O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Universos paralelos da educação XIV: provas para professores

Com toda humildade, esta instituição sente-se muito honrada pelo interesse dos senhores de nela ingressar. Permitam-me explicar as regras. Os candidatos farão a prova ao computador. Terão uma primeira hora de consulta, durante a qual poderão fazer anotações em arquivo digital nos computadores disponibilizados pela faculdade. Depois, essas anotações serão impressas por nosso pessoal administrativo e os arquivos, apagados dos computadores. Os candidatos responderão à prova escrita somente com essas folhas impressas. No meu tempo, não era assim, escrevíamos tudo à mão, os avanços tecnológicos são muito auspiciosos. Tudo muda, a educação também tem que mudar!

Creio que o regulamento permite consulta a todos os meios na primeira hora. Impressos e digitais. É mais internacional. Sem acesso à internet  ressalte-se. Com o uso de pen drive, evidente, para os livros eletrônicos. Viva o progresso, aliás, inscrito na bandeira pátria. Não vedaremos o uso de anotações pessoais. Sim, é claro que os candidatos poderão elaborar previamente suas dissertações sobre os pontos do concurso no pen drive e copiá-las para o rascunho da prova. Parece que é uma facilidade, porém eles deverão digitar tudo de novo, porquanto o arquivo do rascunho é apagado depois da primeira hora de pesquisa. Precisarão copiar das folhas impressas.

Se um candidato simplesmente resolver conectar o pen drive de novo para evitar o trabalho de digitar a dissertação que já teria preparado antes da prova?? Não cogitei essa possibilidade, mas certamente o único funcionário que ficará na sala com as poucas dezenas de candidatos impedirá essa eventual irregularidade.

Em relação à possibilidade de que outrem seja contratado para elaborar as dissertações previamente e, dessa forma, um candidato seja aprovado com uma prova comprada, parece-me que uma farsa desse tipo não se sustentaria nos quarenta e pouco minutos da prova de aula. Do contrário, nossa prova se mostraria menos segura do que o vestibular dos alunos!!

É curioso pensar que o candidato também poderia adquirir de outrem um plano de aula com as projeções respectivas. Ah, a duvidosa natureza humana, que nunca muda... De qualquer forma, ele teria o trabalho intransferível de operar o computador e ler com boa dicção as projeções, o que já o comprovaria apto para o trabalho docente.

Não julgo crível que algum candidato usasse o pen drive irregularmente depois da hora de consulta para colar um capítulo do manual do pai do presidente da banca e atual diretor da faculdade, mais um artigo da ex-diretora, embora versem sobre temas diversos, e apresentasse a colagem como prova sua, e muito menos que gastasse quarenta e três minutos, o dobro dos outros, no momento de leitura oral da prova diante da banca. Evidentemente, professores de verdade perceberiam o plágio, ouso dizer que alguns deles provavelmente estariam na banca e impediriam este erro.

É claro que, se tudo isso ocorresse, mesmo assim a banca permaneceria soberana e continuaríamos a nos julgar os melhores desta parte do continente. Ninguém ostenta melhores relações do que nós.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A bomba e a posse

 - Vêm uns dezessete presidentes para a posse. No mínimo.

- [resmungos]

- O Diogo está até em depressão.

- [resmungos]

- Será que o Lucas votou no Lula?

- E você tem dúvida?

- Mas ele é tão inteligente... Ele está escrevendo um livro, "Do que os bolsonaristas falavam".

- Falavam?

- Pois é.

- Eu não falo nada perto dele. Não quero acabar nesse livro.

- Ele votou no Lula. Ele fica falando de livro.

- [resmungos]

- Ele votou porque Bolsonaro é contra os homossexuais.

- E o Lula não é?

- Gostou do pão?

- Gostei.

- Viu que prenderam o cara que queria explodir o aeroporto de Brasília?

- É mentira. Não apareceu no grupo.

- Ouvi no rádio.

- [resmungos]

- Fazia tempo que o Lucas não visitava a gente.

- Eu acho que ele fez bem. Sem o aeroporto funcionando, a gente de bem deste país não passaria pelo vexame de quinze presidentes chegarem para a posse de um ex-condenado.

- Mais de quinze.

- Vêm para debochar do Brasil. 

- Muita gente.

- [resmungos]

- A bomba veio do garimpo ilegal na Amazônia.

- Fake news. O garimpo é a lei.

- A rádio disse que ele estava no acampamento do quartel.

- [resmungos]

- Vou pegar o leite.

- Mas eu acho que ele fez bem. O garimpo sempre trouxe o progresso. Sem ele, Minas Gerais não teria recebido tantos escravos. Sem o garimpo, muitos índios estariam até hoje atrapalhando o progresso.

- Parece que duas indígenas se elegeram agora.

- [resmungos]

- Bolsonaro vai para os Estados Unidos. Ou já foi?

- [resmungos]

- Aquele filho já foi. A esquerda diz que ele está querendo fugir. Fugir do quê?

- Da vergonha da posse de um ex-condenado.

- Na posse do Bolsonaro vieram muito menos presidentes. 

- A ONU ficou com inveja do Brasil ter um presidente tão bom.

- Por isso a ONU elogia o Lula...

- [resmungos]

- Parece que o Papa também gosta.

- Os comunistas todos gostam. Eles estão contentes. Rindo da nossa cara. Dizendo que somos burros. Que somos fascistas. Que somos violentos  Eles acham que estão nos xingando.

- Vêm presidentes de vários países comunistas, até da Alemanha.

- [resmungos]

- Eu achava que era a Alemanha comunista que tinha acabado.

- [resmungos]

- Os alemães correram para o lado errado do Muro?

- O problema todo é que aquele merda NÃO SOUBE MEXER NO DETONADOR! COMO É QUE ELE VEM DO PARÁ, QUE AINDA TEM ÁRVORE, ÍNDIO E SEM-TERRA, E NÃO SABE EXPLODIR NADA DIREITO?? FICOU NO ACAMPAMENTO EM FRENTE AO QUARTEL E NÃO APRENDEU A DETONAR BOMBA? OS MILITARES NÃO MELHORARAM NADA DESDE A INCOMPETÊNCIA DO RIOCENTRO?? ELES AINDA NÃO ENTENDERAM O QUE É VIVER NA DEMOCRACIA!!! Era o presente de Natal da nação, Cristo amado, uma bomba só... Deus dos Exércitos, ouvi as mil orações por uma só explosão...

- Calma, o Lucas está dormindo. 

- Bobagem, ele não ouviu nada. Ele vai acordar tarde, ele votou no Lula. Não vai ter nada no livro dele.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Lançamentos: livros de Fabio Weintraub, Ricardo Rizzo e Pádua Fernandes

 


Em 17 de dezembro de 2022, sábado, das 17 às 20 horas, serão lançados meu livro novo de poesia, Assassinato e ascensão do grande escritor (seguidos de Antologia completa), a edição de 20 anos de Novo endereço, de Fabio Weintraub, que foram objeto de uma campanha de financiamento coletivo lançada em outubro deste ano. Levamos dois meses para concluir o processo. A editora Patuá os publicará.



O evento ocorrerá na Patuscada (rua Luís Murat, 40), em São Paulo. Conosco estará Ricardo Rizzo, sobre quem já escrevi algumas vezes, que vem de Brasília e lançará em São Paulo seu mais novo livro de poesia, O excedente, que saiu pela Corsário-Satã.



Agradecemos a presença de todos. Estas são as ligações para os livros:

Novo endereçohttps://www.editorapatua.com.br/novo-endereco-de-fabio-weintraub/p

Assassinato e ascensão do grande escritor (seguidos de Antologia completa)https://www.editorapatua.com.br/assassinato-e-ascensao-do-grande-escritor-de-padua-fernandes/p

O excedentehttps://corsario-sata.minestore.com.br/produtos/o-excedente-ricardo-rizzo


segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Nina e Paloma, de Diego Callazans

Li no Koo de Diego Callazans que será publicado, pela 7Letras, o livro de contos Nina e Paloma. Escrevi a orelha, meses atrás, que reproduzo aqui:



Diego Callazans surpreende o leitor deste segundo livro de contos desde a sua estrutura. Dividido em duas partes, “Contos de Nina e Paloma” e “Contos de Nina ou Paloma”, a obra anuncia-se composta de histórias em que aparecem, na primeira seção, as duas personagens do título (a detetive e sua auxiliar) e, na segunda, ou uma ou outra.

Não se trata apenas disso, porém. A primeira parte parece formar uma novela, pois as histórias ganham em ser lidas em conjunto. Todo o livro é atravessado pela tensão entre o conto e a latente forma do romance.

A tensão é reforçada pelos laços que Nina e Paloma mantém com o romance Urinol (2021), com que compartilha personagens, inclusive as que dão título ao conjunto. Ademais, ele confirma a importância das comunidades LGBTQIA+ na obra de Callazans. Paloma é lésbica e sente-se atraída por Nina; Désirée, outra personagem de Urinol que aparece neste livro, é uma mulher transexual.

A nova obra acentua os traços de literatura fantástica. Os crimes que Nina investiga pertencem ao universo do sobrenatural e envolvem espíritos e rituais mágicos. Paloma é moderadamente cética; o último caso em que atua revela a conturbada origem familiar de sua chefe e ajuda a explicar a atração pelo oculto. 

O que dizer dessa matéria da ficção, que desafia os sentidos? O conto “Persona” talvez dê uma chave: “Somente a arte é real o bastante”, em tensão com a fala de Nina em “Sofia”: “não entendo o idioma do Abismo”. O ininteligível, o nome mais compreensível do mistério, pulsa sob a fala. 

“Grimório”, o último conto, corresponde a um dos capítulos de Urinol, e não só pode ser lido autonomamente como se relaciona bem com o conjunto deste novo livro, dando-lhe um final lógico e inesperado. Ele retoma a tensão entre os gêneros literários (conto e romance) e reafirma a presença do ininteligível na imagem do "testemunho de uma voz abissal, que soava diretamente em seus crânios, falando-lhes em uma linguagem inumana", evocada pelos livros em relação aos quais nutrimos a “esperança – vã – de que ninguém os lesse.” 


quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

A rosa do genocídio

A rosa do genocídio,
toda feita de espinhos,
vota na fome,
alimenta-se dos famintos.

A rosa do genocídio
odeia o vermelho,
expulsa essa cor
para fora dos corpos,
para dentro dos ralos.

A rosa do genocídio
acampa diante dos quartéis.
Toda campa
é seu jardim.

Floresce ao inverso:
quando as moscas rodeiam o caule
sentimos enfim seu perfume.
O voo das borboletas
encerra-se sob folhas mortas.

Não sei que forças extrai da terra
a raiz da rosa do genocídio.
Os recursos se esgotam,
os rios secam,
as facas se aguçam,
todas as onças caem
com patas queimadas;
as nuvens tóxicas vestem a pele
também dos que a cultivam.

Suas pétalas, afiadas.
Estúpidos confundem-nas
com a sagração da primavera.
Rejeitam vacinas porque os espinhos
da rosa do genocídio
atravessam mais profundamente a carne.

Os admiradores da rosa do genocídio
não a colhem para vasos
ou arranjos florais.
São colhidos por ela
com bombas, mensagens automatizadas,
fuzis e orações.

Ela não se reconhece como rosa.
Prefere uma imagem mais viril,
como chacinas em creches
e estupros coletivos.

A rosa do genocídio escolhe o deserto;
se a chuva aparece,
ela exige a anulação das eleições.
Chove, outras plantas brotam, porém
ela só reconhece urnas em formato de foice.

Alguns não a reconhecem como flor,
mas como o próprio Messias,
a taxa de juros ou o dedo espetado
ao remendar a bandeira pátria.

Flor é, no entanto,
pode ser arrancada
como todas as outras pragas.


II

Educação a base de instrumentos de poda e agrotóxicos. Doutorado e outros cursos, mera reciclagem do jardim de infância após a chacina, jardim de seixos. Atirados. Ela desensina todas as cores, como se vestir da rosa do genocídio, senão sob diamantes colhidos por crianças escravizadas, eles brilham e desensinam a luz: o sol não se reconhece nestes pequenos espelhos da hediondez. Versão pós-atômica das armas de destruição em massa. A disposição de todos nas melhores lojas.