O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Onde se queimam documentos, queimam-se memórias: aprovação no Senado do projeto de destruição de documentos públicos

A agenda legislativa de destruição do Brasil, que inclui o fim das terras indígenas, das áreas de proteção ambiental, dos direitos sociais, do Cerrado, da Amazônia prossegue. O projeto do Senador Magno Malta (PR/ES) de destruição de documentos públicos (PLS 146/2007), após digitalização, foi enviado para a Câmara dos Deputados, onde será examinado.
Aqui, pode ser lido da forma como foi aprovado pelo Plenário do Senado Federal em 14 de junho de 2017:
http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=5363570&disposition=inline
Os únicos votos contrários vieram do PT e da REDE: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/notas-taquigraficas/-/notas/s/23071

O SR. LINDBERGH FARIAS (Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RJ) – É, Sr. Presidente. Eu queria registrar...
O SR. PRESIDENTE (Eunício Oliveira. PMDB - CE) – Para discutir a matéria, Senador Lindbergh.
O SR. LINDBERGH FARIAS (Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RJ. Para discutir. Sem revisão do orador.) – Eu queria registrar aqui, Sr. Presidente, nosso voto contrário.
O presente projeto de lei, Sr. Presidente, busca regular uma importante matéria que é a digitalização e o arquivamento de matérias em meio eletrônico, óptico ou digital.
A Administração Pública produz milhões de documentos, muitos deles de inestimável valor para a história do Brasil. O avanço da tecnologia certamente, Sr. Presidente, pode ajudar no processo de simplificação e desburocratização, mas não pode dar ensejo ao fim da memória nacional.
Assim, a despeito dos avanços do projeto, persiste a crítica de antropólogos, arquivistas e historiadores de diversas universidades segundo a qual o projeto pode levar ao fim de documentos públicos e dos arquivos públicos, com prejuízo inestimável para a memória do Brasil.
Por isso, Sr. Presidente, o PT vota contra esse projeto.
O SR. PRESIDENTE (Eunício Oliveira. PMDB - CE) – Está encerrada a discussão.
Votação em globo da Emenda de nº 1-CCJ (Substitutivo) com as Subemendas nºs 1 e 2, do Relator, bem como a Emenda 11, nos termos do parecer do Relator.
As Srªs e os Srs. Senadores que as aprovam permaneçam como se encontram. (Pausa.)
Aprovadas.
A matéria...
O SR. RANDOLFE RODRIGUES (Bloco Socialismo e Democracia/REDE - AP) – Sr. Presidente, só quero registrar meu voto contrário.
O SR. PRESIDENTE (Eunício Oliveira. PMDB - CE) – Com voto contrário do Senador Randolfe...
O SR. RANDOLFE RODRIGUES (Bloco Socialismo e Democracia/REDE - AP) – E do Senador Lindbergh.
O SR. PRESIDENTE (Eunício Oliveira. PMDB - CE) – ... e do Senador Lindbergh, que já registrou, como Líder, a sua posição.
O SR. RANDOLFE RODRIGUES (Bloco Socialismo e Democracia/REDE - AP) – Presidente, pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Eunício Oliveira. PMDB - CE) – Os Srs. Senadores e as Srªs Senadoras que o aprovam...Já foram aprovadas.
Na ética habitual do processo legislativo, o Senado havia criado uma "consulta pública" virtual sobre o projeto. A rejeição foi significativa, mas é claro que a opinião pública só é levada em conta se, por acaso, coincide com os interesses particulares dos parlamentares. Neste caso, como no da chamada Reforma Trabalhista (130.501 contra e 5.805 a favor; com menos de 5% a favor, o Senado resolveu fazer uma representação visual igualitária de números tão díspares), a esmagadora maioria foi contrária:


O Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), que é ligado ao Ministério da Justiça, manifestou-se contra o projeto desde 2010. Em 8 de dezembro de 2016, publicou nova declaração, destacando os problemas técnicos do projeto:
[...] o PLS n° 146/2007 apresenta equívocos, como a confusão entre autenticação e autenticidade; a compreensão equivocada da digitalização como alternativa viável de preservação e da assinatura digital/certificado digital como elemento garantidor da autenticidade do documento. A utilização da certificação digital nas cópias digitais é uma aplicação transversal da certificação digital, pois essa foi regulada para os documentos nascidos digitalmente, não transferindo para o documento original nenhuma característica que o torne dispensável na forma que estabelece o PLS 146/2007.
Outro importante aspecto a abordar é que o PLS146/2007 é vago quanto aos documentos produzidos pelas organizações civis, retirando do poder público a sua autoridade em determinar a manutenção de documentos necessários à fiscalização e controle do estado, o que pode gerar também insegurança jurídica não só nas relações entre o estado e as organizações civis como entre elas mesmas.
A ABA (Associação Brasileira de Antropologia, a Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) e a Anpuh (Associação Nacional de História) reuniram-se ao Conarq nesta nota conjunta: http://painelacademico.uol.com.br/painel-academico/8101-associacoes-de-historia-ciencias-sociais-antropologia-e-conarq-se-manifestam-contra-destruicao-de-documentos
Um dos pontos de atenção, segundo as três associações, é o problema de autenticidade dos documentos digitalizados:
O PLS n° 146/2007 propõe a equivalência de documentos digitalizados aos respectivos originais, possibilitando, inclusive, que os originais não destinados à guarda permanente sejam eliminados após o processo de digitalização. A sugestão de que se digitalize um documento e, em seguida, se elimine o original equivale a destruir a garantia de autenticidade das informações registradas, extinguindo por completo a possibilidade de aferir a autenticidade do documento digitalizado, caso se levante a hipótese de alterações indevidas. Além disso, qualquer problema de ordem técnica que atinja as cópias digitalizadas tornará irrecuperáveis as informações constantes nos registros originais caso tenham sido destruídos.
Essas entidades, mais outras, listadas no portal "Queima de arquivo não", formaram um coral de vozes contra o projeto. São elas: Associação Brasileira de Educação em Ciência da Informação (ABECIN), Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), Associação Brasileira dos Pesquisadores em História Econômica (ABPHE), Associação dos Servidores do Arquivo Nacional (ASSAN), Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação (ANCIB), Auditoria Cidadã da Dívida, Executiva Nacional dos Estudantes de Arquivologia (ENEA), Fórum Nacional das Associações de Arquivologia do Brasil (Fnarq), Fundação Pedro Calmon,  Fórum Nacional de Ensino e Pesquisa em Arquivologia (FEPArq), Grupo de Pesquisa CNPq UFSM Ged/A, Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM/RJ), Movimento "Muda Arquivo Nacional', Rede Nacional de Arquivistas das IFES (ARQUIFES), Sindicato dos Servidores de Ciência, Tecnologia, Produção e Inovação em Saúde Pública (Asfoc-SN), Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN).
O prejuízo para a história e para a fé pública cinge-se na facilitação à fraude, o que foi aprovado pelo Senado Federal. Cito Fabiano Menke no Crypto Id: "o controle do procedimento de digitalização não afasta eventuais fraudes praticadas anteriormente ao procedimento de digitalização. Há uma 'vida pregressa' do documento que escapa ao controle de qualquer procedimento de digitalização. Em suma, com a nova regra seria possível que a própria digitalização 'oficial' viesse a tornar autêntico e íntegro um documento que tenha sido produzido mediante fraude."; nenhum país do mundo teria ainda resolvido a aprovar legalmente esse incentivo ao crime, que se dá também ao "atribuir presunção de autoria a um mecanismo que não é o mais confiável para o meio eletrônico, como o nome de usuário e senha".
Com tantos problemas técnicos e jurídicos envolvidos, não é de estranhar que pessoas que ocupam cargos políticos e são destituídos da formação técnica necessária para  o exercício desses cargos tenham apoiado o projeto, como o fez o então diretor do Arquivo Nacional, nomeado no governo de Dilma Rousseff. Tratava-se de um pastor doutorando em ciências da religião, acusado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro de violar a laicidade do Estado por ter dado o uso de templo religioso ao Arquivo. Ele foi exonerado em maio de 2017. Sua nomeação gerou uma nota de repulsa assinada, entre outros, pelo Tortura Nunca Mais-RJ; aparentemente, ele não absorveu bem a saída do cargo: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1690179354344402.
Creio que a aprovação, ao menos em uma das Casas do Congresso Nacional, de algo tão equivocado deveria mesmo ser esperada, porquanto o projeto apresenta duas das características mais usuais da produção legislativa brasileira, que são:

a) Desprezo ao saber científico, seja no modo de atuação legislativa, com o desprezo da opinião científica durante a discussão legislativa, seja no conteúdo, o que pode se dar até por meio do ataque frontal às instituições de ensino e de pesquisa por meio de corte de verbas ou de outras formas de inviabilização institucional (o que foi objeto das recentes marchas pela ciência no Brasil e da campanha "Conhecimento sem cortes"), seja pela criminalização do saber (exemplo recente foi a CPI da Funai e do Incra, que, além de ter criminalizado o movimento indígena, pediu o indiciamento da ABA e de vários antropólogos).
b) O incentivo às atividades criminosas: por exemplo, a legislação fundiária e ambiental tem sido regularmente aprovada para anistiar atos ilícitos. Em sua falta de clareza, essa legislação tem até mesmo gerado efeito de estimular atividades criminosas. Acima de tudo, o desmonte desses campos do direito estimula o agrobanditismo, pois novos crimes são cometidos com a perspectiva de anistias futuras ou com a certeza da falta de atuação das instituições de, digamos, justiça, que estruturalmente não dão conta das questões fundiárias e ambientais. Sem isso, não seríamos o Estado recordista em assassinato de ativistas ambientais e de população indígena.

Vejo nesta reportagem da TVT, de 26 de junho, o professor Charlley Luz explicando que a preservação do documento digital é mais custosa do que a do papel; o projeto, portanto, onera os cofres públicos (ao contrário do que afirmou o autor, Magno Malta), o que talvez corresponda a uma terceira característica usual da produção legislativa brasileira.
Gostaria de acrescentar, embora se trate de um projeto anterior a esta legislatura, mas que foi desarquivado em 2015, que a ideia da queima de arquivo, que será um efeito do projeto, se for aprovado nas duas Casas do Congresso, possivelmente revele que os parlamentares aprenderam algo com a Comissão Nacional da Verdade (CNV): se subsistirem documentos incômodos, listas como a dos 377 autores de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar (lembro do relatório da CNV: http://www.cnv.gov.br/) poderão continuar a ser elaboradas. A negação ao direito à memória redundará na negação à justiça (que já ocorre, por sinal).
Onde se queimam documentos, queimam-se memórias, vítimas, desaparecidos. A política de terra arrasada segue adiante.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Etimologia fantástica: o alemão e o gangstêmer

Continua controvertida a origem da palavra gangstêmer. Etimologistas dividem-se. Alguns remontam a palavra à região litoral paulista,  no milênio passado. Acreditam que ela deriva do verbo temer. Em favor dessa hipótese está o fato, atestado pela literatura política da época (boletins de ocorrência, autos de resistência, necrológios, notas fiscais frias de produtos de luxo etc.), de que esse verbo era o mais comum nas sentenças relativas ao Estado e seus agentes.
Trata-se de um uso linguístico e, como tal, não deve ser objeto de crítica (alguns teóricos denunciaram erro dos falantes, que ignoraram verbos como votar, deliberar, discutir etc.), mas apenas uma realidade a ser constatada.
A segunda hipótese tem recebido mais sufrágios na arena da etimologia. A palavra, um estrangeirismo evidente, veio do alemão. Gang,  substantivo que indica, entre outras possibilidades, "andar", parece a alternativa mais provável. O significado de "prato" no âmbito de uma refeição (por exemplo, uma carne bovina cozida), bem como o de "marcha" de carro corroboram a hipótese.
Trata-se do andar apropriado (de carro, preferencialmente) para gozar de refeições. 
Quantos irão?  Tendo em vista que Gang também significa corredor, e que uma via estreita não admite uma multidão, mas apenas poucos eleitos, sabemos do caráter selecionado dos comensais deste curioso banquete.
Talvez não seja tão simples identificar o segundo radical da palavra. Há quem defenda Teller, o prato em que se comerão todas as iguarias do mencionado banquete. Outros, comovidos pelo caráter sacralizado das práticas indicadas pelo termo gangstêmer (que contavam até mesmo com sacerdotes, pastores para sua execução), veem em Tempel, templo, a possibilidade mais plausível para que entendamos o uso ecumênico (à direita e à esquerda) dessa palavra na cimeira do sistema político, enquanto permanecia rejeitada por mais de noventa por cento da população.  Afinal, poucos falam alemão no Brasil.


quarta-feira, 7 de junho de 2017

Annita Costa Malufe e a crítica poética da teoria do valor

Já escrevi um pouco sobre Annita Costa Malufe neste blogue e em um artigo que publiquei no número 10 da Cão Celeste, de 2017, revista da editora Averno. Ele foi escrito antes da publicação de Um caderno para coisas práticas (Rio de Janeiro: 7Letras, 2016), seu último livro. A obra apresenta assuntos familiares, e uma de suas vozes mais frequentes é a de uma senhora que está perdendo a memória e a autonomia. Outras vozes são os dos que a rodeiam e assistem, especialmente outra mulher, provavelmente a filha, que acaba sendo tratada como desconhecida: “cada vez que/ eu ia lá ela me/ agradecia como/ se eu fosse uma/ desconhecida/ alguém que/ viesse de muito/ longe para uma/ visita de caridade”.
O “caderno de coisas práticas” é um auxílio para alguém cuja consciência vacila: “a memória rasa o esquecimento/ raso lamentar rapidamente/ abrir a janela vezes seguidas/ acompanhar o voo rasante do/ pássaro sem saber o nome/ exato não se lembrar a data/ nem o endereço não saber/ tampouco o dia da volta”; alguém que está a perder as palavras: “não se aproxime/ ela teria ímpetos de dizer mas depois/ a palavra voltava e ficava morta/ mais ou menos na altura do peito”.
O livro assume a forma de um caderno de anotações a várias mãos (pois temos a voz da mulher doente e dos que a acompanham) que registra a dissolução de um eu. Os diversos detalhes biográficos, as internações, os acidentes são contados pela própria mulher doente (“os dias iguais a camada de nicotina eu/ me recuso a entrar a não ser/ acompanhada desta vez”) e por quem assiste à progressiva desorientação:

supercílio aberto só porque
não viu o poste ela já não
devia estar bem foi como
ver alguém indo embora aos
poucos o corpo ir ficando vazio

O estreitamento do horizonte ocorre ao lado da dissolução do corpo: “ela ia lentamente perdendo/ os contornos mais visíveis/ perdia o contorno dos ombros/ dos braços a firmeza dos braços [...] o peito a linha das costelas as/ costas lentamente escorriam/ aderiam à barriga à parte interna/ da coxa se colavam ao chão/ desciam pela cama aderiam/ ao chão sem resistência alguma”. A aderência ao chão decorre da perda do espaço, que passa a se resumir àquilo que o tato pode distinguir na cama:

minha vida toda se resume
a isto um
espaço exíguo
três metros por
dois ou um
pouco menos [...]
talvez tudo se resuma
ao tato
do lençol nas costas

O livro combina inventivamente e sem aviso os discursos direto, indireto e indireto livre. Neste trecho, temos um exemplo do cruzamento das vozes da senhora doente, dos que a acompanham, e um narrador em terceira pessoa: 

se apresse estou ido você
não vê não vejo nada à minha
frente não falo estou envolto
numa nebulosa fria os pés presos
enredados corro mas de que
adianta ela comparou o rosto
não se mexia impassível se
apresse vamos tenho um
rosto de plástico

A mãe, a paciente, vai perdendo a expressão: o "rosto de plástico". Dessensibilizando-se, ela vai-se transformando em uma das coisas. No comovente final, as coisas deixadas, com décadas de idade, vão sendo revistas sob a marca da obsolescência, pois remetem à biografia dos mortos: “cartas de 1918/ para o vovô Heitor como você vai/ jogar fora”, “quem usaria esta saia/ além de uma mulher/ da década de oitenta com/ uns quarenta anos”. As coisas são vendidas (“folhas de bananeira que eram/ do Flávio acho que não podemos/ salvar mais nada as coisas/ se vão também já duraram demais”). Elas “já duraram demais’, pois sobreviveram aos donos. Com isso, porém, elas recuperam o espaço. Em achado brilhante, na última anotação/poema, as coisas voltam à cidade: “o canto da sacada mercado de/ pulgas tardes inteiras na feirinha/ da praça reconhecendo objetos dos/ avós [...]”. Após a dissolução do sujeito, voltam ao mercado. Algumas delas provavelmente nunca serão vendidas, não servem para mais nada:

as gravuras as litografias tudo já
durou demais são
resquícios quem mais
usaria isso

Sem valor de uso, sem valor de troca. Temos aí uma das ironias do título, que se refere às coisas práticas. Se a senhora com a memória declinante precisa anotar o que precisava fazer, a noção do prático, no fim, diz respeito ao que fazer com as coisas inúteis deixadas pelos mortos. Elas não têm mais utilidade prática, mas são perfeitas, porém, para esta poesia, que poderia servir para pensar uma crítica poética da teoria do valor.

sábado, 3 de junho de 2017

"Diplomacia e democracia", e o governo nem uma coisa, nem outra


O Sindicato Nacional dos Servidores do Ministério das Relações Exteriores (Sinditamaraty) divulgou importante documento elaborado não por ele mesmo, e sim por servidores desse Ministério (na maioria, diplomatas), intitulado "Diplomacia e democracia": http://www.diplomaciaedemocracia.com.br/
Não lembro de precedentes para o documento, não só em razão da tradição autoritária dos órgãos de representação exterior, mas da singularidade da atual situação política. Os 158 servidores subscritos (neste momento), diante da instabilidade política nacional, afirmam que defendem "a retomada do diálogo e de consensos mínimos na sociedade brasileira, fundamentais para a superação do impasse"; desejam o "restabelecimento do pacto democrático no país" e o "voto popular".
A BBC Brasil publicou dia 1o. de junho matéria de Ricardo Senra sobre essa declaração, ressaltando que "O número de signatários, que chegou a 180 no início da semana, caiu por medo de represálias dentro do ministério, segundo os entrevistados": http://www.bbc.com/portuguese/brasil-40110901
Ignoro se o documento recebeu aquele título, bem escolhido, em razão de artigo homônimo publicado no ano passado, que se revelou mais um dos múltiplos desacertos do pensamento conservador e dos veículos que o propagandeiam no Brasil, assinado pelo professor Denis Rosenfield: http://noblat.oglobo.globo.com/geral/noticia/2016/07/diplomacia-e-democracia.html
Ao professor parecia que as administrações do PT haviam alinhado o país às "posições socialistas/comunistas do século XX", segundo uma "doutrina bolivariana". O governo de Michel Temer teria rompido com isso, no entanto, pois "Busca o bem da nação, e não o contentamento ideológico de um partido."... O que significaria aquela "doutrina"? A "subversão da democracia por meios democráticos", com o resultado de que as instituições tornam-se "progressivamente desmontadas, destruídas".
Essas linhas, embora constrangedoras em termos de análise política e nulas no campo do pensamento, não deixam de revelar um extraordinário talento de atribuir ao adversário o que seus amigos estão fazendo. O governo Temer tem atacado a democracia e desmontado as instituições, gerando, entre outros resultados nefastos, desprestígio do país.
O governo de Maduro tem reprimido violentamente os protestos na Venezuela. Por sinal, Temer está entre os mais impopulares chefes de governo no mundo, mas continua, segundo a Time, perdendo para Maduro nesse requisito (um eterno vice?), apesar do esforço dos jornais e professores aliados: https://t.co/snGcrNF0Qz. Diante da repressão no Brasil a protestos análogos, especialmente o de 24 de maio em Brasília, quando o governo Temer tentou falsamente atribuir ao deputado federal Rodrigo Maia o pedido do uso das Forças Armadas contra manifestantes, foi lançado o seguinte comunicado de imprensa da ONU no dia 26: "A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e Escritório Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) condenam o uso excessivo da força por parte da Polícia Militar para reprimir protestos e manifestações no Brasil": https://t.co/GVeYoBKf2b.
A resposta do Ministério das Relações Exteriores brasileiro foi publicada naquele mesmo dia, empregando termos excepcionais na linguagem diplomática, entre eles: "beira a má-fé", "fins políticos inconfessáveis", "cinicamente e fora de contexto", e a surpreendente alegação de que "O governo brasileiro atua amparado na Constituição Federal e de acordo com os princípios internacionais de proteção aos direitos humanos": http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/16345-nota-a-imprensa-cidh
O desacerto diplomático foi tremendo. A matéria sobre o assunto publicada por The New York Times destacou que o pronunciamento do governo contra a ONU gerou o estopim da manifestação "Diplomacia e democracia"; https://t.co/2tShhjuaHGl.
O governo é reincidente no assunto. Entre outros exemplos recentes do desastre do governo de Temer e de sua hostilidade aos direitos humanos no campo da política exterior, está recentíssima manifestação de racismo institucional e desrespeito ao Sistema Interamericano, em maio deste ano: "Governo Temer desrespeita indígenas em audiência internacional de direitos humanos": "A audiência pública da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) realizada, na quarta-feira (24), em Buenos Aires, na Argentina, para tratar das violações de direitos sofridas pelos povos indígenas do Brasil foi marcada pela falta de respeito dos representantes do governo do presidente Michel Temer. Eles se limitaram na leitura de documentos burocráticos e “responder” aos indígenas presentes na audiência em espanhol." (http://amazoniareal.com.br/governo-temer-desrespeita-indigenas-em-audiencia-publica-internacional-de-direitos-humanos/).
Também há poucos dias, a tropa de choque do governo tentou evitar, com notável falta de urbanidade com evidente destempero, a discussão no Parlamento do Mersocul sobre a crise política no Brasil, (vejam este pequeno vídeo divulgado pelo deputado federal Jean Wyllys, que integra a oposição: https://twitter.com/jeanwyllys_real/status/869396004201779200). Apesar da violência dessa tropa parlamentar governista, o Parlasur aprovou em 29 de maio declaração expressando "preocupação pela situação institucional no Brasil": https://t.co/RMGMaeR5y4. No artigo 2o., declara-se "Rechaçar a militarização e a repressão violenta às manifestações pacíficas dos movimentos sociais e apoiar os pronunciamentos da CIDH e do Escritório Geral para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos."
Em 31 de maio, foi a vez de o Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa e mais 53 organizações (entre elas, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e a Associação Brasileira de Antropologia) criticarem o governo Temer pelo ataque à ONU: https://t.co/yHqo1M0HHx.
O número expressivo de apoio às eleições diretas (85%, segundo o Datafolha) mostra que o desprestígio interno se aprofunda. As forças antipopulares, evidentemente, não querem essa solução democrática, entre elas, organizações de comunicação que se opuseram à campanha das diretas de 1984 e se mostram opostas à de hoje: https://twitter.com/bslvra/status/869263750372708352.
O absurdo da resposta internacional que o Ministério das Relações Exteriores de Temer, hoje chefiado pelo senador Aloysio Nunes do PSDB-SP, não só no tom como no conteúdo, flagra-se nestes recentíssimos exemplos de "funcionamento normal das instituições":

  • Alteração secreta de dados oficiais: "o servidor do Planalto foi acessado e as agendas antigas manipuladas naquela mesma manhã em que a PF cumpria mandados de prisão e buscas autorizados pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF). Entre os dias nos quais constam alterações no sistema está a exata data desse encontro revelado pelo lobista da JBS." e "As apurações da Lava Jato indicam que a maioria desses encontros de Temer com os executivos da JBS nem tinha registro oficial. O último deles, por exemplo, ocorreu totalmente às escondidas, em 7 de março de 2017, às 22h30, e foi nele que Joesley gravou a conversa na qual relatou sutilmente que estava fazendo pagamentos ao ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), mantendo com ele uma “boa relação”. Após a polêmica, Temer passou a registrar em detalhes sua agenda.", em https://t.co/tcbwtXOfrR.
  • Confissão pelo presidente da república (não podemos esquecer que se trata de um constitucionalista, professor de direito da PUC-SP) de prevaricação, no episódio do encontro clandestino com Joesley Baptista, da JBS: "É Temer quem endossa o diálogo gravado: ''Ele falou que tinha [comprado] dois juízes e um procurador''...." https://t.co/PThMrVdHHh; Temer, ademais, revelou informações privilegiadas para o empresário investigado: https://twitter.com/lauraabcarvalho/status/865556076443222017
  • Aparente desvio de finalidade na formação do Ministério, para conferir foro privilegiado a investigados: https://twitter.com/alessandromolon/status/870791093377433604; ou, talvez, com o fim de defender o próprio chefe de governo: https://twitter.com/FabioSeghese/status/869155543969124352 (sobre o atual Ministro da Justiça, "Entidades de classe como a Associação de Delegados da Polícia Federal enxergam com preocupação a mudança na pasta, com receio de que o novo ministro possa interferir para minar a Operação Lava Jato." em https://t.co/vbYCKS9SAj).
  • Escolha pelos próprios investigados ou réus, como o senador do PSDB-MG Aécio Neves, dos que vão julgá-lo: https://t.co/GSIpxyd1mT, ou, como no caso de Temer, julgamento a ser feito por amigos: https://t.co/utonjgEWFn; e, mesmo assim, continua ocorrendo mais prisões de (ex-)integrantes do governo (https://t.co/yltk3nSVDH).
  • A referência a homicídio tornar-se mera brincadeira na boca das autoridades da República ("tem que ser um que a gente mata ele antes de fazer delação"); certamente um problema de falta de decoro na linguagem.
  • Curiosas inexatidões de numerário no ofício de carregamento de malas por ex-assessor especial do presidente da república (http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-05/defesa-de-loures-entrega-policia-federal-mala-com-r-465-mil).
  • Abertura de inquérito, pelo Procurador-Geral da República (em setembro, se Temer estiver ocupando o mesmo cargo de hoje, ele escolherá o próximo Procurador-Geral), contra Temer por corrupção passiva, organização criminosa e obstrução de justiça.
  • Apresentação de diversos pedidos de impeachment contra Temer; se a oposição o fez, como a Rede do deputado federal Alessandro Molon, deve-se notar que também elaborou o seu o Conselho Federal da OAB, insuspeito de saudades do governo do PT, pois apresentou pedido análogo contra a então presidenta Dilma Rousseff: https://t.co/SPOv65vDHV).
Etc. O jornalista Bolívar Torres escreveu que o grande legado do governo de Temer se dará no plano linguístico. Já seria bastante negativo se o constitucionalista se limitasse à tal influência; no entanto, parece que a permanência deste presidente no poder, além de evitar ser preso, tem como fim principal realizar as "reformas", isto é, desconstituir direitos constitucionais.
Laura Carvalho tratou do tema em sua coluna de 25 de maio, sob o enigmático título "Rouba, mas reforma": https://pbs.twimg.com/media/DAqaVAzXcAAjpyu.jpg.
Como estas reformas representam um saque contra o povo brasileiro, entendo que alguns ainda achem que o atual governo seja o mais apropriado para realizá-las.