Os professores Simone Rufinoni e Tercio Redondo convidaram-me para participar de uma livro sobre literatura contemporânea, encomendando algo sobre aquele escritor. Eu iria escrever apenas sobre O mau vidraceiro, mas não resisti e incluí Ó, que é um livro de que gosto muito (reconhecendo, no entanto, que os interlúdios líricos são inferiores às outras partes).
O livro vai ter artigos muito mais interessantes do que o meu (sei que, além dos organizadores, ele contará com Viviana Bosi, Fábio de Sousa Andrade, Priscila Figueiredo e Fabio Weintraub - não sei quais são os outros); talvez o que eu tenha escrito de curioso seja a aproximação do informe em Nuno Ramos com o de Sérgio Buarque de Holanda. Cito apenas um trecho, que começa aludindo a "Eu", de O mau vidraceiro:
A desumanização do eu nesse impressionante texto, com sua transformação incessante em elementos inorgânicos como neve e chumbo até o nada, dá-se de forma paralela com a invasão da casa pelo patrão-senhor. O espaço da casa é indistinto do espaço do trabalho, a propriedade do empregado é indistinta do domínio do patrão, o corpo do empregado confunde-se aos elementos. Muito significativo é que na casa o patrão encontre o cupim: esse animal também se dedica a destruir as formas.
Na bela alegoria do nascimento presente em “Quem fala?”, o homem inventado passa por algumas formas até virar búfalo e pedir o cabresto: “Repito: quero o meu cabresto! Quero a minha língua molhada, inerte dentro da boca. Não a língua da fala, mas a língua que lambe o sal.” (p. 78). O cabresto servil? O voto de cabresto, pelo qual o trabalhador referenda a voz do patrão? A conversão do humano em animal serve de alegoria para a vedação do espaço público.
Em “Judas!”, uma vítima de bala perdida “em plena paulista” (p. 153), que não tem o projétil retirado de seu corpo, atrai inexplicavelmente a hostilidade de todas as pessoas (o que parece explicar o título) e termina deitada na calçada sob coisas que lhe atiraram ou a ela amarraram. Se ela está na calçada, local público, tudo o que se lhe amontoa são objetos privados: “meias, móveis, eletrodomésticos [...] e peixes de aquário.” (p. 155). A invasão do público no corpo – a bala perdida – é respondida ferozmente com a invasão pela esfera privada, que busca ocultar, com sua miríade de elementos domésticos, a pública chaga.
Podem-se ler, em momentos como esse, a recusa à política do Estado e a permanência das formas privadas de dominação, que subsistem por meio do “mundo sem forma”, que Sérgio Buarque de Holanda verificou na insuficiente ou frágil institucionalização da esfera pública no Brasil.
Ó apresenta momentos semelhantes. “19. Coisas abandonadas, gargalhada, canção da chuva, previsão do tempo, tecnologia, ida à Lua, ida à Marte” antecipa essa imagem de “Judas!” neste excerto: “Um amontoado de móveis no meio da rua deve ser deixado assim e a urina do cão que o lambuza, o mendigo que o habita, o mofo que vai aos poucos tomando conta do falso corino marrom ou da cambraia estampada são bem-vindos.” (p. 208). O mesmo estatuto é dado aos animais, aos homens e aos fungos na putrefação no/do espaço público.
Ainda não sei quando sairá o livro.
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