Carlos Fico, o substituto, foi o primeiro a deixar o cargo. A carta com as razões para sua atitude pode ser lida aqui:
http://oglobo.globo.com/pais/arquivos/pais_carta.pdf
No dia seguinte, fez o mesmo Jessie Jane Vieira de Sousa, ex-presa política e, como Fico, professora da UFRJ:
http://www.torturanuncamais-rj.org.br/Noticias.asp?Codnoticia=281
A historiadora acusa a cultura de segredo existente no Poder Público. Creio que ela está correta. O Arquivo Nacional não segue a política defendida por nós, pesquisadores, e seguida pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo: a abertura da consulta aos documentos com a assinatura de um termo de compromisso do consulente.
É irônico que a candidatura de uma ex-militante da esquerda clandestina contra a ditadura militar seja invocada para a interdição da memória. Mais irônico, o fato de a própria candidata ter lançado o Memórias Reveladas quando era titular da Casa Civil em 2009.
De fato, o passado da ditadura militar poderia ter gerado um debate importante da eleição de 2010, pelo menos desde que um jornal de São Paulo decidiu divulgar ficha pretensamente oriunda do DOPS da então candidata do PT à presidência (e com isso curiosamente ajudou a campanha oposicionista). Essa ficha foi reproduzida em mensagens pela internet; eu mesmo a recebi e a contestei duas vezes.
Nenhum debate real ocorreu, no entanto. A ficha era falsa, mas o jornal não se incomodou muito com isso, tampouco o candidato do PSDB. Embora também ele tivesse sido perseguido no período, não se interessou em denunciar a manipulação da história. Ao menos nesse aspecto, sua campanha traiu o próprio passado do candidato e - pior - o do país.
E os documentos verdadeiros? É claro que o fato de o documento ser verdadeiro não significa que ele encerre a verdade histórica. Os documentos produzidos pela polícia política representam a visão da repressão, que não deixará de apresentar seus preconceitos e falsidades. É preciso, pois, desmistificar o que esses documentos apresentam.
Essa tarefa é impossibilitada se os documentos continuam trancados em cofres que só prometem riquezas para o esquecimento. A interdição do acesso aos documentos bem mostra o que resta da ditadura. Haveria base jurídica para isso, no direito aparentemente democrático do Brasil de hoje? Nesta ligação, pode-se ver a matéria do jornal O Globo, em que se aponta o argumento mais ou menos legal do Arquivo Nacional:
http://oglobo.globo.com/pais/eleicoes2010/mat/2010/11/03/historiador-se-demite-em-protesto-contra-sigilo-de-acervos-da-ditadura-no-periodo-eleitoral-922934844.asp
Direito à memória versus direito à intimidade? Está na moda, entre constitucionalistas, falar de balanceamento de direitos - o que não é feito no caso: com a interdição dos arquivos, simplesmente o direito à memória não é aplicado nunca.
Lembro-me do famoso "O que é uma nação?", de Ernest Renan (1823-1892). Nele, defende-se o apagamento de fatos "violentos" da história em prol da unidade da nação.
O esquecimento, e eu diria mesmo o erro histórico, é um fator essencial da criação de uma nação, e é assim que o progresso dos estudos históricos é frequentemente para a nação um perigo. A pesquisa histórica, com efeito, traz de novo à luz fatos violentos que se passaram na origem de todas as formações políticas [...]
Renan é coerente e defende, no mesmo texto, algo que Nietzsche chamaria de uma história monumental: uma nação deve basear-se em fatos heroicos de grandes homens. Dessa forma, a perspectiva crítica é anulada, e a glorificação do passado é instrumento para construir um consenso positivo em torno do poder presente.
Esquecer os fatos violentos? A violência, no caso, está no próprio esquecimento, ou melhor, continua no esquecimento, que só pode engendrar a negação da história e da política.
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