O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 30 de maio de 2021

Esfera pública com os pés: O meu 29 de Maio e o #ForaBolsonaro em São Paulo

No trabalho de pesquisa, pode ser difícil escolher e identificar quais são as fontes pertinentes. Porém não basta encontrá-las: é necessário lê-las criticamente e perguntar, por exemplo, qual era o olhar e a finalidade de quem as produziu.

Eu geralmente pesquiso fontes policiais e de órgãos de informação; sei que devo interpretar os documentos levando em conta o ânimo simultaneamente criminalizante, em relação não apenas aos oposicionistas, mas à maioria da sociedade civil, e ""abolicionista"" em relação aos crimes do Estado. Quando esses documentos trazem provas ou reconhecimento da prática destes crimes, é impactante. Boa parte dos processos na Comissão de Anistia, por exemplo, encontra provas nesse tipo de arquivo.

Quando usamos fontes jornalísticas, temos que saber qual é o perfil do jornal, o que determina que notícias serão dadas e como isso ocorrerá, com que tom político. É necessário saber também o que será ignorado pelo periódico. Pode ser que ele sejam parecidos com os arquivos policiais e dos serviços de informação: criminalizantes em relação à sociedade civil, compassivos com os crimes do Estado ou do capital.

Lembrando da época da ditadura militar, os mesmos fatos não eram contados, ou não o eram da mesma forma, por periódicos tão diferentes como a Folha de S.Paulo e o Brasil Mulher, ou O Globo e o Lampião.


Para 29 de maio de 2021, foram convocados atos contra o governo de Jair Bolsonaro em mais de cem cidades do país e em algumas no exterior. Em São Paulo, vi cartazes como estes. Era de imaginar que a cobertura jornalística desse esforço suprapartidário merecesse coberturas que variassem muito, segundo o veículo e suas preferências políticas.

Uma forma de se referir aos atos que congregaram dezenas de milhares de pessoas durante a pandemia foi escondê-los em um canto da capa e criticá-los por causar aglomeração, solução de O Estado de S.Paulo, em contraste com a destacada cobertura e o entusiasmado estímulo às manifestações de 2016, que visavam derrubar o governo do PT. O jornal O Globo realizou algo parecido, mas com o detalhe irônico de usar Gilberto Gil na capa, como notou Erahsto Felício. O jornal impresso Folha de S.Paulo fez bem o oposto e deu destaque aos atos.

Em relação à televisão, vi críticas ao absenteísmo da Globo News em relação ao atos, bem como à fraca cobertura da CNN. A tevê ligada à Igreja Universal resolveu omitir o caráter político das manifestações de 29 de maio, com o efeito óbvio de salvaguardar Jair Bolsonaro para aqueles que não têm muito acesso à informação, ou somente o tem por meio desse tipo de filtro religioso. 

Em cidades menores, boa parte do jornalismo não teve pudor em ignorar até as manifestações oposicionistas locais... 

Diante disso, o jornalismo teve que refugiar-se em veículos como o Brasil de Fato, a Mídia Ninja e outros de menor tamanho, porém de maior respeito à ética jornalística. Nesses momentos, para recorrer às fontes jornalísticas, é necessário buscar tais veículos, bem como os da imprensa estrangeira. O Giro Latino indicou alguns da América Latina.

Apesar da pandemia, e também por causa dela, resolvi comparecer ao ato em São Paulo (desde 2019 eu não participava de nenhum protesto de rua). Nesta nota, quero dar o ponto de vista de uma pessoa comum que simplesmente decidiu aparecer no evento, sem ter participado da preparação ou da organização. Também fazemos esfera pública com os pés.

Fiquei menos de três horas, deixei o ato na Consolação, não cheguei até a Praça Roosevelt. Por causa da pandemia, escolhi não andar nas áreas de maior aglomeração. Não vi, portanto, muita coisa. Escrevo esta breve nota só para contar o que eu vi, com as minhas fracas fotos amadoras.

Eu contraí o covid-19 em julho de 2020. Espero não ficar doente novamente. Tenho ficado em isolamento, mas decidi rompê-lo no sábado por ter ficado incomodado com a impressão que a extrema-direita quer passar de que agora "as ruas" são dela. Resolvi me arriscar, levando em conta que era necessário dar uma demonstração de força com a presença no espaço público, e que meu marido já está vacinado. 

Creio que muita gente compareceu neste mesmo espírito, o de que o pior "vírus" é o atual ocupante da presidência. Fotografei cartazes da nova epidemiologia política.


A imprensa colaboracionista resolveu criticar a esquerda por ter provocado aglomeração, mas não vi uma só pessoa sem máscara, ao contrário do que sempre acontece nos atos de comemoração do genocídio promovidos pela extrema-direita. Não há como pretender, sem muita desonestidade e/ou disfunção cognitiva, que são eticamente comparáveis esses atos com o do 29 de maio.

Era a esquerda que o organizou e ela estava presente; vi bandeiras do PT, do PSOL, da UP, e de outros que já vi diversas vezes em atos políticos desta natureza: movimentos como o Levante Popular da Juventude, a UJC, o MTST, bem como da CUT, além de faixas e camisetas da Democracia Corinthiana. Bandeiras LGBTQIA+ também, às vezes servindo como manto. Creio que foi a primeira vez que vi faixa da jovem Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, fundada em 2018:





As pautas expostas nos cartazes envolviam a lembrança dos mortos pelo negacionismo bolsonarista, a vacina, o auxílio emergencial e, principalmente, a saída do atual ocupante da presidência. Apareciam também reivindicações de outros temas atingidos pelo governo, como o ambientalismo e os direitos das mulheres.




Havia essas pessoas, esses atores e tais pautas. Era muita gente? As fotos realizadas com drones revelam que éramos uma multidão. A Mídia Ninja divulgou-as. Entendo que, por essa razão, os bolsonaristas tenham se calado diante dos atos  (os mais desorientados tentaram espalhar a mentira de que não havia quase ninguém), bem como os apoiadores do golpe de 2016 (nem todos bolsonaristas, é claro). O Esquerda Diário publicou matéria sobre as falsificações veiculadas por apoiadores do atual governo para minimizar o 29 de Maio.

Mostro abaixo imagens capturadas dos pequenos vídeos que fiz:


A arte fez-se presente: um boneco inflável brindava-nos com a imagem atualizada da morte no Brasil, e nesta bela imagem de Gilmar (Machado Barbosa), presente também no twitter do artista, víamos o vírus com seu aliado: 


Foi curioso notar a presença de bandeiras do Brasil, como se alguns tivessem decidido recuperá-la após ter sido conspurcada pelos golpistas de 2016 e pela extrema-direita bolsonarista. Houve os que a vestiram com dizeres contrários ao atual ocupante da presidência da república.



As acusações de genocida repetiam-se, tendo em vista que ela é uma consequência da estratégia de "imunidade de rebanho" invocada pelo ocupante da presidência. Um dos cartazes que fotografei fazia a conta dos que faltam cair segundo as políticas adotadas pelo governo, um milhão.



No final, fica  pergunta: quantas mortes faltam para o impeachment? Será realmente um milhão de pessoas? A esquerda já apresentou vários pedidos de impedimento. Segundo o Placar do Impeachment, somente o PT, o Psol, o PCdoB e a REDE têm total adesão ao impedimento. No entanto, a esquerda é minoria no Congresso e na presidência da Câmara dos Deputados, o responsável por colocar esses pedidos na pauta de votação, há um aliado do governo. 

Falta ver se em algum momento a direita partidária e seus patrocinadores e divulgadores terão medo dos que sobreviverem.




sábado, 29 de maio de 2021

Quarto de despejo chega a Portugal: Carolina Maria de Jesus pelo VS Editor


 

A  primeira edição portuguesa de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, preparada em 2020, veio à luz, por razões de pandemia, em 2021 pelo VS Editor.

Por que Vasco Santos, com sua nova e excelente editora, foi o primeiro? A apresentação, escrita por Fernanda R. Miranda, explica que Salazar havia proibido a edição do livro, publicado no entanto em diversos países. No texto, lemos também que ela nunca foi publicada, até hoje, nos países africanos lusófonos.

A crítica e ensaísta destaca a atualidade de Carolina:

Passadas seis décadas de publicação, a sua primeira obra publicada permanece significando o nosso real, as fraturas da cidade, as desigualdades e violências intrínsecas ao sistema capitalista, a luta incessante pela vida, pela voz, pelo futuro — cotidiana para todos aqueles que são vistos como margem, como despejo.

Tive a honra de escrever as notas dessa edição. Preparei 91, número adequado, levando em consideração muitas referências à política e à história do Brasil que certamente seriam ignoradas pelo público estrangeiro. A edição corrente da Ática, para brasileiros, já apresentava 49 notas. 

Anotei tudo o que estava na edição brasileira, às vezes divergindo. Por exemplo: Carolina Maria de Jesus informa que achou no lixo "batata solsa". A edição antiga dizia que a autora tinha achado uma batata salsa, isto é, salgada. Entendi que ela achou uma batata salsa, ou seja, baroa (ou mandioquinha). 

Depois que fiz esse trabalho, a Ática, por iniciativa de Fabio Weintraub, que lá estava nessa época, lançou uma edição comemorativa dos 60 anos de Quarto de despejo, com uma fortuna crítica que vai de Alberto Moravia a Fernanda Miranda, que apresentou a edição portuguesa. Nessa nova edição, com 63 notas, adota-se o mesmo entendimento que tive sobre a batata.

Se a comida que ela encontrava no lixo exigiu alguma explicação, outro tipo de insalubridade me trouxe muito mais trabalho: os políticos que a escritora denunciava. Por exemplo, o "Dr. Osvaldo de Barros", que ela denominou de "falso filantropico de São Paulo", e que chamou um "carro de preso" para a autora, era o irmão de Ademar de Barros. Outros nomes, porém, tinham menor fama e exigiram-me mergulhar em periódicos e teses de história e na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional (que os bolsonaristas não a destruam). 

Tive de ler as listas de candidatos e seus votos para identificar os políticos que faziam excursões pela Favela do Canindé. Foi interessante verificar quantos políticos que ela menciona se tornariam golpistas em 1964. Carolina detestava, por exemplo, Carlos Lacerda. 

Mas Lacerda estava no Rio de Janeiro. Em geral, ela tratava das figuras de São Paulo. Em primeiro de novembro de 1958, ela escreveu:

Quem lê o que o Dr. Adhemar disse nos jornais que foi com dor no coração que assinou o aumento, diz:

— O Adhemar está enganado. Ele não tem coração.

— Se o custo de vida continuar subindo até 1960 vamos ter revolução!

Era um exagero? Não exatamente, embora esse tipo de insurgência não tenha derrubado o poder. Tive de escrever uma pequena nota sobre a importância dos movimentos contra o custo de vida e a carestia nessa época, e como eles voltaram na década de 1970, em razão do desastre econômico e social gerado pela ditadura militar (agora o Brasil está revivendo o desastre que são os militares no poder). 

Tive a preocupação de manter as notas em tamanho econômico para não distrair o leitor do impacto do texto de Carolina Maria de Jesus. A mais longa ocorre por causa da menção a um crime cometido por uma policial do DOPS. Os portugueses, na mesma época, tinham a PIDE, mas eles estavam sob um regime fascista. Tive de explicar que "tanto a época de criação do DEOPS-SP quanto esta em que a autora escreveu (entre o fim da Era Vargas e o golpe de 1964) são períodos em que o regime político era considerado formalmente democrático."

Por sinal, há até pessoas que acham, embora insensatamente, que o Brasil continua "formalmente democrático" depois do golpe de 2016; se tivéssemos um momento de suspension of disbelief e aceitássemos essa tese, talvez fôssemos obrigados a dizer que a democracia é autorizada no Brasil por permitir, por exemplo (um entre incontáveis), que ocorra assédio policial a parlamentares negras, como ocorreu com Tainá de Paula no último 27 de maio no Rio de Janeiro: https://twitter.com/tainadepaularj/status/1398418880499011590

Carolina era uma mulher negra e sabia o que significava essa condição na sociedade brasileira. A partir do reconhecimento de si mesma, escreveu fazendo exigências do que chamamos hoje de direito à cidade e de direito à literatura, cruzando essas duas dimensões que, para teóricos desavisados, não teriam nada em comum.

Esse cruzamento original (ele aparece também em Casa de alvenaria, infelizmente não reeditado) é uma das razões da força deste livro a que, agora, os portugueses poderão ter facilmente acesso, e não só perceber por que até hoje é um sucesso de vendas no Brasil, como notar que muitos dos problemas que a autora denunciou permanecem vivos nesta sociedade.

Este livro, no entanto, também continua vivo, e isso é um motivo de esperança.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

O fechamento da Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, mais um capítulo da devastação bolsonarista

O governo federal conseguiu fechar a revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea (ELBC), uma das principais do país, por meio da estratégia tipicamente liberal de gestão: retirar o financiamento para que a instituição pública entre em colapso e, dessa forma, feche as portas ou, caso haja interesse do mercado, seja "concedida" a preço vil a empresários.

Parece que essa estratégia tem sido mais eficiente do que as iniciativas de mordaça do que se chama falsamente de "escola sem partido" (ou seja, com o "partido" neoliberal-teocrático-militarista) para calar professores e pesquisadores. 

A revista enviou correio eletrônico comunicando o encerramento. A editora-chefe, professora Regina Dalcastagnè, publicou-o em suas redes sociais. A acelerada destruição do CNPq e da CAPES por Bolsonaro foi um dos fatores que levou ao resultado:

Com o desaparecimento dos editais de apoio a publicações no Brasil e sem suporte institucional (ainda que a Estudos tenha sido um dos únicos três periódicos da UnB a receber nota máxima na última rodada de avaliação da Capes), não há como dar continuidade ao trabalho. 

Cito mais estes dois parágrafos:

A inviabilização de uma revista como a Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, que comunga dos ideais da ciência aberta, não é uma situação isolada. Em nome da “sustentabilidade”, há uma pressão imensa para que os periódicos acadêmicos cobrem dos autores a publicação de seus artigos. Caso contrário, na ausência de outras formas de apoio, teriam que repassar os custos aos leitores. Existem revistas estrangeiras cobrando o equivalente a R$ 15.000,00 ou até mais para um brasileiro publicar seu texto; revistas nacionais que já se submeteram à ideia cobram valores também na casa dos milhares de reais. Uma vez que a publicação em periódicos acadêmicos, além de garantir a circulação do conhecimento, é importante para a formação do currículo do pesquisador e para a qualificação dos programas de pós-graduação, cabe perguntar: quem pagará por isso?

Certamente não serão os pesquisadores sem dinheiro ou as instituições mais periféricas. Recursos de universidades públicas, que poderiam ser utilizados para financiar as revistas brasileiras, já estão sendo empregados para pagar editoras acadêmicas comerciais que, na outra ponta, cobram valores exorbitantes para que as bibliotecas universitárias possam disponibilizá-las a seus professores e alunos (comprometendo o orçamento das bibliotecas e, portanto, a atualização dos acervos de livros). Trata-se de um negócio muito lucrativo. Não por acaso, nos últimos anos a Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea recebeu – e rechaçou, evidentemente – várias propostas de venda de sua “marca” para editoras predatórias.

Trata-se de um adversário perigoso e sem escrúpulos. A indústria da publicação científica, com as armas letais da legislação de direitos autorais, levou à prisão e à morte um ativista como Aaron Swartz. Trata-se da batalha pelo controle da circulação de ideias e informações, na qual costumam se unir corporações e Estados. Lembro aqui do artigo de artigo do jurista Rafael Zanatta sobre a ideia swartziana de que "a ação colaborativa pode modificar as instituições existentes em uma perspectiva pós-capitalista". A fundadora do Sci-HubAlexandra Elbakyan, é basicamente uma asilada política pela indústria editorial, com o FBI em seu encalço.

É óbvio que o governo federal trabalha com outra perspectiva, não a de Swartz ou a de Elbakyan... Pois o sistema de editoração gratuita, bombardeado por Bolsonaro, atende a esse espírito de ação colaborativa, importante tanto para o conhecimento quanto para a democracia.

No twitter, comentei que é claro que OUTRAS revistas serão destruídas pelo governo federal e pelas demais autoridades bolsonaristas em diversas esferas do poder. A política de devastar as instituições científicas no Brasil inclui inviabilizar a divulgação de sua produção e atende ao projeto de privatização da educação pública.

Talvez seja útil relembrar que são as instituições públicas que respondem pela maior parte da pesquisa no Brasil. Acabar com elas não melhorará a ciência no Brasil, muito pelo contrário. Ou alguém está contando com a pesquisa de vacinas contra covid-17 (errei o número?) produzida por alguma uniesquina?

Sobre o projeto bolsonarista de destruição da ciência brasileira, quero lembrar, já no primeiro ano deste governo, da nota de esclarecimento da Associação Brasileira de Editores Científicos sobre a Chamada CNPq Nº 19/2019 – Programa Editorial, que deveria ter servido para apoio das publicações:

O recurso destinado à esta chamada manteve-se o mesmo por anos e caiu drasticamente passando de R$ 4.000.000 em 2018 para apenas R$ 1.000.000 em 2019, ou seja, redução de 75%. Cabe salientar o fato de que parte do recurso era dotado pela CAPES para esta chamada, o que não ocorreu, e portanto, o CNPq manteve de forma unilateral o Edital.

[...]

Foram apresentadas 222 propostas ao edital, distribuídas pelas Grandes Áreas do Conhecimento, as quais demandaram recursos no valor de R$ R$ 12.777.453,43. Portanto, os recursos disponibilizados pelo presente edital foram de R$ 1.000.000,00, equivalentes a 7,8% da demanda de recursos.

Após o trabalho de julgamento, o Comitê recomendou a aprovação de 162 propostas, no entanto, diante da apresentação do relatório final, a presidência do CNPq decidiu por não pulverizar o recurso e manter a série histórica de apoio a periódicos (quanto ao montante médio recebido por periódico nos últimos anos).

Desta maneira, inúmeros periódicos ficaram sem apoio, já que não alcançaram a linha de corte adotada pela Presidência do CNPq, que entendeu a necessidade de se manter o apoio a determinados periódicos apontados como estratégicos.

A redução de 75%, claro, era apenas a preparação abrupta para a extinção, como aconteceu também com as bolsas de pós-graduação dos programas. 

A ELBC tinha conceito A1, o mais alto. A qualidade das instituições públicas, porém, tem servido não para a sua preservação, mas para atiçar a sanha de devastação dos privatistas. Eu era leitor da revista, claro. Em maio de 2019, enviei um artigo para a revista no qual me referi ao "difícil andamento do próprio processo de justiça de transição no Brasil (e que permitiu em 2018 a eleição de um governo que nega o caráter criminoso da ditadura militar e elogia torturadores)."

Como todos os artigos que publiquei desde então (apesar de poucos), critiquei o atual governo (um dever de todo pesquisador, creio). Ele foi publicado no número 58 da revista. Eu não imaginava, porém, que o governo Bolsonaro a destruiria tão rápido.

Para essa destruição, é certo que houve a colaboração de colegas dos campos da ciência, da cultura e da pesquisa que traíram suas próprias áreas e apoiaram a eleição disso em 2018, apesar do discurso eleitoral já francamente obscurantista (bem como plano de governo, frontalmente hostil àqueles campos: Bolsonaro está cumprindo suas promessas). 

Continuam existindo esses apoios, embora, em regra, venham de figuras de estatura equivalente à do atual ministro da educação (ou à do impreCionante titular anterior) e à do secretário nacional de cultura. A essa estatura o Brasil vem sendo reduzido, pois é a única compatível com a ideologia neoliberal-teocrática-militarista.

Vi gente tratar como farsa o recentíssimo projeto de destruição da UERJ elaborado por um deputado estadual bolsonarista (parece que não seguirá adiante, informou Carlos Minc), porém na farsa também se revela o espírito da época. Trata-se da ideologia que vem presidindo eventos aparentemente díspares como o fechamento programado das universidades públicas ("Hoje, as 69 instituições têm a mesma verba que as 51 existentes em 2004. Só que 17 anos atrás elas tinham 574 mil alunos, hoje são 1,3 milhão de estudantes."), o genocídio dos povos indígenas ("“Estamos diante de uma política de extermínio indígena no Brasil”, denuncia assessor jurídico da Apib na ONU"), a premiação do crime ambiental com o desmonte da fiscalização e da legislação ("Delegado detalha denúncias de crime ambiental contra Ricardo Salles; deputados governistas criticam investigação") e à resposta genocida à pandemia. 

Enquanto este governo continuar, a devastação prosseguirá. Já é tarde para desfazer vários de seus efeitos, como a morte de quase meio milhão de pessoas.

Assinaram a dolorosa nota de extinção da ELBC os responsáveis pela revista; cito seus nomes não só para ressaltar sua excelência, mas para que as pessoas que não conhecem os periódicos científicos percebam, tendo em vista a diversidade das seções e das afiliações institucionais, como é difícil editá-los e como o espírito colaborativo, a que aludi antes (contrário, claro, à ideologia deste governo), é fundamental:


Regina Dalcastagnè, Universidade de Brasília (editora-chefe)
Patrícia Trindade Nakagome, Universidade de Brasília (editora científica)
Laeticia Jensen Eble, Universidade de Brasília (editora-executiva)
Leocádia Aparecida Chaves (secretária executiva)
Paula Dutra, Instituto Federal de Brasília (editora da seção temática)
Paulo César Thomaz, Universidade de Brasília (editor da seção temática)
Sandra Assunção, Université Paris Nanterre (editora da seção temática)
Anderson da Mata, Universidade de Brasília (editor da seção de tema livre)
Igor Ximenes Graciano, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (editor da seção de tema livre)
Leila Lehnen, Brown University (editora da seção de tema livre)
Milton Collonetti, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (editor da seção de resenhas)
Edma Cristina Alencar de Góis, Universidade do Estado da Bahia (editora da seção de resenhas)

terça-feira, 4 de maio de 2021

Heinze, pandemia, "tudo o que não presta" e os povos indígenas

Escrevi este pequeno texto em 2014 para um portal que saiu do ar, anunciando a campanha Índio É Nós, deflagrada em abril daquele ano. Fui procurá-lo por causa do senador Heinze: nele cito o então deputado federal. Ele foi curiosamente eleito naquela mesma época "racista do ano" pela Survival.  No dia em que escrevo esta nota, lembrei do excelentíssimo parlamentar porque ele defendeu posições pró-vírus na CPI da Pandemia, fazendo o louvor de remédios ineficazes

Resolvi trazer para cá o velho textinho, um tanto perplexo pelo fato de um político tão prestigiado por seus eleitores (o mais votado em seu Estado, Rio Grande do Sul), e com tal destacado renome no exterior, ter-se alinhado (certamente por algum equívoco) a uma posição, em termos de políticas de saúde, vizinha do genocídio, segundo juristas como Deisy Ventura.

P.S.: Relendo, observo que nenhum dos problemas apontados foi resolvido. A situação desastrosa agravou-se. As ilegalidades daquele momento, pré-golpe de 2016, permaneceram, à falta de algum Poder competente para assegurar os direitos dos povos indígenas, que continuam a ser alvo de contínuos golpes. Ademais, agora se tornam vítimas do impacto genocida da pandemia, absurdamente minimizada por agentes políticos como os citados.



Índio é nós”: Motivos para a mobilização em prol dos direitos e das terras dos povos indígenas


Pádua Fernandes



1. “Por trás desta baderna”: a incitação ao ódio, ou o que se chama de ordem


Durante a presente gestão federal, em que a aliança estratégica com os ruralistas tornou-se política pública, acirraram-se os ataques contra os povos indígenas no Brasil. Os assassinatos de índios e invasão de terras indígenas conjugaram-se à paralisação da demarcação de terras indígenas, ao trâmite e à aprovação de projetos anti-indígenas no Congresso Nacional, a decisões etnocidas do Supremo Tribunal Federal, e à incitação à violência contra esses povos por políticos e por meios de comunicação.
Para este breve texto, basta evocar um recente exemplo e sua reincidência: ninguém menos do que o coordenador da chamada bancada ruralista no Congresso Nacional, o deputado federal Luiz Carlos Heinze (PP-RS), foi flagrado em dois vídeos, gravados no fim de 2013, incitando o ódio contra os índios e outras minorias.
Em Vicente Dutra, no Rio Grande do Sul, o parlamentar atacou o Secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, encarregado da articulação entre governo federal e movimentos sociais. Tratava-se de audiência pública da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados sobre a demarcação de terras indígenas, com produtores rurais, em 29 de novembro de 20131. Heinze afirmou que “O Gilberto Carvalho também é ministro da presidenta Dilma. É ali que estão aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas. Tudo o que não presta ali está aninhado, e eles têm a direção e o comando do governo”.
Na mesma ocasião, o deputado Alceu Moreira (PMDB-RS) também tentou exercitar seus recursos retóricos contra as minorias:

Por que será que, de uma hora pra outra, tem que demarcar terra de índio e quilombolas? O chefe dessa vigarice orquestrada tá na antessala da presidência da república e o nome dele é Gilberto Carvalho. É ministro. [...] Por trás desta baderna, desta vigarice, está o CIMI, que é uma organização cristã. Que de cristã não tem nada. Está a serviço da inteligência norte-americana e europeia para não permitir a expansão das fronteiras agrícolas do Brasil [aplausos].


Heinze sugeriu que os produtores contratassem segurança privada “como o Pará está fazendo. Façam a defesa que o Mato Grosso do Sul está fazendo. Os índios invadiram a propriedade, foram corridos da propriedade [...] Resolvemos os sem-terra lá em, 2000, e vamos resolver os índios agora, não interessa o tempo que seja”.
Esses vídeos foram publicados no início de 2014 e geraram impacto na opinião pública, o que fez Heinze voltar atrás em relação aos gays, afirmando (numa reiteração cordial do preconceito) que até corta o cabelo com eles e os recebe em casa, mas não em relação a índios e quilombolas2.
O segundo discurso de Heinze contra minorias recentemente divulgado ocorreu no chamado “leilão da resistência”, em Campo Grande (MS), em 7 de dezembro de 2013, que tinha como objetivo arrecadar dinheiro para a formação de milícias privadas contra os índios. O deputado voltou a criticar Gilberto Carvalho e o governo de Dilma Rousseff:

Tem no Palácio do Planalto um ministro da presidenta Dilma, chamado Gilberto Carvalho, que aninha no seu gabinete índios, negros, sem terra, gays, lésbicas. A família não existe no gabinete deste senhor. Esse é o governo da presidenta Dilma. Não esperem que essa gente vá resolver nosso problema [aplausos]3

Após a divulgação, o deputado afirmou que se “referia ao comando dos movimentos quilombolas e não aos negros em geral.”4 Ele repetiu essa retificação em vídeo por ele mesmo publicado em 25 de fevereiro de 2014, em que alegou ter sido mal interpretado, pois apenas teria se rebelado contra o “comando desse movimento indígena” na Funai e na presidência, e a “quem comanda o movimento quilombola”, e não aos negros5.


2. A solução final, ou para os ruralistas a Constituição ainda não foi violada suficientemente

É importante notar que as vociferações da bancada ruralista estão em divergência flagrante com a realidade: não só o governo de Dilma Rousseff foi o que menos demarcou terras indígenas desde Collor, como o ministro Gilberto Carvalho não pode, de forma alguma, ser caracterizado como amigo das causas indígenas. Quando lideranças indígenas dos rios Xingu, Tapajós e Teles Pires foram, em junho de 2013, a Brasília protestar contra os projetos hidrelétricos nos rios Teles Pires e Tapajós, o Ministro recusou-se a encontrá-los – assessores e soldados do Exército os receberam6.

Em uma ocorrência mais grave, os índios Munduruku interpelaram-no judicialmente por injúria e difamação, pois divulgou uma nota, em 6 de maio de 2013, acusando as lideranças desse povo de desonestidade e de garimpo ilegal7.

Diversos projetos em trâmite no Congresso Nacional têm como finalidade retirar direitos dos povos indígenas. Artionka Capiberibe e Oiara Bonilla fizeram levantamento no fim de 2013, com destaque para a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 215, que deseja alterar a Constituição da República para que a competência de demarcação das terras indígenas passe para o Congresso Nacional, que ganharia, dessa forma, uma atribuição típica do Poder Executivo8.

Em maio de 2013, o governo federal suspendeu as demarcações no Rio Grande do Sul e no Paraná (onde há interesses eleitoreiros da então Ministra Gleisi Hoffmann). Em dezembro do mesmo ano, resolveu propor a mudança da regra das demarcações para torná-las ainda mais lentas, fazendo-a passar por vários Ministérios, subordinando os direitos originários dos povos indígenas, reconhecidos pela Constituição da República, aos interesses das empresas de mineração, à ideologia da segurança nacional e ao agronegócio. A proposta desagradou, previsivelmente, aos índios, mas também à bancada ruralista, com Heinze como o porta-voz da insatisfação, reclamando que, como a decisão ainda ficaria com a Funai, os “produtores” ainda ficariam a mercê de “laudos antropológicos fraudados” 9.

Voltemos aos discursos do fim de 2013. É basicamente estúpido dizer que “de uma hora para outra” se estão demarcando terras, tendo em vista que a Constituição previu um prazo de cinco anos, que terminou em 1993, para fazê-lo, e que o governo tem paralisado tal ação. O discurso de ódio dos deputados parece apontar em outra direção, para o que a senadora (TO/PMDB) e presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Kátia Abreu, caracterizou desta forma: “Depois que nós finalizarmos a questão indígena, eu quero saber qual é o outro tema que eles vão inventar para poder atrapalhar a agropecuária brasileira.”

A alusão à solução final ocorreu em audiência pública da Comissão de Agricultura em 11 de dezembro de 2013 na Câmara dos Deputados, como conta Luísa Molina. O discurso racista e de ódio contra os índios encontrou reverberação segura no coração do Poder Legislativo:


Nós vamos fazer esse enfrentamento. Um enfrentamento duro. Em Mato Grosso do Sul e em todo o país", afirmou o senador Waldemir Moka (PMDB-MS). Aplausos e as expressões de satisfação que rondaram o auditório quando o deputado Giovanni Queiroz (PDT-PA), ao falar de como "lidaram" com "o problema indígena" no seu estado com violência. "Ninguém mais contrata advogado. Entrou hoje [indígena na terra], sai na madrugada do dia seguinte. Sai debaixo de cacete". Ele prossegue, aconselhando outros a contratarem empresas de segurança: "4 horas da manhã você aborda o pessoal [que entrou na terra], chega o cravo no primeiro que reclamar, dá-lhe um cacete, bota em cima de um caminhão e manda devolver". Queiroz, sem disfarçar um racismo quase caricato, disse ainda: "[os índios] querem ser civilizados. Nós todos um dia fomos índios. Nós, aliás, fomos macacos.10


Esse discurso racista tem-se mostrado sem pudor nos Poderes oficiais e tem encontrado reverberação na grande imprensa, com suas críticas aos movimentos étnicos (que seriam “racialistas”), que teriam resultado, na ridícula expressão da presidente da CNA, em uma “ditadura antropológica”; um curioso regime autoritário em que os detentores do poder seriam diariamente desmoralizados e ameaçados, e os seus beneficiários, expulsos e mortos.

Tal situação de violência crescente contra os povos indígenas ocorre em uma situação de endêmica impunidade dos crimes contra extrativistas, índios e populações tradicionais, e de retomada da indústria barragista na Amazônia, ameaçando a sobrevivência dessas populações, com violação flagrante de normas constitucionais e internacionais.


3. O protagonismo indígena versus a produção legal da ilegalidade

Nestes últimos tempos, no entanto, vem retornando o protagonismo indígena nos protestos, que havia crescido no fim da ditadura militar, até chegar à Constituinte, e gerou as previsões sobre direitos indígenas na Ordem Social.

A bela cena dos índios, de várias etnias, ocupando o Congresso Nacional, em 16 de abril de 2013, antecipou as jornadas de junho de 2013, foi uma das manifestações contra a PEC 21511. Posteriormente, os índios Guarani, Guarani-Kaiowá e Terena protocolaram, em 27 de fevereiro deste ano, representação, assinada por diversas organizações12, na Procuradoria Geral da República, para investigar criminalmente Luiz Carlos Heinze e Alceu Moreira pelos vídeos mencionados.
Entende-se, pois, que Heinze tenha voltado a investir contra as lideranças dos movimentos: trata-se da tentativa de impedir a ação política das minorias, impedindo sua organização autônoma.
Tais manifestações, assim como as que ocorreram no meio urbano, partem, entre outros fatores, da constatação de que não há no Brasil, efetivamente, Justiça, nem mesmo no mero nível formal que se poderia esperar, talvez, de uma democracia burguesa. A indignação por isso moveu, por exemplo, o ato convocado pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), no dia 2 de outubro de 2013, em São Paulo. Ele ocorreu no contexto da mobilização nacional indígena, em defesa da Constituição da República, contra a PEC 215, que foi convocada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Tratou-se de uma marcha que partiu do Museu de Arte de São Paulo (MASP) até o Monumento às Bandeiras, que foi manchado de tinta vermelha. Lá, os índios, de várias etnias, fizeram rituais e brandiram a edição do Senado Federal da Constituição da República13.
O direito brasileiro, historicamente, refletiu a orientação política de que a existência dos índios deveria ser uma realidade provisória; explica Orlando Villas Bôas Filho que ele foi “preponderantemente avesso ao reconhecimento das formas de organização social e jurídica dos povos indígenas”; historicamente, “prevaleceu uma legislação de perfil assimilacionista (autodenominada integracionista)”14.
A doutrina de segurança nacional possuía o mesmo caráter em relação aos povos indígenas. O Estatuto do Índio, aprovado durante a ditadura militar, (Lei federal no 6.001 de 19 de dezembro de 1973), previa já no artigo primeiro que “Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.”
A constituição de 1988 não manteve esse propósito; que o Estatuto do Índio permaneça, mesmo assim, é um sinal relevante de que muito daquela cultura política etnocida permanece, e persiste, por exemplo, nos discursos de ódio da bancada ruralista, e violência física contra esses povos.
Essas continuidades podem ser percebidas também no campo do direito; como elas são contrárias à Constituição e ao Direito Internacional, elas se manifestam em formas de produção legal da ilegalidade15.
Uma dessas formas é a criação de normas em flagrante oposição à Constituição e ao Direito Internacional. Nesse caso, usa-se a forma da norma jurídica para criar inconsistências dentro do próprio ordenamento jurídico. Um exemplo é a Portaria no 303, de 16 de julho de 2012, da Advocacia Geral da União, que prevê a possibilidade de o setor público construir em áreas indígenas sem consultar seus habitantes, violando a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho. Ela foi suspensa, pela segunda vez, em 2014, após protestos. No entanto, a bancada ruralista pressiona por sua vigência.
Dalmo Dallari denunciou que, com a Portaria, deseja-se emprestar o efeito de normas gerais às condicionantes estipuladas no caso específico da Terra Indígena Raposa Serra do Sol16 (Petição nº 3888-RR), julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Esse julgamento correspondeu a outro tipo de produção legal da ilegalidade, desta vez por meio de decisão judicial que contraria os princípios do ordenamento jurídico.
A doutrina de segurança nacional não foi acolhida pela Constituição de 1988. No entanto, o STF ressuscitou-a no julgamento da Raposa Serra do Sol, notadamente nesta condicionante (que foi copiada, tal em qual, no artigo 1º da portaria nº 303 da AGU):

[...] o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI.

Trata-se também de evidente violação à Convenção 169 da OIT, desta vez pelo Supremo Tribunal Federal, que pretende que a obrigação de consultar os povos indígenas seja desrespeitada nos casos da política de defesa nacional, o que inclui fontes enérgicas e exploração de riquezas “de cunho estratégico”. A caracterização “estratégica” dessas fontes e riquezas, pretende o tribunal, será da competência do Ministério da Defesa e do Conselho de Defesa Nacional. Temos, assim, a subordinação aos militares de assuntos ligados às políticas de desenvolvimento, que é uma velha novidade: estava presente na última ditadura.
Um dos exemplos ocorreu quando o presidente Médici fez ao Conselho de Segurança Nacional uma consulta sobre a transformação de certos Municípios em área de segurança nacional. No relatório feito pelo secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional, mais tarde presidente da república, general João Baptista de Oliveira Figueiredo, apresentado na 15a consulta ao Conselho de Segurança Nacional, em de 23 de abril de 1970, lê-se que

As obras em curso e o complexo hidroelétrico a ser instalado tornam, desde agora, os Municípios de TRÊS LAGÔAS e CASTILHO de particular importância sob os aspectos da Segurança Nacional. - A preocupação com a região já havia sido demonstrada pelos Ministros da Marinha e do Exército, quando, por ocasião dos trabalhos iniciais sobre os municípios de interesse da Segurança Nacional, solicitaram a inclusão do Município de TRÊS LAGÔAS, com base nos fatores político, econômico e militar.17

O impacto dos grandes empreendimentos impostos à população, "tensões indesejáveis", "problemas de ordem política e psicossocial", deveria, pois, dentro dessa lógica repressiva, receber uma resposta militar. O relatório foi aprovado e os Municípios foram considerados de "interesse da Segurança Nacional" por meio do Decreto-lei no 1105, de 20 de maio de 1970.  Dessa forma, seus prefeitos passaram a ser nomeados pelo Governador do Estado após aprovação do Presidente da República, o que excluiu os políticos da oposição.
Outro exemplo da produção de ilegalidade por meios legais pode ser dado no uso do instituto processual da suspensão de segurança. Trata-se de uma medida de legalização da exceção no ordenamento brasileiro, criada em favor das pessoas de direito público. Ela tem sido empregada para viabilizar os grandes empreendimentos, permitindo que os presidentes de tribunais (que são, em geral, os magistrados mais politicamente influenciáveis) possam suspender liminares, sem invocar qualquer fundamento legal ou constitucional, a pedido do Ministério Público, ou de pessoas de direito público, em nome de qualquer coisa que etiquetem como grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. Tais previsões, obviamente, não são neutras em termos de classes sociais e podem facilmente ser empregadas, como o estão sendo, para favorecer grandes empresas e remover populações: a validade dos direitos humanos é afastada em nome de interesses econômicos.
É exatamente esse instituto que está sendo empregado, no Supremo Tribunal Federal, para que uma obra como a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, cujo licenciamento foi dado de maneira afrontosamente ilegal, sem atender as condicionantes ambientais, e ferindo o art. 231, § 3º, da Constituição Federal, autorizando a Usina sem a oitiva das comunidades indígenas, bem como a consulta a essas comunidades determinada pela Convenção 169 da OIT.
A 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, nos autos do AI 2006.01.00.017736- 8/PA, decidiu pela paralisação do empreendimento, e proibir o seu licenciamento ambiental; Essa decisão foi parcialmente suspensa pela Ministra Ellen Gracie, em 2007, então no Supremo Tribunal Federal (já se aposentou) em Suspensão de Segurança. Sua decisão, em 2012, foi corroborada pelo Ministro Ayres Britto, sem fundamentação constitucional nem exame do mérito, apenas com a alegação que haveria perigo à economia pública se o empreendimento fosse paralisado. Note-se que se podem imaginar poucos danos maiores à ordem pública, aos índios e ao meio ambiente do que a conclusão dessa usina.
Dessa forma, o Judiciário brasileiro não tem cumprido a contento aquele papel imaginado em O Federalista, segundo o sistema de freios e contrapesos, de contrabalançar as maiorias políticas, protegendo as minorias e seus direitos constitucionais.


4. Por que “índio é nós”

A democracia representativa, no tocante a seus mecanismos eleitorais, é obviamente insuficiente: os índios não teriam votos para contrabalançar o agronegócio e seus aliados de ocasião, como foi a bancada teocrática em alguns momentos desta legislatura.
A ação política organizada por meio de movimentos é necessária. Nisso, é importante que as organizações tradicionalmente ligadas à luta pelas populações indígenas não fiquem solitárias. Seus adversários têm poderosos aliados internos e externos, ligados ao setor de commodities.
Por isso está sendo lançada, no mês de março de 2013, a campanha “índio é nós”: uma série de eventos, no Brasil e no exterior, autônomos, porém conectado pela defesa dos direitos e terras indígenas. Seu manifesto, uma lista de textos e vídeos informativos, bem como as manifestações artísticas criadas ou cedidas para a campanha podem ser vistos nesta ligação: www.indio-eh-nos.eco.br
Nela, igualmente, está disponível para consulta a programação dos eventos (artísticos, acadêmicos, políticos – na verdade, todos serão políticos) da mobilização.
Índio é nós”, portanto, tem o propósito de denunciar o discurso de ódio veiculado pela classe política e pelos meios de comunicação, sua afronta ao direito vigente e a critérios fundamentais de justiça, bem como suas falsas premissas científicas – como foi citado, na tentativa de justificar o racismo, está sendo ressuscitado até mesmo o darwinismo social nos discursos de congressistas.
Ademais, a campanha deseja demonstrar que os índios não estão isolados em sua luta e que a questão da sobrevivência desses povos não interessa apenas à Funai e aos antropólogos (como se fosse pouca coisa, aliás), mas a toda sociedade brasileira. Daí a necessidade de respeito aos “direitos coletivos atribuídos a populações definidas em termos raciais ou étnicos”, que não devem ser definidos como um simples instrumento para gestão e controle de populações, como bem demonstram Verdo e Vidal18. Se o fossem, por sinal, certamente não haveria tanta resistência à validade e à eficácia desses direitos no Brasil. É necessário afirmá-los pois, como sempre, os direitos, sem ação, são apenas papel.
O manifesto da campanha convoca à ação neste sentido:

Contra as barragens dos rios na Amazônia, os projetos anti-indígenas no Congresso Nacional e as milícias armadas que atacam impunemente as tribos; pela urgente demarcação das terras indígenas segundo critérios técnicos e não os interesses do agronegócio; pela real implementação dos direitos constitucionais e internacionais dos índios; pelos projetos de futuro inspirados pela indianidade, convidamos todos a se agregarem a esta campanha: Índio é nós.

A campanha trata dos genocídios de ontem e de hoje, que estão relacionados, como se pode perceber nos projetos de intervenção na Amazônia (Belo Monte é um exemplo) concebidos pela ditadura militar que estão sendo implementados hoje. Por conseguinte, ela envolve também a justiça de transição, isto é, a democratização da sociedade e a punição dos perpetradores de abusos contra os direitos humanos após o fim de um regime autoritário. A falta dessa justiça no Brasil evidencia-se tanto na impunidade escandalosa dos assassinos e torturadores da ditadura militar, bem como de seus financiadores, quanto na continuidade dos abusos cometidos contra os povos indígenas, à revelia dos direitos duramente conquistados, mas que permanecem em plano formal, e com o apoio de forças semelhantes às que promoveram o golpe de 1964, mas agora com a ajuda da esquerda que chegou ao poder. Como bem sintetizou Eduardo Viveiros de Castro, foi preciso a esquerda chegar ao poder “para realizar o projeto da direita”19, o que certamente mostra os limites políticos e ideológicos dessa esquerda em particular.
Portanto, mesmo levando em consideração que a opressão data da colonização, é como se o golpe de 1964, para os povos indígenas, não tivesse terminado ainda.
Também por essa razão, esta campanha visa contribuir para a democratização do Estado brasileiro e, por isso, a todos interessa: índio é nós.




1 Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=PjcUOQbuvXU. Acesso em 8 de março de 2014.
2 ARRUDA, Roldão. Deputado que atacou gays volta atrás: “Não tenho nada contra”. 12 fev. 2014.http://blogs.estadao.com.br/roldao-arruda/deputado-que-atacou-gays-volta-atras-nao-tenho-nada-contra/
3 Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=gt1pENP8e8k. Acesso em 8 de março de 2014.
4 BRESCIANI, Eduardo. Ruralista diz que Carvalho 'aninha negros' no gabinete. Estado de S.Paulo. 27 fev. 2014. http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,para-atacar-gilberto-carvalho-ruralista-diz-que-ele-aninha-negros-no-gabinete,1135465,0.htm
6 XINGU VIVO. Ministro Gilberto Carvalho se recusa a receber indígenas; na Funai, grupo avalia postura do governo em assembleia. 10 jun. 2013. Acesso em http://www.xinguvivo.org.br/2013/06/10/ministro-gilberto-carvalho-se-recusa-a-receber-indigenas-na-funai-grupo-avalia-postura-do-governo-em-assembleia/
7 GLASS, Verena. Indígenas reclama de calúnia e protocolam interpelação criminal contra Ministro Gilberto Carvalho. Repórter Brasil. http://reporterbrasil.org.br/2013/06/indigenas-reclamam-de-calunia-e-protocolam-interpelacao-criminal-contra-ministro-gilberto-carvalho/
8 CAPIBERIBE, Artionka; BONILLA, Oiara. O rolo compressor ruralista. Brasil de Fato. 17 dez. 2013. Acesso em http://www.brasildefato.com.br/node/26920.
9 BRESCIANI, Eduardo. Demarcações de terras indígenas é ponto sensível. Estado de S.Paulo, 8 dez. 2013. Acesso em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/526504-demarcacao-de-terrar-indigenas-e-ponto-sensivel
10 MOLINA, Luísa. O gatilho da ofensiva ruralista. Diário Liberdade, 14 dez. 2013. Acesso em http://www.diarioliberdade.org/brasil/repressom-e-direitos-humanos/44276-o-gatilho-da-ofensiva-ruralista.html
11 Este vídeo de Kamikia Kisedje mostra esse momento, em http://www.youtube.com/watch?v=KKNYJRVzdSM; o vídeo do Instituto Socioambiental, mais curto, mostra outros ângulos da ocupação: http://www.youtube.com/watch?v=8-wy3YAB6oo. Acesso em 7 de março de 2014.
12 As organizações são: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul), a Articulação dos Povos Indígenas do Pantanal (Arpipan), a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia (Coiab), o Conselho Aty Guassu Guarani Kaiowá e o Conselho do Povo Terena, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Centro de Trabalho Indigenista (CTI), o Instituto Socioambiental (ISA), o Greenpeace e a Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (Conaq). (CENTRO DE TRABALHO INDIGENISTA. Indígenas, quilombolas e organizações protocolam representação contra deputados Luiz Heinze e Alceu Moreira Brasília. 27 fev. 2014. Acesso em http://www.trabalhoindigenista.org.br/)
13 Um vídeo dessa ocasião, feito pela Juventude Dominicana, pode ser visto nesta ligação: http://www.youtube.com/watch?v=s6hrniIYnic
14 BÔAS FILHO, Orlando Villas, História, direito e a política indigenista brasileira no século XX, in BÔAS FILHO, O. V. (org.) Orlando Villas Bôas: expedições reflexões e registro. São Paulo: Metalivros, 2006, p.32-101.
15 Explico esse conceito e sua relação com a formação histórica da cultura jurídica brasileira em A produção legal da ilegalidade: os direitos humanos e a cultura jurídica brasileira (disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=86855)
16 DALLARI, Dalmo. Advocacia e ilegalidade anti-índio. Jornal do Brasil, 27 de julho de 2012. Acesso em http://m.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2012/07/27/advocacia-e-ilegalidade-anti-indio/?from_rss=internacional
17 Ata da 15a consulta ao Conselho de Segurança Nacional. 23 de abril de 1970. Documento secreto. Projeto Memórias Reveladas. Acesso em http://www.memoriasreveladas.gov.br/
18 VERDO, Geneviève; VIDAL, Dominique. L’ethinicité em Amérique latine: un approfondissement du répertoire démocratique ? Critique internationale, Paris : SciencesPo, n. 57, octobre-d=ecembre 2012, p. 9-22.

19 Trata-se de matéria da Revista Piauí, publicada em janeiro de 2014, feita por Rafael Cariello, “O antropólogo contra o Estado”, que pode ser lida nesta ligação: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/527082-o-antropologo-contra-o-estado



domingo, 2 de maio de 2021

Edy Lima (1924-2021) e uma nota sobre teatro, Quarto de despejo e Carolina Maria de Jesus

A escritora e jornalista Edy Lima morreu na manhã do primeiro de maio de 2021 (ela não foi vítima do coronavírus). Muitos decerto logo associam seu nome à literatura infantil, campo em que deixou uma marca muito importante (A vaca voadora é um de seus títulos mais conhecidos). 
Ela ingressou no jornalismo nos anos 1940 (e era o membro mais antigo do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo), quando a carreira ainda era considerada largamente como "masculina". O mesmo problema ocorria no teatro com as mulheres autoras. Quero escrever esta pequena nota lembrando deste gênero de sua produção. 
No entanto, nunca pude ver montada sua A farsa da esposa perfeita. A peça foi muito bem recebida na primeira produção. A Revista do Teatro, da SBAT, em 1960, noticiou o segundo lugar que recebeu no Concurso de Teatro do Instituto Nacional do Livro, vencido por Rachel de Queiroz e Jorge Andrade. 


A revista está no Arquivo Nacional, no Fundo de Censura às Diversões Públicas. 
Neste artigo de introdução à peça Arena conta Zumbi, Edy Lima é citada como um dos autores egressos do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena, assim como Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Roberto Freire, Nelson Xavier e Francisco de Assis:


Trata-se de um trecho da mencionada Revista do Teatro, porém de novembro/dezembro de 1970, que está no mesmo Fundo do Arquivo Nacional. O que haveria em comum entre esses dramaturgos, porém? Segundo este panfleto de 1978 da Cooperativa de Teatro Zumbi, que reunia em Lisboa autores brasileiros (em exílio) e portugueses, eles todos eram "Autores que tratavam da realidade brasileira concreta de uma forma realista e às vezes naturalista".


A peça cuja encenação era alvo da vigilância das autoridades da ditadura militar brasileira era Zumbi, de Augusto Boal (que dirigia a encenação), Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo. O documento veio do Fundo do Centro de Informações da Marinha, também guardado no Arquivo Nacional.
Em razão da preocupação com a realidade brasileira, própria desta geração de autores, não era de espantar que Edy Lima fosse transformar Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, em peça teatral. Este livro foi lançado em 1960 e teve um sucesso comercial estrondoso, o único que a escritora conheceria em vida. Nesse mesmo ano, Carolina viajou para o Rio Grande do Sul para divulgar sua obra, viu A farsa da mulher perfeita e depois conheceu Edy Lima. 
Em 1961, a peça foi montada com direção do jovem Amir Haddad e com ninguém menos do que Ruth de Souza interpretando a protagonista. Tratava-se de uma coprodução da Companhia da atriz Nydia Licia e do Teatro da Cidade, com cenário de Cyro del Nero. 
A própria Carolina Maria de Jesus compôs a música da peça (faço notar que ela não tinha realmente uma boa voz, o que prejudica o seu único disco, mas era uma boa compositora; sugiro ouvir a gravação que a grande Virgínia Rodrigues fez em 2019 de "Vedete da favela").
Aqui está o trecho do programa original da peça com a lista do grande elenco:




Quase todos os atores eram negros; uma exceção era Célia Biar. Edy Lima escreveu uma peça em três atos, mantendo no centro de tudo as questões da fome, da violência, da precariedade da vida na favela, da dificuldade do trabalho de catadora, da maternidade com o abandono pelos pais, bem como do livro que contará toda esta história que estamos vendo. 
Três dos fios de Quarto de despejo servem para conduzir a narrativa: o porco que ela consegue adquirir no primeiro ato e que vai ser consumido no terceiro, com a ameaça de invasão dos vizinhos que querem tomar a carne; o relacionamento com o cigano, que anda com outras mulheres e entra em conflito com moradores da favela; e a expectativa pela reportagem do "jornalista" (Audálio Dantas, que foi seu descobridor e editor de Quarto de despejo e Casa de alvenaria), que abrirá as portas para a publicação do livro.
A discriminação de gênero perpassa o texto. A peça se abre com uma cena, nos bastidores, de violência contra a mulher: uma das moradoras da favela é espancada pelo marido. O primeiro ato se encerra com o namoro entre o Cigano e Carolina, mas o segundo se abre com Carolina fazendo, sozinha, "serviço de homem": o conserto do telhado. A personagem comenta: "Não casei e não estou descontente. Enfrento qualquer espécie de trabalho, mas tenho meus momentos de sossego. As casadas trabalham tanto quanto eu e ainda suportam os maus-tratos dos maridos." De fato. As condições do direito à cidade, bem como as circunstâncias de sua negação variam segundo o gênero, e o texto lembra-nos disso todo o tempo.
O agudo olhar social de Carolina é transportado para a peça: "Vai querer dizer que há duas leis: uma para a cidade e outra para a favela?" Sem dúvida. Vemos a observação do guarda que não prende Carolina porque "A viatura é nova, não quero sujar com essa imundície"; em contraponto, ela tem o orgulho de afirmar, em outro momento, "Sou preta e estou contente com isso". A peça conserva a tirada  da escritora de não ser comunista, mas "realista": "Conto o que vi".
A peça conserva também, do livro, a impressionante e comovente confiança que Carolina Maria de Jesus tinha na literatura. Uma vocação que a moveu a escrever lutando contra a miséria, o racismo, o machismo, sua pouca escolaridade, contra o que podemos, enfim, chamar de Brasil.
A peça de Edy Lima, é claro, corta cenas do livro (em termos de tempo, seria inviável colocar tudo no palco), mas a principal diferença em relação ao texto que adaptou está no tom: há mais humor e esperança na obra teatral. 
Este livro de Carolina Maria de Jesus continua a ser um sucesso de vendagem. A peça, no entanto, nunca tinha sido publicada em livro até recentemente. Creio que foi o último lançamento em vida de Edy Lima, e em época de pandemia. Pude acompanhar esse processo porque a ideia de publicá-lo veio do editor e poeta Fabio Weintraub, quando ele ainda estava na empresa que publica os títulos da Ática. Em homenagem ao cinquentenário desta obra de Carolina, que ocorreu em 2020, ele planejou uma publicação comemorativa de Quarto de despejo com variada fortuna crítica (o livro, que tem prefácio de Cidinha da Silva, resgata, por exemplo, o texto de Alberto Moravia), e a primeira edição em livro desta peça de Edy Lima, que compartilhou, segundo o acordo que fez com Carolina em 1961, os direitos autorais com os herdeiros.


Acima, foto que tirei de Fabio Weintraub e Edy Lima no apartamento da autora em época anterior à da edição da peça.
Esta publicação de 2020 inclui um texto de Amir Haddad rememorando a encenação (ele conta, por exemplo, que as mulheres brancas da plateia "iam aos camarins oferecer emprego de doméstica para as atrizes negras") e dois dos textos que estavam no programa original: de Edy Lima e da própria Carolina; este aparece digitado mas também na grafia à mão da autora, repetindo o que se fez em 1961. Lembremos que preconceitos de raça e de classe, que queriam negar a esta mulher negra tanto o direito à cidade quanto o direito à literatura, fizeram parte da crítica duvidar de que ela pudesse ser autora do livro, e os manuscritos serviram para desmentir essa gente incomodada com a novidade que Quarto de despejo trazia à literatura brasileira: a da conquista da cidadania nas letras por uma autora da população simultaneamente excluída daqueles dois direitos.
A dramaturga, em fevereiro de 2021, concedeu esta entrevista sobre a peça, "Edy Lima e a adaptação teatral de Quarto de Despejo", na qual destacou sua amizade com Ruth de Souza, segundo ela (e muitos concordarão) a melhor atriz brasileira da época. 
Trata-se de outra mulher negra que teve que enfrentar muitos preconceitos. A peça não foi filmada, mas pode-se ter o gosto de vê-la interpretar a personagem de Carolina nestes trechos do especial de tevê "Caso Verdade - Quarto de despejo - de catadora de papéis à escritora famosa", que a Globo exibiu em 1983.


A capa do livro traz uma ilustração de No Martins, integrante de uma geração mais nova de artistas negros. Ela se inspira na conhecida foto de Carolina com Ruth de Souza na Favela do Canindé, que pode ser vista nesta ligação. A escritora sorri ajeitando o lenço na cabeça da atriz. Edy Lima (que era a única sobrevivente destas três mulheres, tendo Ruth de Souza morrido em 2019 e Carolina bem antes, em 1977), creio, conseguiu fixar não só a dor, mas algo deste sorriso na peça que pode finalmente ser lida pelo grande público.