O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Um aplauso dado: Em "Davi e Jônatas", de Charpentier, em "O Anão", de Zemlinsky (30 dias de ópera: Dia 8)

Como previ a vaia, tinha que criar um dia específico para o aplauso. Adoro aplaudir, aliás.
No entanto, nem todos vão ao teatro para isso. Lembro de uma vez, em que ganhei ingresso para ver a Renée Fleming (esta cantora) em São Paulo; na longa fila de autógrafos, uma senhora com a sua filha, que viajavam pelo mundo para ver apresentações de ópera, mostrava sua decepção com o fato de que o soprano tinha cantado bem, relativizou o sucesso pelo fato de a maior parte do repertório ter sido canções de câmara, com poucos agudos.
O "fiscal de decadência vocal" é um dos personagens abjectos presentes no público de ópera. Outro é o "inimigo" de certo artista, que vai às apresentações como "militante da vaia".
Era comum que o público de ópera aplaudisse, com as mãos ou, quando há muito entusiasmo, com os pés. Como, atualmente, muitos que vão assistir óperas começaram a aplaudir música em apresentações de música popular, há também assobios de satisfação, o que é uma revolução: no protocolo de ópera, o assobio significava o mesmo que vaia; vejam como o público do Scala de Milão se divide após uma alucinante interpretação da Cena de Sonambulismo de Lady Macbeth por Maria Callas: os imbecis são os que assobiam.
Hoje, se os artistas ouvirem assobios, sempre podem pensar, aliviados, que se trata de um aplauso de alguém que segue os protocolos das apresentações de música popular.


É difícil que o som de bater palmas seja irônico, por isso este som ainda é mais seguro.
Já aplaudi tanto e tão ruidosamente que fiquei paralisado diante deste tópico. Ainda mais porque deveria escolher um só! Resolvi relativizar: um só, no entanto em mais de uma categoria. Estou pensando em aplausos para os intérpretes, não para os compositores, que estão envolvidos nos outros tópicos do desafio.
Sempre quis aplaudir este grande regente do barroco, William Christie, um redescobridor especialmente na área do barroco francês; ele reensinou a reger Rameau, entre outros autores, e acabou se naturalizando francês (nasceu nos Estados Unidos) em 1995.
Seu grupo, Les Arts Florissants, foi criado em 1979 e nomeado a partir de uma obra de Marc-Antoine Charpentier, um dos compositores de que ele é especialista.
Eu o vi em São Paulo, em 15 de outubro de 2014, em um concerto com uma versão de bolso do grupo Les Arts Florissants. Antes disso, em janeiro de 2013, tive a sorte de ir a Paris e aproveitei para ver uma produção de Davi e Jônatas (David et Jonathas), obra de Charpentier que estreou em 1688, a partir da conhecida história da Torá.


Nesta encenação de Andreas Homoki, tomou-se como pressuposto a natureza homossexual da relação entre os protagonistas, "prova da infinita riqueza dos textos bíblicos". Já a Associação dos Juristas Islâmicos, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e os neoapóstolos de um deus armamentista e cultivador do ódio apostam na pobreza hermenêutica daqueles textos e na inanição da democracia.
O espetáculo foi produzido originalmente em 2012. Pascal Charboanneau (Davi) e Ana Quintans (Jônatas) retomaram os papéis que já tinham encarnado com a regência de Christie: https://www.youtube.com/watch?v=0Y0_6gt5U_k
Em discos de 1988, o maestro já havia gravado essa obra com um elenco quase todo diferente. Neles, já estava a Pitonisa do contratenor Dominique Visse, que era outro artista que eu desejava aplaudir. No prólogo da ópera (deslocado, na produção que vi, para o meio da obra) Saul quer saber o futuro e procura a Pitonisa, que evoca as potências infernais: "Ombre, c'est moi qui vous appelle" ("Sombra, sou eu que vos chamo"). Ele começa a chamá-la com ternura, é muito curioso. A voz aguda de contratenor, registro de Visse, responde à voz grave, de baixo, de Jean-François Gardeil.
O contratenor (e regente) fundou o conjunto Ensemble Clément Janequin, que gravou muitas canções polifônicas da Renascença francesa, e mesmo repertório do século XXI. Também interpretou ópera, participou daquele disco engraçados dos três contratenores (ele, Andreas Scholl e Pascal Bertin satirizando os "três tenores"). Recentemente, vi no cinema em São Paulo outro personagem feminino seu, a Arnalta de A coroação de Poppea, de Monteverdi, em que sua enorme verve humorística manifestou-se novamente. Arnalta é serva de Poppea; ele cantou muitas vezes a Nutrice, a serva de Otávia. Ele trocou de patroa... Provavelmente porque Arnalta é geralmente cantada por tenores (contraltos não costumam ter sucesso nesse papel).
Dominique Visse nasceu em 1955. Faz algum tempo que leio em certos periódicos de música críticas severas a seus discos, mas sem que mencionem seu nome, do tipo: "um contratenor que já teve seu momento de glória"... No entanto, a insolência de seu timbre e sua desenvoltura cênica continuavam a evocar as sombras infernais na obra de Charpentier. Aplaudi de pé.
Escolhi esta produção porque reunia artistas que há décadas eu queria aplaudir, e que já não são jovens. Talvez eu não tivesse, ou não tenha mais, outra oportunidade para lhes agradecer pela música que já interpretaram, e pelo fato de continuarem exercendo seu chamado à música.
Pensei, porém, que deveria também aplaudir uma instituição, um teatro, por continuar, apesar das dificuldades, a fazer ópera e a realizar uma programação interessante.
Como tenho morado em São Paulo, escolhi o Teatro São Pedro, onde já vi obras muito montadas, como O elixir do amor, de Donizetti, mas também estreias brasileiras de óperas como O Barbeiro de Sevilha de Paisiello, obra anterior à homônima de Rossini, até estreias mundiais de música contemporânea brasileira (acabei de ver O peru de Natal de Leonardo Martinelli e Jorge Coli).
Ou até esta ópera pouco montada no Brasil, O Anão (Der Zwerg), de Zemlinsky, em agosto de 2016.


Ademais, se trata de local onde se podem ouvir as vozes atuais e futuras do Brasil. Nomes consagrados, como Eliane Coelho, Paulo Szot, Gabriella Pace, Fernando Portari e outros, certamente, mas também as vozes novas (a Academia de Ópera Theatro São Pedro tem como fim formar novos intérpretes; vejam o vídeo da produção), que preponderaram nesta produção, protagonizada pelo tenor Mar Oliveira, que cantou o tempo todo de joelhos para compor o Anão.


Entre essas vozes, estava, em um pequeno papel, uma Rainha da Noite, Jéssica Leão. Ela interpretou o papel em agosto de 2019 na produção d'A Flauta Mágica da Associação Coral da Cidade de São Paulo com o maestro Luciano Camargo e o diretor Rodolfo Vázquez. Eu estava no Coro; testemunhei que toda noite ela cantava com segurança aquelas notas, inclusive os cinco fás superagudos.
Se bem me lembro, não ouvi a regência de André dos Santos, mas a do jovem maestro, da Academia de Ópera, Edson Piza. A orquestra estava muito bem. Pode-se ouvir a gravação de O Anão do São Pedro no canal de Jorge Coli: https://www.youtube.com/watch?v=XjJyKvFuf1c
A ópera de Zemlinsky, esta obra-prima de pouco mais de uma hora que estreou em 1922, foi elaborada a partir do conto “O Aniversário da Infanta”, de Oscar Wilde. Trata-se da conhecida história do Anão dado de presente à Infanta da Espanha, por quem ele se apaixona, sem saber que é julgado grotesco por ela e pela corte. Quando se vê pela primeira vez no espelho, leva um choque, razão pela qual morrerá.
O programa da ópera apontava a identificação do compositor (pessoalmente feio) com o personagem. No entanto, poderia se pensar, talvez, que a ópera no Brasil se identifica com esse anão, de certa forma; embora seja bela, ela é tratada como um anão grotesco pelas autoridades.
Esse desprezo pela ópera, que se estende a outras áreas da cultura, também afeta o Teatro. Com o ataque do governador Alckmin à Orquestra do Teatro em 2017, a falta de continuidade administrativa e os cortes de verbas (em 2016, por exemplo, O Trovador, obra tão popular de Verdi, teve de ser cancelado), não é realmente possível ter temporadas e assinaturas.
Aplausos a quem resiste à barbárie e continua fazendo arte nesta época em que o Estado não só deixa de apoiar os artistas (na música, no cinema, na literatura, no teatro etc.), mas os combate abertamente e instiga o ódio contra eles. Um governo que ataca Fernanda Montenegro, só por isso, merece ser derrubado.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

Nenhum comentário:

Postar um comentário