa ver, do título, apenas "encanta"), foi lançado pela 7Nós.
Esse desencantador tem algo que ver com o desencantamento do mundo weberiano? De qualquer forma, os mitos são retomados segundo a visão própria de Pimenta. Ele faz este uso de Ísis e Osíris:

e então dessa vez por precaução
retalhava o corpo de Osíris
em catorze partes
que espalhadas pelas águas
haviam de formar o primeiro soneto da
história [p. 17]

Retomados para serem jogados à terra ou ao fosso da realidade de hoje:

e então na pálida claridade que se abria
ia encontrando e recolhendo
os pedaços do corpo
um braço aqui
um pé mais adiante
exactamente
como em todas as guerras [p. 18]


As oscilações da história, entre sonho e realidade, o Egito antigo e lugar nenhum, terminam em um movimento de fuga (pelo menos no meu final favorito - há dois finais diferentes, mas cada exemplar somente apresenta um deles).
Creio que o Reality Show é mais forte na sua exploração e inversão das representações de hoje. Mas O Desencantador, que deriva de uma experiência dos delicados objetos de Autobiographie Mutuelles (assim mesmo, sem concordância), que realizou com César Figueiredo em 2008, ao mesmo tempo é e não é um interlúdio lírico na imensa obra de Pimenta. É notável que nada que o comerciante (o personagem principal e narrador do livro) tente transportar e comerciar se mantenha: ou o objeto é tomado, ou some por desencantamento. Nesse aspecto, parece-me um retrato original da crise europeia e da progressiva e pesada imaterialidade do capitalismo de hoje.

Nota: As duas primeiras fotos, tirei-as em julho de 2011 na beira do Tejo.

E um adendo: os olhos de Pimenta fazem-me lembrar o primeiro poema de Mensagem, de Fernando Pessoa, que termina: "O rosto com que fita é Portugal." Aqui, bem pode ser o rosto que fita a crise.
E a crise está latente em todo Mensagem; as três primeiras palavras desse primeiro poema são "A Europa jaz", e o penúltimo verso é "O Ocidente, futuro do passado." Agora, nem mesmo o presente.
Não sei em que medida Pimenta resolveu dialogar com Pessoa em O Desencantador; mas essa ideia me vem quando lembro que Mensagem, no último poema, após a constatação da histórica ruína política do Império Português, tenta a sua ressurreição mística com símbolos como estes:

Não foi para servos que nascemos
De Grécia ou de Roma ou de ninguém.
Tudo negamos e esquecemos:
Fomos para além.

[...]

O Portugal feito Universo,
Que reúne, sob amplos céus,
O corpo anônimo e disperso
De Osíris, Deus.

Quando lembramos disso, não podemos deixar de ver no livro novo de Pimenta uma mágica desencantadora dessas ilusões (que, em Pessoa, derivam do sebastianismo): o personagem principal torna-se servo, senão do rei, de suas próprias ilusões - e disso naufraga - e reunir o corpo de Osíris não impede que a ilha desapareça.
Pimenta consegue que os universos egípcio e grego do livro não constituam um refúgio no passado contra o presente. Nem mesmo o personagem do poeta, no livro, logra criar esse refúgio onírico. As "ilhas afortunadas" são mesmo, retomando Pessoa, "terras sem ter lugar". Aqui, cito Pimenta:

então a princesa dos três seios

não sei de que princesa falas
mas todas as princesas
são uma ilusão passado o primeiro dia [p. 62-63]


(os sonhos
cada vez mais me convenço disso
não têm mesmo
lógica nenhuma)
o mais provável
era ser um filme
americano [p. 52]

Em momentos como esses, temos um desencanto lúcido que no outro poeta, em Mensagem, irrompe às vezes: "Mas, se vamos despertando,/ Cala a voz, e há só o mar."
Sabemos que, em Pessoa, isso logo daria no réquiem que é "Elegia na sombra", poema de derrota de um país mergulhado no fascismo (ele era antifascista, vejam a reunião de seus textos contra Salazar).
A dimensão do nacionalismo, em contrapartida, falta inteiramente ao livro de Pimenta. E ele está certo: a crise de que ele fala não é só portuguesa, mas de um sistema.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Kelsen contra Toffoli e o Supremo Tribunal Federal

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli, fruto da última indicação ao STF feita pelo presidente Lula, publicou na página A3 da Folha de S.Paulo "Hans Kelsen e a teoria pura do direito", breve artigo sobre o jurista austríaco (livro autobiográfico seu foi lançado nesta semana) que, perseguido pelos católicos na Áustria e, depois, pelos nazistas na Alemanha e na Tchecoslováquia, países em que não pôde mais trabalhar, lecionava Direito Internacional Público no Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais em Genebra, até que a Guerra fez com que imigrasse para os Estados Unidos. Vejam aqui uma nota biográfica com bibliografia por Bersier Ladavac.
É raro ler sobre os grandes juristas do passado nesse tipo de jornal - talvez os 130 anos de nascimento de Kelsen, que serão completados em 11 de outubro, possibilitem a publicação de mais textos desse tipo. Quando estudante de graduação, ouvi coisas loucas como um suposto nazismo de Kelsen (tratava-se de professores que, provavelmente, ouviram de muito longe ecos de Radbruch), que, como filósofo político, era liberal, e, na condição de judeu, teve de exilar-se mais de uma vez...
É importante, pois, retificar equívocos ainda correntes sobre o grande jurista. O Ministro comete erros, infelizmente. A Teoria Pura do Direito, livro cuja primeira edição é de 1934, e que foi muito reformulado em 1960 (somente nesta edição foi publicado no Brasil) foi uma tentativa de ir além do que John Austin (o jurista do século XIX) em determinar um campo específico para a ciência do direito. Isto é, buscar uma pureza epistemológica para essa ciência, a fim de que o estudo do jurista não se confundisse com o modo como os sociólogos, por exemplo, estudam o direito. Um normativismo que tenta expurgar o estudo da norma jurídica dos aspectos políticos, sociológicos, econômicos - estudos válidos, claro, mas que não correspondem ao trabalho do jurista, que deveria, segundo Kelsen, concentrar-se apenas na descrição do direito positivo.
Essa pureza metodológica do positivismo jurídico de Kelsen foi alvo de seguidas críticas dos Realistas, de outros positivistas, dos marxistas etc. Sem dúvida, ele deve ser estudado, mas não como um "porto seguro" (expressão que Toffoli emprega), pois esse não é o papel de nenhuma teoria séria - confortar mentes cansadas de enfrentar as ondas e maremotos da dúvida - e sim provocar, fazer ranger o pensamento. Se Kelsen não for mais capaz de fazer isso, é porque ele está morto. Ou virou auto-ajuda jurídica.
Para verificar se Kelsen ainda tem algo a dizer (e sobre o Brasil, segundo diz Toffoli, o que resta a demonstrar), é necessário estudá-lo. Temos aí um grave problema no texto do Ministro do Supremo, vemos erros que não encontram suporte na obra que ele parece invocar, a "Teoria Pura do Direito".
O Ministro escreve que teríamos, nessa Teoria, "a Constituição como ápice de uma pirâmide de regras jurídicas". O que faz Kelsen ele mesmo e não um positivista vulgar é que ele REJEITA essa definição primária. Se a Constituição fosse o fundamento do ordenamento jurídico, ele escreve, haveria ainda o problema de buscar o fundamento dessa Constituição para chegar ao que fundamenta o direito positivo... Tratando-se de uma teoria "pura", normativista, ele não poderia postular esse fundamento em algo que não fosse um dever-ser. Ele resolve o problema propondo como esse "ápice" a chamada "norma fundamental", que não pertence ao direito positivo - ela precisa ser uma norma não positivada, para que possa fundamentar o direito positivo (senão, ele teria fundamento apenas em si mesmo...)
Já na primeira parte do livro, "Direito e natureza", o jurista afirma que a norma fundamental "não é uma norma posta através de um ato jurídico positivo, mas - como o revela uma análise dos nossos juízos jurídicos - uma norma pressuposta, pressuposta smepre que o ato em questão seja de entender como ato constituinte [...] Em tal pressuposição reside o último fundamento de validade da norma jurídica [...]" (cito da edição portuguesa de João Baptista Machado, publicada pelo Ed. Arménio Machado em 1979, em Coimbra, p. 77 - essa tradução também foi publicada no Brasil).
Temos assim uma teoria positivista que considera que somente o direito positivo tem natureza jurídica (o direito natural, por sua vez, não passaria de política ou de moral), embora a norma que o fundamente não pertença ao direito positivo. Na edição definitiva da Teoria Pura do Direito, Kelsen se preocupa em deixar bem claro que a norma fundamental tampouco é direito natural, pois não tem conteúdo: ela não exige que a Constituição seja de certa forma ou de outra.
Toffoli, nesse ponto, barateou a filosofia de Kelsen. Mas há outro problema, muito mais grave, um recalcamento que diz bastante não só a respeito da cultura jurídica brasileira quanto do próprio Supremo Tribunal Federal, marcados por um pronunciado provincianismo jurídico e um isolacionismo em relação ao direito internacional. O Ministro simplesmente apaga da memória que o escalonamento proposto por Kelsen tem duas versões: na primeira, o direito constitucional está acima do direito internacional e, na segunda, é o direito internacional que prevalece... Nesse caso, a norma fundamental do direito internacional é que corresponde ao "ápice" do escalonamento das normas jurídicas, e é a norma que dá validade ao direito internacional costumeiro - que prevalece sobre os tratados internacionais.
Se Kelsen foi um constitucionalista, ele também foi um internacionalista - e talvez esta última dimensão do pensamento dele seja, de fato, a mais decisiva para compreendê-lo. Tenho ao meu lado The Law of the United Nations: A Critical Analysis of Its Fundamental Problems, obra de 994 páginas de análise da Carta das Nações Unidas, que mostra os impasses da abordagem normativista, e ainda não publicada em português. O que ele produziu nesse campo foi imenso, e supera os escritos de direito constitucional. A Unijuí e a Fondazione Cassamarca, na notável coleção "Clássicos do Direito Internacional", acabam de lançar Princípios do Direito Internacional (com introdução de ninguém menos do que François Rigaux - pena que a revisão deixou um pouco a desejar), livro que escreveu nos EUA em 1952. Todavia, sua primeira obra em que o Direito Internacional é decisivo é de 1920: O problema da soberania e a teoria do Direito Internacional, em que anuncia a Teoria Pura do Direito, que só viria à luz em 1934, depois que o autor teve de deixar a Alemanha. Ele ministrou cursos em 1926 e 1932 na Academia de Direito Internacional de Haia. Direito e paz nas relações internacionais, de 1942, Paz através do Direito, de 1945 são outros dos trabalhos que produziu nesse campo. Não os temos no Brasil, se não me engano.
Que Toffoli tenha deixado de lado essa enorme faceta de Kelsen, jurista que participou dos trabalhos para o Tribunal de Nurembergue, não surpreende nada, porém. O Supremo Tribunal Federal, em decisões-chave, decidiu de forma frontalmente contrária ao pensamento do grande internacionalista, negando a eficácia do direito internacional dos direitos humanos.
Cito agora artigo de 1936 de Kelsen, recolhido em Écrits français de droit international, livro organizado por Charles Leben em 2001 para a PUF:

[...] a doutrina que pretende que as normas internacionais só criam direitos e obrigações para o Estado como tal e não para os seus órgãos ou para seus subordinados resulta em privar as normas do direito internacional de toda eficácia jurídica. Se elas criam direitos ou obrigações somente para o Estado como tal, isto é, para uma pura construção jurídica, elas não obrigam a ninguém e, portanto, não obrigam a nada.
Essa consequência lógica - que parece escapar à maior parte dos autores - trai claramente a tendência política que está na base dessa teoria. É a tendência de diminuir o máximo possível o alcance do direito internacional e de subordinar sua função essencial, que é - como função essencial de todo direito - de conferir direitos e obrigações, à intervenção indispensável dos órgãos criadores do direito de cada Estado particular: isto é, em outros termos, a tendência de manter a soberania dos Estados particulares. É o dogma da soberania que está, em última análise, na base da concepção segundo a qual só o Estado pode ser sujeito de direito no direito internacional. [tradução minha]

Aqui, Kelsen ataca o dualismo e Anzilotti, reafirma sua posição de que os indivíduos também são sujeitos de direito internacional, bem como relativiza o "dogma da soberania". Quando o governo de Dilma Rousseff nega os direitos das comunidades indígenas e despreza a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso de Belo Monte, está fazendo justamente o oposto do que Kelsen defendia. O mesmo deve ser dito em relação ao Supremo Tribunal Federal - e o caso da lei de anistia foi somente um de vários exemplos.
Dessa forma, é muito curioso que Toffoli escreva: "Conhecer Kelsen é aprender muito sobre o Brasil, sua Federação e o modo como nossas instituições, inclusive o Supremo Tribunal Federal, são organizadas." Acho que é imperioso superar Kelsen. Mas, no Brasil, que aquelas instituições - inclusive o STF - ao menos chegassem aos padrões filosófico-jurídicos do jurista austríaco, já seria um avanço gigantesco.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

País bloqueado: Drummond e Nabuco

Vi Eduardo Sterzi, no último sábado, falar de A rosa do povo na Biblioteca Mário de Andrade, com as intervenções poéticas da Companhia da Flor (boa escolha para um livro em que flores têm um papel tão importante). Esse foi o primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade que tive, ainda na adolescência, numa edição do Círculo do Livro. O livro sempre foi um dos meus favoritos.
Um dos poemas que mais me despertaram a curiosidade foi o Áporo, que tem aquele verso de uma palavra só, "antieuclidiana". Sterzi, com pouco tempo, falou da interpretação que Décio Pignatari deu ao poema, vinculando-o a Prestes ("presto se desata"), mas não da de Davi Arrigucci Jr. nem da sua própria. Enquanto isso, eu lembrava de Joaquim Nabuco.
O segundo quarteto do admirável poema de Drummond (alguém lembra de uma das críticas mais ridículas da literatura brasileira, que defendia que ele não era um grande escritor porque não escreveu romances e porque não teria sido autor de grandes sonetos?) emprega a expressão memorável "pais bloqueado", que Sterzi toma para si no livro O aleijão.
Parece-me, contudo, que Drummond pode ter-se inspirado em Joaquim Nabuco para escrevê-la. Em O Abolicionismo, Nabuco, escreve sobre o "país fechado" que seria o Brasil de seu tempo:

O funcionalismo é, como já vimos, o asilo dos descendentes das antigas famílias ricas e fidalgas, que desbarataram as fortunas realizadas pela escravidão [...] É além disso o viveiro político, porque abriga todos os pobres inteligentes, todos os que têm ambição e capacidade, mas não têm meios, e que são a grande maioria dos nossos homens de merecimento. Faça-se uma lista dos nossos estadistas pobres, de primeira e segunda ordem, que resolveram o seu problema individual pelo casamento rico, isto é, na maior parte dos casos, tornando-se humildes clientes da escravidão; e outra dos que o resolveram pela acumulação de cargos públicos, e ter-se-ão, nessas duas listas, os nomes de quase todos eles. Isso significa que o país está fechado em quase todas as direções [...]
A classe dos que assim vivem com os olhos voltados para a munificência do governo é extremamente numerosa, e diretamente filha da escravidão, porque ela não consente outra carreira aos brasileiros, havendo abarcado a terra, degradado o trabalho, corrompido o sentimento de altivez pessoal em desprexo por quem trabalha em posição inferior a outro, ou não faz trabalhar.

O bloqueio, parece-me, tem o sentido de tudo ter de passar pela administração pública, que é apreendida por interesses privados, que, na época, não era outro senão o do escravismo. Dessa forma, "o servilismo e a adulação são a escada pela qual se sobe", e "os empregados públicos são os servos da gleba do governo".
Talvez não seja abusivo, portanto, pensar que também nesse poema os temas do funcionário e da fazenda - característicos do Brasil de Drummond - estariam presentes e fariam parte do "labirinto".
Ademais, se Drummond estaria a dialogar com Nabuco, não seria a qualificação "antieuclidiana" uma referência não ao geômetra antigo, que teria deixado de prever as formas da flor, e sim a Euclides da Cunha, esse outro nome do pensamento nacional? Os impasses que Nabuco viu na monarquia continuavam na república, podemos lê-los em Euclides.
Dessa forma, a orquídea - como a flor que vence o asfalto em "A flor e a náusea" - superaria a sanha genocida do governo e das forças armadas, o coronelismo e a pobreza? O determinismo e o racismo, presentes em Os sertões? "Crimes da terra, como perdoá-los?"
É bem possível. Mas o sentido de "Áporo" sempre escapará, pois é poesia, e um poema trata sempre de algo e de outra coisa: "e uma rosa se abre, um segredo comunica-se, o poeta anunciou,/ o poeta, nas trevas, anunciou."

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Desarquivando o Brasil XV: A justiça brasileira e a negação dos direitos humanos

Com texto de André Petry, entrevistas de Alexandre Oltramari, reportagem de Luciano Patzsch, José Edward, Cláudia Campos, Virginie Leite e Maurício Lima, a antiga revista Veja, em nove de dezembro de 1998, publicou uma longa matéria com torturadores que exerceram suas funções durante a ditadura militar.
O professor e jurista José Carlos Moreira da Silva Filho, membro da Comissão de Anistia, a quem tive o prazer de entrevistar no ano passado, chamou atenção para essa matéria, que eu não conhecia. Ela pode ser lida nas seguintes ligações:

http://veja.abril.com.br/091298/p_042.html
http://veja.abril.com.br/091298/p_044.html
http://veja.abril.com.br/091298/p_050.html

Há pouco, uma colega de faculdade falou-me de antropóloga argentina que afirmou não existir, no Brasil, problema de memória, e sim apenas de justiça. Infelizmente, a pesquisadora estava muito errada, pois a memória tem sofrido ataques constantes ultimamente: sabemos que o Supremo Tribunal Federal criou versões falsas da história recente para justificar a impunidade dos agentes da repressão, que juristas de prestígio nos meios de comunicação continuam afirmando que o STF nunca foi pressionado pela ditadura e combatem a Comissão da Verdade, que o engajamento dos juristas de direita na ditadura é providencialmente recalcado nas celebrações acadêmicas e nas publicações jurídicas etc.
Por que é importante ressaltar que isso, de fato, aconteceu? A resposta a essa pergunta corresponde a não menos do que a importância da História.
A resposta também é importante para a justiça. A perpetuação da impunidade, em certos casos, está ligada ao negacionismo no Poder Judiciário brasileiro.
Esse negacionismo não se estende apenas aos acontecimentos do passado, mas aos próprios sistemas internacionais de direitos humanos. Um exemplo foi o de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal de São Paulo contra Aparecido Laertes Calandra, David dos Santos Araújo e Dirceu Gravina, e também contra a União Federal e o Estado de São Paulo, por causa dos atos de violação dos direitos humanos durante a ditadura militar. A ação imputava, entre outros, atos de tortura aos réus.
A juíza Diana Brunstein, da 7a. Vara Federal, estendeu a impunidade para além dos limites supremos da decisão da ADPF 153, dando-lhe repercussão no campo civil que o próprio Supremo Tribunal Federal não concedeu, e negou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já tivesse decidido o Caso Araguaia!
Destaco trecho da brilhante apelação do Ministério Público Federal, assinada pela procuradora Eugênia Augusta Gonzaga:

Ressalte-se, para começar – e com a máxima vênia –, o equívoco da magistrada, a qual considera que a Corte Interamericana de Direitos Humanos ainda não havia se pronunciado sobre o caso brasileiro de omissão quanto à responsabilização das violações aos direitos humanos perpetradas durante a ditadura militar na data em que prolatou sua sentença.
Por isso foram apresentados embargos de declaração, os quais foram rejeitados sem a correção desse erro de fato e justificando-se que:

"Este juízo lastreou sua decisão na forma de fundamentação e alicerçando-se no direito interno e na Constituição Federal Brasileira, não lhe competindo dirimir conflitos entre Tratado Internacional e o Direito Interno."

Não se trata, porém, de “dirimir conflitos entre Tratado Internacional e o Direito Interno”, mas sim de definir qual o direito aplicável à espécie e, sobretudo, analisar a vinculação dos órgãos judiciários pátrios à decisão de Tribunal internacional ao qual soberanamente o Brasil se vinculou. Nesse contexto, o erro de fato apontado através dos Embargos de Declaração é de extrema relevância, pois a sentença ignorou norma jurídica concreta, de efeito direto sobre o teor da decisão prolatada.

É possível imaginar que alguns juízes brasileiros não leiam jornais nem se interessem em se informar a respeito de processos judiciais de grande repercussão, mas é um tanto inesperado que não estejam a par dos casos que julgam.
De qualquer forma, isso condiz perfeitamente com a curiosa posição da juíza de que não lhe cabe tratar de conflito de normas, um dos pontos que meus alunos estudam no primeiro semestre da faculdade de direito (continuam a estudá-lo depois, claro). Trata-se de algo que se começa a estudar desde o começo da formação, pois é um tópico fundamental para qualquer profissão jurídica - até mesmo para a magistratura, imagino. Creio que se trata, neste caso, de um exemplo eloquente de denegação da prestação jurisdicional.
A duvidosa excelência técnica dessa decisão é uma constante no Judiciário brasileiro em casos que envolvem direitos humanos. Na minha tese, pude lembrar disto:

O desconhecimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelos agentes públicos mais diretamente ligados à aplicação do Direito foi verificado por recente pesquisa que teve como universo os magistrados da primeira instância da Justiça Estadual do Rio de Janeiro, comarca da Capital. 66% dos entrevistados nunca aplicaram a Convenção Americana de Direitos Humanos e 24% só o faziam raramente. 79% não estavam informados sobre o funcionamento dos sistemas da ONU e da OEA de proteção dos direitos humanos. Em relação ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e ao de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 74% e 75%, respectivamente, são os índices dos magistrados que nunca os aplicaram. 93% nunca participaram de alguma entidade ou movimento de direitos humanos. 40% nunca estudaram a respeito de direitos humanos. No entanto, os resultados poderiam ter sido bem piores se o universo da pesquisa não tivesse sido reduzido: quarenta por cento dos questionários não foram respondidos, seja porque o juiz se recusou, sem motivo, a respondê-lo, ou a receber o pesquisador, ou por ter declarado que o seu trabalho não tinha... relação com os direitos humanos (CUNHA..., 2005)

Os resultados da pesquisa coordenada por José Ricardo Cunha, que eu cito acima, foram publicados no número 3 da Revista Sur.
Ressalte-se que o aparentemente vasto desconhecimento e/ou desinteresse dos direitos humanos por magistrados brasileiros (movido pelo preconceito de classe? uma questão a se investigar) está diretamente relacionado à negação da justiça aos cidadãos.