O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 12 de janeiro de 2020

Um coro favorito: "Danças Polovitsianas", do "Príncipe Igor", de Borodin (30 dias de Ópera: Dia 14)

Já cantei no coro em produções da Carmen, d'A flauta mágica e de La Bohème, pela Associação Coral da Cidade de São Paulo. Pensei em escolher alguma passagem dessas óperas (o que seria estranho para a ópera de Puccini, por sinal). Pensei, no entanto, que isso seria injusto com a tradição da ópera russa e e seus coros.
A ópera surge na Rússia no século XIX e se logo se configura, como em boa parte da música romântica, em uma questão nacional. No século XX, com a censura soviética, ocorreria algo semelhante, e a submissão da ópera à ideologia e à estética impostas pelo Estado constrangeria compositores como Chostakovich e Prokofiev.
No século XIX, muitas vezes o povo é o coro, que aparece, em geral, para legitimar o tirano. É o caso de Uma vida pelo Czar, de Glinka, que tinha como título original "Ivan Susanin", mencionada por Hobsbawm (que não conhecia muito o gênero) em A era das revoluções como uma das óperas que foi expressão dos nacionalismos daquele século.
Boris Godunov, de Mussorgsky, é um exemplo fabuloso. Há coros adultos, só de vozes femininas, somente de vozes masculinas, os mistos, e o coro infantil, e os cantores lamentam e riem ao longo da ópera. Nessa ópera sobre um Czar assassino (na história de Pushkin, base para a ópera, foi ele que mandou matar Dmitri, que deveria ter assumido o trono), o povo é um personagem importante. Vejam o contraste entre a morte de Boris,a intervenção etérea do coro nessa cena, com o que vem logo a seguir, a comemoração popular da morte do Czar, nesta produção em Salzburgo regida por Claudio Abbado: https://youtu.be/VUdUhbByvbQ?t=9998
O Godunov histórico morreu mais ou menos assim, como se já fosse um personagem destinado para a ópera e suas mortes cênicas improváveis. No fim, Grigory, o falso Dmitry, conclama o povo a segui-lo. Mas a ópera termina com um solo, o do Idiota, evidentemente a pessoa com a visão mais lúcida em toda a história, que lamenta pelo povo russo.
Dito isso, escolho não um dos coros de Boris Godunov, porém um dramaticamente mais insólito e tão célebre que é executado várias vezes fora de contexto e teve uma de suas melodias raptada para se tornar um grande sucesso na canção estadunidense. "Strangers in paradise", do musical Kismet, rendeu muitos aplausos para o grande Tony Bennett: https://www.youtube.com/watch?v=_MF2Ijvg4ws
Trata-se das "Danças Polovitsianas" da ópera Príncipe Igor, de Alexander Borodin: https://www.youtube.com/watch?v=HSzKom5XyQs
A obra estreou em 1890, postumamente; Borodin, uma figura rara de importante cientista (era químico) e importante artista, morreu subitamente em 1887, aos 53 anos. Príncipe Igor foi completada por Rimski-Korskaov e Glazunov. Trata-se de um soberano capturado em guerra pelo Khan Kontchak, que lhe propõe uma união para que ambos conquistem a Rússia. Ele não aceita, acaba fugindo e volta para sua cidade, devastada pela guerra. Depois de ser alvo de deboche (https://youtu.be/CzmIu-VjRCM?t=9057), ele chega e é saudado com devoção pelo coro, o povo russo.
No entanto, não é este o coro mais famoso. Quando o Khan propõe o pacto a Igor, ele ordena que se apresentem os dançarinos para afastar a tristeza: https://youtu.be/CzmIu-VjRCM?t=2468
Eu poderia ter escolhido esta peça para o dia 11, do balé favorito, mas esse coro é apresentado muitas vezes fora do contexto, sem dança, e foi assim que o cantei, dentro da Associação Coral de São Paulo, sob a regência de Luciano Camargo, com a Orquestra Acadêmica de São Paulo. O concerto ocorreu em maio de 2019 na Sala São Paulo, e o programa tinha como peça principal o poema sinfônico de Scheherazade, de Rimski-Korsakov.
O que há de curioso é a forma como os inimigos dos russos são apresentados, apesar do evidente compromisso nacionalista de Borodin: a música é muito sedutora, o Khan (que canta uma breve intervenção nesta parte) não tem nada de monstruoso, serviria para negociações internacionais com muito mais habilidade do que o atual chanceler brasileiro, e louvor a Kontchak é inegavelmente grandioso. Dá vontade de permanecer nas estepes da Ásia Central.
Os sopranos entram com o tema famoso (um louvor à terra natal) depois da introdução puramente orquestral, e os contraltos respondem com outro tema, que será retomado pelos tenores na mesma altura (a parte é aguda).
Depois de uma parte orquestral cada vez mais agitada, entram os homens com as vozes femininas, em um allegro: https://youtu.be/HSzKom5XyQs?t=231. Alguns lás agudos para tenores e sopranos. O Khan é como o sol.
Depois de breve parte puramente orquestral, um presto, os homens entram sozinhos; são as vozes dos guerreiros, que soam forte, e de novo até o lá agudo: https://youtu.be/HSzKom5XyQs?t=385
A música se acalma neste momento e, em um moderato alla breve, os sopranos voltam com o tema famoso e os contraltos entoam um contracanto. Os tenores tomam o tema que tinha sido exposto pelos contraltos no início.
É muito bonito, mas não acaba assim; depois do presto orquestral,: volta o tema dos guerreiros, um pouco mais grave; os tenores terminam o "Kontchak" em um ré que é a primeira nota da melodia dos sopranos. Todas as vozes juntas se unem para louvar o Khan.
Somente em 2014, vejam os efeitos danosos da Guerra Fria, o Príncipe Igor estreou no Metropolitan Opera House, em Nova Iorque. Menciono essa estreia tão adiada porque a montagem foi caríssima e constituiu um dos fatores que quase levou o famoso teatro à falência. Uma das cenas mais caras foi justamente a das "Danças Polovitsianas": https://www.youtube.com/watch?v=kns3F5Q0gTc (a produção viajou para a Holanda com o mesmo protagonista, Ildar Abdrazakov). Este campo florido custou 169 mil dólares. O chamado Novo Mundo quase não pôde suportar o esplendor da Ásia Central. E, se não pode com suas flores, é melhor não mexer com suas espadas.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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