O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

Mostrando postagens com marcador Wilson Silva. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Wilson Silva. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Desarquivando o Brasil CLIX: Literatura, ato de memória e comissões da verdade: obras de Verunschk, Ferraz (com Paulo Torres) e Kucinski

Ontem, no I Seminário dos Pesquisadores de Pós-Doutorado em Teoria e História Literária do IEL-Unicamp, Mariana Ruggieri me perguntou da ficionalização da Comissão Nacional da Verdade. Não tive tempo de responder. É claro que o que já fiz (no meu livro de contos, no penúltimo de poesia, ou no romance que sairá mês que vem) não conta. Eu teria respondido lembrando da Trilogia Infernal (São Paulo, Patuá, 2016-2018) de Micheliny Verunschk e de Vícios de imanência ( São Paulo: Dobradura Editorial/Selo Sebastião Grifo, 2018), Paulo Ferraz.
No caso dos livros de Verunschk (composta de Aqui, no coração do inferno, O peso do coração de um homem e O amor, esse obstáculo), a filha do delegado viaja para o Rio de Janeiro entregar documentos do seu pai, referente a mortos e desaparecidos da ditadura. Com isso, ela comprova que ele pertencia à cadeia de comando de crimes contra a humanidade que fundamentava aquele regime.
O delegado é encontrado morto pouco depois, sem que realmente se esclareça o que ocorreu, o que nos faz lembrar do que ocorreu com o tenente coronel reformado Paulo Malhães, que deu um importante depoimento à Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro, depois à Comissão Nacional. A polícia do Rio concluiu que teria ocorrido latrocínio.
A Trilogia não termina com o episódio da Comissão Nacional da Verdade, pois é necessário investigar uma morte que não entraria no relatório da CNV: a da mãe da protagonista; ela teria sido vítima de feminicídio avant la lettre? Esse possível assassinato, apesar das condições políticas da sociedade patriarcal da época, não seria jamais elencado no relatório final daquela Comissão. No entanto, é para esse possível crime aparentemente desprezível para relatórios oficiais que o livro se encaminha, e ele somente poderá ser elucidado com a ajuda de uma senhora com Alzheimer, sua madrasta - uma alegoria da memória social brasileira.
Verunschk concentra-se, pois, no que não poderia ser admitido como grave violação de direitos humanos segundo os critérios da CNV. A personagem Laura, filha de um assassino e torturador, queria ser redimida de seu parentesco por meio de uma eventual atuação política da mãe. Cito o último volume, O amor, esse obstáculo:
A inclusão do registro de minha mãe entre os documentos dos desaparecidos que papai tinha em seu poder abria para mim a possibilidade de que a morte dela também fosse uma morte política, que de alguma forma o xerife tenha decidido se livrar dela porque ela se tornara subversiva, uma inimiga do regime ao qual ele vendera sua alma. Filha de um covarde, eu alimentei a esperança de que a morte de minha mãe, o assassinato de que eu suspeitava, a revestisse de heroicidade e assim eu mesma pudesse ser resgatada.
Não havia essa heroicidade inutilmente buscada nas conversas com as amigas da mãe, ou na evocação de personagens históricas como Zuzu Angel, assassinada pelo governo brasileiro por denunciar o desaparecimento de seu filho pela ditadura; para sair desse jogo, Laura resolve colocar "a mulher no centro do labirinto":
Este não é o labirinto de Creta, cujo centro foi o Minotauro, digo em voz alta, contestando o poema de Borges. Aliás, não fui eu a colocar a mulher no centro do labirinto. Devo confessar que não sei como ela apareceu lá, e isso, eu sei, é um fiasco. Talvez o labirinto tenha sido erguido em torno dela, pedra por pedra, percurso por percurso em todas as suas cavidades e enganos, suas estruturas discrepantes.
Ela assume esta política de gênero feminista, e é feliz a escolha da imagem do labirinto: sua mãe chamava-se Ariadne. Com isso, podemos finalmente ter a revelação do que ocorreu com ela neste país canibal. Minotauro alimentava-se de humanos.
Dessa forma, com Micheliny Verunschk a CNV aparece, mas a protagonista vê-se obrigada a superar os critérios políticos e de gênero oficialmente adotados pela Comissão, e de que ela compartilhava, para poder superar o impasse em que se encontra e resolver sua identidade.
O livro de Paulo Ferraz apresenta uma primeira parte que se dedica às graves violações de direitos humanos que constituíram o Estado brasileiro, com ênfase na ditadura militar, embora crimes do Estado brasileiro de outras épocas e do Império Português também se façam presentes. Há "poemas contra" Médici, Cabo Anselmo, Filinto Müller e Erasmo Dias, por exemplo. Há "poemas para", entre outros, Maria Bonita e o povo Panará. Ele não tematiza diretamente a CNV, embora se possa imaginar que os poemas da primeira seção tenham sido escritos, com maior probabilidade, depois da Comissão, e se possa imaginar que eles possam ter alguma inspiração no Relatório de 2014.
O poema contra o DOPS, "PARA NÃO ESQUECER N. 11", parte do procedimento do ready-made e de pesquisa documental. O poema se baseia no prontuário do advogado e intelectual comunista Paulo Torres (encontrei-o, inesperadamente, nesta ligação). Um dos documentos de que o autor se apropria é esta relação de bens apreendidos, procedimento comum nas prisões do DEOPS-SP:


Paulo Ferraz escreve a informação policial incluindo a lista dos bens apreendidos e incluiu a peça Andaime e o livro Poemas proletários, classificados como propaganda subversiva; "jornais velhos que dão pistas de que o Dr. Paulo Torres esteve com bolcheviques em Moscou, caiu cativos de revoltosos na síria e foi dado como morto em Marrocos." Sem mais informações, e com possibilidade de que "tenha mesmo morrido no Marrocos", a autoridade policial conclui a informação com "repressão à vadiagem!"
De fato, a edição de Poemas proletários, publicado pela Unitas, como versos como "nós somos a força,/ nós produzimos tudo/ não temos nada./ somos as abelhas/ que produzem mel/ e morrem de fome.", foi apreendida pela polícia. Andaime, apesar de ter sido suavizada por Jaime Costa, que a encenou (o que gerou conflito com o autor), também foi proibida. Nos dois casos, trata-se de obras recebidas como pioneiras. Esta notícia de 1931, do Diário da Noite, afirma que a peça inauguraria o teatro social no Brasil:


Esta notícia também consta do prontuário. No Arquivo Nacional, no Fundo do DOPS de Pernambuco, achei esta resenha ao livro de poemas, de Ernani Vieira, no jornal Guajarina, de 1931, que exalta o livro como um "álbum de fotografias", com que ficou "muito bem impressionado", embora confesse que os poemas "não têm forma; têm fundo":


Sua produção artística levou-o a ser perseguido e vigiado durante a ditadura de Vargas. Vejam este outro documento do prontuário, datado de 1939, que considera que o "grau de periculosidade" do "autor de trabalhos vários, todos eles de tendências absolutamente comunistas, deve estar em constante observação Policial":


Com alguns réus processados pelo Tribunal de Segurança Nacional da Era Vargas, foram encontrados exemplares de Poemas proletários, que era uma literatura que servia de prova de subversão contra o leitor nesses tempos de criminalização da arte e do pensamento. No Arquivo Nacional encontram-se alguns desses processos. Nesta Apelação 752 de Davino Francisco dos Santos e outro, autuada em 1940, há cópia do inquérito, que envolveu Torres; ele foi absolvido, apesar da apreensão dos seus dois exemplares do livro, pois as autoridades concluíram que ele estava afastado do Partido Comunista e da militância:


Apesar da singeleza dos versos, eles influenciaram alguém como o jovem José Paulo Paes, leio neste artigo de Maurício Guilherme Silva Júnior, "José Paulo Paes e a inversão do hipertexo".
Não há nada, porém, singelo nos procedimentos de Paulo Ferraz, especialmente na ironia de terminar o poema com a referência policial à vadiagem, embora essas obras tratem do mundo dos trabalhadores. O trabalhador que se organiza e age politicamente é o "vadio" para as instituições. A questão social é uma questão para a polícia. O poeta, ao se debruçar criticamente sobre os documentos policiais do passado e apresentá-los a contrapelo, emula procedimentos de uma comissão da verdade, que também deve ler criticamente documentos. Como a literatura é muito mais livre do que o relatório burocrático, Paulo Ferraz logra fazê-lo assumindo sarcasticamente a voz do repressor, o que não seria cabível, tampouco inteligível, para uma Comissão oficial: pensar-se-ia que aquela voz teria sido adotada, e não satirizada.
Mariana Ruggieri fez aquela indagação porque lembrei que o primeiro romance de Bernardo Kucinski, K., é anterior à instituição da CNV. A Expressão Popular publicou-o em 2011. Em 2013, ele singrou para a extinta Cosac Naify (a Comissão Nacional da Verdade estava em funcionamento) e, em 2016, quase dois anos após o relatório final da CNV, a Companhia das Letras passou a editá-lo no Brasil. O livro foi traduzido para o alemão, o catalão e o espanhol (em 2013), o inglês (2015), o francês e o italiano (2016).
Trata-se de um exemplo em que a obra literária serviu para a construção do processo de justiça de transição. Seu impacto como ato de memória serviu para a retomada do caso. A Universidade de São Paulo, em colaboração com a repressão política, havia demitido Ana Rosa Kucinski por abandono de emprego depois de o Estado brasileiro tê-la desaparecido, e nunca havia revisto essa medida. A lei federal n. 9140 de 1995, a Lei dos Desaparecidos, havia reconhecido essa condição dela e de seu marido, Wilson Silva, igualmente desaparecido. Na Universidade, no entanto, a cumplicidade com a ditadura permanecia.
Na audiência pública de 17 de outubro de 2012 da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", ocorreu a assinatura do termo de cooperação entre essa Comissão e a Nacional, e o caso de Ana Rosa Kucinski e de Wilson Silva foi tratado. Ambos eram militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN). No perfil da antiga professora da Faculdade de Química elaborado pela Comissão estadual, pode-se tanto ler a transcrição da audiência:
No entanto na USP a versão oficial ainda não é a do desaparecimento forçado de Ana Rosa. Um processo instaurado pela Reitoria em 1974 sob número 174899 pleiteava a recisão do vínculo funcional de Ana Rosa por abandono de função, hipótese prevista no Inciso 4º do Artigo 254 do regime da USP. Recorda-se que 19 meses do desaparecimento de Ana Rosa a Congregação do Instituto de Química reuniu-se em sua 46ª reunião mensal no dia 23 de outubro de 1995. Na pauta encontrava-se o pedido da Reitoria de análise da situação de Ana Rosa, tendo sido aprovada a demissão da Professora decorrente do ‘abandono de função’ por 13 favoráveis e dois votos em branco. Dois dias depois a demissão da Professora foi publicada no Diário Oficial por ato do Governo do Estado, Paulo Egídio Martins, conforme relato de seu irmão Bernardo Kucinski no livro K, editora Expressão Popular, São Paulo 2012.
O romance de Kucinski é tratado como fonte da Comissão. Nessa ocasião, o livro foi ainda exposto na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, onde ela funcionava. Adriano Diogo, presidente, da Comissão "Rubens Paiva", avisou na audiência: "Eu só queria falar uma coisa, a editora que fez o livro do Professor Bernardo Kucinski com a vida da Ana Rosa mandou cerca de 20 exemplares que estão com a exposição aqui no plenário, aqui no auditório tem o livro do Bernardo Kucinski, o K, que conta a história de toda a família Kucinski."
Rosa Cardoso, a comissionária da CNV presente na audiência, "endossou ofício da Comissão Estadual da Verdade em que esta pede que a Congregação do Instituto de Química da USP e o reitor daquela universidade revejam decisão da congregação, de outubro 1975, em que foi aprovada a demissão da professora Ana Rosa Kucinski".
Eu assisti a outra audiência pública, de 29 de outubro de 2013, da mesma Comissão, no espaço dos estudantes de Química, o Queijinho. Eu não trabalhava para ela ainda. A audiência foi gravada e Rosa Cardoso, comissionária da Comissão Nacional da Verdade, também participou. Fiz um relato do evento neste blogue, lembrando que "Uma aluna que pertencia ao C.A. explicou que o diretor do Instituto havia aparecido no queijinho, mas havia deixado o local cinco minutos antes de os trabalhos começarem."
Não só a direção da Faculdade de Química se ausentou, como a Comissão da Verdade da USP nada fez. Ela somente passou a agir depois dessas ações da Comissão Estadual e da Nacional.
No relatório da Comissão da USP, publicado só tempos depois de sua extinção oficial, temos a reprodução dos documentos da década de 1970, mas nada sobre o que ocorreu no século XXI, um verdadeiro salto mortal histórico. Sobre o que ocorreu em tempos mais recentes, lemos apenas, no volume III, que "Em 2014, após diligências da Comissão da Verdade da USP, o Instituto de Química se dispôs, por unanimidade de votos dos membros da Congregação, a anular o ato anterior de rescisão de contrato por abandono de cargo e pedir desculpas formais à família da professora."
Tratei disso em outra nota deste blogue: https://opalcoeomundo.blogspot.com/2018/04/desarquivando-o-brasil-cxliv-o.html.
No relatório, não é apresentada a verdade sobre as ações necessárias para que a Universidade deixasse o seu posicionamento de cumplicidade com a ditadura; são silenciadas as ações daquelas outras Comissões e de Bernardo Kucinski, incluindo seu livro K.; nesse caso, temos um exemplo do uso dos relatórios como forma de silenciamento. Felizmente temos, para lutar contra essas formas de censura burocrática, entre outras armas, a literatura.
O que me faz voltar a Paulo Torres: em 1933, ele enviou aos jornais uma carta ao "Clube dos Artistas Modernos", de São Paulo, exigindo ser retirado da lista de sócios, pois "infelizmente" não acreditava em artistas, declarando-se "inimigo de classe dos srs.": "Prefiro continuar com os meus humildes camaradas de sofrimento. Com os que têm o hábito do trabalho."
A tese em História Social de William Golino, Retrato pictórico moderno: suas formas e significados, defendida na PUC-SP em 2010, reproduz em anexo a carta e a resposta do Clube, que zombou de Torres afirmando tê-lo encontrado dias depois no Jóquei Clube com a "burguesia endinheirada".
Em resposta dada ao Correio da Noite, Paulo Torres pôde esclarecer o sentido de suas declarações: "Como já tive ocasião de observar, não divido os homens em artistas e não artistas. Divido os elementos da atual sociedade em duas classes: a dos exploradores e a dos explorados. Esse negócio de artista é coisa muito velha, muito preciosa, muito ridícula, e, por isso mesmo, profundamente inútil..." Obras como a de Kucinski evidenciam o caráter velho e engessado dessa insuficiente dialética.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Desarquivando o Brasil LXII: Os infiltrados, ontem e hoje

Li recentemente o belo romance de Bernardo Kucinski, K. (São Paulo: Expressão Popular, 2011), fortemente decalcado na realidade, particularmente na história de Ana Rosa Kucinski, militante da ALN que foi presa com o marido e correligionário Wilson Silva em 1974. Continuam desaparecidos: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/12/desarquivando-o-brasil-xxiii-wilson.html
A USP demitiu-a, provavelmente quando já estava morta, por abandono de emprego. Recentemente, essa instituição de ensino recusou-se a mandar um representante para a sessão da Comissão da Verdade Rubens Paiva, da ALESP, que abordaria o caso da ex-professora e de Wilson Silva. A família pediu, por esse motivo, a suspensão da sessão, e foi atendida.
No caso de Ana Rosa Kucinski, a Comissão Estadual e a CNV enviaram ofício ao reitor João Grandino Rodas para reparar a memória de Kucinski (http://www.adusp.org.br/index.php/comissao-da-verdade/1503-cnv-requisita-ao-reitor-dossie-sobre-ditadura-e-pede-justica-para-ana-rosa). A USP mantém-se inerte, o que gerou este protesto de Bernardo Kucinski: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=1&id_noticia=215919
Em um dos capítulos, temos a voz de um infiltrado na organização de esquerda, que faz relatórios para a polícia. Ele havia mudado de lado após ser preso. Essa prática realmente ocorria. Entre os militantes que se tornaram espiões, o caso mais célebre é o de Cabo Anselmo, que ajudou a desmantelar a esquerda guerrilheira no Brasil.
Havia também agentes que eram infiltrados nos movimentos sociais e nas organizações. Neste outro texto, "Desarquivando o Brasil LXI: Polícia ontem e hoje, o milagre do vinagre" lembrei dos infiltrados na campanha pela anistia, e da preocupação, expressa em documento confidencial do Ministério da Aeronáutica, com o fato de o Comitê pela Anistia, na unidade de Curitiba, ter idealizado "um esquema para identificação dos agentes dos órgãos de segurança da área que estejam infiltrados ou agindo juntos aos meios estudantil, político, operário e artístico', em conjunto com jornalistas." (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/06/desarquivando-o-brasil-lxi-policia.html).
Já escrevi algumas notas a respeito, inclusive incluí parte do relatório de um espião na faculdade de direito da USP, incomodado com as críticas ao governo, em aula de Fábio Konder Comparato: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/05/desarquivando-o-brasil-xxxvi-comissao.html

Os relatórios vêm de muitos lugares, e nem sempre são muito conclusivos. Às vezes, os próprios agentes percebiam a falta de sentido de seu trabalho, em uma época em que qualquer engajamento social era, de antemão, suspeito.
Um exemplo típico foi uma infiltração feita pelo DOPS/SP na Igreja Nossa Senhora da Esperança de Cidade Dutra, da ordem dos Oblatos. A razão? Cursos profissionalizantes, de orientação vocacional, criatividade... Os próprios infiltrados pediram para sair da operação. No que erraram, do ponto de vista do regime, porquanto a FASE, que ministrava cursos especiais, realmente defendia bandeiras contrárias à ditadura: http://www.fase.org.br/v2/pagina.php?id=10
Em vez de incluir outro dos inúmeros relatórios desse tipo da época da última ditadura, resolvi escolher algo anterior. Os sindicatos e até mesmo a Justiça do Trabalho, por exemplo, já eram espionados, tendo em vista a vigilância sobre os comunistas e o controle das pautas reivindicatórias, dois assuntos que, por sinal, interessavam aos patrões.

Não foi um erro a competência da CNV estender-se a período anterior a 1964, pois certas práticas do regime autoritário foram concebidas ou já existiam em germe antes do golpe.
Neste documento, também do DOPS/SP, vemos o papel de informantes sobre o IV Encontro Sindical Nacional, realizado de 17 a 19 de agosto de 1962 em São Paulo. No dia 20 daquele mês, na Delegacia Regional do Trabalho, foram assinados acordos coletivos com, entre outras empresas, Texaco, Esso e Shell. Nesses acordos, a maior parte das reivindicações dos trabalhadores foi atendida.
Quando falei na EHESS, no início deste ano, que a repressão política não poderia ser bem compreendida tendo como fonte apenas os processos na Justiça Militar, e que a questão trabalhista e sindical tinha que ser considerada, as pessoas ficaram surpresas, mas concordaram.
No entanto, deve-se dizer que a vigilância já ocorria desde os tempos de democracia formal. Neste caso, o problema é que o acordo, com reajuste salarial, adicional de tempo de serviço, salário-família, férias de 30 dias era um precedente para outros sindicatos e categorias.

Diz a fonte, [sic] que a vitória dos Trabalhadores em Empresas do Comércio de Minérios e Combustíveis do Estado de São Paulo será, sem dúvida alguma, um caminho aberto para as demais categorias profissionais, as quais, em futuras lutas reivindicatórias, irão reivindicar e exigir dos empregadores as mesmas vantagens hoje obtidas pelos Trabalhadores no Comércio de Minérios e Combustíveis, principalmente no que se refere ao salário-família, férias de 30 dias e, em alguns casos, o adicional por tempo de serviço. Portanto, finaliza a fonte, acha-se em aberto mais uma questão na luta reivindicatória do proletariado brasileiro.
A própria capa do documento, reservado, é reveladora. Ele foi classificado como "Sindicalismo, Movimentos reivindicatórios". Trata-se de algo, de fato, tão suspeito e indesejável, para esta lógica policial, que trabalhadores reivindiquem que o seu trabalho gere direitos...
Depois de 1964, tal lógica tornou-se, de forma abrangente, uma política de Estado.

Tais práticas de espionagem são anteriores à ditadura militar e prosseguiram após o fim daquele regime.

Pode-se lembrar que o governo federal está monitorando as redes sociais por causa das grandes manifestações que vêm ocorrendo no Brasil desde a semana passada: http://oglobo.globo.com/pais/planalto-monitora-mobilizacoes-em-todo-pais-nas-redes-sociais-8738133
Alguns testemunhos falam de infiltrados nessas multidões. Estes movimentos ocorrem mais ou menos como nesta famosa charge: http://9gag.com/gag/aVOOMPv 
A jornalista Monica Bergamo, da Folha de S.Paulo, acompanhou a invasão na Prefeitura de São Paulo em 18 de junho e atestou que não foi realizada pelos integrantes do Movimento Passe Livre, "que tentaram inclusive impedir confusão" (https://twitter.com/monicabergamo/status/347136658103205888) e o que "fazem aqui na porta do prédio não tem nada a ver com o q mostrou ontem a maioria" (https://twitter.com/monicabergamo/status/347137202800713728). Tentaram invadir o Teatro Municipal, e Bergamo percebeu que não havia nenhum policial à vista: https://twitter.com/monicabergamo/status/347150360172953600
O Estado de S.Paulo publicou no dia 19 que se tratava de um grupo anarquista irritado com o movimento. O movimento negou. Um dos atacaram a Prefeitura foi identificado como um estudante de arquitetura, filho de empresário e sem ligações com o MPL e a partidos políticos - estava a exercer sua "revolta dos corpos"... http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1297767-estudante-de-arquitetura-e-detido-sob-suspeita-de-apedrejar-prefeitura.shtml
É necessário investigar, mas a polícia será capaz de fazê-lo? O jornalista Renato Rovai verificou que a tropa de choque, no dia 18, em São Paulo, demorou duas horas para chegar ao centro da cidade e reprimir o vandalismo: https://twitter.com/renato_rovai/status/347160671693197312
Para isso, a polícia aparentemente não funciona bem, como constatou o jornalista Bob Fernandes: https://twitter.com/Bob_Fernandes/status/347138671268462592, embora servisse para atirar em quem filmava a manifestação, escreveu o jornalista Bruno Torturra: https://twitter.com/torturra/status/347172397780172800
Nesse mesmo dia em São Paulo, enquanto ladrões saqueavam lojas do centro, policiais foram filmados pegando mercadorias que estavam com pessoas em situação de rua e, depois, indo para a direção oposta à que estavam ocorrendo os saques, o que parece indicar um problema grave de orientação espacial, incompatível com o combate ao crime: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/19/pm-rasga-barraca-de-moradora-de-rua-enquanto-saques-ocorriam-a-150-metros-no-centro-de-sp.htm

Em Belo Horizonte, algo de parecido ocorreu, de acordo com o Comitê dos Atingidos pela Copa: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=151094365079967&set=a.151094361746634.1073741828.150997365089667&type=1&theater
No jornal O Tempo, publicou-se sobre documento que comprovaria que a Polícia Mineira resolveu não cumprir suas funções institucionais nesse dia: http://www.otempo.com.br/cidades/documento-comprovaria-que-pol%C3%ADcia-militar-tinha-ordens-para-n%C3%A3o-intervir-na-a%C3%A7%C3%A3o-de-v%C3%A2ndalos-1.666907
Essa omissão, além de documentada por escrito, foi filmada: http://www.bhaz.com.br/manifestantes-suspeitam-da-origem-de-atos-de-vandalismo-em-bh/. Resta saber a razão dela.

Deve-se notar que, em movimentos tão difusos quanto estes, com bandeiras diversas e bases sociais heterogêneas, a simples presença de grupos com reivindicações diversas não pode ser encarada como infiltração, que só se configura se houver, de fato, uma corrente clandestina, um serviço de inteligência que busque manipular esses movimentos ou distorcer-lhes a imagem. Deve-se desconfiar muito se a coerência ou um pensamento único se estabelecerem.

Carlos Latuff entendeu a infiltração em outro sentido, como a direita tentando tomar conta do movimento (http://latuffcartoons.wordpress.com/2013/06/19/charge-brasil247-os-infiltrados-no-movimento-passe-livre/). Há tentativas disso, inclusive de quem nem mesmo chegou perto das ruas, como um jornalista simultaneamente membro da ABF e da ABL que, no dia 19, publicou uma coluna paternalista e oportunista querendo ensinar aos manifestantes o verdadeiro sentido de seus atos - que são o da agenda desse jornalista "filósofo" e do oligopólio de comunicações para o qual presta serviços.
Essa agenda pareceu no dia 20 de junho; Raphael Tsvakko relatou aqui como militantes de esquerda foram hostilizados em São Paulo: http://www.tsavkko.com.br/2013/06/e-no-setimo-grande-protesto-contra-o.html
No dia 18, a TV Record afirmou, com todas as letras, que "infiltrados" incendiaram seu carro de transmissão em frente à prefeitura: http://rederecord.r7.com/video/infiltrados-no-protesto-incendeiam-unidade-de-transmissao-da-rede-record-em-sp-51c0ed5c0cf26f34e02642cd/ O jornalista explica que o fogo veio depois que os manifestantes foram embora, "os mesmos vinte que tocaram pedra na prefeitura" foram culpados do incêndio. E aduz: "isso confirma o que nós estamos dizendo desde a primeira manifestação: tem gente infiltrada".
No dia 20, os abusos policiais continuaram em algumas cidades, como Rio de Janeiro (https://fbcdn-sphotos-e-a.akamaihd.net/hphotos-ak-prn1/922677_535456753181044_1682982568_n.jpg); houve relatos pacíficos em João Pessoa e Florianópolis; em Brasília, revolta e vidros rachados (depois da restauração) da catedral. Nesse mesmo dia, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos emitiu nota demonstrando preocupação com a  violência, instando "o Estado do Brasil a garantir e proteger a integridade física e a segurança dos e das manifestantes e jornalistas durante as manifestações": http://www.oas.org/pt/cidh/centro_midia/notas/2013/044.asp
No entanto, a garantia é muito seletiva; neste texto de Leonardo Sakamoto, temos um dos casos de dois pesos e duas medidas do Estado: espancado e preso o jornalista que poderia denunciar a violência policial (o Ministério Público do Estado de São Paulo, previsivelmente, queria lá deixá-lo), solto o filho de empresário, que depredou a prefeitura: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/06/20/jornalista-fica-tres-dias-preso-bad-boy-chora-e-e-liberado/.


P.S. A jurista Sonia Rabello fala de algo no Rio de Janeiro que podemos chamar de "vandalismo de Estado", em analogia ao terrorismo de Estado, "Vandalismo oficial contra o patrimônio público: Célio de Barros e Júlio Delamare". Trata-se da destruição de patrimônio em nome das obras da Copa. O prefeito Eduardo Paes agiu com o IPHAN: 
E o IPHAN ensina, em seus cursos e em várias ações judiciais, que a proteção da ambiência/vizinhança é para conservar o simbólico do lugar. E alguém tem alguma dúvida que a ambiência do Maracanã se explica e se justifica com o restante do complexo esportivo?
Pois bem: ignorando toda a sua tradição e todos os seus fundamentos teóricos e práticos, e de ofício, a chefia da Superintendência do Rio (cargo em comissão), sem parecer técnico, por meio de um simples memorando, recomendou à Presidência do órgão a concordância para a demolição daquele patrimônio cultural reconhecido.

Maria Cristina Lodi Vereza Lodi foi a superintendente. Ler aqui mais este capítulo do desastre (reeleito) que acomete o Rio de Janeiro: http://www.soniarabello.com.br/vandalismo-oficial-contra-o-patrimonio-publico-o-caso-do-celio-de-barros-e-do-julio-delamare/


P.S. 2: Se houve infiltrados, certamente não foram os monarquistas, que não desrespeitariam uma ordem deste naipe: http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/,ece6304611e5f310VgnVCM10000098cceb0aRCRD.html

P.S. 3: Sugiro a leitura de reportagem da Agência Pública  sobre como a Polícia Militar da Bahia infiltra-se hoje nos movimentos: http://www.apublica.org/2013/06/inteligencia-da-pm-na-bahia-infiltra-agentes-nos-movimentos-revela-capitao/

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Desarquivando o Brasil XXIII: Wilson Silva, Ana Rosa Kucinski e o negacionismo

Este blogue participa da Quarta Blogagem Coletiva do #desarquivandoBR, organizada pela jornalista Niara de Oliveira. Vi que o jurista e professor Murilo Duarte Costa Corrêa também aderiu.
Já escrevi sobre o problema do negacionismo no tocante à ditadura militar (que começa em não a considerar uma "ditadura", e sim um simples "regime", ou, quem sabe, para os que seguem Miguel Reale, uma "democracia social"...). Esse negacionismo perpassa os três Poderes e a sociedade civil. Preciso escrever muito mais ainda, em nome do direito à memória e à verdade.
Nesta nota, vou-me limitar a lembrar da morte do casal Wilson Silva e Ana Rosa Kucinski Silva (irmã de Bernardo Kucinski), ambos militantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), desaparecidos em 22 de abril de 1974, quando iriam almoçar juntos perto da Praça da República em São Paulo.

Aconselho a ler sobre o caso no livro Direito à verdade e à memória, disponível gratuitamente na internet e organizado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. A morte do casal é contada a partir da página 380. Provavelmente, foram mortos em Petrópolis e esquartejados, segundo contou o ex-sargento Marival Dias Chaves de Castro à revista Veja de 18 de novembro de 1992.
No documento ao lado, temos uma Informação do Ministério do Exército que descobri no Arquivo Público do Estado de São Paulo, pode-se ler como o governo procurava negar esses assassinatos. Tendo constatado que o Voz Operária, do PCB, havia denunciado o caso, entre outros, o Ministério do Exército difundiu na comunidade de informações que denúncias que tais bem podiam ser uma estratégia da subversão. Segundo a fantasia oficial, os desaparecidos estariam simplesmente escondendo-se em outras paragens:

Este fato vem mostrar que há subversivos cujos desaparecimentos são imputados aos Órgãos de Segurança, os quais permanecem vivos, na clandestinidade. Pode-se supor que seja um despistamento para motivar o registro do desaparecimento e assim diminuir ou cessar a busca dos citados.
Sugere-se ao CIE, que difunda aos demais Órgãos de Informações que as constantes acusações de desaparecimento de pessoas, pode bem ser encarado como manobra do inimigo, visando não só a diminuição das buscas como também a acusação aos Órgãos de Segurança como responsáveis pelos "desaparecimentos" de pessoas procuradas.

Os erros de concordância e de pontuação estão no original. CIE era o Centro de Informações do Exército, que compunha o sistema de informaçoes.
O deboche é impressionante. A Informação é um exemplo de como é necessário ler criticamente todos os documentos históricos - eles tentam docuemntar uma versão, neste caso, a versão que interessava à propaganda de que não havia tortura nem execuções extrajudiciais no Brasil.
Lembro que o governo brasileiro negou à OEA, durante o governo de Geisel, que tivesse alguma responsabilidade no desaparecimento do casal. Os ingênuos não pensem que é somente desde Dilma Rousseff e Belo Monte que o governo brasileiro viola e mente para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O atual governo federal apenas dá continuidade a essa tradição...
Para terminar, sugiro que leiam a homenagem a Ana Rosa Kucinski na página da Associação Atlética Acadêmica que leva seu nome, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, onde ela estudou.