O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Algo como um poema: As mandíbulas

Isto foi publicado na revista de poesia Telhados de vidro n. 12, de maio de 2009, a convite do poeta português Manuel de Freitas.
Por sinal, ele teve uma antologia lançada no Brasil pela Oficina Raquel, organizada por Luis Maffei. Pode-se ler o que Marcelo Sandmann e Danilo Bueno escreveram sobre ela.
Eis o que escrevi, talvez como um voto para anos vindouros.



As mandíbulas


I

as mandíbulas permanecem no ar

suspensas pela morte
acima da vida

mandíbulas nuas

nenhuma pele as cobre

resta alguma pele entre os dentes
na refeição interminável


II

o sorriso da mandíbula
puro

apenas dentes à mostra

vivo como a rocha depois do apedrejamento


III

como se flutuassem
as mandíbulas permanecem

algumas partidas, outras não

mesmo com os dentes cerrados
elas estão abertas para o mundo
e o abocanham


IV

o beijo da mandíbula

não em outra

mas no ar

que nos circunda

e transmite a carícia seca do cálcio


V

dentro da mandíbula

alguém vive

não você ou eu

a mordida vive
e escolhe sobreviventes


VI

maxilar é o verbo da
mandíbula
acolhe-nos em seu discurso

a cárie não sobrevive à mandíbula

o verbo não sobrevive ao discurso


VII

o céu coberto de mandíbulas,
a noite cai sobre a terra
e os gritos de pânico
vêm do céu e da terra;

o céu coberto de mandíbulas,
não há mais voo, as aves
rastejam de um dente a outro
sem encontrar pouso;

o céu coberto de mandíbulas
morrerá de fome, e seu
esqueleto enfim sem asas
cairá vivo sobre a terra;

as mandíbulas continuarão a reinar
esperando que outro céu nasça
e cresça como o crânio jamais completo


VIII

não se veem mais
as mandíbulas; neste
ar que sufoca a possibilidade da garganta,
neste sol que cega a desintegração da paisagem,
neste vento que leva a matéria ao destino do pó

poderíamos encontrá-las, ou
seriam elas mesmas a impossibilidade
da garganta, a cegueira
integral da paisagem, o pó
como matéria do destino

na cidade erguida no espaço entre os dentes?

não se veem mais
as mandíbulas; teriam abocanhado
o ar ou a visão?

esgotou-se a possibilidade do paraíso
nas mandíbulas suspensas?
porém

é sempre possível imaginares
tua mandíbula na fuga aos rigores da carne
a reinventar o corpo em campo minado.
Tens a arma. Ela te usará.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Inaudição de hoje: Modern Sound e outros fechamentos no Rio de Janeiro


Termina no fim de 2010 a loja Modern Sound, que ficava no bairro de Copacabana, quase na esquina da Barata Ribeiro com a Santa Clara. Ela vendia música em vários suportes: discos, livros, partituras, filmes. Provavelmente para soar mais moderna, e porque vivia principalmente de vender produtos importados, tinha o título em inglês. Existia desde 1966, segundo leio na última sacola de compras que lá recebi, dia 28.
Ela tornou-se referência no Rio de Janeiro por conta de seu acervo. Ainda no dia das mães deste ano, embora a loja não fosse mais o que tinha sido, foi lá que encontrei a gravação de Lohengrin, de Wagner, regida por Daniel Barenboim. Em São Paulo, ninguém a tinha.
O primeiro disco (cd) que lá comprei foi um recital que Maria Callas gravou em 1958 com o maestro Nicola Rescigno, Cenas de Loucura. Provavelmente o melhor que a cantora gravou em estúdio, o disco é composto do final de Anna Bolena e Il Pirata, escritas por Donizetti e Bellini respectivamente (óperas que a EMI, desgraçadamente, não quis gravar integralmente com Callas), e da cena de loucura de Ofélia (em francês, Ophélie) na ópera Hamlet de Ambroise Thomas.
Era uma loja cara. Muitas vezes, o mesmo produto, se pudesse ser encontrado em outro lugar, nele sairia mais barato. No entanto, em certo momento depois do Plano Real, em FHC I, ocorreu algo inusitado e que não se repetiria: os preços foram diminuídos, tendo em vista a sobrevalorização do real (fenômeno que ocorre novamente).
Não sei o que levou ao fim da loja, que contava com um restaurante e um espaço para pequenos espetáculos com piano. Não sei que peso tiveram o declínio do Rio de Janeiro, a crise do mercado discográfico e o acesso a importados pela internet. Sei que outras lojas na cidade foram ocupando o espaço que a Modern Sound deixava.
Contudo, em nenhuma delas pode-se achar mais de uma dezena de gravações de um Lied de Schubert, que era o que ocorria ainda na década de 1990.
Em 2011, provavelmente não se ouvirá mais nenhum disco e nenhum espetáculo no espaço em que era a Modern Sound. Acho difícil que algo similar ocupe o espaço. O silêncio musical e os ruídos de outras mercadorias preencherão aquele canto de Copacabana.
Antes de a inaudição tornar-se realidade naquele espaço, ouvi agora um disco de música tritônica das comunidades originárias (os índios) argentinas, gravado com auxílio da UNESCO. Um tapa na cara dos conservadores que dizem que o sistema tonal é “natural”. Agora, começo a ouvir primeira sinfonia de Stefan Wolpe, compositor alemão e judeu que escapou do genocídio viajando para a Palestina em 1934. No entanto, lá não havia espaço para sua música, moderna demais para os ouvidos locais (o Estado de Israel manteria esse conservadorismo musical: Schönberg queixou-se da negligência com que eram tratadas as partituras que dedicou
ao novo Estado). Acabou fixando-se nos EUA, onde também não encontrou muitos ouvidos para sua música.

São alguns dos últimos discos que comprei na Modern Sound, que fecha mais um pequeno capítulo do declínio do Rio de Janeiro, visível tanto no setor privado quanto no público. Vejam o estado deste centro municipal de saúde em Botafogo, fechado pois era domingo, dia em que ninguém passa mal, com pombo a infectar o ar-condicionado. Ele não deveria estar lá.
O declínio também ocorre nessa outra categoria de interesse coletivo, que é a dos interesses difusos, como o meio-ambiente. Vejam abaixo outra ave em espaço inadequado - inadequado porque o espaço assim se tornou: encontrei uma pobre garça tentando achar algo comestível em meio à mistura de óleo, plástico e esgoto que é hoje a Baía de Guanabara. Não a vi ter sucesso na busca.

Não sei se os investimentos que alegadamente inundarão o Rio de Janeiro com os eventos esportivos globais terão ouvidos para o declínio. Garças não cantam. Tampouco pombos.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O assassinato de Hamlet e a poesia contemporânea argentina


Em julho deste ano, comprei a antologia 200 Años de Poesía Argentina, que ainda não acabei de ler. Em outubro, recebi outra, muito diversa em seu escopo, Si Hamlet duda le daremos morte: Antología de poesía selvaje (City Bell: De la talita dorada, 2010). Esta se volta apenas para o contemporâneos que nasceram a partir do fim dos anos 1960, geração que não está presente no outro livro.
Essa geração merece uma antologia? Não tenho dúvida que sim, ao lê-la. As antologias de jovens muitas vezes cumprem a função de manifesto, de intervenção, como foi, no Brasil, a 26 poetas hoje (mas não sua repetição dos anos 90, pela mesma antologista, que teve o gosto de farsa, apesar do mérito de alguns dos nomes escolhidos).
A introdução/panfleto dos organizadores, Julián Axat e Juan Aiub (que não foram oficialmente incluídos na antologia), insiste na “Potencia descanonizada del decir.” e na morte do pai subjugador político-poético-canônico-editorial. Porém, se Hamlet não deve duvidar, é para poder vingar o seu pai. Para esses autores que eram crianças na última ditadura militar argentina, trata-se de vingar a morte do pai pela repressão, o que leva tantos à poesia política. No prefácio, Emiliano Bustos (filho do poeta Miguel Ángel Bustos, um desaparecido pela ditadura), ele mesmo incluído entre os poetas do livro, bem escreve que “Para muchos de estos poetas la política, por ejemplo, ya no es un paisaje.”
Provavelmente a política nunca foi paisagem para muitos deles. Julio Greco, por exemplo, publica neste livro um panfletário “guerra”, mas também este, intitulado simplesmente “historia”: “el amasijo la duda la policía la carne la pasta el auto la democracia la guerra hacen de éste un hombre muerto y el pozo que habita es oscuro profundo el pozo suave que lo alimenta día a día com su piel húmeda de barro [...]” (p. 95). O poeta e pintor Leandro D. Barret escreve uma “Gelmaniana”: “no sabés/ cómo vende/ el permitido prohibido prohibir” (p. 102); Ramón D. Tarruella: “Un día hubo un ESTADO,/ un Estado tan grande,/ que ese mismo Estado/ financió las obras completas de Nietszche.” [sic] (p. 150); em Rodrigo Zubiría lê-se:“Caminando río abajo, recorre mi flauta fantasma de la nueva poesía latinoamericana pensada como la última ratio de los bien-pensantes.” (p. 233).
Temos poesia social na fina ironia de Alejandra Szir, uma crítica ao viés europeizante da sociedade argentina: “Nosotros que construimos Suecia/ usamos madera/ quizás de bosques./ […] veíamos Bergman desde los cinco años.” (p. 24). A ironia de Eliana Drajer: “Escuchar 17 veces a Vivaldi/ y abrir sigilosamente el gas.” (p. 45).
Os problemas de escrever poesia hoje na América Latina não são ignorados pelos autores. Lemos em Enrique Schmukler “El tormento de ser/ “escritor latinoamericano joven”/ tormento de ser uma repetida/ antología rogada por/ los chicos que se largaron a escribir/ en los noventa;” (p. 59); em Inés Aprea “y si la poesía no era/ otra cosa/ que el gesto adolescente/ de abandonarlo todo/ como Rimbaud/ como Bolaño/ lanzarse a los caminos” (p. 76); em Emiliano Bustos: “Los perros publicadores, mitad veraniegos, mitad 'yo leo en público como los cadáveres leen en privado'; publicaron tanto.” (p. 181)
O livro oferece também a densidade psicológica de Dafne Pidemunt: “El consuelo de escribir. Mi madre se emborracha. Una y otra vez la asesino. Muerta, resucitada, continúa suicidándose.” (p. 35); a desconstrução de gêneros de María Eugenia López: “Mi affair con Jessica Rabbit me enseñó a desear una muerte perfecta. Algún accidente de auto precipitado por la Mulholland Drive y dando de fauces en Sunset Boulevard, mi cara hacia atrás, como quien acaba de tener un orgasmo [...]” (p. 119).
Trata-se de uma geração que pode lembrar que “por lo demás poesía siempre amó con sus esfínteres” (Demetrio Iramain, p. 212).
Alguns poemas são panfletários, outros excessivamente decalcados de outros poetas (especialmente os de língua inglesa), e outros simplesmente não são poemas. No entanto, a antologia arde bravamente:

arder es comprender la ceniza

arde el río
y la casa del río

(Emmanuel Taub, “VI. incendio. p. 230)

domingo, 26 de dezembro de 2010

Insurgência, Godard e Film Socialisme

Não é que Jean-Luc Godard seja à prova de tolos – certamente há os tolos de Godard, talvez eu esteja entre eles. Porém, os tolos de outra espécie geralmente não conseguem ficar até o fim em seus filmes: a repugnância, reação estomacal, impede a compreensão crítica.
Ontem fui ver Film Socialisme em uma pequena sala no Rio de Janeiro: dos 23 espectadores, 7 saíram antes do final. Um casal de idosos o fez desnorteadamente – dirigiram-se para o lado oposto ao da saída, e a senhora perdeu-se do marido e acabou diante da parede.
Não sei se tolos, mas desnorteados ficaram, o que é um bom efeito de Godard. O filme abre-se com um diálogo entre pessoas que não vemos: o dinheiro é um bem público; assim como a água?; (pausa) exatamente. E a imagem do mar em movimento repete-se em diversos momentos do filme-manifesto, que é dividido em partes e não é nada linear, como outros do cineasta.
O fim da URSS, a crise da Palestina e o colapso da Europa são abordados no filme-manifesto (manifesto vem de mão, afirma-se, e Godard quer atingir tudo o que puder manipular). A Grécia ou Hélade, onde a crise é talvez mais visível, vira Hélas e Hell as (por sinal, os diálogos e textos em várias línguas não são traduzidos: precisei da consultoria do poeta Fabio Weintraub para entender o texto em hebraico; não precisei para os diálogos em alemão, que são curtos e muito simples: Scheiße, Frankreich, por exemplo, mas mereciam tradução).
Para uma descrição do filme, veja-se o que Marcelo Ribeiro fez: http://incinerrante.com/2010/12/film-socialisme-os-fantasmas-da-alegoria/
O que é mais interessante, no entanto, é o modo de produção: como outros filmes de Godard, ele é construído à base de citações (pensei em Nouvelle vague), textuais e visuais. Até um conhecido vídeo no You Tube de um diálogo entre gatinhos vai parar no filme.
O modo de produção é a mensagem. Não há direitos do autor, mas deveres do autor, afirmou Godard em entrevista. Esse modo de produção é apresentado como um direito insurgente. Em mais um lance irônico do filme (não contarei o final, que é bárbaro), a advertência do FBI contra cópias piratas é seguida de uma frase-manifesto (em francês – Godard tenta que ela volte a ser a língua da subversão): quando a lei não é justa, a justiça passa a lei.
E, de fato, o manifesto é o lugar para o exercício da imaginação jurídica. A imaginação jurídica caracteriza-se por não poder descolar-se da ação. Um filme pode ser exemplo disso.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Brasil, Argentina e os desaparecimentos forçados: A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e a Anistia na América Latina

O Estado brasileiro, conforme se previa, foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros ("Guerrilha do Araguaia"). A sentença, de 24 de novembro de 2010, pode ser lida aqui: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf
Guilherme Gomes Lund é um dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia (1972-1975): http://www.torturanuncamais-rj.org.br/MDDetalhes.asp?CodMortosDesaparecidos=251. Sua mãe, Julia Gomes Lund, acabou nomeando esse caso dos desaparecidos na Guerrilha.
Os direitos humanos não devem ter fronteiras: se a dignidade é uma condição de todos seres humanos, não há sentido em ser contra à internacionalização desses direitos. No entanto, devido às peculiaridades culturais, é interessante que haja sistemas regionais de proteção a esses direitos (é o que defendo em meu livrinho), e não apenas os sistemas universais da ONU.
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos pertence à OEA (Organização dos Estados Americanos) e não permite que indivíduos acessem diretamente a Corte: as queixas precisam ser apresentadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que analisa a procedência do pedido e solicita informações ao Estado. Ela pode solicitar que o Estado adote providências para garantia e/ou reparação de direitos se chegar à conclusão de que há realmente violação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ou Pacto de São José da Costa Rica).
Neste caso, a Comissão considerou que o Estado brasileiro violou diversos artigos da Convenção e levou o caso à Corte Interamericana, sustentando que o Estado brasileiro era responsável internacionalmente:

a. pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento dos membros do Partido Comunista do Brasil e dos moradores da região listados como vítimas desaparecidas na presente demanda;
b. porque, em virtude da Lei Nº 6.683/79 (Lei de Anistia) promulgada pelo governo militar do Brasil, não se levou a cabo uma investigação penal com o objetivo de julgar e sancionar os responsáveis pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado das 70 vítimas desaparecidas, e pela execução extrajudicial de Maria Lucia Petit da Silva;
c. porque os recursos judiciais de natureza civil com vistas a obter informação sobre os fatos, não foram efetivos para garantir aos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada o acesso à informação sobre os acontecimentos;
d. porque as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Estado restringiram indevidamente o direito de acesso à informação dos familiares das vítimas desaparecidas e da pessoa executada; e
e. porque o desaparecimento das vítimas e a execução de Maria Lucia Petit da Silva, a impunidade dos responsáveis e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação, afetaram prejudicialmente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada.


Na condenação, a Corte não deixou de ver a parcela de culpa do Judiciário brasileiro (já escrevi aqui a respeito) na violação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos:

3. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.

4. O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 101 a 125 da mesma.

5. O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos parágrafos 137 a 182 da mesma.


Sustentei em seminários em São Paulo e na Espanha que o Supremo Tribunal Federal errou terrivelmente no julgamento sobre a lei de anistia de 1979. Deisy Ventura, em conferência que proferiu em Oxford, "A interpretação judicial da Lei de Anistia brasileira o Direito Internacional", brilhantemente explicou as questões de direito internacional concernentes ao caso: http://educarparaomundo.files.wordpress.com/2010/11/ventura-oxford-07-11-2010.pdf
Recomendo também entrevista que o jurista José Carlos Moreira da Silva Filho, conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, concedeu-me.
Enquanto as instâncias internacionais agem no caso brasileiro, a justiça argentina funciona. Nesse país, já foram declaradas a inconstitucionalidade das leis de anistia e a aplicação do direito internacional contra os crimes de lesa-humanidade, seguindo as decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Os ex-generais Jorge Rafael Videla (também ex-ditador) e Luciano Benjamín Menéndez foram condenados neste dia, 22 de dezembro de 2010, à prisão perpétua. A sentença, unânime, pode ser lida nesta ligação: http://contenidos2.tn.com.ar/2010/12/22/veredicto-videla-menendez.pdf
Deve-se notar que amanhã, dia 23, entra em vigência, também para o Brasil, a Convenção Internacional para a proteção de todas as pessoas contra o desaparecimento forçado, o que pode fazer a Justiça brasileira retomar a questão da anistia da ditadura militar.
Na Argentina, apesar dos atrasos judiciais, tem havido uma série de condenações pelos crimes da ditadura militar. No entanto, lá como aqui, o desaparecimento forçado mantém sua atualidade. Na foto, que tirei em julho de 2010 no centro de Buenos Aires, exige-se a aparição de Jorge Julio López, que sofreu desaparição forçada duas vezes. A primeira, de 1976 a 1979, durante a ditadura militar, em um centro de detenção clandestino dirigido por Miguel Etchecolatz. Torturado, ele presenciou o sofrimento e a execução de outros prisioneiros.

O seu depoimento foi importante para a condenação de Etchecolatz, que foi julgado pelos crimes cometidos como Diretor de Investigações da Província de Buenos Aires. No entanto, logo após a condenação, Jorge Julio López desapareceu em 18 de setembro de 2006. Seu paradeiro ainda é ignorado.
Pode-se ler sobre o caso aqui: http://www.casapueblos-jorgejuliolopez.blogspot.com/.
Isso faz-nos relembrar, como no romance "2666" de Roberto Bolaño, em uma era de democracias formais, que o desaparecimento continua a ter uma paradoxal presença na América Latina.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Nota sobre duas vezes Kehl

Escrevo por conta de duas menções feitas neste mês de dezembro de 2010 à autora. A última edição da revista Cult (153) apresenta na capa Maria Rita Kehl, sobre quem já escrevi a partir a propósito do fim de sua coluna no Estado de S. Paulo. Não é a matéria mais interessante do número, pois a entrevista passa ao largo de suas obras. Outra que está no mesmo número, com Eduardo Viveiros de Castro, é mais reveladora. Estranhamente, pois o número conta com um dossiê sobre o tempo, nada se perguntou sobre o tema (sobre O tempo e o cão, pode-se ler esta entrevista concedida ao Estado de S. Paulo). Pelo menos, da mesma forma que na entrevista que concedeu a Caros amigos de tempos atrás, seu trabalho com o MST foi destacado.
O último número (41) da edição brasileira de Le monde diplomatique conta não com uma entrevista, mas um texto sobre ela, escrito por Fábio Salem Daie com uma boa dose de ironia: Kehl estaria "fora de moda" ao lembrar que existem classes sociais, contra certas correntes teóricas multiculturalistas e vertentes neoliberais. Isso teria levado ao fim de sua coluna quinzenal.
De fato, ela busca pensar livremente, sem se moldar por conformismos, seja intelectuais, seja midiáticos. Lembro desta passagem de Videologias (São Paulo: Boitempo, 2004, livro que reúne ensaios seus e de Eugênio Bucci):

[...] quanto às análises empreendidas, tive a impressão de que a preocupação com o rigor acadêmico tolheu a liberdade e a criatividade dos autores, que em geral descrevem exaustivamente os respectivos campos de investigação, mas não arriscam muito na interpretação teórica dos dados. (p. 175)

Kehl não teme arriscar. Nas vezes que a vi falar (sobre utopia, arte, tevê), seu discurso sempre era animado por alguma audácia - que pode ser conferida nos livros e no portal da autora. Na entrevista dada à Cult, lemos que "A clínica nos obriga a ter humildade; não se faz teoria aplicada."
Essa humildade diante da realidade, creio, obriga a essa audácia de não se deixar acorrentar pela teoria. Se tivesse se dedicado à docência, teria conseguido manter essa postura? Creio que sim: os carreiristas é que não a mantêm, bem como aqueles que não possuem pensamento próprio.
Mas se, apesar de sua formação acadêmica, Kehl não se dedicou a uma carreira docente universitária, ela não deixa, a seu modo, de ensinar. Tento aprender.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Jornalismo versus literatura, parte I

Normalmente, a imprensa diária ignora a literatura; a maior parte dos jornais adota essa prática, assumindo que seus leitores são iletrados - afinal, se não o fossem, por que leriam tais jornais?
Lamentavelmente, esse iletramento veda o acesso ao direito à literatura, que é uma forma importante de participação na vida cultural de uma comunidade, e de entendimento do mundo e de si mesmo. Nesse sentido, periódicos como esses atuam contra a cidadania.
Outra forma de negar o direito é oferecê-lo com baixa ou nenhuma eficácia - Bourdieu falaria em eficácia simbólica. Alguns jornais maiores mantêm cadernos literários, mas raramente são bem cuidados e têm diminuído em tamanho. Imagino que, no futuro, as resenhas de cinco linhas serão a regra. Matérias de maior extensão não passarão de releases longos ou propaganda mais ou menos disfarçada de jornalismo.
Na ignorância completa do que é literatura, característica não incomum dos jornalistas que são jogados para atuar nos cadernos culturais (que são mais comuns do que os literários), as categorias usadas para tentar apreender os livros geralmente decorrem de algum raciocínio mercadológico.
Uma saída para pautas jornalísticas esvaziadas, por exemplo, é etiquetar certos autores como geração X, ou W, ou *, e fazer considerações genéricas que não se aplicam a nenhum, ou a quase nenhum deles. A indústria das antologias vive em parte desse fenômeno.
Outra solução para preencher vazios em jornal com vazios mentais é criar enquetes ou listas como "os dez mais", como se literatura fosse corrida de cavalo. Coisa descabida, pois os escritores raramente possuem a elegância ou a velocidade dos equinos.
Pode-se ainda fingir que se está falando de literatura, porém a ignorando completamente, ao discutir sobre prêmios literários - afirmando-se, por exemplo, que Patti Smith pode ganhá-los, mas Chico Buarque não, pois está etiquetado de outra forma na oferta de produtos culturais...
Prêmios? Quem é realmente premiado, senão aquela que os concede? Como se sabe, escritores de verdade só participam disso pelo dinheiro, mais nada. Não pelo prestígio: é o escritor que dá prestígio o prêmio, não o contrário. O oposto só ocorre se o escritor não presta. Ademais, a regra é que as premiações errem redondamente. Quantos ganhou Kafka? E Fernando Pessoa?
Sobre o raciocínio mercadológico: não gosto dos raciocínios etiqueteiros que colocam cada livro - o produto - em um nicho separado do mercado. Rejeito também os pasteurizadores, que negam as especificidades. Imagine, juntar crônica, reportagem, poesia, conto etc. numa só categoria? Como avaliar conjuntamente gêneros tão díspares? Por exemplo, o Prêmio Nascente, da USP (ainda existe?), acabou criando uma categoria "texto" englobando tudo isso, não sei se por algum raciocínio de uma deriva pós-moderna equivocada, ou se para economizar na premiação.
Imagine-se agora uma enquete de melhor livro do ano em que só se aparecessem como candidatos dez livros (acho que no Brasil é publicado só um pouco mais do que isso por dia), misturando romance, conto, poesia, história e memória (outros gêneros não publicaram nada de interessante, obviamente...), e que, como livro nacional, aparecesse uma edição brasileira de autor português (que, de tão prolífico, acabou criando para si mais uma nacionalidade)!
Uma enquete dessas é quase perfeita:

"Em Alguma Parte Alguma", de Ferreira Gullar (poesia)
"Os Anões", de Veronica Stigger (contos)
"Um Erro Emocional", de Cristovão Tezza (romance)
"1822", de Laurentino Gomes (história)
"A Máquina de Joseph Walser", de Gonçalo M. Tavares (romance)
"Eu Vos Abraço", Milhões, de Moacyr Scliar (romance)
"A Duração do Dia", de Adélia Prado (poesia)
"Do Fundo do Poço se Vê a Lua", de Joca Reiners Terron (romance)
"Esquimó", de Fabrício Corsaletti (poesia)
"De Menino a Homem", de Gilberto Freyre (memórias)

É quase a loucura. É quase a irrisão. É quase o terror. Porém, como não é nada disso, não chega a ser literatura.

P.S.: Felizmente, houve a alteração para melhor obra publicada em português; no entanto, isso acentuou um defeito: o conjunto fica ainda menos representativo com a hipertrofia da produção brasileira. Não há como consertar.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Lançamento: "Cidadão do mundo" de Tucci Carneiro


Como é sabido, Maria Luiza Tucci Carneiro é um dos maiores historiadores brasileiros. Eu o sabia pelos livros, até que a conheci e pude verificar na prática a sua imensa capacidade de trabalho: atualmente coordena o PROIN (Projeto Integrado Universidade de São Paulo/ Arquivo Público do Estado de São Paulo) e continua com suas linhas de pesquisa e a orientação de diversos pesquisadores.
Ela é um dos principais nomes que estudam o antissemitismo no Brasil. Na sua tese O anti-semitismo na Era Vargas (na ortografia antiga), publicada pela Brasiliense, desmistificou a figura de Oswaldo Aranha, homenageado em Israel por seu empenho na criação do Estado israelense pela ONU. Durante o governo Vargas, no entanto, o Ministro impôs o cumprimento de circulares secretas que limitavam, entre outros grupos, a entrada de judeus no Brasil - e estávamos em época de guerra e genocídio na Europa.
Poucos diplomatas brasileiros reagiram às normas secretas - Souza Dantas foi uma exceção.
Em sua dissertação de mestrado, Preconceito racial em Portugal e Brasil Colônia, publicada pela Perspectiva, os tempos são outros: os do Império Português e do Brasil Colônia. Épocas de leis de pureza de sangue e de perseguições e discriminação contra os judeus e os cristãos-novos, bem como outras pessoas consideradas de "menos qualidade", como os mulatos.
Outra de suas obras dedicadas à memória política brasileira, que organizou com Boris Kossoy, A imprensa confiscada pelo DEOPS: 1924-1954 foi publicada pela Ateliê, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e pelo Arquivo Público do Estado. O livro dedica-se à imprensa política confiscada, censurada nesse período. Em geral, são jornais de combate, de várias ideologias: comunistas, anarquistas, judaicos, de imigrantes etc. Trata-se, pois da reconstituição de espaços de resistência que o Estado republicano buscou amordaçar.
O livro novo, Cidadão do mundo: O Brasil diante do Holocausto e do nazifascismo, que acabou de ser lançado no Brasil e o será proximamente em Portugal, conforme o convite reproduzido acima, trata da questão do antissemitismo no Brasil e sua continuidade após o fim do Estado Novo.
Esses livros foram baseados em pesquisa em fontes primárias no Brasil e em Portugal, como no Arquivo da Torre do Tombo. O que nos faz lembrar da necessidade de acesso aos documentos para que seja eficaz o direito á memória.
Tucci conta-nos na introdução de sua tese uma das restrições que sofreu à pesquisa. Ela já havia começado a consulta dos documentos no Arquivo Histórico do Itamarati quando, em 1984, nova direção impôs que somente a documentação ostensiva poderia ser liberada para consulta. O resultado?
[...]dois funcionários, sem qualquer formação acadêmica, selecionaram quais os documentos ostensivos e quais os confidenciais. Em seguida, as páginas proibidas foram cobertas por uma folha de papel almaço, onde um clipe prendia no seu interior o documento. E assim lacrou-se uma parte da história... (p. 22)
As autoridades sabiam o que faziam, naturalmente. E continuam a fazê-lo, como se viu recentemente no Arquivo Nacional. A articulação de memória e publicidade é necessária para uma resistência eficaz. Por esse motivo, o trabalho do historiador é essencialmente político, ele trabalha com a ressignificação do que é comum.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Wikileaks, publicidade e Kant

O filósofo alemão Kant (1724-1804) escreveu um pequeno grande livro em que sintetizou vários pontos de sua filosofia política, À paz perpétua ou Para a paz perpétua (Zum ewigen Frieden; a tradução A paz perpétua é simplesmente errada, pois trai a noção de ideia em Kant: trata-se, para ele, de um caminho, e não de um projeto acabado).
O livro, ironicamente, assume a forma de um tratado internacional. Por essa razão, apresenta um anexo secreto, em referência à diplomacia secreta, velha prática diplomática que o presidente estadunidense Wilson queria banir no primeiro dos seus 14 Pontos.
Nesse discurso, que proferiu em 1918 diante do Congresso dos EUA acerca da reestruturação da ordem internacional no pós-guerra, Woodrow Wilson sustentou bem kantianamente o princípio da publicidade:

1.Open covenants of peace, openly arrived at, after which there shall be no private international understandings of any kind but diplomacy shall proceed always frankly and in the public view.

Mas os EUA, definitivamente, não seguem essa tradição presidencial. Preferem a via de Nixon.
O anexo secreto de À paz perpétua trata do... princípio da publicidade, que surge no livro como garantia do direito público.
Garantia? Pois as grandes potências (vejam que isto que Kant escreveu no final do século XVIII continua a servir hoje) agem de má-fé no cenário internacional e encobrem suas verdadeiras intenções de dominação.
Trata-se do que Kant chama de máximas sofísticas. Escrevi sobre isso também aqui:

As máximas que guiam a política de conquista das grandes potências, afirma Kant (1795, p. 236), são sofísticas (sophistische Maximen) e não podem ter publicidade, sob pena de rejeição: fac et escusa; si fecisti, nega; divide et impera. Um claro exemplo foi o da invasão econquista do Iraque pelos EUA: a potência interventora conquistou e somente depois se justificou (fac et escusa), pois apenas após o fait accompli a ONU aprovou resolução favorável à intervenção; os EUA negaram seus delitos de guerra e afirmaram que a verdadeira razão do conflito era a posse, pelo Iraque, de armas nunca encontradas (si fecisti, nega); finalmente,procederam ao loteamento do Estado conquistado (divide et impera). Todo o tempo, deve-se lembrar, tais máximas foram negadas pelo governo estadunidense, por não resistirem ao exame na esfera pública.


Máxima é o princípio subjetivo da ação. Os documentos revelados por Assange e companhia desmascaram essas máximas. A hipocrisia continua na forma de perseguição que Assange vem sofrendo: oficialmente, trata-se de crimes sexuais. Mas qual é o verdadeiro fim dessa ação? Amazon, Visa e outros instrumentos do imperialismo estadunidense estão imbuídas apenas da dimensão sexual do puritanismo fundador daquele país?
A perseguição global faz também recordar outra advertência de Kant em À paz perpétua: não deve existir um Estado mundial, pois ele geraria uma tirania em toda a Terra.
Trata-se de uma afirmação muito mais sensata do que o pensamento de que a guerra decorria da pluralidade de Estados - o Estado único traria o fim das disputas interestatais. Para quem se pediria asilo no Estado global?
Mesmo sem esse Estado, as garras globais da tirania estão presentes: é de pasmar que somente Lula, dentro dos poucos dias de mandato que lhe restam, tenha sido o único chefe de Estado que realmente manifestou-se a favor deste novo prisioneiro político estadunidense.
É de notar-se também que a imprensa tem traído sistematicamente a esfera pública. O comportamento de vários meios de comunicação e dos lacaios que neles trabalham não surpreende a nós brasileiros: ainda são muito vívidos episódios lamentáveis da recente campanha eleitoral no Brasil, como divulgação de fichas falsas, bolinhas de papel de destruição em massa etc. Já sabemos que o princípio dessa imprensa não é a liberdade de expressão, mas a censura.
Esse princípio que anima os negócios da comunicação verifica-se também na capital dos negócios, os EUA: o Iraque mostrou ao mundo como a imprensa estadunidense bate continência ao governo quando assim é ordenado. Por que não? Ela também segue a lógica do capital.
Lógicas e práticas novas, disso precisamos, globalmente. As reações de resistência contra o ataque a Wikileaks parecem vir desse tipo de criatividade - tanto da ação dos Anônimos quanto a de tradicionais jornais de esquerda, como o Libération, que também está a hospedar os documentos secretos. Nasce uma nova forma de cosmopolitismo, que deveria ser pensado a partir da publicidade, e não da hospitalidade (como queria, a meu ver erronamente, Derrida)?