O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 4 de janeiro de 2020

"Os livros hoje em dia como regra é um montão de amontoado de muita coisa escrita, tem que suavizar aquilo"

"Em 21 todos os livros serão nossos, feito por nós. Os pais vão vibrar: vai tá lá a bandeira do Brasil na capa, e não duas... Vai ter lá o Hino Nacional." Ao fundo, a claque zurra "muito bem".
O outro candidato que chegou ao segundo turno é professor de Filosofia e tinha sido ministro da educação. Para os fascistas e os imbecis foi, de fato, uma escolha muito fácil em outubro de 2018.
Se o governo continuar, o ocupante da presidência da república estará correto em dizer que em 2021 os livros serão "deles", isto é, seguirão a cartilha ideológica desta administração, a mais programaticamente ideológica de todas desde Médici.
A crise da educação, como dizia Darcy Ribeiro, é um projeto, e muito bem-sucedido. Em um Estado dedicado à promoção do iletramento, e no qual boa parte da população só esteve com livros durante o período escolar, o maior comprador de livros continua sendo... o próprio Estado. As maiores editoras vivem de compras governamentais, e é essa é uma das razões por que o mercado editorial está quebrado.
A indústria editorial no Brasil encolheu em 2017; cito matéria do PublishNews:
O mau desempenho se deveu muito ao subsetor de Didáticos que apresentou queda, já considerando as vendas ao mercado e ao governo, de 7,79%. Levando em conta a inflação no período, as perdas desse segmento foram de 10,43%. Chama a atenção a queda do faturamento das editoras apurado com as vendas para governo. Se em 2016, essas compras totalizaram um montante de R$ 1.397.462.587,61, em 2017, elas caíram para 1.215.981.687,50. Um verdadeiro tombo de 12,99%. 
Em 2018, ela continuou encolhendo; cito o PublishNews ("Nos últimos 13 anos, setor editorial encolheu 25%, aponta Fipe"): "A situação se tornou mais severa depois de 2014, quando se instalou crise econômica no país. De lá até o fim de 2018, houve queda de 27% no número de exemplares vendidos. Em números absolutos, foram menos 74,7 milhões de livros vendidos.". A crise do mercado varejista em 2018 incluiu falências e recuperações judiciais.
O governo de Bolsonaro, já na curtíssima e desastrosa gestão do primeiro ministro da educação, Vélez Rodrigues (a de Abraham Weintraub tem sido ainda mais desastrosa porque, apesar das duas férias que ele já tirou em alguns meses, sua gestão tem durado mais tempo), tentou ilegalmente retirar a "parte referente aos quilombolas e às obrigações de tratar do compromisso educacional com a agenda de não-violência contra a mulher" no edital para compra de livros didáticos. Cito novamente o PublishNews. As obras já haviam sido entregues, por isso a alteração do edital era ilícita.
Por que as obras didáticas teriam que ignorar os quilombolas e deixar de se opor à violência contra a mulher? Não entendo. A medida apenas faria sentido em um governo machista e racista. Seria isso que o governo pretende insinuar quando diz que em "21 todos os livros serão nossos"?
Consequentemente, recrudesce a censura das editoras aos autores, bem como a autocensura de escritores, que passam a seguir a cartilha ideológica do governo. Esta matéria do El País tratava do tema, "Autores se autocensuram sobre ditadura para não perder espaço no MEC de Bolsonaro":
Esta é a primeira vez que a autocensura rondou o PNLD e o tamanho do programa federal explica a precaução ou até a antecipação. “Havia muita expectativa quanto ao PNLD 2019, 2020 e 2021, mas com a chegada de uma nova mentalidade, estes programas foram colocados em xeque tanto do ponto de vista prático, quanto ideológico”, afirma um editor. “Desde a LDB de 96, no Governo FHC, temos um desenvolvimento sólido do programa do livro didático, que foi interrompido no Governo Temer”, avalia outro.
A censura copraticada pelas editoras abrange também temas ligados à diversidade e ao colapso climático, visando atender ao governo e a escolas de orientação cristã. A censura estende-se aos professores nas escolas e nas instituições de ensino superior. A Escola Sem Partido, isto é, Com Mordaça, está funcionando sem precisar de uma lei federal específica.
Enquanto as ações contrárias à educação e à literatura funcionam sem lei, as leis favoráveis são descumpridas. Bolsonaro viola a Lei nº 13.696 de 2018 (a Lei Castilho), deixando de elaborar o Plano Nacional do Livro e da Leitura. A prioridade do governo, nesse assunto, como em outros, foi a de destruir: um dos decretos presidenciais de desmonte do Estado brasileiro, nº 9.759/2019 (que citei na retrospectiva de 2019) acabou com o Conselho Consultivo do Plano Nacional do Livro e Leitura e o Comitê Gestor do Viva Leitura (a propósito, vejam esta nota da deputada federal Fernanda Melchionna). Outro objetivo do decreto era a redução do controle social sobre as políticas públicas, o que ocorreu também nesta área, como escreveu Thais Rodrigues.
Um governo ideologicamente contrário aos direitos humanos não promoveria o direito à literatura.

Evidente que esta conjuntura afeta os escritores. Resolvi contribuir em 2019 publicando obras que "é um montão de amontoado de coisa escrita", em que não suavizei nada.
A última foi um romance, Gravata lavada.


O protagonista é um jovem homem negro transexual que milita em um movimento da população em situação de rua e deseja escrever um livro. Nesse processo, entram em conflito com ele (transfobia, racismo e elitismo são o pão cotidiano dos poderes instituídos e da micropolítica), como escrevi na orelha, "policiais, editores de literatura, desembargadores e suas liminares, diretores de cinema, incels, recepcionistas de empresas do latifúndio, estudantes universitários reprovados, músicos pop machistas, o prefeito da cidade, diretoras de teatro, neonazistas em redes sociais, militantes cisnormativas, capangas do tráfico de escravos, professores de oficinas literárias, cristãos fundamentalistas, jurados de prêmios musicais, o secretário de assistência social, um filósofo mascote do liberalismo oitocentista, guardas municipais e outros de diversas espécies".
Quando lancei o romance no Rio de Janeiro, uma bolsonarista comentou: "esse não é um livro da família brasileira"; respondi que o livro era puro produto da família brasileira porque Mariano, o protagonista, fora expulso de casa...

Pouco antes, com financiamento do segundo e último edital de fomento da criação literária da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, lancei o livro de poesia O desvio das gentes.


Eu havia, no início deste milênio, escrito um poema para o Nasdaq, fanzine que os poetas Eduardo Sterzi e Tarso de Melo editavam (hoje, uma raridade), a partir da invasão dos Estados Unidos no Iraque. Com o passar dos anos, e o agravamento de problemas desse tipo (a recente agressão dos EUA ao Irã confirmam-no), veio-me a ideia de dedicar todo um livro a esses temas da ordem do cosmopolitismo, como o colapso climático, a Primavera Árabe, violência de gênero, refugiados clandestinos, ataques cibernéticos, superbactérias), com um espírito crítico: de tratar não exatamente do Direito das Gentes (o Direito Internacional Público), mas de seu Desvio. Aquele primeiro poema foi incorporado aos novos.
Mantive um blogue sobre o "processo de criação" enquanto escrevia a obra, talvez seja curioso olhá-lo: https://odesviodasgentes.blogspot.com/


O primeiro livro que publiquei neste ano também foi de poesia, Canção de ninar com fuzis. Ele recolhe poemas novos e outros que publiquei neste blogue, quase todos de circunstância, sobre acontecimentos desde o primeiro mandato de Dilma Rousseff: a destruição do Rio Doce pela Vale, o desaparecimento de Amarildo pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, a última grande greve de garis no Rio de Janeiro, a Copa de 2012 e o movimento #NãoVaiTerCopa, as manifestações de 2013 etc. até chegar a tomada do governo federal por Temer e a eleição de Bolsonaro (aquele que nina com fuzis). A unidade do livro é dada mais pelo país do que pela forma...
Nesta conjuntura, como suavizar? Para que fazê-lo? Para os que não leem e não desejam que os outros o façam?

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