O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 14 de abril de 2018

Em Chicago, na Printemps Littéraire






































Se tudo correr bem, vou-me apresentar na Printemps Littéraire. O evento é organizado pelos professores César Braga-Pinto (Northwestern University) e Leonardo Tonus (Sorbonne Université); em 2018, ela passou a ter atividades também nos Estados Unidos.
Estarei nesse país com Adriana Lisboa, Chico Mattoso, Cintia Moscovich, José Luiz Passos, Frances de Pontes Peebles, Lulli Pena, Natalia Borges Polesso, Alexandre Vidal Porto, Allan da Rosa, Robson Viturino, Fabio Weintraub e Lucrecia Zappi. Vejam o programa: https://www.printempslitterairebresilien.com/programme
Carola Saavedra e Simone Paulino, previstas no programa, tiveram impedimentos de última hora.
Se tiver sorte, no dia 16 participarei de uma leitura de poesia com Allan da Rosa, Adriana Lisboa, Leonardo Tonus e Fabio Weintraub. No dia 18, estarei em uma mesa sobre "Gender and Sexuality in Brazilian Literature Today" com Natalia Borges Polesso e Alexandre Vidal Porto, com mediação dos organizadores, os professores César Braga-Pinto e Leonardo Tonus. Espero conseguir falar sobre gênero e justiça de transição na literatura brasileira contemporânea.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Desarquivando o Brasil CXLIV: O relatório da Comissão da Verdade da USP, parte II

Continuo a tratar do relatório final  da Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo, entregue no fim de março de 2018 à Reitoria. Em nota anterior, fiz uma visão panorâmica dos seis últimos capítulos.

Ainda no interessante volume V, pode-se ler algo curioso: o ataque pouco elegante de Julio Katinsky à luta armada e, aparentemente, mal informado: esse professor achava que Janice Theodoro, que foi impedida politicamente de entrar na FAU e fez carreira na FFLCH, havia sido guerrilheira (p. 119). A presidenta da CVUSP, evidentemente, nega: ela não integrou a luta armada.

O volume IV, que tem por objeto a Faculdade de Medicina, não deu conta da pesquisa. A CVUSP é bastante franca a respeito:
Este volume ainda aborda, tangencialmente, a situação vivenciada no período pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e pelo Hospital das Clínicas. Infelizmente o acesso aos documentos destas instituições, apesar da Lei de Acesso a Informação, de 2011, foram negados. Estas barreiras dificultaram a investigação de sérias suspeitas levantadas principalmente pela Comissão Estadual Rubens Paiva, presidida por Adriano Diogo (ver entrevista no Volume Depoimentos).
Por outro lado, é de elevada importância alguns episódios narrados pela Dra. Albertina Duarte, em seu depoimento: atendimentos a presos políticos prestados clandestinamente; a tortura em presos políticos dentro do Hospital das Clínicas; o desaparecimento de fichas de pacientes, suspeitos de exercerem atividades políticas, atendidos pela Dra. Albertina Duarte e outros médicos ou estagiários comprometidos com uma rede de socorros clandestinos.
A pesquisa não se estendeu o quanto deveria ao importante papel que os estudantes da FMUSP exerceram no período de intensas mobilizações ocorridas na década de 1970, cujo ápice se deu em 1977, e que desembocaram na reorganização das entidades representativa dos estudantes e dos docentes e no período de transição democrático. (p. 15-16)
A Comissão não conseguiu achar documentos a respeito da participação da Medicina na repressão política. O volume também não conseguiu dar conta da atividade política dos estudantes. No Arquivo Público do Estado de São Paulo há muito material sobre eles, no entanto.
O mais interessante, creio, são os depoimentos. Elza Berquó fala do projeto do Centro de Estudos de Dinâmica Populacional (CEDIP), ferido pelo AI-5; ela foi um dos pesquisadores afastados pela ditadura, e acabou integrando o CEBRAP:
No Cebrap, com o espírito ainda vagando pelo Departamento, pudemos dar prosseguimento, com os colegas do CEDIP, aos trabalhos em curso. A Pesquisa de Reprodução Humana no Distrito de São Paulo, iniciada em 1965, produziu inúmeros trabalhos, reunidos no livro “A Fecundidade em São Paulo: Características demográficas, biológicas e socioeconômicas”, que veio a lume em 1977, publicado pela Editora Brasileira de Ciências-Cebrap.
Mesmo com a Anistia, não pude retornar à Faculdade de Saúde Pública, uma vez que minha volta foi rejeitada por 50% de sua Congregação.
Até hoje a USP não tem nenhum centro de estudos populacionais. (p. 202)
Podem-se ver também declarações como a de Erney Plessman de Camargo, que simplificam o papel da instituição: "O golpe de 64 não foi apenas contra o Estado de Direito, ele se constituiu de subgolpes contra muitas instituições. Uma destas foi a USP que, no entanto, nunca sucumbiu ao golpe, mas a ele se opôs durante toda sua duração. Dizer que a USP foi conivente com o golpe é um ato de desrespeito a todos os mártires, alunos e docentes, que sucumbiram às atrocidades da ditadura." (p. 212). O relatório da CVUSP mostra uma situação diferente.
Note-se também a condescendência da Comissão da USP, que não sugeriu, entre as recomendações, a tomada de providências administrativas contra os órgãos que se negaram a prestar informações, e também o trabalho incompleto envolvendo as fichas dos casos individuais. Feiga Langfeldt, por exemplo, tem ficha no DEOPS/SP, mas a Comissão só consultou o Livro Negro da USP nesse caso (p. 268).

O volume III dedica-se aos 47 mortos e desaparecidos políticos que tinham relação com a USP segundo esta lista:


No decorrer do volume, a grafia do nome de Arno Preis é corrigida, mas não a de Olavo Hanssen, sempre escrito erradamente, apesar de a Comissão ter consultado o perfil elaborado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" (a CVUSP, na citação, porém, escreve "Olavo Hassen"), que o escreveu de forma correta:



A CVUSP aparentemente também não consultou a biografia publicada por Murilo Leal em 2013 (o que é estranho, pois se trata da única, por enquanto, já escrita sobre Hanssen). Poderia ter também visto o curta que a Comissão "Rubens Paiva" fez também em 2013: https://www.youtube.com/watch?v=vGUN9sNZUnA
Destaco a questão porque acho indelicado com a memória uma Comissão da Verdade registrar erradamente o nome de um morto político, e porque eu perguntei à representante dessa Comissão, no balanço das Comissões da Verdade realizado no IRI/USP em 2015, se a CVUSP recomendaria a retificação do nome no "Memorial aos Membros da Comunidade USP Vítimas do Regime da Ditadura Militar – 1964/1985".
Não só não o fez como insistiu no erro, que se repete em outros momentos: vol. III, p. 34, vol. VI, p. 32; vol. IX, p. 12; no volume IX, porém, a grafia está correta na página 102; estranhamente, a nota da página 103 não menciona que ele estudou na USP, terão pensado que se tratasse de outra pessoa?
O volume trata da tradição anticomunista dos órgãos de segurança, bem anterior à ditadura de 1964, e traz a reprodução de um documento do DOPS-SP de 1949 dando notícia de "Manifestação comunista levada a efeito na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo" (p. 261).
O foco desta parte do relatório são os perfis de mortos e desaparecidos políticos. No entanto, é estranho que a ficha de Iara Iavelberg registre "Morto (suicídio)" (p. 146), se a falsa versão oficial da morte dela já foi desmentida (ela foi executada em Salvador), como o próprio volume conta.
Jeová Assis Gomes, aluno da Física, "em 1966, liderou a 'Greve das Panelas', que se realizou no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP)" (p. 158) e foi expulso da Universidade no ano seguinte. Integrou a ALN (Ação Libertadora Nacional) em 1969, foi preso e torturado pela OBAN e foi um dos presos trocados pelo Embaixador alemão, mas voltou ao país e foi morto em Goiás. O perfil no volume devidamente registra que
O caso de Jeová foi julgado na CEMDP [Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos], em 10 de dezembro de 1996, e foi aprovado por maioria, e quem votou contra o deferimento foram o general Oswaldo Pereira Gomes, além de Paulo Gustavo Gonet Branco e João Grandino Rodas, à época Prof. titular da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e, de 2010 a 2014, reitor da Universidade de São Paulo. (p. 160)
A CVUSP foi criada durante o mandato de Rodas apenas depois de grande mobilização da comunidade acadêmica.

O volume II "trata de casos em que alunos da Universidade de São Paulo (USP), após cumprirem penas de prisão como incursos na Lei de Segurança Nacional, ou obterem liberdade condicional, solicitaram suas rematrículas nos cursos que estavam realizando antes do impedimento." (p. 10). Relatam-se quatorze casos. O estreito recorte deixa de lado várias outras situações, especialmente quando a USP expulsou o aluno por procedimentos próprios, sem que ele tivesse cumprido pena de prisão, como aconteceu com Jeová Assis Gomes. Ainda é necessário realizar uma pesquisa de cunho mais amplo sobre a repressão aos estudantes realizada pela Universidade; para isso, como escrevi na nota anterior, é necessário pesquisar a correspondência dos diretores das unidades com o DOPS-SP e outros órgãos da repressão.

volume I, além dos documentos da AESI, a principal descoberta da da CVUSP, que comprovem as formas de controle ideológico na Universidade, recolhe informações já sabidas, como a presença de Krikor Tcherkezian, assistenten técnico de Gabinete da Reitoria, no DEOPS/SP: "De acordo com o Perfil da CNV, as atividades de informações teriam surgido na USP em 1970, por iniciativa do Reitor Prof. Miguel Reale e a contratação de Krikor estaria relacionada a essa atividade. Essa contratação teria sido influenciada por seu irmão, Arminak Tcherkesian, que era homem de confiança do Ministro da Educação, Jarbas Passarinho. Krikor teria sido designado como responsável pela AESI." (vol. I, p. 175).
O relatório ressalta a vontade política de Miguel Reale em estabelecer a Assessoria na USP, pois ela não era obrigatória, bem como as qualidades do escolhido, que era investigado por tráfico de drogas:
Analisando os documentos produzidos em 1977 pelo SNI, pode-se comprovar e compreender que, no caso das universidades estaduais, o reitor possuía livre-arbítrio para a criação ou não de uma assessoria, porém, se o fizesse, não encontraria respaldo para tal decisão no organograma do Serviço de Segurança e Informação em âmbito federal. Essa questão, a princípio sem relevância prática, expressaria, posteriormente, conflitos entre setores do serviço de segurança, cujos atores, que mais tarde entrariam em conflito – de um lado, o SNI; e, de outro, a AESI/USP, que passaram a divergir após a troca do comando do II Exército durante a presidência de Ernesto Geisel, que objetivava a abertura política.
De todo modo, a documentação coletada foi capaz de comprovar, com a contratação do funcionário Krikor, o interesse do reitor Miguel Reale em se utilizar dos serviços de informação e de polícia para impedir, na USP, a presença de qualquer manifestação contrária à linha-dura, restringindo consideravelmente o movimento estudantil, a livre circulação de ideias e a autonomia universitária.
Para a realização desse projeto, o reitor escolheu um funcionário que vinha sendo investigado pela Delegacia da Polícia Federal do Paraná desde 1972 pela prática de tráfico de drogas, tendo sido, posteriormente, considerado inidôneo pelo SNI em 1976. (p. 61)
Tanto Arminak Cherkesian quanto Krikor Tcherkesian acabaram sendo considerados inidôneos pelo SNI. O General João Franco Pontes, que ocupou no cargo por indicação do II Exército, nele ficou  até sua extinção em 1982.
Lamentamos, no volume, a desatualização no uso do quadro "Violência letal praticada por forças estatais e outros índices da repressão política no Brasil, no Chile e na Argentina." (v. I, p. 23; o volume sobre a Faculdade de Direito também o faz: v. VI, p. 9-10). A fonte é o livro Political (In)Justice, de Anthony W. Pereira, que é muito bom, evidentemente, mas é de 2005 e, por essa razão, não traz os dados da CNV, que deixou o gráfico bastante defasado com a pesquisa sobre povos indígenas e camponeses .

O breve volume 0 realiza uma apresentação geral e explica a importância de a CVUSP ter resgatado a "documentação produzida nos dez anos de funcionamento da Assessoria Especial de Segurança e Informação da USP (AESI/USP), durante as gestões do Prof. Miguel Reale, do Prof. Orlando Marques de Paiva e do Prof. Muniz Oliva" (p. 17).
Ele inclui também as recomendações, que causam perplexidade. Como eu perguntei no balanço das Comissões da Verdade realizado no IRI/USP em 2015 (naquela época, como sugestão), por que não recomendaram o fim das homenagens aos membros da USP que participaram da repressão política? Por exemplo, a mudança do nome da rua reitor Prof. Orlando Marques de Paiva, que prestou informações falsas à CPI da Alesp em 1977 (o livro da Adusp, Controle Ideológico na USP, deixou a questão bem clara em 1978), negando que houvesse controle ideológico nas contratações para a USP?
Por que não romper com o passado autoritário nessas medidas de memória?
Outro problema é o ocultamento da história da criação da Comissão. Ela surgiu somente depois de uma ampla mobilização na USP em 2012 por uma Comissão da Verdade universitária para, entre outros fins, auxiliar o trabalho da CNV. Vejam abaixo a moção da Congregação da FFLCH:


A Comissão foi criada em 2013 pelo reitor João Grandino Rodas sem ouvir a comunidade acadêmica e realizou seus trabalhos em segredo. A Adusp, já em 2014, denunciava a situação:
A Comissão da Verdade (CVUSP) foi criada em 7/5/13, por meio da Portaria GR 6.172, e instalada em 25/7/13, mas desde então pouco se sabe de suas atividades. Recorde-se que sua configuração resultou de arbitrariedade do reitor J.G. Rodas, que rompeu com o Fórum pela Democratização da USP, com o qual vinha negociando a composição da CVUSP, e nomeou unilateralmente seus membros: Dalmo de Abreu Dallari, da Faculdade de Direito (FD), designado presidente; Erney Plessmann de Camargo (ICB); Eunice Ribeiro Durham e Janice Theodoro da Silva (ambas da FFLCH); Maria Hermínia Tavares de Almeida (IRI); Silvio de Azevedo Salinas (IF); e Walter Colli (IQ).
Segundo a Portaria, a Comissão teria um ano a partir de sua instalação para trabalhar e apresentar um relatório. Passados oito meses, ainda são poucas as informações obtidas e tem sido difícil consegui-las. Dallari viajou e deve retornar apenas em abril. Sua substituta na presidência, a professora Janice, passa metade da semana incomunicável devido a uma pesquisa que realiza em áreas montanhosas, segundo a secretária da CVUSP. Os outros membros, quando localizados, não expõem as atividades da Comissão.
De fato, ela manteve suas ações em segredo, o que não é exatamente uma forma transparente de agir, ou de engajar democraticamente a comunidade em seus trabalhos. Não sabemos, por exemplo, por que uma Comissão que acabou oficialmente em julho de 2016 entregou seu relatório somente no fim de março de 2018. Ignoramos as dificuldades e pressões por que passaram estes trabalhos; aparentemente, houve unidades que não entregaram dados à Comissão, mas ela não revela exatamente quais, e por que razão (vol. X, p. 19).
O caso de Ana Rosa Kucinski, um dos exemplos claros de colaboração da USP com a ditadura militar, é tratado igualmente de forma a apagar a história, fazendo esquecer que a Faculdade de Química recusou-se a atender os pleitos de Bernardo Kucinski, irmão da professora desaparecida (que já havia publicado o romance K., inspirado no desaparecimento dela e do marido, Wilson Silva), e que a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva" decidiu fazer uma audiência pública sobre o caso em 2013, mas as autoridades universitárias se recusaram a participar!
A Comissão estadual acabou por realizar a audiência em outubro de 2013 no espaço dos estudantes de Química; o diretor da faculdade não participou (esteve no espaço até pouco antes de ela iniciar-se e foi embora), e a CVUSP manteve-se alheia. No ano seguinte, decidiu agir. Essa história não é contada no relatório.
Na falta de transparência de suas atividades, no apagamento da mobilização social até mesmo para a sua criação, o interessantíssimo relatório da CVUSP (documento de leitura obrigatória não apenas sobre a USP, mas sobre a ditadura militar) acaba por revelar, até mesmo performaticamente, como as continuidades da ditadura fazem-se presentes na sociedade brasileira.

Desarquivando o Brasil CXLIII: O relatório da Comissão da Verdade da USP, parte I

No dia 21 de março de 2018, a Comissão da Verdade da USP (CVUSP), presidida pela historiadora Janice Theodoro da Silva, entregou seu relatório final à Reitoria. Em razão de a Comissão ter optado por encartar os anexos com os textos principais (outras Comissões, como a do Estado do Rio de Janeiro fizeram o oposto), o trabalho acabou sendo dividido em 11 volumes (dez mais um volume zero); os textos de análise não são longos, em geral.
Em razão da importância do trabalho, faço esta nota indicando a leitura dos seis últimos. Já li todo o relatório, mas, por conta da avaliação que modestamente farei, os cinco primeiros serão objeto de uma nota posterior.

volume X, para boa parte dos pesquisadores, provavelmente será o mais interessante. Ele explica as fontes de pesquisa, e ratifica a afirmação, repetida em outros volumes (e por quase todas as comissões da verdade, inclusive a Nacional), de que a pesquisa precisa continuar:
[...] em vista do volume documental que envolve os processos dos cerca de 600 nomes levantados pela Comissão, não foi possível analisar todos eles a fim de corroborar as evidências de perseguição política ocorrida dentro da Universidade, de acordo com os dados apresentados acima. Porém, alguns casos exemplares serão analisados neste relatório, deixando clara a dinâmica do mecanismo, arma da legalidade contra a legitimidade (p. 23).
A principal contribuição do relatório foi a recuperação dos documentos da Assessoria Especial de Segurança e Informações, AESI-USP, braço do SNI que ficava na reitoria, instalado na USP por solicitação do então reitor Miguel Reale. Ele colocou este órgão de vigilância e repressão no campus.
A USP, significativamente, não tinha mais a documentação concernente. Os pesquisadores tiveram que encontrá-la no Arquivo do Estado e no Arquivo Nacional:
As portarias e resoluções emitidas pelo Gabinete do Reitor nem sempre foram encontradas nos arquivos da USP, por exemplo, a mais importante delas: a portaria responsável pela criação da AESI – Assessoria Especial de Segurança e Informação, órgão criado para vigiar a Instituição e que era ligado à Reitoria. O documento que comprova a sua criação por iniciativa do reitor Miguel Reale, em 1970, foi encontrado apenas posteriormente, no Arquivo Nacional, junto com a documentação do SNI. (p. 20)
Indago: os arquivos da família Reale não poderiam ter ajudado? Lembremos que o filho desse antigo reitor é professor da USP aposentado da Faculdade de Direito, assim como seu pai; por que ele não ajudou a Universidade a recuperar sua história??
A CVUSP identificou seis "tipos de informações coletadas e produzidas":
1. Controle, Vigilância e Triagem de Pessoal;
2. Controle de Atividades Acadêmicas;
3. Controle de Produção Científica;
4. Movimento Estudantil;
5. Administração – AESI-USP – Reitoria;
6. Observações no Campus Universitário. (p. 43)
A recuperação desse importante acervo documental põe o relatório da CVSUP em destaque em relação a outras comissões universitárias.
Deve-se ler o guia de fontes sobre a USP nos arquivos sabendo que ele é bem incompleto. Em 2016, quando eu encontrava pesquisadores da CVUSP no Arquivo do Estado de São Paulo, de vez em quando mostrava documentos sobre a USP que eu encontrava acidentalmente em dossiês sobre outros assuntos. Há tantos documentos sobre essa Universidade no Arquivo que alguns deles viraram rascunho: seu verso era reciclado para se tornar documento do DOPS...
Sobre a PUC-SP, há menos documentos, mas o material também se mede em milhares de páginas. Pena que a Comissão da PUC praticamente não tenha realizado pesquisa documental. Seu relatório não está nem um pouco à altura do que foi essa Universidade nos anos da ditadura, época em que muitos movimentos sociais encontraram nela um espaço favorável.

volume IX traz depoimentos de 15 ex-alunos, a maioria concedidos especialmente à Comissão (que recebeu, ao todo, 47, incluindo professores): José Maria Filardo Bassalo, Paulo Markun, Walter da Silva, Mario Wajc, Adriano Diogo (ex-presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva"), Anita Maria Fabbri, Arnaldo Schreiner, Célia Regina Barboza Ramos, Geraldo Augusto Siqueira Filho, Hebert Willian Coutinho Melo (Piauí), José Roberto Michelazzo, Márcia Bassetto Paes, Paulo Roberto Beskow, Pedro Rocha Filho, Ronaldo Eduardo Almeida. Infelizmente, os erros de revisão são visíveis. Por exemplo, aparentemente Adriano Diogo começa a falar na página 61, e isso não é indicado.

volume VIII, dedicado à Escola de Comunicação e Artes (ECA), começa com um texto de análise da repressão e da resistência, com análise de documentos, fichas de 13 professores (inclusive Freitas Nobre, que acabou sendo impedido de lecionar) e seis depoimentos, bem como os anexos com reproduções de documentos.
Os depoimentos são ricos por permitirem ver como os tentáculos da segurança nacional tentavam abranger as mais diferentes áreas. A habitação, claro, era um caso exemplar; a professora Cremilda Araújo Medina conta que a pesquisa universitária crítica ao regime não deveria ser divulgada:
Eu era chamada à direção toda semana. O boletim da Agência, que era mimeografado e distribuído pela caminhonete da ECA por um motorista nas sucursais e nas redações de São Paulo e posto no correio para o interior do estado, os jornais do interior do estado, [...] então um dos temas que foi massacrado foi a primeira tese que saiu na FAU, do Gabriel Bolafi, sobre o BNH, o Plano Nacional de Habitação. Ele fez a primeira tese, naturalmente crítica, desconstruindo o projeto, dando todos os podres do projeto, a Agência  cobriu, era para isso que nós estávamos lá, os alunos fizeram o material, o material saiu nos jornais todos. Na segunda-feira eu estava sendo chamada pelo Manuel Nunes Dias, o Diretor repressor que a História nos mandou, para me mostrar um telegrama diretamente de Geisel, dizendo "Agência Universitária de Notícias é atentatória à segurança nacional. A senhora está fazendo esse trabalho". (p. 167)
Sobre Manuel Dias, o diretor que veio da FFLCH, cito o caso de Jair Borin, que foi torturado tanto em 1964, depois de ser expulso das Forças Armadas ainda no governo de Goulart, quanto na década de 1970, quando se tornou professor da USP:
Foi preso em 05 de março de 1974, por dois agentes armados da Polícia Federal, quando chegava para dar aula na ECA depois de retornar de férias. O professor diz que o motivo de sua prisão foi uma denúncia do então diretor da ECA, Manuel Nunes Dias, fato que teria descoberto ao consultar seu prontuário para se preparar para o concurso de livre docência. Ainda segundo Borin, o diretor sabia, desde 22 de janeiro, que a Polícia Federal o procurava, pois constava em ofício manuscrito do DEOPS a solicitação para sua captura. Em outro documento consultado pelo professor, o diretor articulou com o reitor Orlando Marques de Paiva a forma de conduzir o caso. Foi levado ao DOI-CODI, na delegacia da rua Tutóia. Passou por uma sessão de violência física e intimidação e foi ouvido pela equipe B de torturadores, tendo ali permanecido por dois meses. Em maio, foi levado de avião, com algumas escalas, até o Recife, tendo ficado incomunicável por 40 dias, sem que sua mulher e seu advogado, José Carlos Dias, soubessem de seu paradeiro. Ao voltar a São Paulo, seu processo já havia sido concluído. Borin foi levado ao presídio do Hipódromo onde, relata, “o tratamento era mais humano”, e, em seguida, para o Barro Branco, próximo à serra da Cantareira. Na ocasião de sua prisão, foi demitido sumariamente da ECA. (p. 94-95)
Há casos que são mencionados apenas nos depoimentos: Robson Corrêa de Camargo afirma que "A Maria Alice Vergueiro, por exemplo, era professora do teatro e ela teve que sair. Apresentou um Cabaré, na época, que era muito libertário e ela teve que se demitir. A gente acabou sabendo que ela foi forçada a sair." (p. 245). A CVUSP, no entanto, não ouviu a atriz. Aqui também temos pistas para várias outras futuras investigações.

volume VII, que trata das "perseguições realizadas contra professores da Universidade de São Paulo, fruto de Inquérito Policial Militar (IPM), e das aposentadorias compulsórias", compreende uma apresentação breve do IPM da História e da Geografia, um texto curto de Boris Fausto, e outro listando as aposentadorias compulsórias. O grosso do volume são os depoimentos, alguns dados à própria Comissão. De Emília Viotti, que morreu em 2 de novembro de 2017 e não pôde ver este relatório, incluiu-se entrevista ao Informativo 09 da FFLCH, em 2004, dada a Daniel Sevillano.
Fernando Henrique Cardoso, no seu depoimento, acusa, com razão, a direita da USP de ter sido mais realista do que o rei: "Esse pessoal da direita da USP é responsável direto por conivência, ação e omissão. Se você for ver a Comissão Interna da USP, eles eram mais ferozes que os militares, eles pediam a nossa cabeça." (p. 49), e aproveita para criticar também a esquerda universitária em 1964: "O pessoal achava que estava havendo um golpe do Jango. A noção de política real do pessoal da USP era mínima." (p. 51).
O longo depoimento de Ulysses Telles Guariba Neto inclui reflexões interessantes sobre as políticas públicas de educação superior de hoje:
A gente vê o governo federal fazer uma coisa que é um escândalo, o Programa Universidade para Todos (Prouni), entregando dinheiro público para escolas privadas que oferecem cursos de quinta categoria. Uma vergonha nacional. Ninguém protesta. Cooptam. Cooptam os empresários do ensino. Vendem programas eleitoreiros dizendo que dão oportunidades aos pobres. Conheço empresário que enriqueceu com o Prouni. Além do mais, repassam dinheiro fácil aos caixas de campanha. Quando se poderia – nos anos 1960, 1970, 1980 – conseguir imaginar um governo que pudesse fazer o despejo de dinheiro público sobre escolas particulares? Essas pessoas deveriam ser pelo menos fuziladas, segundo nossa ótica daquele tempo. (p. 85-86)
Há quem ache, porém, que esse governo que fomentou estes grandes conglomerados privados de educação era de esquerda nesse campo. O ministro da educação tinha vindo da FFLCH, aliás.
Este volume, sobre a FFLCH, talvez seja o mais decepcionante do relatório da USP; não explica, por exemplo, por que Caio Prado Jr. aparece no decreto de aposentação forçada na página 22, mas não ganha ficha no volume. Foi um erro do governo federal.
Ainda terá que ser escrita a história da repressão na FFLCH, e isso não poderá ser feito em um volume só.

O volume VI tem por objeto a Faculdade de Direito, que de fato, teve um papel de destaque em razão do engajamento de vários de seus nomes na justificativa das violações sistemáticas de direitos humanos e do governo autoritário. O capítulo ressalta Gama e Silva, Miguel Reale e Alfredo Buzaid. Sobre Buzaid, afirma:
Além de garantir a aparência de legalidade em meio aos excessos praticados pelos militares no governo, é possível identificar a participação de Buzaid na construção da estrutura jurídica que mais duramente reprimiu os opositores ao regime militar. Foi um decreto de setembro 1970, de autoria do general Médici, que “integrou a estrutura da Operação Bandeirante (Oban) ao organograma oficial, assumindo então a denominação de Destacamento de Operações de Informação/Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército” (BRASIL, 2014, p. 332). Com isso, deu-se início ao período de maior agressão aos direitos humanos no Brasil. (p. 30)
Trata-se do sistema de tortura e de execuções extrajudiciais, que precisava de uma fachada de legalidade, fornecida por esses juristas engajados.
Alguns trechos do volume causam tristeza em quem é da área, por apontarem, além do caráter autoritário do campo jurídico no Brasil, o modesto nível intelectual reinante no campo; diz-se de Manoel Gonçalves Ferreira Filho que "Até hoje, é tido como um dos principais constitucionalistas do país." (p. 34). De fato, até Michel Temer pôde fazer carreira como constitucionalista.
Relembra-se o papel da Faculdade de Direito na criação do CCC. A agressão do CCC ao professor Alberto Moniz da Rocha Barros, que morreu pouco em 9 dezembro de 1968, dois meses depois do ataque sofrido, que recebeu o silêncio da Congregação da Faculdade de Direito. A Comissão pede, enfim, reparação ao professor; na época, quem foi recompensado foi o pessoal da milícia anticomunista:
Com relação à proximidade entre o CCC e a Faculdade de Direito, convém observar o fato de que João Marcos Monteiro Flaquer, um dos criadores do grupo paramilitar, foi contratado para trabalhar como oficial de gabinete do então ministro da Justiça, Prof. Alfredo Buzaid, no período entre 1969 e 1971 (REVISTA VEJA, 1999). O nome de Flaquer consta da lista de torturadores do Brasil Nunca Mais, tendo sido citado no depoimento de Diógenes de Arruda Campos (TOMO V - Vol. 1 - A Tortura (10). Fl. 731). Ou seja, o ex-professor e ex-diretor da Faculdade de Direito, Prof. Alfredo Buzaid, ministro da Justiça a partir de 1969, contratou como seu oficial de gabinete no ministério
aquele que vinha sendo apontado como a principal liderança do CCC, no mesmo ano em que ele concluiu sua formação pela Faculdade de Direito." (p. 46)
O volume apenas inicia a pesquisa, porém, inclusive cronologicamente: concentra-se na década de 1960; a correspondência dos diretores da Faculdade nos anos 1970 com o DOPS, por exemplo, não aparece, tampouco a espionagem das aulas, como esta de Fábio Konder Comparato, em maio de 1973:



Trata-se de um relatório do DOPS/SP, hoje no acervo do Arquivo Público do Estado, que não está entre os documentos do volume.
Ele fecha-se com entrevistas de Maria Paula Dallari, Elias Mallet da Rocha Barros e com um depoimento de Dalmo Dallari, que sofreu mais de um atentado nessa época em razão de sua oposição à ditadura.
Boa parte do volume é composto de reprodução de documentos que mereceriam ter recebido uma análise mais aprofundada. Embora concorde, no geral, com o diagnóstico de que "Avaliada de acordo com sua função institucional, a Faculdade de Direito da USP desempenhou um papel marcado pelo imobilismo, uma vez que não se posicionou formalmente contra as arbitrariedades do regime, sendo que seus membros mantiverem suas atividades como se o país não estivesse vivendo um estado de exceção." (p. 36), o que dizer de um trabalho sobre essa época que não trata da Carta aos Brasileiros? Ou que não pesquisa a atividade política do Centro Acadêmico XI de Agosto?

volume V trata da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, a FAU-USP, e pareceu-me o melhor de todos, em termos de pesquisa sobre as unidades. Ele se preocupou mais consistentemente com a repressão e a resistência dos alunos: na página 327, por exemplo, pode-se ver a ficha da então estudante Raquel Rolnik.
Além disso, tratando dos mecanismos institucionais da repressão, da vigilância, da censura no meio universitário, a CVUSP também analisou o que tudo isso representou em perda intelectual para o Brasil.
A ditadura devastou o país, claro, em termos de mobilização política, direitos, meio ambiente, diversidade cultural, da renda dos trabalhadores, mas também na inteligência, com a censura a correntes de pensamento e a perseguição a professores. O texto de Sérgio Ferro acusa a Universidade de conivência, até hoje, com a situação:
Ausente desde 1972 do Brasil, eu, Sérgio Ferro, não tenho conhecimento de nenhuma declaração oficial ou de alguma ação clara que demonstre repúdio por parte da USP ou da FAUUSP com relação a inquéritos, prisões, torturas ou assassinato perpetrados contra professores, alunos e funcionários destas instituições. Espero que me engane. Entretanto posso afirmar que nem o professor Rodrigo Brotero Lefèvre, nem eu, nunca recebemos nenhuma palavra destas instituições condenando ou lamentando o que aconteceu conosco, nem propondo reintegração ou qualquer medida de reparação. A mesquinhez e a indiferença chegam ao ponto de não me atribuírem a pequena aposentadoria a que tenho direito. O silêncio da USP e da FAUUSP quanto às suas lamentáveis atitudes durante a ditadura fazem delas aliadas objetivas de seus crimes." (p. 135)
As perseguições seguiram até os anos 1980; em relação ao professor Vilanova Artigas, por exemplo, "seu concurso para titular foi dificultado por anos, com a finalidade de impedir sua ascensão à diretoria da Faculdade. Sua realização, em junho de 1984, apenas teria sido possível às vésperas de sua aposentadoria compulsória, com setenta anos" (p. 80).
Essas perseguições, evidentemente, eram anteriores. Neste capítulo, a CVUSP articula a análise com os anos 1950, e lembra do reitor Ernesto Leme impedindo Oscar Niemeyer de lecionar na FAU. O PCB já tinha sido posto na ilegalidade em 1947, e o anticomunismo não foi inventado em 1964.