O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

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sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Maria Callas: os primeiros cem anos

O centenário de nascimento de Maria Callas, a grande intérprete de ópera e uma das maiores artistas do século XX, foi comemorado em 2 de dezembro de 2023. Escrevi, poucos anos atrás, uma nota sobre as "iluminações" que a artista trazia para os papéis que cantava, revelando detalhes que passam ou passavam em branco na leitura de outras cantoras. Depois, outra sobre o filme de Tom Wolf, Maria by Callas, valioso apesar dos problemas.

Eu não iria escrever mais nenhuma nota, porém comprei há dois dias um jornal na banca que pouco tratava de música e teatro, o que é curioso para se referir a uma intérprete de ópera. Ele continha também problemas factuais: sugeria que Callas só teria passado a colaborar com o diretor cênico Zeffirelli na época em que fez a Norma em Paris, bem depois de 1954, ano em que começou a trabalhar com Visconti. Está errado: aquela Norma foi a última produção nova de ópera em que ela cantou, em 1964 e 1965, e em 1955 Zeffirelli já tinha montado para ela O turco na Itália, de Rossini. Depois, ainda viriam La Traviata e Tosca -- duas óperas que ele quis filmar com ela. O texto também dizia que ela esmurrava o chão para chamar os deuses antes de entrar no palco na ópera Medea, de Cherubini. Na verdade, a artista grega era cristã ortodoxa; ela só adotava esses procedimentos pagãos em cena, encarnando o personagem. Minotis, o diretor cênico, havia pesquisado os procedimentos do teatro grego antigo e surpreendeu-se que ela adotasse esse gesto, que estava correto, por instinto e não por ter estudado o assunto; Callas nem mesmo havia visto representações do teatro clássico enquanto viveu na Grécia (era a época da Segunda Guerra Mundial e a atividade teatral praticamente cessou).

Se se pode errar assim na grande imprensa, por que eu não poderia escrever algo mais modesto aqui? Pensei em rascunhar algo como se estivesse a pensar alto na cantora e no seu impacto hoje. Começo a lembrar que o centenário inspirou homenagens. A Ópera Garnier, de Paris, montou uma noite de gala, "Vissi d'arte" (título de uma ária da ópera Tosca, de Puccini) com direção de Robert Carsen, que contava com a própria Callas em vídeo, artistas interpretando-a e números musicais, com regência de Eun Sun Kim. Sondra Radvanovsky cantou árias das óperas Norma, Macbeth, Manon Lescaut e Tosca. Pretty Yende, de La Traviata e La Sonnambula. Elas são sopranos. A meio-soprano Ève-Maud Hubeaux interpretou árias de Carmen e Don Carlo. Bellini, Verdi, Puccini, Bizet. Aqui está um descrição da noite por Louis-Julien Nicolaou: https://www.telerama.fr/musique/vissi-d-arte-le-bel-hommage-de-l-opera-garnier-a-la-callas-7018347.php

O Teatro Municipal de São Paulo também chamou três cantoras para homenageá-la em 8 e 9 de dezembro: as sopranos Camila Provenzale, Eiko Senda e Rosana Lamosa, regidas por Roberto Minczuk, para cantarem árias de Norma, La Traviata, La Gioconda, Andrea Chénier, La Sonnambula, Anna Bolena, Adriana Lecouvreur, Macbeth, Tosca e La Vestale. Bellini, Verdi, Ponchielli, Giordano, Donizetti, Cilea, Spontini.

Poderia citar outros exemplos, mas esses bastam. Todas essas peças estiveram no repertório de Callas, senão nos papéis que interpretou em cena, ao menos no que cantou em recital ou em disco. O importante é notar que não seria possível escolher uma só cantora para cantar esses números. Em Paris, os papéis mais agudos de soprano ficaram para Yende; os mais pesados, para Radvanovsky; os de meio-soprano, com Hubeaux. Em São Paulo, certamente haverá uma divisão desse tipo, já os papéis são vocalmente muito contrastantes, do dramático (Macbeth) ao ligeiro (Sonnambula).

Trata-se da diversidade vocal e dramática de Callas: já nos recitais que ela fez na Grécia na primeira metade da década de 1940, ela unia árias de soprano ligeiro (Lakmé, de Delibes, que ela cantava em italiano), dramático (Tristão e Isolda, de Wagner, que ela então cantava em grego; na Itália, ela interpretaria a obra completa em italiano), lírico (Fausto, de Gounod) e de meio-soprano (La Favorita, de Donizetti). Dez anos depois, ela continuava a fazer esse tipo de tour-de-force vocal. Ela tinha extensão, agilidade e potência: essa combinação se revelaria milagrosa quando passou a se dedicar às óperas do bel canto, o que só ocorreu quando encontrou trabalho na Itália: primeiro a Norma, em 1948, depois Os puritanos, em 1949, ambas de Bellini. Com Puritani, aconteceu o que ela mesma chamou de "milagre": ela cantava o repertório de soprano dramático: Wagner, o Verdi mais pesado, Turandot de Puccini e a Gioconda de Ponchielli. Alguns sopranos dramáticos da época cantavam a Norma, mas nenhuma Os Puritanos, papel de vozes ligeiras. Margherita Carosio iria cantar, mas ficou doente, e Callas substituiu-a, aprendendo o papel enquanto se apresentava como Brünnhilde em A Valquíria, de Wagner, em italiano, que é como se executava esse compositor na Itália nessa época. Dia 16 de janeiro foi a última apresentação na Valquíria, dia 18 ela entrou em cena como Elvira de I Puritani. Ela havia cantado a ária "Qui la voce" para o maestro Serafin e o diretor do teatro La Fenice, em Veneza, que chegaram à conclusão de que ela teria êxito. Foi um sucesso, o que levou ao convite para gravar o primeiro disco, em que cantou Bellini e Wagner.

Para quem não conhece esse repertório, Callas passou deste papel dramático: https://youtu.be/EwuyKZbm_H4?si=TTcbKV-NboKV1OPz&t=3552 para este outro polo da voz de soprano: https://youtu.be/UBTnjr-Rp0U?si=HwjDIWXWvtwH_6l5; tarefa aparentemente impossível, porém realizada. Nessas gravações, ouvimos Kirsten Flagstad e Margherita Carosio.

Irineu Franco Perpetuo publicou no 2 de dezembro, o dia do centenário, um interessante texto, "Maria Callas e o museu do imaginário da humanidade", em que devidamente lembrou que, embora a artista tivesse se dedicado ao resgate das óperas do bel canto, as escolhas estéticas de sua época hoje soam datadas. Ele não detalha a razão, mas se trata principalmente de cortes que se faziam ainda nos anos 1950 e 1960, às vezes de cenas inteiras (por exemplo, nenhuma das gravações preservadas com Callas de Lucia di Lammermoor, de Donizetti, contém o dueto de Lucia com Raimondo, tampouco o de Edgardo com o de Enrico), de árias completas dentro das óperas, de repetições dentro de árias (aparentemente, Callas nunca cantou as segundas estrofes de "Ah, fors'è lui" e de "Addio del passato" na Traviata, de Verdi), ou, muito comum, de cadências. Trinados não escritos e appoggiature também eram, em geral, omitidos pelas práticas então correntes de interpretação. 

Tratava-se de algo da cultura musical da época, que ela aprendeu com maestros como Tullio Serafin. Essas práticas variavam e atingiam também as óperas do período clássico: Vittorio Gui regeu a estreia dela em Medea, de Cherubini, e é a gravação mais integral que temos com ela da ópera: também ao vivo, Leonard Bernstein cortou até finais das árias da protagonista, Nicola Rescigno restaurou os finais mas fez outros cortes, bem como Thomas Schippers (em uma regência pouco inspirada, aliás); o disco de estúdio, com Tullio Serafin, mutilou severamente a obra.

No entanto... Como Robert E. Seletsky escreveu no artigo "The performance practice of Maria Callas" (publicado em The Opera Quarterly do outono de 2004), "Callas foi extraordinária em ser completamente convincente enquanto dava ao ouvinte uma informação incompleta". A força de sua interpretação é tal que a escutamos apesar dos cortes e das falhas das edições de parte do repertório que ela interpretava. Cabe em dois cds sua gravação de Os Puritanos de Bellini, com Tullio Serafin; Callas foi a primeira a gravar a integral da obra, mas, para ouvir uma execução completa da partitura, devemos recorrer a outros discos: por exemplo, a gravação regida por Bonynge e cantada por Joan Sutherland precisa de três cds para incluir toda a música... Essas gravações de Callas ficaram, contudo, por causa da excepcional interpretação da soprano, que constrói um personagem inteiro apesar dos cortes, tal era o seu poder de artista.

Dessa forma, precisamos de outra gravação, mais recente, que não de Galliera com Callas, para ouvir integralmente O Barbeiro de Sevilha; mas provavelmente nenhuma terá uma interpretação do dueto entre o Figaro e Rosina mais engraçada e mais sutil do que a de Tito Gobbi e Callas, desde o recitativo. 

A variedade expressiva de Callas é um dos elementos do seu poder de intérprete. Na ópera Norma, a obra que mais cantou, ela é uma sacerdotisa druida que secretamente mantém uma relação amorosa com um inimigo romano, Pollione, com quem já teve filhos (como ninguém notou, a ópera não explica). Os gauleses estão sob ocupação do Império Romano e querem se livrar do opressor. Ela não só está traindo seus votos de castidade, como seu próprio povo, a quem convence a não lutar contra os inimigos "profetizando" que Roma cairá "por seus próprios vícios". Mas Pollione se apaixona por uma sacerdotisa mais jovem, Adalgisa, e quer levá-la com ele para Roma. Adalgisa pede a Norma que a libere de seus votos de castidade e conta como conheceu o amado; o dueto é lindo, e tem algo de irônico: Norma observa para si mesma que a paixão aconteceu da mesma forma com ela -- mas, é claro, era o mesmo homem. 

Norma, curiosa, pergunta sobre o jovem; Adalgisa responde que ele é de Roma; a resposta deixa a sacerdotisa mais velha surpresa, e não é que ele está vindo encontrar sua amada? Quando Norma vê Pollione, exclama indignada o nome dele e passa a acusá-lo: "O non tremare, o perfido!".

A variedade de expressão é impressionante; a gravação de 1954 já a consuma, porém sugiro esta interpretação ao vivo na Rádio Italiana de Roma, com a regência de Serafin, e os cantores Ebe Stignani e Mario del Monaco: https://www.youtube.com/watch?v=zM0nKipuTv8

Quando Callas/Norma canta "l'amato giovane" (aos 9 segundos), ela é toda doçura: vê-se que ela gosta de Adalgisa; aos 25'', a palavra "Roma" é cantada com outra cor vocal, sugerindo surpresa. Aos 40'', "Ei! Pollion!", a ira é manifesta. Em 1'11'', a cor escura da voz em "Tremi tu" constrói o clima para o solo "O non tremare", com seus dois saltos para o dó agudo e a genial inflexão de Callas em "pei figli tuoi" (2'06''): quando ela menciona os filhos, ela ataca a frase mais suavemente. Logo depois, ela pensará em matá-los, pois seriam sacrificados pelos gauleses e, caso fossem levados a Roma, seriam escravizados. Não é capaz de fazê-lo, porém. No final da ópera, ela consegue salvá-los; Callas, naquela frase, revela esse traço essencial do caráter da personagem. 

Aqui, extraída da Biblioteca do Congresso dos EUA, esta parte do libreto da ópera com a versão em inglês:



Adalgisa a interrompe: ela não sabia de nada e fica perplexa. Norma começa um solo, "Oh! di qual sei tu vittima", seguido por um trio que contrasta as reações dos personagens. Terminando esta bela parte, Norma volta a acusar Pollione ("Perfido!", 6'54''); ele dá de ombros e chama Adalgisa para fugirem juntos, mas ela não quer; quando Norma diz para ela partir com ele, a jovem recusa mais fortemente: preferiria morrer a ficar com quem ela chamou de "esposo infiel". Norma tem novo solo, mandando o "indigno" ir embora, que também conduz para um trio. Os guerreiros druidas aproximam-se (o coro canta nos bastidores), o que faz o procônsul romano fugir sozinho. Callas aproveita e termina na oitava superior, em um belo ré agudo.

Tudo isso é sublime, embora haja alguns poucos cortes. Para ouvir a música com todas as cadências, temos a edição crítica, que Cecilia Bartoli gravou faz alguns anos com a regência de Giovanni Antonini: https://youtu.be/eKRW2b_WY6w?si=eZGdmoXs91prlwk7, disco de estúdio lançado em 2013.

No recitativo, não há realmente diferença, salvo na menor variedade de cores vocais da protagonista, bem como sua menor potência vocal. As três vozes combinam, porém, porque são todas leves: Sumi Jo, soprano ligeiro (categoria vocal que está mais próxima, provavelmente, do original de Bellini do que o meio-soprano) e o tenor John Osborn. Infelizmente, alguns trechos soam como uma canção de ninar, em vez do confronto aberto da gravação dos anos 1950, impressão que se fortalece com a cadência com que termina a primeira parte do trio. 

A segunda parte me parece confirmar essa impressão de uma expressão mais branda, apesar de o tema rápido aparecer mais vezes do que na edição usada nos anos 1950: https://youtu.be/_u8RC87iURU?si=Z_qKrg3HsnJiEjY9. Não sei se, ao vivo, uma orquestra de dimensões mais reduzidas como La Scintilla também pareceria ameaçar superar em volume essas vozes, inegavelmente menores do que as de Callas, Stignani e del Monaco.

Falei de volume, mas não é essa a questão de Callas que interessa aqui, mas a diversidade dramática e musical (em ópera, quando tudo dá certo, os dois elementos são um só). Hoje, meu momento preferido de Callas está na gravação ao vivo da Lucia di Lammermoor, de Donizetti, em Nápoles. Callas não gostou do maestro Molinari-Pradelli (estava acostumada a Karajan nessa ópera...), mas até John Ardoin, em seu livro The Callas Legacy, o elogia nessa ocasião. Lucia é uma jovem traumatizada que é salva da morte por um jovem que pertence a um clã rival, Edgardo. Ele é o único sobrevivente da família. É claro que eles se apaixonam e é mais evidente ainda que o irmão de Lucia, Enrico, está arruinado e quer casá-la com um nobre rico, Arturo, para resolver suas finanças. Edgardo viaja, Enrico aproveita para forjar uma carta a Lucia para que ela ache que foi abandonada pelo amado e aceite casar com Arturo. É o que ocorre, mas Edgardo volta e irrompe na igreja justamente depois de ela ter assinado o contrato nupcial... Escândalo. O irmão e o amado irão duelar mais tarde, enquanto isso os convidados de alguma forma se divertem. Mas vem a notícia: Lucia enlouqueceu e matou o noivo. Ela aparece no salão, com o vestido sujo de sangue, imaginando que está a casar com Edgardo... É claro que ela morre depois de uma cena de loucura de vinte minutos. No último ato, Edgardo já está no cemitério para o duelo; lá, é avisado de que Lucia morreu e o corpo dela chegará. Desolado, mata-se e acaba a ópera. 

A história vem de um romance que nunca li de Walter Scott. A força de Callas nessa ópera, além da voz inesperada para o papel, com mais potência do que os sopranos ligeiros que geralmente o cantam, está em dar verossimilhança ao personagem: a relação de Lucia com a realidade é frágil desde o começo. Infelizmente, a irresponsabilidade das instituições italianas de cultura na época fizeram com que a filmagem daquela apresentação fosse apagada. Ficou o registro de áudio, de qualidade muito inferior ao que os alemães fizeram em Berlim em 1955, quando Callas lá cantou sob a regência de Karajan. Por sinal, essa Lucia na Alemanha é o registro sonoro preferido de Ardoin da arte da cantora.

Mas destaco a interpretação de Nápoles por causa da questão do volume. Callas alternava na cena momentos de grandes dramaticidade com outros muito tranquilos. Nestes, a loucura é praticamente palpável: é evidente que uma calma como esta, "del ciel clemente un riso", não pode ser deste mundo: https://youtu.be/vubgJhit8SU?si=qXglZoGKApm4mXdR&t=591

O portamento que ela fez em "clemente" a 10'09'', em pianíssimo, sempre me corta o coração. A 10'56'', começa a cadência com flauta: Lucia perde a expressão verbal articulada e dialoga com o instrumento. Uma sequência de dós agudos em staccato gera murmúrios de admiração. Callas não canta o mi bemol no fim da cadência (ela o reserva para o fim da cena), mas o si agudo, com uma escala descendente repentina que gera um efeito bem dramático. O público enlouquece, claro; ouve-se algo parecido com vaia, mas são os diversos gritos de bis. O maestro tem que forçar a continuação da cena.

No primeiro ato, ela havia sido vaiada, não por ter errado alguma coisa, mas porque Nápoles era algo como um reduto de Renata Tebaldi (que jamais pôde cantar essa ópera, pois não tinha nem a extensão nem a agilidade necessárias). A força artística de Callas, contudo, conquistou o público hostil, façanha que podemos ouvir nessa gravação e que a grande Birgit Nilsson, outra das maiores cantoras do século XX, testemunhou na plateia, e contou em sua autobiografia, qualificando a cena de loucura como fenomenal.

Ela continuava a ser capaz de uma forte variedade de expressão mesmo quando, na década seguinte, sua voz perdeu boa parte da potência e da extensão. Prova-o esta produção de Tosca, em Londres, em 1964, no penúltimo ano de sua carreira nos palcos de ópera. Não se trata mais de bel canto, como em Bellini, autor da primeira metade do século XIX; a música é de Puccini e o estilo é mais moderno.

A produção é de Zeffirelli e a regência é de Cillario. Floria Tosca é uma cantora que namora um pintor republicano, Mario Cavaradossi, e revolucionário em Roma na era napoleônica. O chefe de polícia corrupto, Scarpia, quer prender o líder dos revolucionários, Angelotti, que fugiu, e cobiça sexualmente Tosca. Para saber onde ele está, tortura Cavaradossi. Scarpia, interpretado por Tito Gobbi, manda abrirem a porta para ela ouvir os gritos do namorado; surte efeito, ela se desespera: https://youtu.be/xnFlg1z1hPc?si=5ISvT0sQr5kUhO3O&t=990.

Ela repete "eu não posso mais" (17'16''), a segunda vez quase como um eco: a personagem mal consegue se expressar. Em 17'30'', quando pede a Mario para que a deixe falar, assume outra expressão: está próxima do choro. Em seguida, o uso da voz de peito quando fala da alma torturada é bem tocante. Em 18'42'', depois do grito do tenor, ela revela o esconderijo falando: mesmo sem cantar, Callas é completamente convincente. Depois, grita "Assassino!"; diante da fúria do torturador, ela suplica para ver seu namorado. O fato de ela não exagerar (algo raro em apresentações dessa ópera) torna tudo ainda mais real. Nesses três minutos, há mais expressão (de Callas e de Gobbi, também genial) do que em certas representações completas...

Essa riqueza é possível porque eles são grandes músicos e grandes atores: em ópera, essas duas veias artísticas têm que vir juntas, por isso o gênero é tão difícil e tão fascinante quando tudo, ou muita coisa, dá certo. Um dos papéis mais fortes de Callas foi a protagonista de Alceste de Gluck, uma obra do século XVIII, com regência de Carlo Maria Giulini, que foi miseravelmente preservada pelas instituições culturais italianas em um som péssimo. Infelizmente ela só a interpretou daquela vez, em 1954. 

A rainha Alceste, como se sabe, oferece sua vida aos deuses para salvar o rei Admeto. No final, é claro que os deuses, comovidos, restituem-lhe a vida e tudo termina bem: o lieto fine era uma tradição desse momento da história da ópera.



O segundo ato termina com esta aceitação do sacrifício, "A' vostri lai" (nas versões em francês, "Ah, malgré moi"). O trecho é lento, com frases em legato. Subitamente, a música muda e ganha urgência a partir de "O Ciel!". Alceste canta até "Este supremo pranto/ parte no peito meu coração."

Callas, com Giulini, canta com muita calma, até "O Ciel!": https://youtu.be/3k-RdBsggy8?si=ZY95-QyChqooufHx&t=5212; daí, ela faz um longo crescendo até repetir a última frase com grande ênfase: o público aplaude, embora a música não tenha acabado e o coro tenha começado a cantar.

O drama clássico está lá. Se comparamos com uma interpretação mais recente, a de Anne Sofie von Otter na regência de John Eliot Gardiner em 2009, temos outra coisa: ela também canta com suavidade a primeira parte da ária, mas o contraste na passagem "O Ciel!" é bem menor em dinâmica; com isso, a personagem não só parece sofrer menos como, paradoxalmente, soa menos resoluta. Com Gardiner, a repetição do trecho é mantida, porém von Otter não oferece realmente muito mais do que na primeira vez. Tampouco o maestro.

Em concerto, Callas podia escolher árias contrastantes em termos de exigência vocal e de afetos. Uma apresentação em 1958 em Los Angeles preserva o repertório de uma turnê nos Estados Unidos. Nas notas do cd, John Ardoin afirmou que ela estava em grande forma nessa ocasião. O repertório consistiu em La Vestale, Macbeth, O Barbeiro de Sevilha, Mefistofele, La Bohème e Hamlet: óperas de Spontini, Verdi, Rossini, Boito, Puccini e Thomas, o único francês. Os títulos são todos de ópera e do século XIX: de 1807 (Vestale) a 1896 (Bohème). Callas jamais cantaria música contemporânea: paradoxalmente, ela foi uma artista revolucionária que se especializou em cantar música do século anterior ao que viveu. 

No entanto, os estilos envolvidos no concerto são diferentes e as exigências vocais, também. A necessidade atual de chamar três cantoras no mesmo concerto para homenagear Callas se repetiria, se alguém tentasse repetir esse programa.

A voz dramática de Lady Macbeth contrasta com a leveza da Ofélia francesa: duas transcrições operísticas de peças de Shakespeare, com dois personagens que, mesmo no teatro falado, não devem ter a mesma voz. São duas peças sérias; já "Una voce poco fa", da personagem Rosina do Barbeiro de Sevilha, é cômica. Ouvem-se até algumas risadas no meio da ária quando ela canta a palavra "ma" ("mas", que introduz uma virada no discurso da personagem sobre si mesma).

Nenhuma dessas três árias estava no repertório de, para lembrar outra grande cantora, Renata Tebaldi, ao contrário de "L'altra notte in fondo al mare", do Mefistofele, de Boito, uma outra ária de loucura. No entanto, nunca ouvi de Tebaldi nada parecido com a coloratura, o surpreendente diminuendo no si agudo e os trinados que Callas realiza nesta apresentação.

Sobre as duas outras árias do programa, Callas é provavelmente a intérprete mais convincente da grande ária da Vestale; ela não se destaca, contudo, como Musetta de La Bohème: o personagem submerge na interpretação bombástica. Por sinal, ela nunca chegou a gravar esta ária de Puccini, tampouco interpretou Musetta no palco - ela apenas gravou em estúdio a ópera completa, mas no personagem de Mimi. Mas apenas essa seleção não convence. Anja Silya, por exemplo, cantou o papel título da Elektra, de Richard Strauss, e a Rainha da Noite de A flauta mágica, de Mozart. Trata-se de dois extremos vocais, mas ninguém diria que ela foi a melhor nesses papéis, nem mesmo muito boa... 

O que distinguia Callas era a profundidade com que ela estudava o personagem, tanto em termos dramáticos quanto musicais, para que pudesse apresentá-lo com uma convicção forte de intérprete. Pode-se até não gostar dela em um ou outro papel, mas não negar que ela havia preparado e apresentava uma concepção do personagem. Callas não era uma artista de rotina, ao contrário, por exemplo, das fracas produções do Metropolitan Opera House da época, conforme ela declarou em 1958, quando teve seu contrato com aquele teatro cancelado por Bing. A seriedade no trabalho, creio, faz parte do legado de Callas, que fez o público exigir, por exemplo, que os cantores de ópera fossem capazes de atuar.

Em suma, o recital é uma prova da variedade vocal e expressiva da intérprete: o registro apenas sonoro comprova não só as possibilidades da voz (e não o seu "uso do microfone", como escreveu certo comentarista: trata-se de uma gravação ao vivo e pirata), como sua força de grande atriz.

Por isso sua carreira foi mais curta do que a de outras colegas? É uma das teorias sobre o declínio vocal de Callas. mas ela mesma lembrava que o que fazia não seria nada estranho no século XIX. Seria raro, mas não único; um exemplo foi Lili Lehmann, que cantou na estreia de O anel do Nibelungo, de Wagner, em 1876, mas chegou a fazer algumas gravações antes de completar 60 anos, no início do século XX, onde ouvimos tanto Konstanze do Rapto do serralho de Mozart, como Leonore, do Fidelio de Beethoven, e La Traviata, de Verdi, ou seja, como soprano ligeiro, dramático e lírico. Creio que não encontraríamos hoje uma cantora que ousasse apresentar em concerto os três papéis. Com essas possibilidades, ela também cantou ao vivo e gravou trechos da Norma...

Callas sofreu mais, provavelmente, em razão de outra variedade: a de doenças e problemas de saúde, como lipodema, enxaqueca, dermatomiosite, hérnias, pressão baixa, vertigens, hérnias, sinusite, miopia e glaucoma, problemas de audição, problemas ginecológicos, insônia, dor nossos ossos, fadiga, inflamação nos maxilares, deficiência crônica de vitamina B12, depressão, alergias, hipermobilidade etc. A soprano Ziazan, que mantém o canal Ghosts of Opera, criou um vídeo, "Diagnosing Callas - What REALLY happened to her voice?", em que ela interpreta (bem) o fantasma da grande cantora e lê a longuíssima lista de sintomas conhecidos, apresentando a hipótese de que Callas teria sofrido da síndrome de Ehlers-Danlos: uma deficiente produção de colágeno, que pode afetar tudo no corpo. O vídeo apoia-se extensamente na biografia que Lindsy Spence escreveu, "Cast a Diva" (um trocadilho), que é realmente informativa. Lemos nela que em 1953, quando Callas estava tentando perder peso (acabou conseguindo), foi procurar um médico chamado Coppa por causa de seus problemas hormonais e de metabolismo: teve de ouvir que os artistas eram meio malucos e que tudo estava "na cabeça dela"... 

Era o tipo de resposta que costumava receber para suas queixas. Outro exemplo dessa incompreensão, registrado em áudio, está nos comentários de Alfred Hubay sobre a estreia da soprano no Metropolitan: ela não estava bem de saúde, mas esse funcionário do Met preferiu achar que suas dificuldades ou eram psicológicas e/ou efeitos do declínio vocal. É curioso ouvir também que Callas (vários diziam isso) não teria conseguido emagrecer nas pernas; na verdade, ela tinha problemas linfáticos, que levavam ao inchaço dos membros inferiores.

Ainda sobre questões de "cabeça", um possível sintoma que Ziazan não lê, mas que encontramos na autobiografia de Zeffirelli, era o de que cabelo de Callas parecia "morto" no final da vida. O colágeno é importante também para o cabelo.

Ela parecia estar quase sempre doente, sem encontrar realmente ajuda dos médicos, e sua vida encontrou outras dificuldades: ela estava na Grécia durante a Segunda Guerra e enfrentou a escassez de comida, ameaças de morte tanto dos italianos fascistas quanto dos comunistas que lutavam tanto contra os fascistas quanto contra os ingleses, para quem ela trabalhava; a péssima relação com a família, e não só com a mãe, que a chantageou e difamou; a tentativa de estupro no conservatório de Atenas; a incompreensão dos críticos e dirigentes de ópera de sua voz e de seu estilo; o escândalo que a imprensa criou por ela ter cancelado por doença uma récita de Norma em Roma, que gerou a ameaças de morte e a necessidade de deixar a Itália; para não falar do que ocorreu após ter-se apaixonado por aquele armador grego: depois disso, a vida pessoal comprometeu seriamente a carreira artística. Ademais, a saúde piorou bastante, e os vídeos da década de 1960 mostram-na muitas vezes com o fôlego curto, lutando contra o apoio, a voz instável.

Mesmo que não possamos saber com exatidão por que ela sofreu com tantos problemas médicos, evidentemente a saúde frágil comprometeu a carreira da cantora, que morreu subitamente do coração aos 53 anos. Dito isso, o legado artístico que ela deixou foi tão intenso que continua a irradiar-se sobre o mundo da ópera. Nesse sentido, sua carreira ainda não terminou: estamos apenas nos primeiros cem anos de Maria Callas. Nós passaremos, mas outros verão, caso o Antropoceno não destrua tudo, o segundo século d.C.


P.S. de 17 de dezembro: Não é só a imprensa paulista que pública textos superficiais é com erros sobre Callas: a Gramophone também. A revista até encurtou a carreira da artista numa linha de tempo errônea e mal pensada.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Uma vaia dada: Restos de "Don Giovanni", de Mozart (30 dias de ópera: Dia 7)

O público de ópera pode ser bem exigente com o que vê. Em música popular, não sei bem com quem comparar, pois o nível de indulgência com desafinação, erros em geral é muitas vezes maior nessa área, permitindo que a fraude seja adotada como método artístico, e que façam carreira pessoas que não conseguem executar ao vivo o que é produzido em estúdio. Trata-se antes de commodities do que músicos, e têm seus representantes na indústria de entretenimento para defender que a dublagem não passa de mero "recurso a ser usado".
É provável que o público de heavy metal seja ainda mais severo do que o de ópera, ao menos em termos de objetos jogados no palco. Foi histórica a vaia sofrida, acompanhada de projéteis, por Lobão no Rock in Rio em 1991, em uma noite dos metaleiros. O músico e sua banda tiveram de deixar o palco depois da segunda música. Dito isso, o público operístico também é capaz de, além de vaiar, perseguir o artista para espancá-lo, como aconteceu, por exemplo, com um Tannhäuser regido por Karajan em Viena em 1956. Max Lorenz, que estava em fim de carreira e não cantava mais esses papéis heroicos, teve de salvar o espetáculo na récita seguinte e foi muito aplaudido.
Sou contrário a esse tipo de violência, mas a favor da vaia. Viva a vaia, ademais. Nos regimes despóticos ela é proibida - ou imposta aos inimigos do poder.
Na conhecida Vida de Rossini de Stendhal, há uma passagem que cruza inesperadamente o mundo do espetáculo com a teoria política. Isabella Colbran, em crise vocal, não era vaiada em Nápoles porque era protegida do diretor do teatro e do rei:
A senhorita Colbran começava uma ária; ela cantava tão desafinado que era impossível suportar. Eu via meus vizinhos abandonarem a plateia, os nervos irritados, mas sem dizer nada. Que se negue depois disso que o terror é o princípio do governo despótico! e que esse princípio não opere milagres! obter silêncio dos napolitanos em cólera! Eu seguia meus vizinhos, nós iríamos fazer um passeio no Largo di Castello, e voltávamos depois de vinte minutos para ver se poderíamos surpreender algum duetto ou número de conjunto em que a inevitável protegida do senhor Barbaja e do rei não fizesse ouvir sua soberba voz em decadência. Durante o efêmero período do governo constitucional de 1821, a senhorita Colbran somente ousou reaparecer em cena precedida das mais humildes desculpas [...]
Montesquieu, em Do espírito das leis, explica o princípio dos governos despóticos. De fato, vaiar a eles ou a seus representantes implica arriscar a própria vida. Pois há estes momentos na História em que uma ópera se associa a um governante. Entre as vaias que marcaram época, estão as dirigidas contra o Tannhäuser em Paris, que era tanto direcionada à ópera em si (nisso, havia a história de o balé dessa obra ter sido realizado no primeiro ato e não no segundo, contrariando as tradições da cidade) quando contra Napoleão III, que havia decidido que a obra seria programada. Para Wagner foi dirigida parte da insatisfação com o governante.
O governo constitucional permite as vaias, nem sempre justas, é verdade, mas esse é um preço da democracia... Cecilia Bartoli foi vaiada em 2012 no Scala de Milão, em concerto regido por Daniel Barenboim depois de 19 anos sem cantar naquele teatro. Em resposta, ela deu um bis com uma peça que causou controvérsia (o final de La Cenerentola de Rossini)... Depois do concerto, afirmou que ser vaiada ali dava sorte e citou alguns dos exemplos: Herbert von Karajan, Maria Callas, Franco Corelli, Luciano Pavarotti... No caso dela, escolhida recentemente para chefiar a Ópera de Montecarlo a partir de 2023, realmente não se podem negar a sorte e o talento.
Em geral, não vejo grande problema se a voz de um cantor quebra ao tentar executar uma parte difícil. Como muitas vezes no repertório operístico estamos diante dos limites da voz humana, costumo admirar a valentia do intérprete em tentar realizar algo difícil. Já vi isso acontecer várias vezes e nunca vaiei por essa causa. Presenciei, sem tomar parte, um Rigoletto em que o tenor errou muito audivelmente na cadência de "La donna è mobile" e foi vaiado (não por mim, mas por um bom número do público). Achei curioso que o cantor assumisse uma cara de deboche diante da plateia, apesar do erro evidente, o que não deixava de ter relação com o personagem que encarnava, o cínico duque...
Ademais, a cadência não corresponde ao que Verdi, o compositor, originalmente escrevera. Ouçam o original, muito mais simples, e a cadência que a tradição colou à famosa ária, nos dois casos com Roberto Alagna. Às vezes, a vaia decorre de o maestro ter escolhido executar a obra original, em desacordo com a expectativa do público. Aconteceu com o tenor Salvatore Licitra, já falecido, a quem o regente Riccardo Muti impôs cantar a famosa ária "Di quella pira", da ópera Il Trovatore, sem aqueles dós agudos do final, que não foram escritos por Verdi. Ouçam o que o compositor escreveu e comparem com o que a tradição de execução da obra criou (é verdade, porém, que aqueles dós não soam tão bem na voz lírica de Licitra). Vaiaram cantor e maestro, mas o atingido foi o compositor, que não havia escrito aquelas notas extremas. Uma boa parte do público de ópera aceita a arte musical desde que ela se subordine a façanhas atléticas.
Pobres cantores, que cada vez mais têm de competir com os mortos, em razão das gravações.
A vaia mais colossal que já vi foi para um diretor cênico, Gerald Thomas; contei essa história em outra nota, sobre Tristão e Isolda, de Wagner. Thomas colocou cocaína (em vez do filtro amoroso; achei uma boa solução), psicanálise, moda e judeus ortodoxos naquela história trágica de amor. Bastante curioso, apesar do canto muito irregular, dos cortes na partitura e da regência. Os urros de insatisfação da plateia no Rio de Janeiro irromperam quando Thomas apareceu armado como uma Valquíria diante do público. Soaram tão fortemente que o ar pareceu ter-se solidificado. Os neonazistas ameaçaram o diretor. Neste caso, eu aplaudi o espetáculo.
Uma das vaias que eu dei, contei-a neste blogue, a propósito de uma produção paulista de Don Giovanni; não aos cantores, por certo (lembro que Andrea Rost destacou-se como Donna Ana), mas a toda a concepção do espetáculo, que, apesar de ridícula, não me arrancaria vaias se não tivesse cortado um personagem do final de uma cena (Leporello) e suprimido mais da metade da cena final. A estátua do Comendador, assassinado por Don Giovanni em duelo ao tentar impedir o estupro de sua filha pelo libertino, aparece para jantar, depois de ter sido jocosamente convidada pelo Don no cemitério. Mas ela não se alimenta do pão terrestre; o Comendador veio para exigir que o assassino se arrependa dos pecados. O servo, Leporello, apavora-se, mas permanece até o fim da cena trágica, em que Don Giovanni é arrastado aos infernos. Algumas representações até o início do século XX encerravam a ópera aí, com esse fim, apreciado pelos românticos. No entanto, há ópera tem mais uma cena, bem século XVIII, em que os outros protagonistas ainda estão a procurar o libertino para puni-lo; Leporello chega subitamente e narra o castigo que seu antigo senhor recebeu. Todos, então, entoam a moral da história: "Este é o fim de quem faz o mal". Só este conjunto final sobreviveu.
A mutilação da obra de Mozart teria sido fruto da exótica concepção do encenador ou simplesmente de falta de ensaio da música? Não vi explicação alguma, tampouco alguma nota na imprensa sobre o ocorrido. Uma eventual insuficiência de ensaios poderia explicar o corte de mais da metade da cena final; esse corte exigiria, para que Leporello trocasse de figurino, sua ausência na cena do Comendador (ele saía correndo sem cantar sua parte).
Se a cena final tivesse sido poupada da tesoura, o Leporello poderia ter cantado até a queda de Don Giovanni, pois ele demora um pouco para entrar, tendo em vista a arquitetura teatral bem planejada por Mozart e Da Ponte. No caso, comprometida pela encenação e pela direção musical. Vaiei ambas.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Após 400 anos V: Domingo e jornalismo versus música

Eu havia escrito que esse relançamento da coleção dos 400 anos da ópera pela Folha de S.Paulo trazia três gravações de Placido Domingo. Os fãs desse tenor, ainda em atividade (mas principalmente em papeís de barítono), ainda notariam que a única gravação com Pavarotti está longe de ser uma das melhores do tenor italiano.
Também escrevi sobre erros do jornal que parece não ter muita ideia do que está vendendo. Outro dia, listaram três óperas em que Maria Callas teria se destacado, e uma delas teria sido Tristão e Isolda, que ela só cantou no início da carreira e sempre em italiano.
Nas duas últimas gravações de Domingo nesta coleção (a primeira foi o Guarani, que sofre por causa da regência), há erros muito mais significativos do que se confundir com o repertório de uma grande cantora.
Primeiro, no texto do disco da Aida. A gravação é boa. Imaginava que o maestro James Levine, desde 1976 o diretor musical do Met, de fato faria bonito com as forças do Metropolitan Opera House. Existem várias outras gravações de Placido Domingo mais jovem nessa ópera, mas ele continuava sendo interessante. O agudo forte nunca foi seu forte, mas o canto em piano é muito bonito, principalmente na última cena.
Na primeira cena, o tenor tem a célebre ária "Celeste Aida", que deve acabar com um si bemol com um diminuendo: Franco Corelli podia cantar assim, e não Domingo, que emite o si bemol agudo do final da ária forte, para depois emiti-lo piano uma oitava abaixo. É uma solução alternativa que também Toscanini adotou em sua gravação com Richard Tucker.
É, em regra, muito mais fácil cantar as notas mais agudas forte do que piano (daí a solução que Domingo adota para aquela ária), e Aprile Millo neste disco consegue produzir notas mágicas nessa última dinâmica. Ela cantou esse papel no Teatro Municipal do Rio de Janeiro na época de Fernando Bicudo. Seu centro e seu grave, nesta gravação, soam robustos e fazem jus à eloquência da ária "Ritorna vincitor". A ária "O patria mia", não é tão bem-sucedida, pois sua voz se torna metálica na difícil frase ascendente até o dó agudo, que não é emitido dolce. Compreensível. No YouTube, podem ser ouvidas outras mil cantoras com dificuldade nessa nota, como Callas, Tebaldi, Cheryl Studer...
O crítico da Grammophone achou as vozes graves destes discos, em termos de interpretação, menos marcantes (com exceção de Samuel Ramey), e eu concordo, embora seja bom ouvir uma voz tão segura quanto a de Dolora Zajic conquistar os extremos (grave e agudo) da Amneris.
O problema é que o texto explicativo do disco afirma que a voz de meio-soprano (que é o registro vocal mais apropriado para Amneris) não existe na atualidade. Penso bem o contrário: as mulheres intérpretes que mais me interessam hoje ou possuem esse registro ou são contraltos (como Nathalie Stutzmann - que é tão excepcional que pode cantar e reger simultaneamente -, Ewa Podles, Marie-Nicole Lemieux, Sara Mingardo).
Lembro aqui somente de duas: a genial Cecilia Bartoli, que alguns consideram soprano por ela ter cantado alguns papéis geralmente atribuuídos a esse registro, o que é comum, porém, para um meio-soprano agudo. Seus detratores costumam acusá-la de ter uma voz pequena e de cantar um repertório "obscuro" para não ser comparada a outras cantoras. Quanto à primeira crítica, a cantora sabiamente escolhe música que não depende do volume, e sim da agilidade. Ela canta Vivaldi, e não Wagner - ao contrário de Waltraud Meier, outra meio-soprano importante, que também canta papéis de soprano. Seria ridículo acusar Meier de ser má cantora por só ter um grande volume e ser desprovida da agilidade para cantar Broschi, o que ela nunca fez - cada macaco no seu galho.
Em relação à segunda crítica, uma das coisas que torna Bartoli incomparável é justamente a pesquisa do repertório. Entendo que pessoas conformistas queiram que toda meio-soprano se limite a cantar Carmen, Cherubino e Octavian. Outras certamente preferirão alguém que amplie as fronteiras do repertório, o que ela certamente já fez.
Anne Sofie von Otter é outra meio-soprano que também cantou papéis de soprano (como Mélisande) e cujo repertório é escolhido (e cantado) com muita inteligência. Sueca, ela interpreta muito mais o repertório germânico do que a italiana Bartoli. Sua extensão vocal é menor do que a de Bartoli, mas a variedade musical e linguística de seu repertório é bem mais impressionante - vejam-na, recentemente, interpretando a célebre ária Ombra mai fu da ópera Xerxes (Serse, em italiano), de Händel.
Não se trata, nem um pouco, de cantoras conformistas. Por isso devem ser ignoradas? Um rompante conservador levou a esse erro, de considerar, em um delírio vocal-genocida, inexistente a classificação vocal de Stephanie Blythe, Guillemette Laurens, Olga Borodina, Vesselina Kasarova, Joyce DiDonato?
Outro erro está no anúncio de "O elixir do amor", ópera cômica de Donizetti. O jornal, anunciando-a, inventou que a ópera, que estreiou em 1832, traz "uma alusão satírica e declarada à ópera 'Tristão e Isolda', de Wagner", estreada em 1865, quando o compositor italiano já estava morto...
Como o elixir é do amor, e não do futuro, posso afirmar que Donizetti não estava antevendo que um compositor germânico mudaria a história da música com uma ópera baseada em lenda medieval. A comédia italiana apenas se refere àquela antiga lenda, de que Wagner, obviamente, não foi o autor...
O libreto de Wagner, por sinal, apresenta uma versão bastante alterada da história medieval. O curioso é que a ópera Tristão e Isolda (regido por Furtwängler) também está na coleção, mas o pessoal do marketing do jornal aparentemente não sabe o que essa ópera significa em termos artísticos, tampouco que, no início do século XIX, não havia nenhuma música parecida com esta. Eis a revolução.

Nota: Comprei o disco do Elixir do Amor. Desta vez, o texto explicativo está certo. Provavelmente, quem escreveu o texto no jornal não leu o do disco.
Nele, ouçam Placido Domingo cantando "Una furtiva lagrima"; a interpretação é de parar o trânsito.

P.S.: Esqueci a Magdalena Kozená, sei lá por que razão. Ouçam-na em Kapsberger, "Già risi del mio mal", numa gravação talvez clandestina e nesta, oficial. Para os que preferem ópera e/ou querem vê-la de gravata, um dos seus papéis masculinos (Mozart escreveu-o para um castrato), o Idamante na ópera Idomeneo.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Bartoli, música, profanações

A Folha de S. Paulo publicou em 3 de janeiro deste ano trechos de interessante matéria do jornal The Guardian com a meio-soprano Cecilia Bartoli. O artigo, completo, é muito mais interessante do que a mutilação que saiu no jornal brasileiro, e pode ser lido nesta ligação: http://www.guardian.co.uk/music/2010/dec/23/cecilia-bartoli-mezzo-soprano
Ainda não pude vê-la ao vivo. Mas não vou negar que ela é um dos maiores intérpretes do canto lírico de hoje - entre as cantoras, a outra que acompanho é Anne Sofie von Otter (também meio-soprano). Mais do que isso, Bartoli reservou seu lugar na história pelo que já fez. Não se trata apenas da voz, mas da inteligência e da pesquisa com que encontra seu repertório.
Pesquisa: pois ela optou não pelo caminho fácil, passar a vida cantando Cherubino, Dorabella, Rosina, Carmen etc. Em vez dos papeis batidos, pesquisou o repertório e gravou diversas árias que nunca tinham sido registradas em disco: de Vivaldi, Mendelssohn, Pacini, Gluck, Salieri (o compositor italiano que alguns, por causa de um filme idiota que ganhou umas estatuetas em Hollywood, pensam que teria assassinado Mozart), Caldara, Alessandro Scarlatti...
Lembro de entrevista a um jornalistazinho inglês, na década de 1990, completamente incrédulo diante da afirmação da cantora de que iria se dedicar ao repertório barroco, e não ao romântico (que é mais vendável). Pois foi o que ela fez, ofendendo as expectativas dos críticos, que tentam retrucar afirmando que, se ela faz pesquisas em biblitoecas e recuperas obras relevantes e esquecidas, é porque ela teme ser comparada com outras cantoras! Um exemplo dessa crítica que não perdoa a falta de medicocridade da cantora está aqui.
Ela optou por não ser óbvia. Em pleno ano Mozart, o que ela fez? Enquanto diversos músicos lançaram previsivelmente discos dedicados a esse compositor, ela nos deu "The Salieri Album", com onze árias jamais gravadas!
Ela lançou um disco "Maria" dedicado - a quem, Callas? Não: Malibran, com uma ária composta pela própria diva do século XIX.
Quem sabia que a Igreja Católica, essa instituição esclarecida, havia proibido a ópera em Roma? Bartoli não apenas sabia como gravou árias das cantatas e oratórios que os compositores criaram para sobreviver à censura religiosa. Nesse disco, Opera proibita, temos "Lascia la spina, cogli la rosa", primeira versão de uma famosíssima ária que Händel depois reaproveitaria na ópera Rinaldo, composta para os palcos londrinos, com o título "Lascia ch'io pianga la cruda sorte".
Bartoli é, pois, um espírito que profana a caretice da cultura musical (as capas de seus discos bem o mostram). O fantástico é que ela, mesmo com o repertório fora do esquadro, vende horrores com seus discos. Além da seriedade artística, ela extravasa a alegria de fazer música. Vejam este curto vídeo de 2008: trata-se de concerto em que ela canta o final da ópera La Cenerentola (A Cinderela) de Rossini. Parece ter sido gravado clandestinamente (e só tem a conclusão da ária), o que torna ainda mais autêntica a interpretação. Angelina, a Cinderela conseguiu, nesse momento, vencer todas as adversidades e casar com o príncipe. A alegria da personagem junta-se à da cantora.
A música exige uma agilidade ímpar, o que Bartoli tem de sobra, bem como extensão. Seu volume é pequeno, o que não é um problema, pois ela não canta o repertório em que uma voz grande seria necessária (a Amme de Richard Strauss, a Fricka de Wagner, Amneris de Verdi etc.) Por sinal, na natureza, as vozes muito ágeis geralmente possuem menos volume, e as vozes potentes, menos agilidade. Exceções como Maria Callas, Helge Rosvaenge, Joan Sutherland, que tinham as duas qualidades, são mesmo exceções.
A entrevista no The Guardian toca no problema da composição contemporânea de música clássica ou erudita. Ninguém compõe para Bartoli, ela se queixa. Imagino que alguns compositores enviar-lhe-ão obras depois desse desabafo. Mas a queixa tem sua razão de ser: lembro da esposa de compositor erudito brasileiro, que gosta de música eletroacústica, afirmando para mim que canto lírico "não tem nada a ver". De fato, para esse tipo de música, a voz falada e ruídos já são materiais suficientes.
Ademais, há uma crise na composição de música erudita. Lembro do romance O jogo das contas de vidro - na ordem de Castália, que Hermann Hesse imaginou, não era mais permitido compor obras novas, e a arte reduzia-se ao já feito; como lemos na tradução de Lavinia Abranches Viotti e Flávio Vieira de Souza, "O fato mais importante decorrente dessa nova orientação, ou antes, dessa nova classificação dentro do processo cultural, foi uma ampla renúncia à criação de obras de arte, a gradual separação da vida espiritual das atividades profanas [...]" (São Paulo: Brasiliense, 1969, p. 13).
Os programas dos concertos e dos teatros de ópera cada vez mais assemelham-se a esse quadro: dedicam-se à música composta pelos mortos, e a composição de hoje é relegada (mas há os de hoje que compõem como os mortos e gozam de um sucesso efêmero).
Hesse talvez tenha visto bem o problema nesse romance. De fato, para criar não é preciso apostar na profanação? E deixar o espaço monástico da ordem? E esse espírito monástico não prevaleceria no público e nos produtores dessa música - como em certos compositores universitários, acadêmicos?
Para terminar, um momento profano. Mais um Rossini, agora uma canção com Thibadeut no piano: Bartoli, como a pequena órfã do Tirol, suplica piedade a Deus.