O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 29 de maio de 2021

Quarto de despejo chega a Portugal: Carolina Maria de Jesus pelo VS Editor


 

A  primeira edição portuguesa de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, preparada em 2020, veio à luz, por razões de pandemia, em 2021 pelo VS Editor.

Por que Vasco Santos, com sua nova e excelente editora, foi o primeiro? A apresentação, escrita por Fernanda R. Miranda, explica que Salazar havia proibido a edição do livro, publicado no entanto em diversos países. No texto, lemos também que ela nunca foi publicada, até hoje, nos países africanos lusófonos.

A crítica e ensaísta destaca a atualidade de Carolina:

Passadas seis décadas de publicação, a sua primeira obra publicada permanece significando o nosso real, as fraturas da cidade, as desigualdades e violências intrínsecas ao sistema capitalista, a luta incessante pela vida, pela voz, pelo futuro — cotidiana para todos aqueles que são vistos como margem, como despejo.

Tive a honra de escrever as notas dessa edição. Preparei 91, número adequado, levando em consideração muitas referências à política e à história do Brasil que certamente seriam ignoradas pelo público estrangeiro. A edição corrente da Ática, para brasileiros, já apresentava 49 notas. 

Anotei tudo o que estava na edição brasileira, às vezes divergindo. Por exemplo: Carolina Maria de Jesus informa que achou no lixo "batata solsa". A edição antiga dizia que a autora tinha achado uma batata salsa, isto é, salgada. Entendi que ela achou uma batata salsa, ou seja, baroa (ou mandioquinha). 

Depois que fiz esse trabalho, a Ática, por iniciativa de Fabio Weintraub, que lá estava nessa época, lançou uma edição comemorativa dos 60 anos de Quarto de despejo, com uma fortuna crítica que vai de Alberto Moravia a Fernanda Miranda, que apresentou a edição portuguesa. Nessa nova edição, com 63 notas, adota-se o mesmo entendimento que tive sobre a batata.

Se a comida que ela encontrava no lixo exigiu alguma explicação, outro tipo de insalubridade me trouxe muito mais trabalho: os políticos que a escritora denunciava. Por exemplo, o "Dr. Osvaldo de Barros", que ela denominou de "falso filantropico de São Paulo", e que chamou um "carro de preso" para a autora, era o irmão de Ademar de Barros. Outros nomes, porém, tinham menor fama e exigiram-me mergulhar em periódicos e teses de história e na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional (que os bolsonaristas não a destruam). 

Tive de ler as listas de candidatos e seus votos para identificar os políticos que faziam excursões pela Favela do Canindé. Foi interessante verificar quantos políticos que ela menciona se tornariam golpistas em 1964. Carolina detestava, por exemplo, Carlos Lacerda. 

Mas Lacerda estava no Rio de Janeiro. Em geral, ela tratava das figuras de São Paulo. Em primeiro de novembro de 1958, ela escreveu:

Quem lê o que o Dr. Adhemar disse nos jornais que foi com dor no coração que assinou o aumento, diz:

— O Adhemar está enganado. Ele não tem coração.

— Se o custo de vida continuar subindo até 1960 vamos ter revolução!

Era um exagero? Não exatamente, embora esse tipo de insurgência não tenha derrubado o poder. Tive de escrever uma pequena nota sobre a importância dos movimentos contra o custo de vida e a carestia nessa época, e como eles voltaram na década de 1970, em razão do desastre econômico e social gerado pela ditadura militar (agora o Brasil está revivendo o desastre que são os militares no poder). 

Tive a preocupação de manter as notas em tamanho econômico para não distrair o leitor do impacto do texto de Carolina Maria de Jesus. A mais longa ocorre por causa da menção a um crime cometido por uma policial do DOPS. Os portugueses, na mesma época, tinham a PIDE, mas eles estavam sob um regime fascista. Tive de explicar que "tanto a época de criação do DEOPS-SP quanto esta em que a autora escreveu (entre o fim da Era Vargas e o golpe de 1964) são períodos em que o regime político era considerado formalmente democrático."

Por sinal, há até pessoas que acham, embora insensatamente, que o Brasil continua "formalmente democrático" depois do golpe de 2016; se tivéssemos um momento de suspension of disbelief e aceitássemos essa tese, talvez fôssemos obrigados a dizer que a democracia é autorizada no Brasil por permitir, por exemplo (um entre incontáveis), que ocorra assédio policial a parlamentares negras, como ocorreu com Tainá de Paula no último 27 de maio no Rio de Janeiro: https://twitter.com/tainadepaularj/status/1398418880499011590

Carolina era uma mulher negra e sabia o que significava essa condição na sociedade brasileira. A partir do reconhecimento de si mesma, escreveu fazendo exigências do que chamamos hoje de direito à cidade e de direito à literatura, cruzando essas duas dimensões que, para teóricos desavisados, não teriam nada em comum.

Esse cruzamento original (ele aparece também em Casa de alvenaria, infelizmente não reeditado) é uma das razões da força deste livro a que, agora, os portugueses poderão ter facilmente acesso, e não só perceber por que até hoje é um sucesso de vendas no Brasil, como notar que muitos dos problemas que a autora denunciou permanecem vivos nesta sociedade.

Este livro, no entanto, também continua vivo, e isso é um motivo de esperança.

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