O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

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domingo, 19 de março de 2017

30 dias de canções: Schubert e o duplo

30 dias de canções

Dia 27: Uma canção que cancela as canções

"Der Doppelgänger" ("O duplo"), uma das consequências de Franz Schubert ter lido Heinrich Heine. Pena que o compositor morreria pouco depois.
O editor Haslinger, após a morte do compositor em 1828, reuniu postumamente as últimas canções (com exceção de "Der Hirt auf dem Felsen") sob o título Schwanengesang ("Canto do cisne"). Não se trata, portanto, de um ciclo como Viagem de inverno e A bela moleira, concebidos pelo compositor. 
Nesse conjunto, está a célebre "Serenata", sobre poema de Ludwig Rellstab (vejam o tenor Peter Schreier e o pianista Rudolf Buchbinder), que os cantores populares também interpretam, se tem voz para tanto (por exemplo, a rainha do rádio Ângela Maria e, da geração mais nova de cantores brasileiros, Lívia Nestrovski).
No entanto, os poemas de Heine que estão nesse conjunto póstumo destacam-se por uma sonoridade própria e estão entre as obras máximas de Schubert e da canção em geral.
Entre elas, "Der Doppelgänger" talvez seja a mais desconcertante. Sugiro ouvi-la na voz de contralto da cantora e maestrina Nathalie Stutzmann, acompanhada por Inger Södergren. https://www.youtube.com/watch?v=vCv9i-1IRFA.
A primeira estrofe do poema de Heine descreve o ambiente: noite quieta, ruas silenciosas. O amor do narrador ali morava; ela deixou a cidade, mas a casa ainda está no mesmo lugar...
Na segunda estrofe, ele vê outro homem, que está atormentado pela dor. Ele se horroriza quando vê a face dele, iluminada pela lua: é a sua própria forma... A declamação chega ao desespero em "meine eigne Gestalt" (minha própria forma): https://youtu.be/vCv9i-1IRFA?t=2m15s; vejam a expressão de Stutzmann nesse momento: ela exprime o desgosto do narrador em deparar-se com o duplo.
Na terceira e última estrofe, ele se dirige a seu "pálido companheiro" e indaga por que ele "macaqueia" a dor de amor que o torturou naquele lugar, tantas noites, em um tempo antigo.
Depois do forte em "so manche Nacht": https://youtu.be/vCv9i-1IRFA?t=2m48s, vem o melisma em alter (velho, antigo) e a música vai desaparecendo no piano.
Ian Bostridge, conhecido tenor e intérprete de Schubert, em A Singer's Notebook, destacou a "terrível simplicidade e severidade", a "subversão radical do impulso melódico" das canções sobre poemas de Heine em O canto do cisne, que "ainda chocam e parecem ir muito além dos poemas de amor perdido em que se baseiam".
De fato. Esta não foi a última canção de Schubert, mas poderia ter sido. Principalmente, ela aponta para o fim de um estilo de canção mais próximo da popular (que continuaria, mas pareceria cada vez mais anacrônico). Pode-se ver "na paralisação da linha vocal - o que expressa o estado mental patológico do narrador - apenas o melisma final tem algo que lembra a forma da canção", conforme lembra Helene Wanske na apresentação da gravação que o barítono Bo Skhovus fez do ciclo Schwanengesang
No "alter Zeit", isto é, no tempo antigo é que aparece na linha vocal um perfil mais cantabile... Aqui, Schubert parece dar adeus a uma forma de canção.
Brigitte Fassbaender, em nota à própria gravação com o compositor e pianista Aribert Reimann, vê nessa canção uma ruptura "em direção a um novo mundo". 
Seria o desgosto de deparar-se consigo mesmo, com o duplo, uma exasperação com os limites da forma? Não sei, e precisaríamos que Schubert tivesse vivido mais para que soubéssemos aonde ele iria, que formas novas ele inventaria
De qualquer forma, Der Doppelgänger aponta novos desafios para os compositores de canções e, nesse terreno, Schubert nunca seria ultrapassado.


Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
Dia 13: Baudelaire, Duparc e volúpia
Dia 14: Bornelh, o amor e a alba
Dia 15: Rodgers e Hart e o desejo de arte
Dia 16: Piazzolla, Trejo e o irrecuperável
Dia 17: Janequin, ir à cidade que grita
Dia 18: Amin, Garfunkel e outros pássaros
Dia 19: Wolf e Mörike imaginando a ilha
Dia 20: A loucura, Schumann e Andersen
Dia 21: Tiganá Santana e a memória negra
Dia 22: A boca seca da revolução: Miguel Poveda e Narcís Comadira
Dia 23: Encontrar o dia novo, Villa-Lobos e Ferreira Gullar
Dia 24: Bosco e Blanc vs. racismo e censura
Dia 25: Sarah Vaughan e os palhaços
Dia 26: Mahler, o marginal


domingo, 26 de julho de 2015

O fechamento da Camerata Aberta e a devastação como teoria da gestão

Em algumas áreas da administração pública brasileira, parece que os titulares de algumas pastas são escolhidos ou elogiados publicamente pelos rastros de destruição que deixaram, ou seja, pelo que não deixaram, mas extinguiram e desfizeram. Esse tipo de obra parece credenciá-los para carreiras mais altas no Estado, nesta época de desmanche.
Se certamente esse é o caso da Fazenda, pode-se observar o mesmo na Educação e na Cultura. Lembrem, por exemplo, da extinção da Sinfonia Cultura.
[Acréscimo em 12 de agosto de 2015: o desmantelamento dos sistema de Rádio e de Tevê Cultura também deve ser mencionado; assinei há pouco uma petição avaaz "Eu quero a RTV Cultura viva".]

No último 22 de julho, ocorreu um dos últimos concertos do projeto Camerata Aberta, grupo musical que foi criado como o conjunto de câmara da Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP Tom Jobim), ligado à Secretaria Estadual de Cultura e à organização social (OS) Santa Marcelina Cultura.
No seu disco "Espelho d'água", publicado pelo SESC/SP, lemos que a inspiração para a criação do grupo veio nada menos do que de uma sociedade musical criada por Schönberg para promover a música contemporânea: Wiener Verein für musikalische Privataufführungen (vejam a impressionante lista das obras e compositores apresentados pelo conjunto vienense, sem paralelo com nenhum grupo brasileiro) que não durou muito, mas foi fundamental como modelo para outras sociedades musicais e para a experimentação artística.
O texto do disco, escrito por Flo Menezes, pede apoio ao grupo, o único do gênero, na época, estável no Brasil.
A chamada estabilidade dos conjuntos artísticos bancados pelo Estado é, em geral, precária, porque esses projetos não são vistos como projetos de Estado, mas de um governo, ou de um partido, ou menos do que isso: no Estado de São Paulo não há alternância política há muito tempo, o que não impede o abandono de iniciativas, estruturas, órgãos.