O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Desarquivando o Brasil CXCVI: Imprensa e ditadura, arquivo (inverso) do esquecimento

Terminei um livro neste ano, o que me tomou muito tempo: Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura, publicado pela Patuá. Por essa razão, escrevi pouco aqui e alhures. A obra lida muito com a repercussão do caso na imprensa: a maior parte das fontes são jornalísticas, o que me fez perceber que o caso que estudei, a partir de certa altura, deixou de ser noticiado.

Trata-se de um processo sobre crimes de lesa-humanidade da ditadura militar, que não deixam de ter continuidades nos dias de hoje, inclusive em termos de exploração eleitoral: a apologia aos crimes do Estado continua a dar votos. Por isso, era tão politicamente sensível e conveniente calar a denúncia desses crimes em momentos de golpe, como o de 2016, ou de apoio à volta ostensiva dos militares ao poder. A pauta jornalística havia mudado, pois guinou para a direita.

Dessa forma, pensei que o súbito vazio de notícias sobre um caso de reconhecimento judicial de tortura também presentava uma fonte de pesquisa, porém ao inverso: a ausência de fontes jornalísticas documentava algo: uma tomada de atitude da imprensa, que, aparentemente, havia decidido esquecer a pauta politicamente sensível para a direita. Mesmo na morte do coronel, boa parte da imprensa resolveu ignorar o caso e dizer que ele foi "acusado de torturas" ou algo parecido, e não que a tortura no DOI-Codi de São Paulo tinha sido judicialmente reconhecida em primeira instância, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e no Superior Tribunal de Justiça, nada menos.

Pesquisei e citei de periódicos dedicados aos militares até veículos identificados com pautas de esquerda, como o Brasil De Fato. Meios de comunicação de esquerda em geral eram mais enfáticos contra agentes da ditadura. Mas um problema que atravessa todo o espectro ideológico é a falta de acúmulo: tudo é uma novidade permanente, o que é um problema tanto da imprensa e de seus profissionais, como dos leitores e dos semi-leitores, que devem ser a maioria, se excluirmos os não leitores. Poucos poderão ler um texto além das manchetes. 

Conto uma anedota pessoal. Na época em que eu lecionava, uma colega, que tinha outra formação, estava preocupada com uma disciplina que passaria a lecionar em pós-graduação de Direito lato sensu. Busquei tranquilizá-la afirmando que não se tratava de assunto de "dogmática jurídica" (nome curioso que os advogados atribuem a seus assuntos técnicos), portanto a formação dela era adequada para o tema específico, e que a matéria era ensinada no primeiro ano de graduação e "todas as turmas são de primeiro ano", mesmo as de pós-graduação. Uma semana depois, ela confirmou que eu estava certo...

Em larga escala, trata-se de como funciona o país. Dessa forma, tudo se torna "um museu de grandes novidades", para citar "O tempo não para", de Cazuza e Arnaldo Brandão.

Escrevi aqui em 2022 como os áudios de julgamentos do Superior Tribunal Militar na época da ditadura foram liberados judicialmente por iniciativa do advogado e pesquisador Fernando Augusto Fernandes, que já os publicou parcialmente, para que anos depois a imprensa grande tratasse o material publicado anos atrás como "inédito", e que teria sido descoberto recentemente por certo historiador.

A imprensa grande, em vez de grande imprensa. Contudo, o problema ocorre também com periódicos de esquerda que desejam cobrir pautas que tendem a ser ignoradas pelos grandes meios de comunicação. A Agência Pública, por exemplo, fez uma interessante série de matérias sobre as dez empresas investigadas por equipes escolhidas pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp, a partir de recursos advindos do termo de ajuste de conduta da Volkswagen (denunciada por sua cumplicidade com a repressão política durante a ditadura militar) com o Ministério Público Federal.

Essas equipes deveriam investigar crimes de lesa-humanidade (imprescritíveis) que pudessem suscitar novas ações do Ministério Público. O resultado gerou um informe público, que pode ser consultado por todos, e, outro, mais completo, que está com as autoridades, para que elas estudem a instauração de inquéritos.

A Agência Pública teve acesso a todo esse material e publicou matérias. Sobre a Folha de S.Paulo, uma das empresas investigadas, lemos que os documentos "indicam que a colaboração" do jornal "com a ditadura foi mais profunda do que se sabia". Lemos que, "segundo a pesquisa o grupo Folha teria emprestado carros de distribuição de jornais para que agentes da repressão os usassem". 

Este é um exemplo de falta de acúmulo: a tese de Beatriz Kushnir que trata desse empréstimo foi publicada em 2004 (Cães de guarda: jornalistas e censores) e foi citada pela Comissão Nacional da Verdade. A pesquisa, no que foi mostrado no relatório aberto, confirma o que já estava em Kushnir e na CNV, e traz novas entrevistas, que Marina Amaral destaca no Jornal do Brasil.

Outro caso foi a Petrobras: a matéria que a Agência Pública publicou em 30 de maio de 2023 anunciava que "Petrobras participou de tortura e monitorou orientação sexual de funcionários na ditadura". Também não era novidade, claro: em 2022, apresentei trabalho a seis mãos, meu, de Janaína de Almeida Teles e Bruno Boti Bernardi no Seminário Internacional de Políticas da Memória, em Buenos Aires, onde, aliás, estava boa parte da equipe do projeto CAAF que pesquisou a Petrobras. Essa equipe ainda não tinha pesquisado o assunto da orientação sexual dos empregados. Para quem quiser consultar os trabalhos, eles são as da mesa 15 do seminário de 2022, coordenada por Vitoria Basualdo e Andrea Copani: http://conti.derhuman.jus.gov.ar/2021/08/seminario-xiii-ponencias.php

Nosso título era "Responsabilidad empresarial: violaciones de derechos humanos cometidaspor Petrobras durante la dictadura militar brasileña" Eu falei, entre outros temas, como tortura, violação de direitos dos povos indígenas, a sala secreta de espionagem, a DIVIN etc., dos documentos que indicavam que a Petrobras monitorava a orientação sexual dos empregados seus e das empresas contratadas:


Entre as informações coletadas sobre funcionários estavam dados sobre “comunismo” e “homossexualismo”. Nas fichas ISF (“investigação socio-funcional”), referente aos candidatos a trabalhar nas empresas do grupo Petrobras, encontramos anotações sobre “homossexualismo”, como problema, em relação à Refinaria Paulínia; como motivo de demissão, a empregado de empresa que prestava serviços à Fronape (Frota Nacional de Petroleiros); como “restrição grave” para empregado contratado na própria Petrobrás, entre outros. As fichas “de informação confidencial” dos empregados incluíam quesitos como “Pratica atos de homossexualismo?”.

Renan Quinalha havia localizado alguns desses casos em sua tese sobre a “política sexual da ditadura brasileira”, destacando que “Empresas públicas, como a Petrobrás, foram especialmente influenciadas pela paranoia homofóbica dos órgãos de informação. A orientação sexual dos funcionários aparecia como um dado fundamental para a decisão de dispensar ou mantê-los no emprego.” (Quinalha, 2017: 235).


Ressaltei, tanto no texto quanto na exposição, que quem havia descoberto a questão era Renan Quinalha, professor de Direito da Unifesp e conhecido pesquisador da história e dos direitos da população LGBTQIA+ no Brasil. Por isso, não se tratava de uma descoberta nossa ou mesmo, depois, da equipe do CAAF. O nome de Quinalha, porém, não é citado na matéria da Agência.

Dei alguns poucos exemplos nessas questões ligadas ao passado recente, da ditadura militar, mas é evidente que o problema é mais amplo. Essa falta de acúmulo prejudica a discussão na esfera pública: tudo parece sempre voltar ao ponto zero. Assim, talvez diriam alguns, os velhos invasores podem camuflar-se de novos "descobridores" das Américas.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Maria Callas: os primeiros cem anos

O centenário de nascimento de Maria Callas, a grande intérprete de ópera e uma das maiores artistas do século XX, foi comemorado em 2 de dezembro de 2023. Escrevi, poucos anos atrás, uma nota sobre as "iluminações" que a artista trazia para os papéis que cantava, revelando detalhes que passam ou passavam em branco na leitura de outras cantoras. Depois, outra sobre o filme de Tom Wolf, Maria by Callas, valioso apesar dos problemas.

Eu não iria escrever mais nenhuma nota, porém comprei há dois dias um jornal na banca que pouco tratava de música e teatro, o que é curioso para se referir a uma intérprete de ópera. Ele continha também problemas factuais: sugeria que Callas só teria passado a colaborar com o diretor cênico Zeffirelli na época em que fez a Norma em Paris, bem depois de 1954, ano em que começou a trabalhar com Visconti. Está errado: aquela Norma foi a última produção nova de ópera em que ela cantou, em 1964 e 1965, e em 1955 Zeffirelli já tinha montado para ela O turco na Itália, de Rossini. Depois, ainda viriam La Traviata e Tosca -- duas óperas que ele quis filmar com ela. O texto também dizia que ela esmurrava o chão para chamar os deuses antes de entrar no palco na ópera Medea, de Cherubini. Na verdade, a artista grega era cristã ortodoxa; ela só adotava esses procedimentos pagãos em cena, encarnando o personagem. Minotis, o diretor cênico, havia pesquisado os procedimentos do teatro grego antigo e surpreendeu-se que ela adotasse esse gesto, que estava correto, por instinto e não por ter estudado o assunto; Callas nem mesmo havia visto representações do teatro clássico enquanto viveu na Grécia (era a época da Segunda Guerra Mundial e a atividade teatral praticamente cessou).

Se se pode errar assim na grande imprensa, por que eu não poderia escrever algo mais modesto aqui? Pensei em rascunhar algo como se estivesse a pensar alto na cantora e no seu impacto hoje. Começo a lembrar que o centenário inspirou homenagens. A Ópera Garnier, de Paris, montou uma noite de gala, "Vissi d'arte" (título de uma ária da ópera Tosca, de Puccini) com direção de Robert Carsen, que contava com a própria Callas em vídeo, artistas interpretando-a e números musicais, com regência de Eun Sun Kim. Sondra Radvanovsky cantou árias das óperas Norma, Macbeth, Manon Lescaut e Tosca. Pretty Yende, de La Traviata e La Sonnambula. Elas são sopranos. A meio-soprano Ève-Maud Hubeaux interpretou árias de Carmen e Don Carlo. Bellini, Verdi, Puccini, Bizet. Aqui está um descrição da noite por Louis-Julien Nicolaou: https://www.telerama.fr/musique/vissi-d-arte-le-bel-hommage-de-l-opera-garnier-a-la-callas-7018347.php

O Teatro Municipal de São Paulo também chamou três cantoras para homenageá-la em 8 e 9 de dezembro: as sopranos Camila Provenzale, Eiko Senda e Rosana Lamosa, regidas por Roberto Minczuk, para cantarem árias de Norma, La Traviata, La Gioconda, Andrea Chénier, La Sonnambula, Anna Bolena, Adriana Lecouvreur, Macbeth, Tosca e La Vestale. Bellini, Verdi, Ponchielli, Giordano, Donizetti, Cilea, Spontini.

Poderia citar outros exemplos, mas esses bastam. Todas essas peças estiveram no repertório de Callas, senão nos papéis que interpretou em cena, ao menos no que cantou em recital ou em disco. O importante é notar que não seria possível escolher uma só cantora para cantar esses números. Em Paris, os papéis mais agudos de soprano ficaram para Yende; os mais pesados, para Radvanovsky; os de meio-soprano, com Hubeaux. Em São Paulo, certamente haverá uma divisão desse tipo, já os papéis são vocalmente muito contrastantes, do dramático (Macbeth) ao ligeiro (Sonnambula).

Trata-se da diversidade vocal e dramática de Callas: já nos recitais que ela fez na Grécia na primeira metade da década de 1940, ela unia árias de soprano ligeiro (Lakmé, de Delibes, que ela cantava em italiano), dramático (Tristão e Isolda, de Wagner, que ela então cantava em grego; na Itália, ela interpretaria a obra completa em italiano), lírico (Fausto, de Gounod) e de meio-soprano (La Favorita, de Donizetti). Dez anos depois, ela continuava a fazer esse tipo de tour-de-force vocal. Ela tinha extensão, agilidade e potência: essa combinação se revelaria milagrosa quando passou a se dedicar às óperas do bel canto, o que só ocorreu quando encontrou trabalho na Itália: primeiro a Norma, em 1948, depois Os puritanos, em 1949, ambas de Bellini. Com Puritani, aconteceu o que ela mesma chamou de "milagre": ela cantava o repertório de soprano dramático: Wagner, o Verdi mais pesado, Turandot de Puccini e a Gioconda de Ponchielli. Alguns sopranos dramáticos da época cantavam a Norma, mas nenhuma Os Puritanos, papel de vozes ligeiras. Margherita Carosio iria cantar, mas ficou doente, e Callas substituiu-a, aprendendo o papel enquanto se apresentava como Brünnhilde em A Valquíria, de Wagner, em italiano, que é como se executava esse compositor na Itália nessa época. Dia 16 de janeiro foi a última apresentação na Valquíria, dia 18 ela entrou em cena como Elvira de I Puritani. Ela havia cantado a ária "Qui la voce" para o maestro Serafin e o diretor do teatro La Fenice, em Veneza, que chegaram à conclusão de que ela teria êxito. Foi um sucesso, o que levou ao convite para gravar o primeiro disco, em que cantou Bellini e Wagner.

Para quem não conhece esse repertório, Callas passou deste papel dramático: https://youtu.be/EwuyKZbm_H4?si=TTcbKV-NboKV1OPz&t=3552 para este outro polo da voz de soprano: https://youtu.be/UBTnjr-Rp0U?si=HwjDIWXWvtwH_6l5; tarefa aparentemente impossível, porém realizada. Nessas gravações, ouvimos Kirsten Flagstad e Margherita Carosio.

Irineu Franco Perpetuo publicou no 2 de dezembro, o dia do centenário, um interessante texto, "Maria Callas e o museu do imaginário da humanidade", em que devidamente lembrou que, embora a artista tivesse se dedicado ao resgate das óperas do bel canto, as escolhas estéticas de sua época hoje soam datadas. Ele não detalha a razão, mas se trata principalmente de cortes que se faziam ainda nos anos 1950 e 1960, às vezes de cenas inteiras (por exemplo, nenhuma das gravações preservadas com Callas de Lucia di Lammermoor, de Donizetti, contém o dueto de Lucia com Raimondo, tampouco o de Edgardo com o de Enrico), de árias completas dentro das óperas, de repetições dentro de árias (aparentemente, Callas nunca cantou as segundas estrofes de "Ah, fors'è lui" e de "Addio del passato" na Traviata, de Verdi), ou, muito comum, de cadências. Trinados não escritos e appoggiature também eram, em geral, omitidos pelas práticas então correntes de interpretação. 

Tratava-se de algo da cultura musical da época, que ela aprendeu com maestros como Tullio Serafin. Essas práticas variavam e atingiam também as óperas do período clássico: Vittorio Gui regeu a estreia dela em Medea, de Cherubini, e é a gravação mais integral que temos com ela da ópera: também ao vivo, Leonard Bernstein cortou até finais das árias da protagonista, Nicola Rescigno restaurou os finais mas fez outros cortes, bem como Thomas Schippers (em uma regência pouco inspirada, aliás); o disco de estúdio, com Tullio Serafin, mutilou severamente a obra.

No entanto... Como Robert E. Seletsky escreveu no artigo "The performance practice of Maria Callas" (publicado em The Opera Quarterly do outono de 2004), "Callas foi extraordinária em ser completamente convincente enquanto dava ao ouvinte uma informação incompleta". A força de sua interpretação é tal que a escutamos apesar dos cortes e das falhas das edições de parte do repertório que ela interpretava. Cabe em dois cds sua gravação de Os Puritanos de Bellini, com Tullio Serafin; Callas foi a primeira a gravar a integral da obra, mas, para ouvir uma execução completa da partitura, devemos recorrer a outros discos: por exemplo, a gravação regida por Bonynge e cantada por Joan Sutherland precisa de três cds para incluir toda a música... Essas gravações de Callas ficaram, contudo, por causa da excepcional interpretação da soprano, que constrói um personagem inteiro apesar dos cortes, tal era o seu poder de artista.

Dessa forma, precisamos de outra gravação, mais recente, que não de Galliera com Callas, para ouvir integralmente O Barbeiro de Sevilha; mas provavelmente nenhuma terá uma interpretação do dueto entre o Figaro e Rosina mais engraçada e mais sutil do que a de Tito Gobbi e Callas, desde o recitativo. 

A variedade expressiva de Callas é um dos elementos do seu poder de intérprete. Na ópera Norma, a obra que mais cantou, ela é uma sacerdotisa druida que secretamente mantém uma relação amorosa com um inimigo romano, Pollione, com quem já teve filhos (como ninguém notou, a ópera não explica). Os gauleses estão sob ocupação do Império Romano e querem se livrar do opressor. Ela não só está traindo seus votos de castidade, como seu próprio povo, a quem convence a não lutar contra os inimigos "profetizando" que Roma cairá "por seus próprios vícios". Mas Pollione se apaixona por uma sacerdotisa mais jovem, Adalgisa, e quer levá-la com ele para Roma. Adalgisa pede a Norma que a libere de seus votos de castidade e conta como conheceu o amado; o dueto é lindo, e tem algo de irônico: Norma observa para si mesma que a paixão aconteceu da mesma forma com ela -- mas, é claro, era o mesmo homem. 

Norma, curiosa, pergunta sobre o jovem; Adalgisa responde que ele é de Roma; a resposta deixa a sacerdotisa mais velha surpresa, e não é que ele está vindo encontrar sua amada? Quando Norma vê Pollione, exclama indignada o nome dele e passa a acusá-lo: "O non tremare, o perfido!".

A variedade de expressão é impressionante; a gravação de 1954 já a consuma, porém sugiro esta interpretação ao vivo na Rádio Italiana de Roma, com a regência de Serafin, e os cantores Ebe Stignani e Mario del Monaco: https://www.youtube.com/watch?v=zM0nKipuTv8

Quando Callas/Norma canta "l'amato giovane" (aos 9 segundos), ela é toda doçura: vê-se que ela gosta de Adalgisa; aos 25'', a palavra "Roma" é cantada com outra cor vocal, sugerindo surpresa. Aos 40'', "Ei! Pollion!", a ira é manifesta. Em 1'11'', a cor escura da voz em "Tremi tu" constrói o clima para o solo "O non tremare", com seus dois saltos para o dó agudo e a genial inflexão de Callas em "pei figli tuoi" (2'06''): quando ela menciona os filhos, ela ataca a frase mais suavemente. Logo depois, ela pensará em matá-los, pois seriam sacrificados pelos gauleses e, caso fossem levados a Roma, seriam escravizados. Não é capaz de fazê-lo, porém. No final da ópera, ela consegue salvá-los; Callas, naquela frase, revela esse traço essencial do caráter da personagem. 

Aqui, extraída da Biblioteca do Congresso dos EUA, esta parte do libreto da ópera com a versão em inglês:



Adalgisa a interrompe: ela não sabia de nada e fica perplexa. Norma começa um solo, "Oh! di qual sei tu vittima", seguido por um trio que contrasta as reações dos personagens. Terminando esta bela parte, Norma volta a acusar Pollione ("Perfido!", 6'54''); ele dá de ombros e chama Adalgisa para fugirem juntos, mas ela não quer; quando Norma diz para ela partir com ele, a jovem recusa mais fortemente: preferiria morrer a ficar com quem ela chamou de "esposo infiel". Norma tem novo solo, mandando o "indigno" ir embora, que também conduz para um trio. Os guerreiros druidas aproximam-se (o coro canta nos bastidores), o que faz o procônsul romano fugir sozinho. Callas aproveita e termina na oitava superior, em um belo ré agudo.

Tudo isso é sublime, embora haja alguns poucos cortes. Para ouvir a música com todas as cadências, temos a edição crítica, que Cecilia Bartoli gravou faz alguns anos com a regência de Giovanni Antonini: https://youtu.be/eKRW2b_WY6w?si=eZGdmoXs91prlwk7, disco de estúdio lançado em 2013.

No recitativo, não há realmente diferença, salvo na menor variedade de cores vocais da protagonista, bem como sua menor potência vocal. As três vozes combinam, porém, porque são todas leves: Sumi Jo, soprano ligeiro (categoria vocal que está mais próxima, provavelmente, do original de Bellini do que o meio-soprano) e o tenor John Osborn. Infelizmente, alguns trechos soam como uma canção de ninar, em vez do confronto aberto da gravação dos anos 1950, impressão que se fortalece com a cadência com que termina a primeira parte do trio. 

A segunda parte me parece confirmar essa impressão de uma expressão mais branda, apesar de o tema rápido aparecer mais vezes do que na edição usada nos anos 1950: https://youtu.be/_u8RC87iURU?si=Z_qKrg3HsnJiEjY9. Não sei se, ao vivo, uma orquestra de dimensões mais reduzidas como La Scintilla também pareceria ameaçar superar em volume essas vozes, inegavelmente menores do que as de Callas, Stignani e del Monaco.

Falei de volume, mas não é essa a questão de Callas que interessa aqui, mas a diversidade dramática e musical (em ópera, quando tudo dá certo, os dois elementos são um só). Hoje, meu momento preferido de Callas está na gravação ao vivo da Lucia di Lammermoor, de Donizetti, em Nápoles. Callas não gostou do maestro Molinari-Pradelli (estava acostumada a Karajan nessa ópera...), mas até John Ardoin, em seu livro The Callas Legacy, o elogia nessa ocasião. Lucia é uma jovem traumatizada que é salva da morte por um jovem que pertence a um clã rival, Edgardo. Ele é o único sobrevivente da família. É claro que eles se apaixonam e é mais evidente ainda que o irmão de Lucia, Enrico, está arruinado e quer casá-la com um nobre rico, Arturo, para resolver suas finanças. Edgardo viaja, Enrico aproveita para forjar uma carta a Lucia para que ela ache que foi abandonada pelo amado e aceite casar com Arturo. É o que ocorre, mas Edgardo volta e irrompe na igreja justamente depois de ela ter assinado o contrato nupcial... Escândalo. O irmão e o amado irão duelar mais tarde, enquanto isso os convidados de alguma forma se divertem. Mas vem a notícia: Lucia enlouqueceu e matou o noivo. Ela aparece no salão, com o vestido sujo de sangue, imaginando que está a casar com Edgardo... É claro que ela morre depois de uma cena de loucura de vinte minutos. No último ato, Edgardo já está no cemitério para o duelo; lá, é avisado de que Lucia morreu e o corpo dela chegará. Desolado, mata-se e acaba a ópera. 

A história vem de um romance que nunca li de Walter Scott. A força de Callas nessa ópera, além da voz inesperada para o papel, com mais potência do que os sopranos ligeiros que geralmente o cantam, está em dar verossimilhança ao personagem: a relação de Lucia com a realidade é frágil desde o começo. Infelizmente, a irresponsabilidade das instituições italianas de cultura na época fizeram com que a filmagem daquela apresentação fosse apagada. Ficou o registro de áudio, de qualidade muito inferior ao que os alemães fizeram em Berlim em 1955, quando Callas lá cantou sob a regência de Karajan. Por sinal, essa Lucia na Alemanha é o registro sonoro preferido de Ardoin da arte da cantora.

Mas destaco a interpretação de Nápoles por causa da questão do volume. Callas alternava na cena momentos de grandes dramaticidade com outros muito tranquilos. Nestes, a loucura é praticamente palpável: é evidente que uma calma como esta, "del ciel clemente un riso", não pode ser deste mundo: https://youtu.be/vubgJhit8SU?si=qXglZoGKApm4mXdR&t=591

O portamento que ela fez em "clemente" a 10'09'', em pianíssimo, sempre me corta o coração. A 10'56'', começa a cadência com flauta: Lucia perde a expressão verbal articulada e dialoga com o instrumento. Uma sequência de dós agudos em staccato gera murmúrios de admiração. Callas não canta o mi bemol no fim da cadência (ela o reserva para o fim da cena), mas o si agudo, com uma escala descendente repentina que gera um efeito bem dramático. O público enlouquece, claro; ouve-se algo parecido com vaia, mas são os diversos gritos de bis. O maestro tem que forçar a continuação da cena.

No primeiro ato, ela havia sido vaiada, não por ter errado alguma coisa, mas porque Nápoles era algo como um reduto de Renata Tebaldi (que jamais pôde cantar essa ópera, pois não tinha nem a extensão nem a agilidade necessárias). A força artística de Callas, contudo, conquistou o público hostil, façanha que podemos ouvir nessa gravação e que a grande Birgit Nilsson, outra das maiores cantoras do século XX, testemunhou na plateia, e contou em sua autobiografia, qualificando a cena de loucura como fenomenal.

Ela continuava a ser capaz de uma forte variedade de expressão mesmo quando, na década seguinte, sua voz perdeu boa parte da potência e da extensão. Prova-o esta produção de Tosca, em Londres, em 1964, no penúltimo ano de sua carreira nos palcos de ópera. Não se trata mais de bel canto, como em Bellini, autor da primeira metade do século XIX; a música é de Puccini e o estilo é mais moderno.

A produção é de Zeffirelli e a regência é de Cillario. Floria Tosca é uma cantora que namora um pintor republicano, Mario Cavaradossi, e revolucionário em Roma na era napoleônica. O chefe de polícia corrupto, Scarpia, quer prender o líder dos revolucionários, Angelotti, que fugiu, e cobiça sexualmente Tosca. Para saber onde ele está, tortura Cavaradossi. Scarpia, interpretado por Tito Gobbi, manda abrirem a porta para ela ouvir os gritos do namorado; surte efeito, ela se desespera: https://youtu.be/xnFlg1z1hPc?si=5ISvT0sQr5kUhO3O&t=990.

Ela repete "eu não posso mais" (17'16''), a segunda vez quase como um eco: a personagem mal consegue se expressar. Em 17'30'', quando pede a Mario para que a deixe falar, assume outra expressão: está próxima do choro. Em seguida, o uso da voz de peito quando fala da alma torturada é bem tocante. Em 18'42'', depois do grito do tenor, ela revela o esconderijo falando: mesmo sem cantar, Callas é completamente convincente. Depois, grita "Assassino!"; diante da fúria do torturador, ela suplica para ver seu namorado. O fato de ela não exagerar (algo raro em apresentações dessa ópera) torna tudo ainda mais real. Nesses três minutos, há mais expressão (de Callas e de Gobbi, também genial) do que em certas representações completas...

Essa riqueza é possível porque eles são grandes músicos e grandes atores: em ópera, essas duas veias artísticas têm que vir juntas, por isso o gênero é tão difícil e tão fascinante quando tudo, ou muita coisa, dá certo. Um dos papéis mais fortes de Callas foi a protagonista de Alceste de Gluck, uma obra do século XVIII, com regência de Carlo Maria Giulini, que foi miseravelmente preservada pelas instituições culturais italianas em um som péssimo. Infelizmente ela só a interpretou daquela vez, em 1954. 

A rainha Alceste, como se sabe, oferece sua vida aos deuses para salvar o rei Admeto. No final, é claro que os deuses, comovidos, restituem-lhe a vida e tudo termina bem: o lieto fine era uma tradição desse momento da história da ópera.



O segundo ato termina com esta aceitação do sacrifício, "A' vostri lai" (nas versões em francês, "Ah, malgré moi"). O trecho é lento, com frases em legato. Subitamente, a música muda e ganha urgência a partir de "O Ciel!". Alceste canta até "Este supremo pranto/ parte no peito meu coração."

Callas, com Giulini, canta com muita calma, até "O Ciel!": https://youtu.be/3k-RdBsggy8?si=ZY95-QyChqooufHx&t=5212; daí, ela faz um longo crescendo até repetir a última frase com grande ênfase: o público aplaude, embora a música não tenha acabado e o coro tenha começado a cantar.

O drama clássico está lá. Se comparamos com uma interpretação mais recente, a de Anne Sofie von Otter na regência de John Eliot Gardiner em 2009, temos outra coisa: ela também canta com suavidade a primeira parte da ária, mas o contraste na passagem "O Ciel!" é bem menor em dinâmica; com isso, a personagem não só parece sofrer menos como, paradoxalmente, soa menos resoluta. Com Gardiner, a repetição do trecho é mantida, porém von Otter não oferece realmente muito mais do que na primeira vez. Tampouco o maestro.

Em concerto, Callas podia escolher árias contrastantes em termos de exigência vocal e de afetos. Uma apresentação em 1958 em Los Angeles preserva o repertório de uma turnê nos Estados Unidos. Nas notas do cd, John Ardoin afirmou que ela estava em grande forma nessa ocasião. O repertório consistiu em La Vestale, Macbeth, O Barbeiro de Sevilha, Mefistofele, La Bohème e Hamlet: óperas de Spontini, Verdi, Rossini, Boito, Puccini e Thomas, o único francês. Os títulos são todos de ópera e do século XIX: de 1807 (Vestale) a 1896 (Bohème). Callas jamais cantaria música contemporânea: paradoxalmente, ela foi uma artista revolucionária que se especializou em cantar música do século anterior ao que viveu. 

No entanto, os estilos envolvidos no concerto são diferentes e as exigências vocais, também. A necessidade atual de chamar três cantoras no mesmo concerto para homenagear Callas se repetiria, se alguém tentasse repetir esse programa.

A voz dramática de Lady Macbeth contrasta com a leveza da Ofélia francesa: duas transcrições operísticas de peças de Shakespeare, com dois personagens que, mesmo no teatro falado, não devem ter a mesma voz. São duas peças sérias; já "Una voce poco fa", da personagem Rosina do Barbeiro de Sevilha, é cômica. Ouvem-se até algumas risadas no meio da ária quando ela canta a palavra "ma" ("mas", que introduz uma virada no discurso da personagem sobre si mesma).

Nenhuma dessas três árias estava no repertório de, para lembrar outra grande cantora, Renata Tebaldi, ao contrário de "L'altra notte in fondo al mare", do Mefistofele, de Boito, uma outra ária de loucura. No entanto, nunca ouvi de Tebaldi nada parecido com a coloratura, o surpreendente diminuendo no si agudo e os trinados que Callas realiza nesta apresentação.

Sobre as duas outras árias do programa, Callas é provavelmente a intérprete mais convincente da grande ária da Vestale; ela não se destaca, contudo, como Musetta de La Bohème: o personagem submerge na interpretação bombástica. Por sinal, ela nunca chegou a gravar esta ária de Puccini, tampouco interpretou Musetta no palco - ela apenas gravou em estúdio a ópera completa, mas no personagem de Mimi. Mas apenas essa seleção não convence. Anja Silya, por exemplo, cantou o papel título da Elektra, de Richard Strauss, e a Rainha da Noite de A flauta mágica, de Mozart. Trata-se de dois extremos vocais, mas ninguém diria que ela foi a melhor nesses papéis, nem mesmo muito boa... 

O que distinguia Callas era a profundidade com que ela estudava o personagem, tanto em termos dramáticos quanto musicais, para que pudesse apresentá-lo com uma convicção forte de intérprete. Pode-se até não gostar dela em um ou outro papel, mas não negar que ela havia preparado e apresentava uma concepção do personagem. Callas não era uma artista de rotina, ao contrário, por exemplo, das fracas produções do Metropolitan Opera House da época, conforme ela declarou em 1958, quando teve seu contrato com aquele teatro cancelado por Bing. A seriedade no trabalho, creio, faz parte do legado de Callas, que fez o público exigir, por exemplo, que os cantores de ópera fossem capazes de atuar.

Em suma, o recital é uma prova da variedade vocal e expressiva da intérprete: o registro apenas sonoro comprova não só as possibilidades da voz (e não o seu "uso do microfone", como escreveu certo comentarista: trata-se de uma gravação ao vivo e pirata), como sua força de grande atriz.

Por isso sua carreira foi mais curta do que a de outras colegas? É uma das teorias sobre o declínio vocal de Callas. mas ela mesma lembrava que o que fazia não seria nada estranho no século XIX. Seria raro, mas não único; um exemplo foi Lili Lehmann, que cantou na estreia de O anel do Nibelungo, de Wagner, em 1876, mas chegou a fazer algumas gravações antes de completar 60 anos, no início do século XX, onde ouvimos tanto Konstanze do Rapto do serralho de Mozart, como Leonore, do Fidelio de Beethoven, e La Traviata, de Verdi, ou seja, como soprano ligeiro, dramático e lírico. Creio que não encontraríamos hoje uma cantora que ousasse apresentar em concerto os três papéis. Com essas possibilidades, ela também cantou ao vivo e gravou trechos da Norma...

Callas sofreu mais, provavelmente, em razão de outra variedade: a de doenças e problemas de saúde, como lipodema, enxaqueca, dermatomiosite, hérnias, pressão baixa, vertigens, hérnias, sinusite, miopia e glaucoma, problemas de audição, problemas ginecológicos, insônia, dor nossos ossos, fadiga, inflamação nos maxilares, deficiência crônica de vitamina B12, depressão, alergias, hipermobilidade etc. A soprano Ziazan, que mantém o canal Ghosts of Opera, criou um vídeo, "Diagnosing Callas - What REALLY happened to her voice?", em que ela interpreta (bem) o fantasma da grande cantora e lê a longuíssima lista de sintomas conhecidos, apresentando a hipótese de que Callas teria sofrido da síndrome de Ehlers-Danlos: uma deficiente produção de colágeno, que pode afetar tudo no corpo. O vídeo apoia-se extensamente na biografia que Lindsy Spence escreveu, "Cast a Diva" (um trocadilho), que é realmente informativa. Lemos nela que em 1953, quando Callas estava tentando perder peso (acabou conseguindo), foi procurar um médico chamado Coppa por causa de seus problemas hormonais e de metabolismo: teve de ouvir que os artistas eram meio malucos e que tudo estava "na cabeça dela"... 

Era o tipo de resposta que costumava receber para suas queixas. Outro exemplo dessa incompreensão, registrado em áudio, está nos comentários de Alfred Hubay sobre a estreia da soprano no Metropolitan: ela não estava bem de saúde, mas esse funcionário do Met preferiu achar que suas dificuldades ou eram psicológicas e/ou efeitos do declínio vocal. É curioso ouvir também que Callas (vários diziam isso) não teria conseguido emagrecer nas pernas; na verdade, ela tinha problemas linfáticos, que levavam ao inchaço dos membros inferiores.

Ainda sobre questões de "cabeça", um possível sintoma que Ziazan não lê, mas que encontramos na autobiografia de Zeffirelli, era o de que cabelo de Callas parecia "morto" no final da vida. O colágeno é importante também para o cabelo.

Ela parecia estar quase sempre doente, sem encontrar realmente ajuda dos médicos, e sua vida encontrou outras dificuldades: ela estava na Grécia durante a Segunda Guerra e enfrentou a escassez de comida, ameaças de morte tanto dos italianos fascistas quanto dos comunistas que lutavam tanto contra os fascistas quanto contra os ingleses, para quem ela trabalhava; a péssima relação com a família, e não só com a mãe, que a chantageou e difamou; a tentativa de estupro no conservatório de Atenas; a incompreensão dos críticos e dirigentes de ópera de sua voz e de seu estilo; o escândalo que a imprensa criou por ela ter cancelado por doença uma récita de Norma em Roma, que gerou a ameaças de morte e a necessidade de deixar a Itália; para não falar do que ocorreu após ter-se apaixonado por aquele armador grego: depois disso, a vida pessoal comprometeu seriamente a carreira artística. Ademais, a saúde piorou bastante, e os vídeos da década de 1960 mostram-na muitas vezes com o fôlego curto, lutando contra o apoio, a voz instável.

Mesmo que não possamos saber com exatidão por que ela sofreu com tantos problemas médicos, evidentemente a saúde frágil comprometeu a carreira da cantora, que morreu subitamente do coração aos 53 anos. Dito isso, o legado artístico que ela deixou foi tão intenso que continua a irradiar-se sobre o mundo da ópera. Nesse sentido, sua carreira ainda não terminou: estamos apenas nos primeiros cem anos de Maria Callas. Nós passaremos, mas outros verão, caso o Antropoceno não destrua tudo, o segundo século d.C.


P.S. de 17 de dezembro: Não é só a imprensa paulista que pública textos superficiais é com erros sobre Callas: a Gramophone também. A revista até encurtou a carreira da artista numa linha de tempo errônea e mal pensada.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

A presença de Ana Maria de Almeida Camargo: 7 de dezembro no Centro Maria Antonia

 


No Centro Universitário Maria Antonia, dia 7 de dezembro de 2023, a partir das 15 horas, ocorrerá uma homenagem à historiadora Ana Maria Camargo, que faleceu neste ano. Como se sabe, sua contribuição para a Arquivologia e para as pautas de memória, verdade e justiça foi fundamental. Ela é um dos casos relativamente raros de pessoas que uniram a atividade acadêmica e a militância social.

Os palestrantes, que foram colegas e/ou alunos e/ou companheiros de militância da homenageada, falarão de sua trajetória profissional e política, que inclui o trabalho com os documentos do Brasil: Nunca Mais, projeto fundamental para o resgate da memória e para a redemocratização do país. 

O evento incluirá trechos de vídeos com Ana Maria Camargo discursando, projeção de fotos e uma surpresa final: um registro inedito da historiadora.

Esta foi a última foto que tirei dela, em 15 de abril de 2023, no lançamento do livro Feminismos, de Maria Amélia de Almeida Teles. No lado esquerdo, está a historiadora Janaína de Almeida Teles. Ela foi enviada para projeção no evento, que deverá ser o primeiro de muitos, tamanho é o impacto de sua carreira.



sábado, 2 de dezembro de 2023

"Consanguíneo": um réquiem escrito por Eduardo Quina

Eduardo Quina publicou durante a última pandemia Consanguíneo (Porto: Officium Lectionis, 2021). Quando o li, eu estava ensaiando o Requiem de Mozart no Coro da Cidade de São Paulo. Achei que se tratava de um encontro significativo, porque se trata de poesia sobre morte, mais especificamente da mãe. 

Os poemas são curtos e em versos livres: em geral, cada divisão do livro soa como um poema só, dividido em pequenas unidades, uma em cada página. Na primeira parte do livro, "Morrer ou enlouquecer", um Miserere, lemos a referência entre a relação entre mães e filhos:


da terra nascem inócuas flores:
não sobrevivem ao sangue puro das mães (p. 21)


selam as veias com sangue
para silenciar a dor dos filhos: (p. 25)


minha mãe estava em mim
como uma constelação paciente
que sangrava a minha dor: (p. 27)

O ponto alto destas referências é provavelmente este: embora mortas, as mães continuam a alimentar os filhos:

pedem perdão dentro das suas sepulturas:
no interior do seu ventre há ainda alimento:
é o corpo em decomposição (p. 32)

Neste caso, trata-se da fonte da poesia. Estamos, pois, em terreno dos mitos que ligam o poeta à morte, como o de Orfeu. Quina, por isso, não soa nada falso quando assume esta linguagem mais próxima do simbolismo:


[agora guardo em mim seres imóveis
em forma de espectros:
depois solto-os à feição de aves
para que espalhem inocentemente a morte
ou
um deus em forma de suicídio] (p. 34)

Em linguagens mais prosaicas, passagens como essa não teriam lugar. Não é o caso da poesia de Quina, permeada de figuras de linguagem.

A segunda parte do livro é intitulada a partir de Leopoldo Maria Panero ("O jogo da cabra cega ou 'essa beleza demente da infância' [Vestigia Dei]"), o que nos faz esperar que a linguagem seja arremessada para as fronteiras da razão. Algo disso acontece, de fato, mas a grande marca da seção é a violência dos temas, especialmente na ligação entre infância e Igreja:


num charco de flores
o verme
apodrece numa pequena
concentração
de luz

[a criança estilhaça-se impotente
contra os vitrais da igreja] (p. 41)


[ninguém fala a tua
língua puta
ó deus] (p. 45)

 Marca-se o anticlericalismo desta seção:


[é domingo:
                    deus descansa de todas as mortes]


A parte seguinte, "Natureza morta", continua o anticlericalismo da anterior e acusa o "usurário das promessas de deus". 
O livro traz uma nova divisão chamada "Maligno", destaca com as epígrafes da conhecidíssima frase de Adorno sobre poesia e Auschwitz e o artista português Rui Chafes: "A beleza é impossível sem as marcas da morte". De fato, há uma diferença: predomina a visão de "estamos mortos e ainda respiramos" e a escritura de uma "biografia insuportável da perda" desde a infância. A maternidade volta a aparecer, porém não na figura de uma pessoa, mas como fonte do aniquilamento: "um útero guarda ainda a aflição / de um corpo."
Em "Ausência (regresso a Orpheu)"; o mito é nominado no próprio título da seção. Esta parte me parece menos bem realizada: esta invocação explícita aos deuses é menos poderosa do que as outras partes faziam e o discurso poético perde intensidade. Uma passagem como "[afinal, o que pode a poesia?]" tanto enuncia o problema quanto é parte dele.
Em "Labirinto", concentra-se o discurso no símbolo da flor (que aparece por todo o livro, às vezes metonimicamente com as referências a pétalas). 

no corpo que sangra
subsiste uma flor
por entre os dedos lâminados
de impotência:
pétala a pétala
compões o rosário
do sofrimento:
    é o crime pelo fogo roubado. (p. 160)

Novamente, a referência ao mito no verso final (Prometeu) vem explicar a imagem, o que não é a melhor coisa a se fazer em poesia.
Esta seção tem subdivisões; depois do "Pórtico", chegam "Sombras", que citam o próprio poeta em epígrafe, suas "sombras mortas entre os dedos". Aqui, o complexo materno proporciona a força de passagens como esta:

depois, há um espaço em ti que pode ser um lugar:
e escondes-me no teu útero para
que te possas ausentar. (p. 174)

Estes versos parecem anunciar a poética do livro:

escrevemos na rudeza das mãos
a anatomia imprópria das sombras. (p. 185)

Na última subdivisão, "Sem saída", em que a epígrafe novamente revisita poemas anteriores seus, insiste-se no simbolismo com referências religiosas e/ou antirreligiosas: "a minha memória/ são as cicatrizes de deus."
Depois da "Cegueira", um "Epitáfio". São dois poemas, porém o último devora o anterior, que tem passagens explicativas a contrastar com as melhores passagens de Consanguíneo. O final é interessante: o gesto lembra o de Cecília Meireles na parte 7 de Elegia, outro poema fúnebre, que a poeta dedicou à avó Jacintha Garcia Benevides e publicou no fim de Mar absoluto. Nos dois casos, o poeta morre também. Cecília, porém, continua o poema.
O livro de Quina é longo, mas suas partes fortes compensam de longe as que caem na tentação de explicar ou reiterar o verso. 
Um réquiem, naturalmente, é uma missa e, por essa razão, pressupõe uma relação forte com o sagrado, seja para consagrá-lo, seja para lutar com ele, em revolta contra a morte. O poema final revela a fé de que deriva a força desta poesia -- ela só pode acreditar na dor:

dentro de ti a dor. a dor torta. situada.
como uma extensão de deus. (p. 207)