O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Ópera e assassinato: "Tosca", de Puccini (30 dias de ópera: Dia 18)

Sem o assassinato, boa parte do universo operístico se desvaneceria. Imagine um Nero que não ordenasse a morte de oponentes e da esposa? Nem pareceria imperador... Se Don Giovanni não matasse o Comendador, quem lhe daria a mão para ele descer ao inferno depois? Como subsistiria a tragédia se Medeia não matasse os filhos e a noiva do marido? Se ela matasse Jasão, a ópera não seria a mesma coisa, poderia até fazer par com Os Palhaços, de Leoncavallo... Aliás, nesta ópera, como se poderia ter certeza de que a comédia acabou se Canio não a tivesse matado junto com a esposa e Silvio?
No século XVIII a tradição do lieto fine, forte no estilo da chamada opera seria, que deveria acabar de forma feliz ou, pelo menos, moralmente exemplar, restringiu as possibilidades de assassinato, embora não as tenha eliminado. Às vezes, isso exigia mudar o final de histórias bem conhecidas. Rossini mudou o final de seu Otello, que estreara em 1816, para as plateias de Roma em 1820. Não em razão de um suposto feminismo avant la lettre, mas porque o público não suportaria um final infeliz. Desdêmona sobreviveu também nas cidades de Veneza (1825) e Ancona (1830). Nunca vi essa ópera ao vivo, e só a tenho em disco com o final trágico, mas leio no Rossini, de Fernando Fraga (um dos Guías Scherzo de compositores), que Otelo acredita na jura de inocência de sua esposa, ambos cantam um dueto que ele reciclou de outra ópera sua, Armida, e vem a notícia de que Iago confessou seus crimes antes de morrer castigado pelo céu!! Os solistas se unem cantando o amor...
Nada de parecido aconteceu com o Otello de Verdi.
Inúmeros exemplos, apesar das limitações do público. Quase escolhi o feminicídio em Wozzeck, seja o de Alban Berg, mais famoso, seja o de Gurlitt, mas preferi outra ópera, talvez mais indicada, porque nela ocorrem torturas, tentativa de estupro, execução (extrajudicial) e suicídio, e o ponto mais forte talvez seja a cena do apunhalamento.
Isto é, a Tosca, de Puccini, que estreou em 1900. A origem é uma peça de Sardou que nunca vi ou li, e que parece ter realmente ficado esquecida. A história se passa em roma durante as Guerras Napoleônicas. Os revolucionários republicanos querem se aproveitar do momento político favorável. Angelotti, um deles, foge da polícia, entra na igreja, pede refúgio a seu colega, o pintor Mario Cavaradossi. Ele tem que se esconder logo, pois sua namorada, a cantora Floria Tosca, que é muito ciumenta, conta tudo para o padre na confissão.
O chefe da polícia, o Scarpia, chega lá com seus agentes, que descobrem as pistas de que Angelotti (que não tomava boas precauções de segurança) esteve lá e decide interrogar Cavaradossi e usar o ciúme de Tosca em seu favor. Ele quer levar o pintor ao cabresto, a cantora, que ele deseja, a seus próprios braços. No segundo ato, ele manda interrogar Cavaradossi com tortura e faz Tosca escutar os gritos (vídeo com Montserrat Caballé, José Carreras como Cavaradossi e Ingmar Wixell interpretando Scarpia, coma  regência de Colin Davis). Ela não aguenta a tortura psicológica e revela onde Angelotti se esconde. O supliciado é liberado um momento, Scarpia, sempre cruel, revela que Tosca delatou, mas não há tempo para uma crise do casal: com a notícia repentina (é Puccini, tudo muda muito rápido) de que as tropas napoleônicas venceram, o doido do tenor canta "vitória" (nesta produção, o público aplaude Giacomo Aragall neste ponto; Eva Marton interpreta Tosca, e Scarpia continua com Wixell) e desafia Scarpia, que manda seus capangas o encaminharem para execução. Agora, a vida dele é o preço que ele cobrará de Tosca; dizem que ele é corrupto, mas de mulheres belas ele quer outro preço. Mas não lhe fará violência, quer que ela se oferte a ele... Não adianta sair e recorrer à Rainha, ele já estará morto quando chegar o perdão... Ela reza, dizendo que viveu da arte, viveu do amor, por que Deus a recompensa assim? Ela acaba cedendo, ele dá ordens de que façam uma execução "simulada" como no caso de Palmieri. Ficam a sós, ela exige um salvo-conduto antes para deixar a cidade, vê uma faca na mesa, ela o apunhala e mata: "Este é o beijo de Tosca!"; "Morto por uma mulher!"; "Morreu; agora, o perdoo."; "E diante dele tremia toda Roma" são algumas das frases que ela grita, canta, murmura, fala, de acordo com o talante das intérpretes.
Puccini faz realmente o público torcer pela heroína, que consegue matar seu algoz. Eva Marton, na Arena de Verona, chama Scarpia para si antes de apunhalá-lo, é divertido. Ela é maior do que ele (no tamanho e na voz, deve-se notar), o assassinato é bem verossímil; depois, fica horrorizada com o que fez. Maria Callas, em Paris, no concerto de 1958, tem uma sacada genial, que Sérgio Britto gostava de destacar: ela debocha de Scarpia, depois de tirar o salvo-conduto das mãos do corpo na última frase. Roma tremia diante dele, mas agora ela o matou...
Pena que, no final, não dá certo: a execução acaba acontecendo de verdade (Scarpia a tinha enganado), descobrem que ela o matou e ela acaba se suicidando para não ser presa, não sem antes convocar o policial para o julgamento divino!
Joseph Kerman, em A ópera como drama, escreveu um ensaio maldoso sobre essa ópera, comparando-a com um filme de serra elétrica. Ele mesmo reconhece que deixou de lado a grande metalinguagem desta obra; outro ponto de que ele não se dá conta é o de que a violência que ocorre não é gratuita, ou não tem o fim de apenas chocar: ela encena determinado regime político com exatidão. A ópera já se inicia com o motivo musical de Scarpia, isto é, do Estado.
Scarpia reúne em si diferentes autoridades: a que prende, a que acusa, a que condena, a que executa. No Brasil, quem sabe chegaria a ministro da justiça? Uma situação bem Antigo Regime, com toda essa concentração de poderes, incompatível com o Estado de direito, que é incompatível também com a atuação do juiz como chefe da acusação, conforme as reportagens da Vaza Jato. Vejam aqui o sumário que The Intercept fez, uma novela sobre o fim da democracia no país: https://theintercept.com/2020/01/20/linha-do-tempo-vaza-jato/
Um dos elementos interessantes de Tosca é mostrar como esse poder tirânico está imbrincado com a religião. O primeiro ato se passa na Igreja, a ária de Tosca, uma personagem católica, é uma oração, no começo do interrogatório de Cavaradossi ela está a executar uma cantata religiosa. No fim do primeiro ato, Scarpia combina sua ode à tortura e à lascívia com um Te Deum. A destruição teocrática dos direitos dos povos indígenas e das políticas para as mulheres pela ministra Damares Alves, ou a indicação do presidente criacionista da Capes, resultado da aliança entre os empresários do ensino privado com as igrejas cristãs não são simples diversionismos, mas elementos fulcrais deste novo velho autoritarismo.
Que tenhamos algo do gênio musical e dramático de Maria Callas para lidar com isso: https://www.youtube.com/watch?v=D7akvJ5_Kyg


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Ópera e desastre: "Idomeneo", de Mozart; "Peter Grimes", de Britten (30 dias de ópera: Dia 17)

Desastres... Já vi o sustentáculo do fio que erguia o tenor cair durante uma apresentação de Don Quixotte chez la Duchesse, de Boismortier, no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro. O metal dobrou-se e arranhou um pouco, pelo que me pareceu, o cravo tocado por Marcelo Fagerlande, que também regia a apresentação. Mas os artistas, que, felizmente, não se machucaram, conseguiram encerrar o espetáculo, já perto do final.
Já vi também desastres musicais e/ou cênicos, que prefiro não relatar. Para este dia, seguindo a onda do tópico de ópera e natureza, pensei em desastres ligados ao mar: naufrágios, afogamentos.
A história do Idomeneo, de Mozart, que nunca consegui ver ao vivo, trata de um desastre evitado, que, no entanto, gera outros: o navio do rei de Creta, Idomeneo, está ameaçado de naufragar-se. O soberano promete oferecer em sacrifício ao deus Netuno o primeiro ser humano que ele vir ao chegar ao reino, se for salvo. Corre tudo bem, mas ele o primeiro homem que ele avista é o próprio filho, Idamante, que ele demora a reconhecer, pois, quando havia partido, o príncipe ainda era criança. Horrorizado, ele o trata friamente nesse reencontro, para o espanto e a decepção do príncipe, que não entende o que está ocorrendo, pois o pai esconde a promessa: "Il padre adorato".
O custo de evitar o desastre equivale a um maior: o sacrifício do próprio filho e herdeiro do trono. Netuno cobra o sacrifício enviando uma tempestade e um monstro. Idamante parte ao encontro do monstro de Netuno, em um dos quartetos mais impressionantes da história do gênero operístico. Idomeneo acusa Netuno e deseja matar-se, Elettra e Ilia (princesa troiana, filha do derrotado rei Príamo), que rivalizam pelo amor do príncipe, também se inquietam, e o quarteto encerra-se da mesma forma como iniciou, com uma frase solo de Idamante, "Andrò ramingo e solo": https://www.youtube.com/watch?v=hDQVV30C8sI. Esta era a parte preferida pelo próprio compositor, e que podia fazê-lo chorar.
Vejam que o filho é interpretado por uma mulher, pois o primeiro Idamente foi um cantor castrado (mau ator, sem experiência cênica e com voz desigual, segundo Mozart conta nas cartas). Quando ele reviu a ópera em 1786, ele passou o papel para a voz de tenor, talvez por não haver castrati disponíveis na ocasião. Aqui, o excelente Jerry Hadley canta Idamante; o quarteto passa a contar com dois tenores e dois sopranos, em vez de três cantoras e um cantor, e a sonoridade muda; eu prefiro assim: https://youtu.be/zBJaJ_SH_So?t=600
Idamante, sozinho, vence e mata o monstro: https://youtu.be/Ba9K_T5ivTQ?t=7845 Em termos de façanhas heroicas, não dá para comparar este príncipe com Tamino, que começa A flauta mágica correndo de uma cobra e pedindo socorro...  Porém, sabendo finalmente da promessa feita pelo pai, aceita ser sacrificado a Netuno.
Ilia irrompe na cena, impede o golpe fatal e exige ser morta no lugar dele: https://youtu.be/Ba9K_T5ivTQ?t=8279 Subitamente, uma voz se faz ouvir com a mensagem de Netuno: "o amor venceu"; vendo a dedicação dos dois jovens, ele resolve trocar o sacrifício pela renúncia de Idomeneo em favor do filho. Elettra, porém, entra em surto ao ver-se preterida, e decide descer aos Infernos onde estaria a sombra do irmão, Orestes. Nesta ária, "D'Oreste, d'Aiace" que continua a ser uma das mais dramáticas já escritas, a coloratura culmina em uma risada de loucura: https://youtu.be/Ba9K_T5ivTQ?t=8499
Já li que o drama da princesa grega, em sua paixão não correspondida, passa ao largo da ação principal. Discordo totalmente. Ela é o inverso do rei e, com isso, reforça a ação final dele. Ao contrário de Idomeneo, ela não quis renunciar, por isso fracassa e desaparece. O que teria sido o resultado do naufrágio, o coroamento de Idamante, acaba ocorrendo, o rei deixa o trono tranquilo, cantando "Torna la pace al core". A ária, infelizmente, foi cortada na estreia, depois de longa gestação (o tenor Anton Raaf, criador do papel, fez uma série de exigências), pois a ópera estava demasiadamente longa. Até hoje ela costuma ser cortada (na revisão, ela foi um dos números suprimidos). Pode-se ouvi-la com o grande Nicolai Gedda ao vivo, cantando uma só estrofe em apresentação regida por Colin Davis, e Anthony Rolfe Johnson em estúdio, cantando-a sem cortes sob a regência de John Eliot Gardiner.
A ópera acaba tendo a renúncia, senão como tema, ao menos como solução. O apego ao poder seguramente é uma das fontes de desastre.

Outra história com o mar ao centro, embora sem Netuno, é a de Peter Grimes, ópera do compositor Benjamin Britten e do libretista Montagu Slater, encenada pela primeira vez em 1945. Ele reuniu quatro dos seis interlúdios da ópera como os "Sea Interludes", mas nunca cheguei a ver ao vivo a ópera (a primeira desse autor) ou essa peça instrumental. Tampouco li o poema de George Crabbe em que a ópera se baseou, The Borough.
Pelo que sei, no entanto, a ópera se afasta do poema. Britten e Peter Pears, o criador de Grimes e companheiro do compositor (foram provavelmente o casal mais importante da ópera do século XX), retiraram as referência a uma possível homossexualidade de Grimes, e preferiram focar no conflito entre o indivíduo não compreendido e as massas. Leio no ensaio de Stephen Arthur Allen no The Cambridge Companion to Benjamin Britten,  "'He descended into Hell': Peter Grimes, Ellen Orford and salvation denied", que o compositor só começou a escrever a música depois que Slater retirou as alusões a sadismo e homossexualidade e criou a relação entre Grimes e Ellen Orford, que não aparecem juntos no poema de Crabbe.
Dessa forma, o desastre assumiu o protagonismo da ópera. Um jovem aprendiz de pescador, que trabalhava com Grimes, morre de frio em alto mar depois que o vento os desviou da rota. Ele é acusado da morte, mas o juiz acaba decidindo que a morte foi um acidente. Ele fica, porém, marcado. Outro jovem aprendiz passa a trabalhar com ele. Nesta súbita entrada de Grimes durante a tempestade, ouvimos um canto hipnótico, quase como se o pescador estivesse em transe, um momento de suspensão  do destino: https://youtu.be/3MyBUetbE38?t=2655.
Nesse filme, temos o criador do papel, o tenor Peter Pears, cantando "Now the Great Bear and Pleaides" (para ouvi-lo com outro tipo de voz, um tenor dramático, que também é adequado para o papel, eis Jon Vickers: https://www.youtube.com/watch?v=swi4m9wQa4g). Ele indaga: "Who can turn skies back and begin again?"
Ninguém. O que aconteceu está consumado.
Logo o tumulto retorna, chega o novo aprendiz com Ellen e é levado por Grimes para casa (debaixo do escárnio dos outros) durante a tormenta. O que aconteceu não pode ser desfeito e poderá ocorrer novamente. Com efeito, o novo aprendiz, que não é exatamente bem tratado por Grimes, morre caindo do penhasco quando, por ordem do pescador, que acha que estão vindo buscar o rapaz, tenta se esconder de um grupo, instigado pelo vigário e pelo magistrado, que vem investigar a cabana. Grimes tenta resgatá-lo, o grupo acaba entrando e não encontra ninguém.
O barco de Grimes é visto, porém não há sinal dele nem do aprendiz, salvo por um pulôver dele trazido pela maré. A população resolve caçar o pescador. Grimes, delirante, é encontrado por Ellen e pelo capitão Balstrode; ele determina que o pescador naufrague no mar revolto, pois não escapará de uma condenação pelo novo acidente; de novo o filme com Peter Pears no papel-título, Heather Harper como Ellen e Bryan Drake como Blastrode; Britten rege a London Symphony: https://www.youtube.com/watch?v=rCVNAYikjbE.
Aqui, o delírio do personagem, enquanto se ouve o coro procurando-o, na coreografia da loucura e na voz de tenor dramático de Jon Vickers: https://www.youtube.com/watch?v=OWT0jsCbl28

Na correspondência de Mozart, há várias referências à composição de Idomeneo do fim de 1780 ao início de 1781, quando a ópera estreou. Na carta de 18 de novembro de 1780 de seu pai, Leopold Mozart comenta que lhe fizeram em Munique esta objeção em relação ao momento no primeiro ato em que Idomeneo e seus seguidores descem do navio: "a tempestade e o mar não seguem nenhuma etiqueta". Leopold, na carta, comenta que a crítica à história seria correta se o barco tivesse realmente naufragado...
De fato, o desastre não conhece protocolo, o que explica que, nas duas obras, tão afastadas no tempo e no estilo, personagens se avizinhem da loucura, o abalo da razão.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
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Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
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Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
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Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
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quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Ópera e natureza: "Lohengrin" de Sciarrino (30 dias de ópera: Dia 16)

Não tinha ideia do que escolher para este dia: o tópico ópera e natureza poderia significar uma obra com personagens que fossem animais não humanos, como A raposinha esperta, de Janacek (ou a Platée, de Rameau)? Ou bastaria que os personagens louvassem a natureza, como o Fausto com seu famoso solo "Nature immense" em A danação de Fausto de Berlioz? Ou o Xerxes (Serse) de Händel, que traz logo no início uma ária de admiração por uma árvore, cantada pelo próprio imperador persa, a célebre "Ombra mai fu"?
Deveria privilegiar a natureza íntima, como na confissão da vestal Julia em La Vestale, de Spontini, de que se apaixonou apesar dos votos de castidade: "basta uma lei para vencer a natureza?"; ou, em comparação entre o íntimo e o ambiente, deveria escolher uma agitação de sentimentos que rivaliza com a dos elementos, caso do Idomeneo de Mozart na sua célebre ária, "Fuor del mar", em que o mar dentro do peito é mais funesto do que o da natureza?
Poderia também comentar a pretensão de que certas escalas musicais seriam naturais, e que, portanto, certas escritas feririam a própria arte musical, de acordo com a crítica reacionária a obras como Wozzeck de Alban Berg?
Ou pensar a respeito da brilhante noção de que o canto operístico não seria natural, ao contrário daquelas formas de emissão vocal que dependem de microfone e de afinadores eletrônicos (estas coisas que nascem nas cascas de árvores, como os líquens) para conseguirem ser ouvidas e na nota correta?? Ou, melhor ainda, que necessitam de uma gravação prévia para uma apresentação "ao vivo", que não passará de dublagem de alguma própria voz alheia?
Tendo em mente essas diversas possibilidades, que estão muito longe de esgotar este tópico, cheguei a pensar no São Francisco de Assis de Messiaen, ópera em que os pássaros de Messiaen (que, como se sabe, gravava e transcrevia o canto desses animais) estão bem abrigados, tendo em vista a biografia do santo católico que ele escolheu para retratar em música. Porém, no segundo ato, comenta-se que os pássaros se calam para ouvir seu sermão.
Gosto bastante dessa ópera, que jamais vi (conseguirei um dia? não convém desesperar), mesmo ela tendo um tempo dramático que faz o Parsifal do Wagner, que é também longa, parecer um thriller. Mas não a achei muito respeitosa com os pássaros, ao contrário desta ópera de Wagner, em que o protagonista mata um deles no primeiro ato para ser repreendido logo em seguida: entre os cavaleiros do Graal, os animais são sagrados, não podem ser abatidos. O compositor, por influência de Nietzsche, já havia adotado o vegetarianismo e o defendeu em sua última ópera.
Nesse momento, a orquestra toca um Leitmotif do Lohengrin do mesmo compositor, ópera escrita décadas antes (e recentemente enxovalhada pelo atual governo federal brasileiro, de políticas nazistas), que retrata a história do filho do Parsifal. Lohengrin chega em cena levado por um cisne que, na verdade, é o irmão da jovem que ele veio defender. Ortrud, a feiticeira, fez com que ele perdesse a forma humana.
A curiosa história, que vem dos mitos germânicos, conta um caso de amor infeliz: Elsa é salva por Lohengrin, o nobre desconhecido, que faz a noiva jurar que não poderia perguntar-lhe o nome. Por instigação de Ortrud, ela lhe dirige a indagação na noite de núpcias (depois da famosa Marcha nupcial) e, entre outros incidentes, ele acaba por revelar publicamente o próprio nome e ir embora (os cavaleiros do Graal precisavam ocultar sua identidade para manter sua proteção).
Laforgue, nas Moralidades lendárias, escreveu um "Lohengrin, filho de Parsifal", de 1887, que configura uma sátira dessa história. E é este Laforgue que serviu de inspiração para outra ópera, o Lohengrin de Salvatore Sciarrino, obra escrita entre 1982 e 1984. O próprio compositor elaborou o libreto. Ela já foi montada em São Paulo durante o Festival Música Nova em 2008, mas não pude vê-la; segundo a crítica de Arthur Nestrovski, a apresentação valeu por todo o Festival.
A obra tem uma duração inferior a uma hora e emprega instrumentistas e recursos eletroacústicos. Uma só cantora interpreta, grita, sussurra as linhas de Lohengrin, Elsa (uma Vestal) e do Grande Sacerdote. A emissão vocal é muito diferente do canto operístico italiano até a primeira metade do século XX; veja-se, por exemplo, nos chamados a Elsa sussurrados, salivados e tossidos na cena III. Tais sonoridades precisam de amplificação.
Lohengrin não quer consumar o casamento com Elsa. Ela insiste, mas ele reclama que os quadris dela são magros. O travesseiro, branco, converte-se em um cisne (Sciarrino, claro, segue o argumento de Laforgue, muito diferente do de Wagner) e o noivo vai embora.
Não há linearidade na exposição dos fatos: depois de partir, temos a terceira cena, em que Elsa espera pelo cavaleiro, como em Laforgue pede um espelho enquanto espera, e Lohengrin chega cavalgando um cisne. Tanto em Wagner quanto na história do poeta francês esses acontecimentos são anteriores à noite nupcial e à partida do cavaleiro do Graal. Sciarrino inverte-os, o que pode sugerir uma recordação, ou um pesadelo recorrente. Ouvimos então o canto do cisne, entoado por vozes masculinas, e, no epílogo, revela-se que Elsa está em um hospital. Nesse momento final, ela canta algo como uma tranquila canção, "Campagne delle belle domeniche", que sinto que acaba soando, em contraste com os tumultos em voz alta ou murmurados de antes, como a confirmação da loucura da personagem.
Em Laforgue, a história tem um clima de alucinação. Com Sciarrino, trata-se de uma "ação cênica invisível" que se passa na mente de Elsa. Carlo Carratelli (na tese "L’integrazione dell’estesico nel poietico nella poetica musicale post-strutturalista. Il caso di Salvatore Sciarrino, una “composizione dell’ascolto”") compara este Lohengrin a Erwartung, de Schönberg, outro exemplo de monodrama com uma mulher provavelmente enlouquecida, e ressalta como este final no hospital, bem como a inversão dos acontecimentos, aumenta a ambiguidade da história. Nesses dois aspectos, Sciarrino afasta-se de Laforgue e cria seu próprio mundo, ainda mais alucinado.
Para esta minha pequena nota, interessa o que o cisne veio fazer ali. Na ópera de Wagner, a forma de animal é um efeito da magia pagã e, no final, a forma humana é restaurada com o triunfo do cristianismo. O paganismo é derrotado, e a natureza também?
Em Sciarrino, o cisne aparece como alucinação-metamorfose do travesseiro que permite a fuga do noivo, quando ele rejeita Elsa. Na terceira cena, com a anunciação do aparecimento de Lohengrin (nada disso é para ser figurado em cena, segundo o compositor), ouve-se o canto não do cavaleiro, mas de um personagem que não canta na ópera de Wagner em momento algum: o cisne, em que o cavaleiro está montado.
O desconcertante canto, cujo exemplo sonoro indiquei acima, é entoado por vozes masculinas, com uma única linha "Vuoi tu vestirti del mio Essere smarrito?" ("Você quer se vestir do meu Ser desaparecido?"). Em seguida, ocorre o epílogo, com a transformação do local em instituição hospitalar.
Todos os outros personagens eram entoados por uma única voz, a da cantora, e a deste outro ser vivo é representada por um trio de vozes masculinas, ressaltando na sonoridade a diferença desta fala, que transporta a ação para fora do cenário da alucinação, se considerarmos que a internação hospitalar é o local "real" desta Elsa.
Para mim, nesta intervenção do único personagem animal não humano, que se revela uma voz coletiva, metamorfoseia o cenário e revela a loucura do humano, poderíamos ver uma alegoria da natureza no Antropoceno. A loucura do Antropoceno em querer fazer desaparecer os outros seres e pretender que se possa, mesmo assim, dormir tranquilamente, que se possa repousar a cabeça sobre tanta extinção.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
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sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Um silêncio favorito: "Moisés e Arão", de Schönberg (30 dias de ópera: Dia 15)

A pausa é um dos elementos constitutivos da música. Alguns escreveram peças somente com pausas, como Schulhoff, mas se trata de casos extremos em que a arte se transforma em outra coisa. Uma ópera cuja música só tivesse pausas seria outra forma de teatro, e não ópera.
No entanto, as pausas podem ter um papel cênico muito importante na ópera. Em La Traviata, de Verdi, depois de um longo dueto com o pai de seu amado, Violetta resolve deixar Alfredo e aceitar o convite para a festa de Flora. A música se acalma. Violetta chama sua criada, Annina, para que leve a resposta para Flora; ela não entende o que está ocorrendo, e a patroa lhe diz, "Silenzio!", e que parta. Pausa. Violetta resolve então fazer o mais difícil, escrever para o próprio Alfredo. Ela será flagrada nessa operação por ele.
Eu vi em São Paulo esta produção com o mesmo soprano, a argentina Jaquelina Livieri, cantando Violetta; ela faz uma boa pausa (o maestro tem que esperar a cantora nessa parte) antes de ter a coragem de escrever o bilhete. Com apenas o áudio, pode-se apreciar como Callas, em Londres, faz sua voz vir do silêncio: https://youtu.be/94bAH4Pdm10?t=844
Em Wagner, esse tipo de pausa dramática pode representar o suspense. O falecido escritor Victor Giudice, em um curso que deu sobre o compositor e a que eu assisti, chamou a atenção para o uso do silêncio nesta passagem. No Lohengrin, há pouco enxovalhado pelo vídeo com plágio de Goebbels feito pela secretaria especial  de cultura do governo Bolsonaro, o silêncio antecede a chegada do protagonista. A nobre e herdeira Elsa é falsamente acusada por um nobre que deseja ficar com suas terras, Telramund, de ter matado o próprio irmão. Ele a acusa publicamente e ela pede um combatente para lutar por ela no "julgamento divino", ou seja, um duelo. O arauto chama: https://youtu.be/iTdQEszNrvY?t=1598
Ninguém responde. Elsa pondera que o cavaleiro pode estar longe e não ter ouvido, ele é chamado novamente: https://youtu.be/iTdQEszNrvY?t=1856
O coro comenta que Deus julga com o silêncio. No entanto, Elsa, com o coro feminino, faz um apelo a seu Deus. O cavaleiro finalmente vem, com um cisne. Daí segue a história de vitória do cristianismo sobre o paganismo.

Outra coisa é criar uma ópera sobre a incomunicabilidade e que se encaminha em direção ao silêncio. Esse é o caso, penso, de Moisés e Arão (Moses und Aron), de Arnold Schönberg, que nunca tive a felicidade de ver ao vivo, ao contrário da Traviata e do Lohengrin.
O judeu e modernista Schönberg, que teve de deixar a Europa para fugir da barbárie nazista, que proibiu suas obras, compôs a ópera entre 1930 e 1932, já em sua fase dodecafônica, antes do exílio nos Estados Unidos, em reação ao antissemitismo na Alemanha. Ela somente estreou depois de sua morte, em 1954.
Moisés, uma voz grave masculina, se expressa em Sprechgesang; ele fala, porém tem algumas notas com a altura determinada. Arão, papel de tenor, canta - é a mensagem deste, portanto, que é entendida, não a de Moisés. O Coro tem que fazer ambas as coisas.
A necessidade de uma imagem do Deus - que culmina no episódio do bezerro de ouro - é apresentada já no modo de produção vocal, e o canto, como forma de representação, é assim criticado. Porém, de que forma poderia se fazer teatro, ópera, dessa forma, rejeitando a possibilidade de representar? Apenas por um fracasso que, neste caso, traduz-se no silêncio final após a exclamação, "Palavra, tu, palavra, que me faltas".
Esta montagem genial de Willi Decker, de 2009, com o barítono Dale Duesing e o tenor Andreas Conrad e o regente Michael Boder, faz Moisés descer da plateia, dividida em dois lados, um de frente para o outro, espelhada: https://www.youtube.com/watch?v=t0HPN8830Ls&t=5116s. As plataformas sob a plateia se movem, abrindo o palco. Os cantores estão com microfones, provavelmente para a gravação do DVD. Moisés diz que Deus é irrepresentável, mas Arão desenha a estrela de Davi no chão com o bastão de Moisés: https://youtu.be/t0HPN8830Ls?t=653
O povo recebe folhas em branco e se revolta: https://youtu.be/t0HPN8830Ls?t=1505 Moisés se queixa de que suas forças estão no fim. Arão discursa e o povo entende.
O coro canta que finalmente eles serão livres: https://youtu.be/t0HPN8830Ls?t=2722. Partirão para a Terra Prometida. Mas, no começo do segundo ato, uma vez que Moisés ainda não voltou com as Tábuas da Lei, o povo pergunta "Onde está Moisés? Onde está o líder?": https://www.youtube.com/watch?v=t0HPN8830Ls&t=1020s
É interessante a solução que encontram para a aparição do Bezerro; primeiro, projetado: https://youtu.be/t0HPN8830Ls?t=3657; depois, em três dimensões: https://youtu.be/t0HPN8830Ls?t=3788
Arão escreve "Deus" (Gott) no Bezerro: https://youtu.be/t0HPN8830Ls?t=4603. O povo passa a escrever na estátua palavras como Macht (poder), Liebe (amor), Mut (coragem), Gnade (piedade) e no chão. Depois do sono, as virgens se desnudam, começam a orgia e os sacrifícios humanos. Schönberg cria frases líricas no meio da orgia. Por sinal, que artistas, os do ChorWerk Ruhr! A música é dificílima e eles ainda atuam muito bem!
Moisés chega carregando as tábuas da lei. Vendo o que ocorreu, pergunta a Arão: "O que você fez?". Segue a discussão final entre os irmãos, que termina com a frase de Moisés: "O Wort, du Wort, das mir fehlt". É lindo demais.
Adorno, em Quasi una fantasia (cito a tradução de Eduardo Rocha publicada pela Unesp), comenta sobre esta passagem:
A contradição insolúvel que Schoenberg tomou como mote de seu projeto e é confirmada por toda a tradição do trágico é também a contradição da própria obra. Schoenberg sentiu-se como corajoso e e elaborou o personagem de Moisés a partir de si mesmo, chegando ao limiar da autoconsciência de sua própria audácia, da impossibilidade de construir o todo estético, cuja existência depende de um teor metafísico absoluto, sem que pudesse, ao mesmo tempo, se satisfazer com menos. De modo geral,as obras de arte significativas são aquelas que ambicionam um extremo: as que se destroem no caminho e cujas fraturas permanecem como cifras da verdade suprema que não conseguiram nomear.
Essa destruição corresponde ao silêncio e ele é a meta a que se destina essa obra, e não um simples momento dramático. Schönberg escreveu um terceiro ato com o julgamento e a morte de Arão, mas nunca o musicou. Creio que isso foi feliz, pois a ópera parece realmente não poder passar daquele ponto em que o verbo falta. Penso também que, por mais que o compositor pudesse se identificar com Moisés em alguns pontos, como a difícil recepção de sua música, ou da nova "lei" que trouxe com o método dodecafônico, ou no desabafo de Moisés de ter fracassado, de só ter logrado realizar mais uma representação, penso que esta ópera, esta magistral imagem, está do lado do Arão.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

O tópico dos "5 fatos literários sobre mim"

Ficou ontem em primeiro lugar nas discussões do twitter no Brasil o tópico #5FatosLiteráriosSobreMim, e as mensagens continuam acontecendo. Não consegui ainda entender como ele começou. É interessante que ele tenha ganhado adesão, apesar dos baixos números da leitura e do letramento no Brasil.
Pessoas físicas como eu responderam, mas também jurídicas, como O Estado de S.Paulo, que destacou os grandes escritores brasileiros que trabalharam para o jornal no passado: Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e, hoje,  Luis Fernando Verissimo, Ignácio de Loyola Brandão e Mario Vargas Llosa. O jornal mencionou a notícia recente, nele publicada, de poema inédito de João Cabral de Melo Neto.
Entre pessoas físicas não como eu, políticos, vi Lula (claro que do atual ocupante da presidência nada veio sobre artes, exceto insultos a filme que não viu), que menciona livros que leu na prisão e revela que a biografia dele está prevista para ser lançada neste ano por Fernando Morais. Como autor, lembra de seu livro, A verdade vencerá, publicado pela Boitempo.
De escritores, vi a lista do jovem professor Luiz Guilherme Barbosa, que menciona suas visitas a Antonio Candido, a importância de certo romance de Machado de Assis para sua vida, suas publicações sobre ensinar literatura, sua coleção de poesia e o aprendizado de falar em público.
Achei tudo isso tão simpático que faço minha tentativa, também em parágrafos curtos:

Como leitor: Não vou mencionar o primeiro livro que li, escolha que a maior parte das pessoas parece ter feito. O assunto foi um dos tópicos do "30 livros em um mês", uma "blogagem" de que vários participaram em 2011. Lá estão Hilda Hilst, Apuleio, Fernando Pessoa, Dante, Virgilio Piñera, Stravinsky, Cecília Meireles... Mais genericamente, posso dizer que um dos autores mais importantes para mim continua a ser Machado de Assis. Estou sempre (re)lendo crônicas, um imenso universo que a todo momento se amplia, em razão de ainda estarem sendo descobertos textos para jornal ainda inéditos em livro. Uma vez, dei um curso sobre a formação social brasileira em que, para todas as aulas, pude designar um conto desse autor para uma atividade com os alunos. Há uma dolorosa atualidade da matéria dessa literatura: parece-me que não resolvemos os problemas que Machado identificava no fim do século XIX e no início do XX. Escrevi a partir dele este pequeno artigo sobre bacharelismo.

Como autor: Escrevo uns livros desde 2002, três deles em 2019, incluindo meu primeiro romance, Gravata lavada, e meu único livro que teve de nascer como blogue, O desvio das gentes, no gênero poesia, ambos pela editora Patuá. Apesar da diferença de gênero, ambos têm em comum a questão da transexualidade (que é central no romance, pois o protagonista é um homem trans) e o neoliberalismo (tema fulcral das duas obras).

Como tradutor: Entre outras coisas, já selecionei e traduzi poemas de Federico García Lorca para o público infantil, Meu coração é tua casa.

Como organizador: Organizei a única antologia no Brasil, até hoje, da poesia do maior de todos, Alberto Pimenta: A encomenda do silêncio, de 2004. Recentemente, dei uma aula sobre ela na Unicamp em um curso de Eduardo Sterzi sobre poesia portuguesa.

Como editor: Só trabalhei como editor, anos atrás, em uma revista acadêmica de teoria do direito. Além de publicar Heine e Alberto Pimenta (com um texto teórico), pude entrevistar um dos maiores poetas da América Latina, Julián Axat (que é também jurista): "A desobediência biopoética e o direito de resistência". Cito um trecho:
La desobediencia-biopoética, implica lograr un tipo de acción resistente: incidir y contrarrestar el gobierno del residuo-excedencia de las masas marginales en vertederos, por medio de actores que alcanzan a ocupar espacios de poder estatal que a la vez que intentan democratizar al máximo el sistema policial-penal-militar, ingenian políticas sociales populares para devolver espacios de “civilidad” y “vida”, que dotan de herramientas para la recomposición comunitarias, ajenas a las formas típicas del clientelismo político o la reproducción de la desigualdad de clase [...]
Quem ainda não o conhece (sei que a poesia contemporânea argentina não é exatamente a literatura mais divulgada no Brasil), escrevi algumas coisas sobre Axat (por exemplo, sobre poesia e genocídio), traduzi outras (neste blogue, claro, mas também alhures) e ele mantém um blogue bem ativo com seus textos e notícias de suas atividades, El niño rizoma.

domingo, 12 de janeiro de 2020

Um coro favorito: "Danças Polovitsianas", do "Príncipe Igor", de Borodin (30 dias de Ópera: Dia 14)

Já cantei no coro em produções da Carmen, d'A flauta mágica e de La Bohème, pela Associação Coral da Cidade de São Paulo. Pensei em escolher alguma passagem dessas óperas (o que seria estranho para a ópera de Puccini, por sinal). Pensei, no entanto, que isso seria injusto com a tradição da ópera russa e e seus coros.
A ópera surge na Rússia no século XIX e se logo se configura, como em boa parte da música romântica, em uma questão nacional. No século XX, com a censura soviética, ocorreria algo semelhante, e a submissão da ópera à ideologia e à estética impostas pelo Estado constrangeria compositores como Chostakovich e Prokofiev.
No século XIX, muitas vezes o povo é o coro, que aparece, em geral, para legitimar o tirano. É o caso de Uma vida pelo Czar, de Glinka, que tinha como título original "Ivan Susanin", mencionada por Hobsbawm (que não conhecia muito o gênero) em A era das revoluções como uma das óperas que foi expressão dos nacionalismos daquele século.
Boris Godunov, de Mussorgsky, é um exemplo fabuloso. Há coros adultos, só de vozes femininas, somente de vozes masculinas, os mistos, e o coro infantil, e os cantores lamentam e riem ao longo da ópera. Nessa ópera sobre um Czar assassino (na história de Pushkin, base para a ópera, foi ele que mandou matar Dmitri, que deveria ter assumido o trono), o povo é um personagem importante. Vejam o contraste entre a morte de Boris,a intervenção etérea do coro nessa cena, com o que vem logo a seguir, a comemoração popular da morte do Czar, nesta produção em Salzburgo regida por Claudio Abbado: https://youtu.be/VUdUhbByvbQ?t=9998
O Godunov histórico morreu mais ou menos assim, como se já fosse um personagem destinado para a ópera e suas mortes cênicas improváveis. No fim, Grigory, o falso Dmitry, conclama o povo a segui-lo. Mas a ópera termina com um solo, o do Idiota, evidentemente a pessoa com a visão mais lúcida em toda a história, que lamenta pelo povo russo.
Dito isso, escolho não um dos coros de Boris Godunov, porém um dramaticamente mais insólito e tão célebre que é executado várias vezes fora de contexto e teve uma de suas melodias raptada para se tornar um grande sucesso na canção estadunidense. "Strangers in paradise", do musical Kismet, rendeu muitos aplausos para o grande Tony Bennett: https://www.youtube.com/watch?v=_MF2Ijvg4ws
Trata-se das "Danças Polovitsianas" da ópera Príncipe Igor, de Alexander Borodin: https://www.youtube.com/watch?v=HSzKom5XyQs
A obra estreou em 1890, postumamente; Borodin, uma figura rara de importante cientista (era químico) e importante artista, morreu subitamente em 1887, aos 53 anos. Príncipe Igor foi completada por Rimski-Korskaov e Glazunov. Trata-se de um soberano capturado em guerra pelo Khan Kontchak, que lhe propõe uma união para que ambos conquistem a Rússia. Ele não aceita, acaba fugindo e volta para sua cidade, devastada pela guerra. Depois de ser alvo de deboche (https://youtu.be/CzmIu-VjRCM?t=9057), ele chega e é saudado com devoção pelo coro, o povo russo.
No entanto, não é este o coro mais famoso. Quando o Khan propõe o pacto a Igor, ele ordena que se apresentem os dançarinos para afastar a tristeza: https://youtu.be/CzmIu-VjRCM?t=2468
Eu poderia ter escolhido esta peça para o dia 11, do balé favorito, mas esse coro é apresentado muitas vezes fora do contexto, sem dança, e foi assim que o cantei, dentro da Associação Coral de São Paulo, sob a regência de Luciano Camargo, com a Orquestra Acadêmica de São Paulo. O concerto ocorreu em maio de 2019 na Sala São Paulo, e o programa tinha como peça principal o poema sinfônico de Scheherazade, de Rimski-Korsakov.
O que há de curioso é a forma como os inimigos dos russos são apresentados, apesar do evidente compromisso nacionalista de Borodin: a música é muito sedutora, o Khan (que canta uma breve intervenção nesta parte) não tem nada de monstruoso, serviria para negociações internacionais com muito mais habilidade do que o atual chanceler brasileiro, e louvor a Kontchak é inegavelmente grandioso. Dá vontade de permanecer nas estepes da Ásia Central.
Os sopranos entram com o tema famoso (um louvor à terra natal) depois da introdução puramente orquestral, e os contraltos respondem com outro tema, que será retomado pelos tenores na mesma altura (a parte é aguda).
Depois de uma parte orquestral cada vez mais agitada, entram os homens com as vozes femininas, em um allegro: https://youtu.be/HSzKom5XyQs?t=231. Alguns lás agudos para tenores e sopranos. O Khan é como o sol.
Depois de breve parte puramente orquestral, um presto, os homens entram sozinhos; são as vozes dos guerreiros, que soam forte, e de novo até o lá agudo: https://youtu.be/HSzKom5XyQs?t=385
A música se acalma neste momento e, em um moderato alla breve, os sopranos voltam com o tema famoso e os contraltos entoam um contracanto. Os tenores tomam o tema que tinha sido exposto pelos contraltos no início.
É muito bonito, mas não acaba assim; depois do presto orquestral,: volta o tema dos guerreiros, um pouco mais grave; os tenores terminam o "Kontchak" em um ré que é a primeira nota da melodia dos sopranos. Todas as vozes juntas se unem para louvar o Khan.
Somente em 2014, vejam os efeitos danosos da Guerra Fria, o Príncipe Igor estreou no Metropolitan Opera House, em Nova Iorque. Menciono essa estreia tão adiada porque a montagem foi caríssima e constituiu um dos fatores que quase levou o famoso teatro à falência. Uma das cenas mais caras foi justamente a das "Danças Polovitsianas": https://www.youtube.com/watch?v=kns3F5Q0gTc (a produção viajou para a Holanda com o mesmo protagonista, Ildar Abdrazakov). Este campo florido custou 169 mil dólares. O chamado Novo Mundo quase não pôde suportar o esplendor da Ásia Central. E, se não pode com suas flores, é melhor não mexer com suas espadas.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã