O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

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domingo, 31 de dezembro de 2017

Retrospectiva 2017: palavras alheias e a rede comum


Uma das tiras de André Dahmer mostra alguém preocupado com o povo sair às ruas por causa do desvio de verbas. Seu interlocutor prova que a preocupação é infundada: pela janela, veem um cara solitário com o cartaz "entre no meu blog".
A ironia de se imaginar alguém na rua com esse tipo de apelo ao virtual, bem como sua solidão, e a contraposição disso com a mobilização política, encontram paralelo na tira em que um blogueiro confessa: "escrevo sobre coisas que não entendo, para pessoas incapazes de aprender" (ambas podem ser vistas nesta dissertação de Rodrigo Otávio dos Santos, às páginas 228 e 218).
Reconheço minhas limitações em aprender; no entanto, gosto de ler blogues pela informação e pelo estilo: em alguns casos, eles cumprem o papel deste gênero literário que está a ser gradativamente expulso do jornalismo, que é a crônica.
Já organizei retrospectivas por frases da época da ditaduraapresentações musicaisgraffiti e cartazesdireitos sabotados e perdidos; desta vez, decidi por textos de outros blogues, entre os que sigo e estão indicados à direita. Não incluí aqueles que servem de simples divulgação de artigos (como os do Murilo Duarte e do Marcelo Ribeiro), ou que se compõem de curtas resenhas, por não atenderem àquele requisito de gênero que mencionei, bem como aqueles em que assino textos (o Escamandro). 
Escolhi apenas um exemplo de cada blogue. A lista, como sempre, é estritamente pessoal e não pretende dar conta do ano, do tempo, do mundo, mas simplesmente estar de acordo com a ideia de rede que sempre me atraiu na internet, isto é, de que de um texto se possa passar para outro, como uma espécie de biblioteca de Borges. Correntes em aplicativos de mensagem e o que chamam de "threads" em redes sociais, claro, não podem, em razão de sua menor exuberância textual, cumprir esse papel, embora reconheça sua utilidade em uma sociedade estruturalmente iletrada.
Pensei em fazer uma retrospectiva das imagens "Fora Temer" que vi em diversas ocasiões; no entanto, como a foto acima foi uma das mais esperançosas que encontrei, desisti de fazê-lo. 


Janeiro:
Para ler sem olhar: de Diego Viana, "Imagens que não fizeram história (4): a Brasília estourada". Viana, que já citei aqui algumas vezes, voltou a fazer um close seeing com far reaching, desta vez a partir de uma foto de René Burri tirada em Brasília, de uma "família humilde" com sua "roupa de domingo". A luz estourada da foto suscita diversas reflexões, até chegar, depois de um paralelo com Portinari ao rombo de orçamentos públicos. Quanto a mim, que sou da geração das crianças na foto, cujo nome desconhecemos, noto que elas estão mais nítidas do que os monumentos do poder, e que talvez fosse uma ação estética e política emancipadora aumentar a nitidez dos corpos contra aqueles espaços.

Fevereiro:
Seminario de Teoría Constitucional y Filosofía Política: de Roberto Gargarella, "La Corte Suprema y los alcances de las decisiones de la Corte Interamericana". Ao contrário da maioria dos constitucionalistas brasileiros, Gargarella preocupa-se com o Direito Internacional e não é isolacionista. Em 14 de fevereiro deste ano, a Suprema Corte argentina, a respeito do conhecido caso "Fontevecchia e outros contra a República Argentina", decidiu que seus acórdãos não podem ser "revogados" pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Houve muita polêmica na época, mas, em dezembro, a Suprema Corte assentiu que a decisão atacada pela Corte Interamericana fosse declarada incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Faço notar que, no caso brasileiro da ADPF 153, há uma questão parecida: o Supremo Tribunal Federal decidiu com base no ordenamento da ditadura, contra a Constituição de 1988, validar a lei de anistia do tempo do Figueiredo. Meses depois, a Corte Interamericana decidiu o oposto com base na Convenção Americana. Ainda não foram julgados pelo STF os embargos de declaração interpostos na ADPF, e que se referem a essa decisão internacional. Fux, em mais uma prática de violação do regimento do Tribunal, não leva o recurso a plenário, impedindo que se aprecie a divergência entre as duas cortes.

Março:
Gaveta do Ivo: de Ivo Barroso, "Consoante de apoio - a propósito de um poema de Charles Baudelaire". É um blogue recente, em que o poeta e tradutor publica textos antigos (por exemplo, a "Antiga palestra sobre Drummond") e novos, como esta análise de traduções de um dos mais célebres poemas de todos os tempos, "Spleen LXXVII", que começa com o verso "Je suis comme le roi d’un pays pluvieux". Analisa as soluções de Guilherme de Almeida, Jamil Almansur Haddad e Ivan Junqueira, que ele considera os que se saíram mais felizes no enfrentamento desse poema, preferindo a de Junqueira. Questões de métrica, rima, cesura, aliterações e figuras de linguagem são discutidas, o que é um alívio diante do desleixo com a forma hoje em moda em certos círculos que se bastam com um verso sem novidade e frouxo, desde que o poema termine com uma coroa de flores ou qualquer outro efeito lacrimejante ou de autocomiseração. Barroso inclui a própria tradução e a critica, e faz o mesmo com a de Wladimir Saldanha, que comentou o texto (uma oportunidade que os blogues proporcionam) e incluiu a dele para comentários.

Abril:
Desigualdades espaciais: de Hugo Nicolau Barbosa de Gusmão, "Não vai dar tempo… a morte chega antes que a aposentadoria para a população negra em São Paulo". São Paulo não é a cidade mais pobre do Brasil, tampouco a mais desigual. No entanto, nela, como a maioria das pessoas negras morre antes dos 65 anos, elas não chegariam a aposentar-se segundo a proposta de reforma da previdência que se discutia (o projeto foi alterado, e a "discussão" continua a ser liberação de verbas e cargos para os que votarão contra o povo). O trabalho do geógrafo, decifrando os distritos da cidade, mostra que os brancos vivem mais que os negros em todos, e que "Quando olhamos os distritos onde a média é superior a 65 anos anos a situação se torna mais grave, em apenas 10 distritos o tempo média de vida dos negros é superior a 65 anos". Um jornal nessa cidade depois usou esses dados. Ao ver a quantidade de dinheiro que Temer vem gastando para promover essa reforma, não conseguimos deixar de pensar que o neoliberalismo esconde um projeto de extermínio.

Site personel de Didier Eribon: de Didier Eribon, "Demain, je voterai pour Jean-Luc Melenchon". Macron venceu as eleições de 23 de abril na França. Melenchon, o conhecido político de esquerda, cresceu eleitoralmente. Destaco o texto não em razão dele, mas por causa da análise política do sociólogo. Eribon explica sua opção eleitoral, apesar de não concordar com todas as propostas do candidato, tendo em vista o "deslizamento espetacular da vida política e intelectual em direção à direita na Franca ao longo dos últimos trinta anos" ("glissement spectaculaire de la vie politique et intellectuelle vers la droite en France au cours des trente dernières années"), operada "principalmente no e em torno do Partido Socialista". Ele dá uma tremenda indireta a certo filósofo do consenso: "Qu’on ne se laisse pas abuser par les sermons de tel philosophe allemand qui a oublié depuis fort longtemps l’héritage de la théorie critique de l’Ecole de Francfort à laquelle on le rattache encore abusivement." e afirma que, se Macron ganhar, como aconteceu, e aplicar seu programa, o Front national, de extrema direita, terá 40% de votos no primeiro turno na próxima eleição.

Mobilização Nacional Indígena: "O maior Acampamento Terra Livre da História!".  Trata-se de matéria sobre o último ATL. O Acampamento ocorre anualmente, e a presença dos povos indígenas na capital é estratégica. Vi Ailton Krenak, mais de uma vez, dizer que cada tiro disparado contra os povos indígenas tem sua origem no Congresso Nacional. Ademais, agravou-se a conjuntura política, já desfavorável a esses povos no governo de Rousseff; desta vez, "O ATL também deu uma aula de democracia ao governo Temer. Na terça (25/4), na primeira marcha da semana, os indígenas foram recebidos com gás lacrimogêneo e balas de borracha na frente do Congresso. No dia seguinte, foram impedidos de entrar no Senado para assistir a uma audiência pública previamente marcada e foram intimidados pela polícia no caminho de ida e de volta ao acampamento."

Euterpe: de Frederico Toscano, "Rinaldo em Londres". Não sei se o blogue terminou, seu último texto é de maio. Eu escrevi mais sobre música do que o Euterpe este ano, porém, claro, nunca cheguei ao nível do que a equipe desse blogue fazia. Para chegar a uma das óperas mais conhecidas de Händel, Rinaldo, Toscano parte de Cavalli e faz um percurso pela ópera barroca, o que inclui a figura do castrato e as razões do sucesso da "opera seria" e sua estrutura formal fundamentada na profusão de árias, solos para os cantores brilharem. Como sempre no Euterpe, há diversos exemplos musicais, e talvez o mais interessante seja a sequência das três encarnações que a música de "Lascia ch'io pianga" (uma das árias operísticas mais conhecidas, gravada até por cantoras populares como Barbra Streisand) teve na obra de Händel. Minha ária preferida dessa obra, no entanto, é "Cara sposa"; Toscano escolheu o grande contratenor Philippe Jaroussky, proponho ouvir também a fenomenal Ewa Podles.

Maio:
Transe: de Moysés Pinto Neto, "Vivemos um momento extraordinário". O jurista trata do que chama de "um grande bloco no poder — o 'condomínio pemedebista' — cuja gestão era disputada pelos petistas e tucanos" e das configurações da plutocracia na última década, de 2013 como catalisador da indignação contra esses "arranjos", com esta observação ótima sobre o antigo governo: "O compromisso com a manutenção do governo paralisa a radicalidade do pensamento, tornando a crítica refém do dogmatismo esquerdista, fazendo com que as perspectivas radicais fossem engolidas pela defesa do indefensável. A perspectiva de futuro encurta-se drasticamente — e esse encurtamento mostra-se bem quanto a questão procedimental começa a tomar a frente dos debates políticos, numa redução do político ao jurídico." Quanto ao governo atual, é claro que a única perspectiva do futuro em que se interessa é a manutenção do passado. Moysés, apesar de tudo, mostra-se otimista e julga o momento extraordinário porque "ao mesmo tempo em desaba o patrimonialismo, se abre uma janela histórica para formular novos projetos". Como ele é um dos poucos juristas brasileiros capazes de pensar politicamente, espero que participe bastante dessas formulações.

Junho:
El niño rizoma: de Julián Axat, "Tiempo futuro pos-memoria, poesía y justicia". O poeta, editor e jurista publicou originalmente este texto no blogue, que trata dos rituais judiciais da chamada pós-memória e o testemunho de pessoas como ele, filhos de desaparecidos. A figura do filho detetive da história, em analogia aos detetives selvagens de Bolaño, traz diversos relatos, que ele analisa, classifica, nesta referência a Foucault: "Cierta “enciclopedia china de la memoria” de las víctimas del terrorismo de Estado argentino, que implica -a su vez- formas inéditas, exóticas y hasta maneras estandarizadas o normalizadas de decir la catástrofe." Entre outras referências do artigos, está o interessante filme “Tierra de los Padres” (Fatherland, 2011) de Nicolás Prividera, todo filmado no Cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, e composto de fragmentos da fala de mortos, numa aposta estética radicalmente benjaminiana. Note-se que a Argentina, com Macri, está num momento adverso para a justiça de transição, ou para a justiça tout court.

Julho:
Índio É Nós: "Michel Temer, a AGU e a legitimação do genocídio dos povos indígenas". Análise da opção de Temer pelo etnocídio e pelo genocídio dos povos indígenas, oficializando a "tese do “marco temporal”,  "por meio de um Parecer vinculante da Advocacia Geral da União (Parecer n. 001/2017/GAB/CGU/AGU), com a finalidade de paralisar processos de demarcação de terras indígenas no Brasil, bem como de anular demarcações já realizadas.Mais um exemplo de como o Brasil se degrada, e um prenúncio de que 2018 será um ano de ainda mais crimes e golpes, eis que 2017 mostrou que o crime, mesmo desvelado, não só compensa como pode governar sem maiores sustos, bastando dividir o saque com mais instituições, veículos de imprensa e assemelhados.

Agosto:
Rio on Watch: de Lucas Smolcic Larson, "Três razões pelas quais Charlottesville poderia acontecer no Brasil". O autor busca fazer um paralelo entre a marcha neonazista naquela cidade dos Estados Unidos, suscitada pela conjuntura política favorável a esse tipo de violência, organizada contra a retirada dos monumentos aos racistas e escravistas, com certos temas no Brasil, como o repúdio indígenas aos monumentos pelos bandeirantes (ele inclui uma foto desta manifestação de 2013 em São Paulo, com o sangue simbólico escorrendo), bem como aos crimes de ódio contra as religiões afro-brasileiras e a violência policial; o texto não se aprofunda, infelizmente, nos esforços de normalização do fascismo realizados pelos meios de comunicação.

Setembro:
Reinventando Santa Maria: de Leonardo Bernardes, "Podemos: relato de uma experiência e de um juízo". O autor, filiado do partido, conheceu membros do Podemos na Espanha e analisa as virtudes e limitações desse projeto político, bem como a "tendência a trazer a política de volta a la calle", o que é importante para o Brasil também, neste momento em que parte significativa da esquerda quer que Temer fique e faça seus horrores, pois ele é um grande trunfo eleitoral para a oposição. Ele deixa de se referir às questões relativas à unidade da Espanha como Estado, que há pouco emergiram mais fortemente, porém, com a declaração de independência da Catalunha, que trouxe as pessoas de volta para a rua. Seria interessante ele retomar a análise a partir disso.

Outubro:
Twilight Beasts: de Jan Freedman, "Walking on thin ice". Embora o blogue em geral se concentre em espécies extintas, o texto dedica-se aos ursos polares e uma foto de um desses animais, bastante emagrecido, andando sobre uma camada de gelo igualmente reduzida. Esses animais têm sofrido desde as últimas glaciações, mas o aquecimento global, provocado pela ação humana, tornou a situação mais dramática. Os fanáticos de Trump (que adoram tweets como este), presentes também no Brasil, onde se somam a outros grupos, mais ou menos convergentes, como admiradores das linhas de Olavo de Carvalho e aldorebelistas, negam esses outros efeitos de extermínio do neoliberalismo. A bibliografia indicada por Freedman pode ajudar aqueles que, desses grupos, souberem ler. 

Novembro:
EJIL: Talk!: de Philip Leach, "The Continuing Utility of International Human Rights Mechanisms?". Trata-se de outro texto sobre as questões envolvidas na internacionalização dos direitos humanos. O internacionalista analisa pesquisas recentes que apontam para a eficácia dos mecanismos internacionais, trabalhos de Kathryn Sikkink, Gráinne de Búrca, Jérémie Gilbert, Ann Skelton. Ele mesmo procura pensar a questão, no âmbito do European Human Rights Advocacy Centre, e reflete sobre as possibilidades de fortalecimento  daqueles mecanismos, sabendo que o "contexto local" será o elemento mais importante ("the domestic context will remain the most significant element"). Para o Brasil, trata-se de questão vital, especialmente levando em conta o caráter isolacionista do Judiciário nessas questões, e que tem levado grupos historicamente discriminados por esse Poder a buscar os mecanismos internacionais, como os povos indígenas.

Dezembro:
Opinio Juris: de Kevin John Heller, "The Puzzling US Submission to the Assembly of States Parties". Os Estados Unidos, na 16a. Assembleia dos Estados Partes do Tribunal Penal Internacional, fez uma curiosa declaração, analisada pelo internacionalista. Se, do ponto de vista do Direito Internacional, ela é cheia de erros e absurdos, segundo o prisma do imperialismo, ela faz todo sentido... Como se sabe, o imperialismo é fundamentalmente isolacionista, e seu uso do Direito Internacional é sempre limitado e altamente instrumental. No entanto, o jurista aponta uma passagem progressista da declaração, em que há um reconhecimento formal do dever de direito internacional de "investigar e processar crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade". É possível que esse reconhecimento tenha ocorrido com surpresa para boa parte do governo daquele Estado, como faz ironicamente notar o internacionalista: "I imagine that position will come as something of a surprise to the parts of the US government that were not involved in drafting the submission…"

Eterna Cadencia
: "Toda la poesía del 2017". Parece estranho incluir um blogue de uma loja, mas este é tão bem feito, e literário, que não pude resistir a terminar esta retrospectiva com a recolha dos textos sobre poesia que essa livraria de Buenos Aires fez. Note-se a variedade, com a presença de autores tão diferentes como Gabriela Mistral, Fernando Pessoa, Leonard Cohen e Catulo, mas nenhum poeta brasileiro, o que talvez indique uma deficiência do mercado editorial argentino em relação à literatura deste país, ou, talvez, uma relevância limitada da poesia aqui produzida. Deixo os estudiosos pesquisarem a questão, que excede minhas forças.




quinta-feira, 4 de julho de 2013

Eribon sobre a homofobia de Supiot, ou o século XXI atualizado pelo Concílio de Trento

Didier Eribon criticou a escolha de Alain Supiot para o Collège de France, indagando se se criou uma cátedra de homofobia: "Une chaire d'homophobie au Collège de France??" (http://didiereribon.blogspot.com.br/2013/07/une-chaire-dhomophobie-au-college-de.html).
Na crítica, lembra da ligação de Supiot com Pierre Legendre e da coincidência de seus argumentos com o da direita homofóbica que se manifestou na França contra o casamento igualitário.
Penso que Eribon está certo. Acho que o sociólogo citou uma entrevista que o jurista concedeu à revista Esprit em 2001, e outras podem ser encontradas na obra do jurista. Gostaria de acrescentar algumas.
Como é comum nesses casos, as roupagens cientificistas desnudam o corpo do dogma. Em curioso artigo sobre o PACS ("Les mésaventures de la solidarité civile (Pacte civil de solidarité et systèmes d'échanges locaux)", http://adonnart.free.fr/doc/citoy/supiot.pdf), de 1999, o jurista assume o fundamento religioso de sua argumentação:

La revendication d'un statut pour les couples homosexuels oblige à poser crûment cette question, qui nous replace devant l'alternative formulée avant le Concile de Trente par Gratien et Lombard : est-ce la  copula  carnalis, l'union des chairs, ou bien « la volonté et la charité » l'engagement réciproque, qui instituent le couple?
O Concílio de Trento, segundo Supiot, é o parâmetro do estatuto do casamento! É necessário ter boa vontade para levar Supiot a sério e ler o resto da argumentação: a "união da carne" poderia ser entendida de duas maneiras: o da simples sexualidade, que não presta como base de reivindicação de direitos no ordenamento francês, ou o da geração de filhos, o que não é o caso dos casais homossexuais. No tocante à "vontade e caridade", trata-se da questão da solidariedade recíproca no casal, que deve gerar direitos securitários; a lei teria todo o interesse de favorecer a solidariedade civil para evitar que a solidariedade social sucumba ao "individualismo radical". No entanto, dessa forma, a solidariedade civil não teria sentido se limitada a um tipo determinado de pessoas (como os homossexuais ou os concubinos de qualquer sexo). Disso, o jurista concluía que não se deveria instituir o PACs na órbita do direito de família, e sim no das obrigações. Dessa forma, os casais homossexuais deveriam ser tratados juridicamente não como famílias, e sim como partes de um simples contrato de solidariedade...
Com a coerência dos dogmas religiosos, pôde então manifestar-se contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, afirmando que o casamento não é um contrato (http://www.mafr.fr/spip.php?article3091)!
Em Homo juridicus, já traduzido no Brasil, há uma passagem quase igual a outra que Eribon cita: "L'égalité algébrique autorise l'indifférentiation: si je dis < a+b = a+a = b+b > , il s'en déduit que partout où se trouve a, je pourrai poser indifférement b [...] Appliqué à l'égalité entre les sexes, cela voudrait dire qu'un homme est une femme et réciproquement." (A igualdade algébrica autoriza a indiferenciação: se eu digo < a+b = a+a = b+b > , disso se deduz que, em todo lugar onde encontro a, posso colocar indiferentemente b [...] Aplicado à igualdade entre os sexos, isso quereria dizer que um homem é uma mulher e vice-versa."
Logo depois, nas páginas 11 e 12:
Or l'égalité entre hommes et femmes ne signifient pas que les hommens soient de femmes, même s'ils peuvent en rêver parfois. Le principe d'égalité entre hommes et femmes est l'une des conquêtes les plus précieuses et les plus fragiles de l'Occident. Il ne pourra prendre durablement racine si cette égalité est entendue sur le mode mathématique, c'est-è-dire si l'on traite l'être humain sur un mode purament quantitatif. [...] Légalité fait l'objet d'interprétations folles lorsque, sous l'empire de la quantité, nous sommes conduits à croite en l'abstraction du nombre indépendamment de la qualité des être dénombrés.
"Ora, a igualdade entre homens e mulheres não significa que os homens sejam mulheres, mesmo que, às vezes, possam sonhar com isso. O princípio da igualdade entre homens e mulheres é uma das conquistas mais preciosas e mais frágeis do Ocidente. Ele não poderá enraizar-se se essa igualdade é percebida do modo matemático, isto é, se se trata o ser humano de um modo puramente quantitativo. [...] A igualdade é objeto de interpretações loucas quando, sob o império da quantidade, somos levados a acreditar na abstração do número independentemente da qualidade dos seres enumerados."
Esse modelo "algébrico", "matemático" seria próprio do capitalismo, em que a quantidade prevalece sobre a "diversidade das coisas", o que faz com que a igualdade receba "interpretações loucas", que mais adiante, ele qualifica de "messianisme" dos direitos humanos, comparando as teorias de gênero com a ideia de loucura como direito inalienável.

Sua crítica ao capitalismo, portanto, tem o mesmo fundamento de sua crítica às aspirações de igualdade das pessoas homossexuais; o matrimônio igualitário seria uma forma de neoliberalismo...
Eu diria que essa é a sanidade deste jurista do século XXI, atualizado pelo Concílio de Trento.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Antologia de viagem: os gritos de Paris

Eu quis escrever esta nota desde que voltei da França, mas tive tanto trabalho a fazer que não consegui.
Como lá estive muito ocupado com as tarefas acadêmicas, concentrei-me em livros teóricos. Dessa forma, esta antologia não será poética como foram estas: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/07/antologia-de-viagem-argentina.html e http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/07/antologia-de-viagem-argentina-ii.html
Tampouco será mural (como esta: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/08/antologia-mural-de-viagem-argentina.html), eis que os parisienses não aprovam tais práticas na paisagem urbana. No entanto, as manifestações podem ser vistas e ouvidas nas ruas da cidade. Uma das mais célebres composições de Clément Janequin (1485-1558) é justamente "Voulez ouyr les cris de Paris", de que o Ensemble que leva o nome do compositor fez uma grande gravação: http://www.youtube.com/watch?v=FiPhbS_ZlRk.
Da Renascença aos dias de hoje, os gritos de Paris continuam a se fazer ouvir. Trago aqui apenas alguns dos que pude registrar em cartazes, acompanhados de excertos de obra que lá comprei e li, Retour à Reims (Paris: Flammarion, 2010 - a primeira edição é de 2009), de Didier Eribon, um livro que transita com imaginação entre teoria e autobiografia. O sociólogo, em razão da morte do pai, com quem não falava há anos, retornou à cidade natal, motivando todo um olhar sociológico sobre o passado, a família e o meio operário em que ele foi educado.
Por sinal, será publicado novo livro dele neste ano, La société comme verdict: http://didiereribon.blogspot.com.br/2013/03/a-paraitre-le-17-avril-la-societe-comme.html
Os cartazes, fotografei-os nas duas manifestações que acompanhei. A canção de Janequin  não termina afirmando que, se se quer ouvir mais, deve-se ir para rua?
Escrevi uma nota sobre a passeata de 27 de janeiro deste ano em prol do matrimônio igualitário na França, o Mariage pour tous: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/01/matrimonio-igualitario-na-franca-ii.html

 Nela, incluí algumas fotos, porém, alguns dos cartazes mais curiosos, deixei-os para depois.Como o cartaz ao lado, que afirma que certa parte do corpo do manifestante é um local de embates (amorosos, imagino), e não assunto de debates. O trocadilho funciona em português.




Bandeiras da frente da esquerda coloriam a paisagem, bem como as do arco-íris, tipicamente presentes nas manifestações pela liberdade sexual.
Um cartaz aparece em primeiro plano, afirmando que as listas de casamentos dos homossexuais vão relançar a economia. Em vermelho, outro, ao fundo, afirma que "para nós uma criança não será nunca um acidente", valorizando a "homoparentalidade" em relação a parcela significativa dos pais heterossexuais.

Ainda a respeito de formas alternativas de "parentalidade", vemos o cartaz com sensata interpretação bíblica, "Santa Maria/ Mãe de aluguel".
É de lembrar que a prática da mãe de aluguel é ilegal na França. O governo, em 25 desse mês de janeiro, gerou uma reação raivosa da direita por decidir facilitar o reconhecimento da cidadania francesa às crianças de pai francês que nasceram no estrangeiro por meio dessa prática.
O fascismo dessa direita é tão grande que deseja negar o direito à nacionalidade, no entanto previsto pelo artigo 15 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A ministra da justiça, Christiane Taubira, foi muito atacada. No entanto, sob esse aspecto, acho digna a atitude do governo de Hollande. Os deputados da UMP (o partido de Sarkozy) recorreram ao Conselho de Estado para anular a medida: http://lci.tf1.fr/france/societe/mere-porteuse-des-deputes-ump-saisissent-le-conseil-d-etat-7811258.html?xtmc=meres-porteuses&xtcr=12
Por outro lado, pode-se lembrar de uma crítica de esquerda, contrária ao casamento igualitário por considerá-lo burguês ou coisa parecida (conheço até quem seja contra cantar afinado, pois a afinação também seria burguesa...). Já escrevi sobre essa esquerda, tão conveniente para a direita. Agora, apenas cito o livro de Eribon:

Sem dúvida o sentimento de desgosto que me inspiram hoje estes e estas que tentam impor sua definição do que é um casal, do que é uma família, da legitimidade social e jurídica reconhecida a alguns e recusada a outros etc, e que invocam modelos que jamais existiram, salvo na sua imaginação conservadora e autoritária, devem muito de sua intensidade a esse passado em que as formas alternativas estavam destinadas a serem vividas na consciência de si como desviantes e a-normais e, logo, inferiores e vergonhosas. É por isso que desconfio igualmente das imposições de a-normalidade que nos são dirigidas pelos defensores – igualmente normativos, no fundo – de uma não-normalidade erigida em “subversão” prescrita, de tanto que pude constatar, ao longo de minha vida, a que ponto normalidade e a-normalidade eram realidades completamente relativas, relacionais, móveis, imbricadas uma na outra, sempre parciais... [p. 70-71]

A votação do projeto não acabou ainda. Como se sabe, o Reino Unido foi mais rápido e aprovou o matrimõnio igualitário em fevereiro deste ano. Leiam o comentário de que o casamento de Elton John aumentaria em um décimo o PIB: http://www.guardian.co.uk/society/2013/feb/05/gay-marriage-saviour-of-economy?INTCMP=SRCH
No último dia de estadia, 31 de janeiro de 2013, as minhas aulas já haviam acabado e eu havia acabado de despachar as malas. Peguei o RER para dar uma última olhada em Paris e vi no trem um passageiro com cartaz de protesto contra o governo de Hollande. Perguntei do que se tratava, e ele explicou que iria para a manifestação contra o governo que começaria às 14 horas, partindo da estação de Denfert-Rochereau.


"O voto "útil"/ Eis aonde isso leva", era uma das faces do cartaz.
Fui almoçar e acompanhei a manifestação até as 16 horas, quando ela tinha chegado no Boulevard Raspail com a Rue du Bac. Ela foi bem menor do que a do Mariage pour tous.
Nessa manifestação, a frente de esquerda não contou, logicamente, com o PS. Os comunistas lá estavam e alguns cantavam. Foi a única vez que ouvi música cubana, e em espanhol, tocando nas ruas de Paris.

Lá, os manifestantes pararam. Ao lado, podem-se ver os percussionistas e alguns dos cartazes: "O Estado enterra a Universidade", "Resistamos e salvemos nosso futuro".
"Eles disseram amém", está escrito no caixão erguido. Aqui diríamos, inspirados no governador de São Paulo, "quem não reage está morto".

Boa parte dos cartazes dizia respeito à situação da educação. Professores reclamavam que a profissão não deve ser mais um "sacerdócio". Muitos cartazes criticavam o ministro da educação, Vincent Peillon, por não escutar os professores, e por ter afirmado que havia "mais professores do que turmas". O cartaz com o acróstico do sobrenome do ministro refere-se a desigualdade entre as municipalidades (reclamação repetida diversas vezes). E termina: "SIM PARA MUDAR/ Não a esta reforma tal como ela está."

Acabei encontrando o manifestante que me alertou. Eis o verso do cartaz que carregava:"PS/ Especuladores/ Mesmo combate/ Vergonha para o PS". 
Sobre esse protesto, imagino que esta passagem do livro de Eribon fosse a mais conveniente:
[...] os partidos de esquerda e seus intelectuais de partido e de Estado pensaram e falaram desde então uma linguagem de governantes, e não mais a dos governados, exprimiram-se em nome dos governantes (e com eles), não mais em nome dos governados (e com eles) e, portanto, adotaram sobre o mundo um ponto de vista de governantes, rejeitando com desdém (com uma grande violência discursiva, sentida como tal por aqueles sobre quem ela se exerceu) o ponto de vista dos governados. [p. 130-131]
Não cai como uma luva para certa esquerda brasileira?



quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Matrimônio igualitário na França: as noites perturbadas dos conservadores



Cumprindo promessa de campanha, François Hollande enviou projeto para o casamento igualitário na França, país que conta apenas com uma lei de união civil (o PACS) que pode ser usada por casais do mesmo sexo.
Os reacionários de todo o espectro político movimentam-se; vi na televisão um parlamentar indagando a repesentante de organização LGBT se o projeto acarretaria que os homossexuais poderiam se casar em trio (que fantasias são despertadas no inconsciente dos reacionários!), e teve de escutar que só se almejava a igualdade: como os heterossexuais não podiam se casar a três, os homossexuais tampouco o poderiam.
Houve uma passeata, de que participaram talvez quatrocentas mil pessoas, contra o projeto Mariage pour tous (casamento para todos). Vichy também teve muitos entusiastas. Peguei um dos folhetos da campanha, que pode ser visto acima, que bem mostra que se trata de um movimento sustentado por mentiras. Uma delas, é que "somos todos filhos de heterossexuais", como se não existissem pais e mães homossexuais. E, numa França que orgulha de sua laicidade e persegue islâmicos em nome do Estado laico, dizer que a família é "sagrada" é de uma hipocrisia ímpar.
Levando a mentira e a hipocrisia a um patamar mais elevado, pseudocientistas estão afirmando que fazer com que o casamento deixe de ser um privilégio heterossexual vai destruir as bases antropológicas da sociedade francesa, quiçá da humanidade. Sobre o assunto, o antropólogo Maurice Godelier, da EHESS, em matéria do Le Monde (que tem, em geral, publicado contra o projeto), em 17 de novembro do ano passado, lembrou que "A humanidade não parou de inventar novas formas de casamento e de descendência" (http://www.lemonde.fr/societe/article/2012/11/17/l-humanite-n-a-cesse-d-inventer-de-nouvelles-formes-de-mariage-et-de-descendance_1792200_3224.html). Traduzo este trecho:

Esta concepção de família modelada por séculos pelo cristianismo é própria do ocidente e não tem sentido algum em muitas sociedades. Ela evolui porque os holandeses, em sua maioria protestantes, aceitaram o casamento homossexual e a homoparentalidade.
Entre os Baruyas, cada indivíduo tem muitos pais e muitas mães. Todos os irmãos do pai são considerados pais, todas as irmãs da mãe, como mães. Todas as famílias que não são do ocidente pós-cristão são irracionais? Foi a humanidade que as inventou! As resistências são normais, elas acompanham uma grande transformação social e mental.
Não só pseudoantropologia, mas pseudopsicanálise tem sido invocada contra o Mariage pour tous. O uso selvagem da psicanálise chegou a tal nível que os lacanianos, em 13 de janeiro de 2013, lançaram um manifesto (a ser assinado pelos pscanalistas) contra a instrumentalização da psicanálise pelos reacionários:
http://www.lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2013/01/LQ-269.pdf 
O manifesto ressalta que nada na experiência freudiana valida uma antropologia autorizada pelo Gênese; a estrutura edipiana não é um universal antropológico; que, no nível do inconsciente, os dois sexos não são ligados por nenhuma complementaridade originária, o que Lacan exprimiu com "A relação sexual não existe"; e que cada ser falante deve buscar as vias de seu desejo - alguns precisam de uma crença religiosa para isso, outros a dispensam, questão sobre a qual o psicanalista não deve se pronunciar.



Além da mentira, da hipocrisia, da pseudociência, mantos que o ódio religioso contra os homossexuais usou para cobrir suas vergonhas, há mais uma veste, ou melhor, um anel de bacharel: o discurso juridicizante. Cada criança teria direito a ter um pai e uma mãe (já imagino que o próximo passo da república de Vichy, despertada do túmulo, se tiver sucesso agora, será proibir solteiros e separados de terem filhos, ou os terem sob sua guarda), e o matrimônio igualitário feriria tal direito.
Sobre essa não-questão, aconselho artigo de Beatriz Preciado, traduzido para o português por Fernanda Nogueira, "Quem defende a criança queer?". O artigo, pungente, parte da experiência pessoal da autora, revista sob o prisma da biopolítica: "A criança é um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto. A polícia de gênero vigia o berço dos seres que estão por nascer, para transformá-los em crianças heterosexuais. A norma ronda os corpos meigos."
http://blogueirasfeministas.com/2013/01/quem-defende-a-crianca-queer/
No Libération, em francês: http://www.liberation.fr/societe/2013/01/14/qui-defend-l-enfant-queer_873947
A autora demonstra bem esta outra falácia do movimento: não se quer proteger todas as crianças, e sim impor tal norma (no sentido de Foucault) a todas elas.
Acima, outra foto que tirei muito mal da propaganda dessas pessoas muito estranhas, cheias de paixões tristes, que saem de casa num domingo frio para impedir que outras pessoas também tenham direitos.
Neste sítio do Partido Socialista francês (que não é o PT, e tampouco Hollande é Dilma Rousseff), temos a petição pelo casamento para todos:
http://www.parti-socialiste.fr/articles/droit-au-mariage-et-ladoption-pour-tous-signez-la-petition?gclid=COz-zdSbgrUCFXDLtAodPl4Acw
Pode-se aí baixar o material da campanha e da manifestação que ocorrerá no dia 27 de janeiro, como este "sim" para a igualdade:


Entre os blogues que leio sempre (na lista à direita), está o de Didier Eribon, biógrafo entusiasmado de Foucault. Ele está a favor do projeto, podem-se ler vários textos a respeito no blogue, o que o coloca em conflito com Foucault, ainda bem.
Já escrevi como Foucault se encontra com a direita religiosa (pegando caminhos diferentes) na oposição ao matrimônio igualitário. Trata-se do surpreendente encontro do filósofo francês com Ives Gandra da Silva Martins:
http://opalcoeomundo.blogspot.fr/2011/05/matrimonio-igualitario-no-brasil-o.html
Eribon supera essa posição dogmática, mostrando que se trata de uma forma de impor aos homossexuais uma posição de desviantes e anormais, o que é bastante tranquilizador para os "normais".
Curiosamente, mesmo na edição revista de 2011, Eribon, apesar de destacar aquela entrevista de Foucault e citá-la (da página 510 a 514), não menciona que o filósofo (que era homossexual) manifestou-se contra o matrimônio de pessoas do mesmo sexo...
Desde minha época de mestrado, para o escândalo de parte da banca examinadora, não tive dúvida de que era necessário superar Foucault. Felizmente Eribon, apesar do excesso de reverência àquele filósofo, consegue fazê-lo, e termino esta nota com tradução minha da crônica "Casamentos de ontem e de hoje", publicada em Contre l'égalité et autres chroniques (Paris: Éditions Cartouche, 2007):

"Por que os homossexuais querem se casar?" Quantas vezes ouvi essa frase nas últimas semanas! [...]
É um pouco como se considerássemos que os gays e as lésbicas fossem portadores de um gene do anticonformismo, e que eles iriam contra sua verdadeira natureza reclamando o acesso ao direito comum.
Vejam o essencialismo mal disfarçado nessas posições que desjam classificar, hierarquizar, normalizar, enfim, gays e lésbicas na categoria do anticonformismo.
Eribon escreve que, debaixo desta categoria, homossexuais, existe uma infinidade de realidades diferentes, que alguns vivem sozinhos porque assim querem, outros, apesar de não o quererem, que outros vivem em casais, que podem ser estáveis ou não, abertos ou não, alguns querem oficializar sua união, outros não etc. Outro ponto importantíssimo, também negado pelos reacionários:

Aliás, convém lembrar que o "casamento dos homossexuais" não tem nada de ineditismo. Oscar Wilde era casado! Pensar que o casamento teria sido até agora reservado aos heterossexuais e que os homossexuais, hoje, quereriam "macaquear" estes últimos, é completamente absurdo.[...] Com efeito, o casamento heterossexual não é a união de duas pessoas heterossexuais, e sim de duas pessoas de sexo diferente, e um dos dois pode, evidentemente, ser bissexual ou homossexual... Ou mesmo ambos: o casal heterossexual pode ser composto de dois bissexuais ou de dois homossexuais (como Vita Sackville-West e Harold Nicholson).
Eribon trata em seguida do exemplo de Gide, na literatura e na vida (o autor de Corydon era casado com uma mulher) e termina a crônica buscando as perguntas que não devem ser caladas neste debate:

Dessa forma, o problema não é: por que os homossexuais querem se casar? Eles sempre o fizeram. Mas, antes de tudo: o que gays e lésbicas, ao reivindicarem poder fazê-lo no quadro de casais do mesmo sexo, perturbam na ordem social e sexual?  E por que os guardiões da ordem estabelecida, seja de direita ou de esquerda, mobilizam-se com tanta energia para impedi-los? Que medo imemorial da homossexualidade assombra então os dias e as noites de todos esses conservadores?