O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

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domingo, 1 de março de 2020

Uma ópera que se tornou revolução: "O anel do Nibelungo", do amigo de Bakunin (30 dias de ópera: dia 29)

Entre os não muito numerosos compositores que participaram das revoluções do século XIX, está Richard Wagner. Infelizmente, a decadência (mas não a de ordem musical) veio com o tempo, e o fim de sua vida o veria no meio da aristocracia alemã mais reacionária, para o horror de Nietzsche.
A amizade com Bakunin e militantes socialistas inspirou Wagner a escrever o embrião de O anel do Nibelungo ("Der Ring des Nibelungen"; nota: algumas pessoas que não sabem alemão veem o "des", o genitivo, e querem escrever "dos Nibelungos" em português, mas, se fosse plural, seria "der"). Trata-se da impressionante saga formada por quatro óperas, O ouro do reno ("Das Rheingold", o prólogo, que dura apenas umas duas horas; as outras levam de quatro a cinco horas sem contar os intervalos), A Valquíria ("Die Walküre"), Siegfried e Crepúsculo dos Deuses (Götterdämmerung). Os quatro títulos nasceram a partir do que foi planejado inicialmente em 1848 como uma só ópera, A morte de Siegfried.
Daquele ano, de revoluções na Europa, em diante (a obra só estreou em 1876, depois de vários percalços, entre eles o exílio, e a interrupção para a composição de Tristão e Isolda e d'Os Mestres Cantores), o projeto foi aumentando em proporções, até chegar a esse espetáculo que exige quatro noites e muito trabalho dos diretores, dos cenógrafos, dos iluminadores, da orquestra, dos cantores, do regente, dos produtores... É uma façanha montá-lo, e também porque a música é difícil de executar. Alguns dos papéis exigem muito dos limites do corpo humano, especialmente Wotan (nem para a estreia Wagner conseguiu encontrar um baixo-barítono que pudesse cantá-lo, e se contentou com um barítono que, se não podia fazer justiça aos graves da parte, pelo menos cantaria os agudos), Brünnhilde (soprano dramático) e Siegfried (tenor dramático).
Como tantas vezes ocorre em Wagner, o ciclo é inspirado na mitologia nórdica. O que é interessante é a ligação do ciclo com as atividades revolucionárias do compositor e de seu amigo de Bakunin. Como se sabe, os levantes de 1848 fracassaram nos Estados alemães. Leio na biografia de Robert W. Gutman (Richard Wagner: The man, his mind, and his music; o autor é insuspeito de simpatia com o biografado, e expõe com clareza os problemas éticos, especialmente o antissemitismo do compositor) que o drama de A morte de Siegfried foi concebido como "teatro da revolução".
Ele quase foi preso com Bakunin em Dresde, mas teve a ideia de dormir em um mosteiro em Chemnitz; durante o sono, o outro revolucionário foi preso. Depois, Wagner conseguiu fugir  tomando o nome de um amigo para viajar incógnito. Depois de uma anistia geral, ele acabou por voltar em 1863.
Wagner revolucionou a música ocidental. No entanto, a presença da revolução social em O anel só foi realmente colocada no centro da obra por Bernard Shaw, no conhecido The perfect Wagnerite: A commentary on the Niblung's Ring, de 1898.
Na edição de 1922, posterior, pois, à Revolução Soviética, ele acrescentou o comentário de que tanto Wagner quanto Marx
[...] profetizaram o fim de nossa época; e apesar de em 1913 aquela época parecesse tão próspera que a profecia parecia ridiculamente desprezível, em dez anos o centro saiu da Europa [...] Alberich prosperou tanto que chegou a se julgar imortal; e suas alianças com Wotan colocaram seus filhos e filhas sob a influência, perigosa para o comércio, de ideais militaristas feudais. [...] Alberich nunca acreditaria que o velho caminho levaria ao abismo, nem exploraria novos; e as massas não conheciam nada sobre caminhos, e muitos sobre a miséria.
Alberich, na primeira cena de O ouro do Reno, é o anão que renuncia ao amor para roubar as riquezas do Reno. Wotan, necessitando de dinheiro para pagar a construção do Walhalla, o castelo dos deuses, pelos gigantes Fafner e Fasolt, resolve com o deus Loge enganar Alberich e roubar o ouro, bem como, entre outros objetos, o anel cuja posse daria o domínio do mundo. Conseguem fazê-lo, mas são obrigados pelos gigantes a conceder até o anel, que foi amaldiçoado por Alberich: https://youtu.be/3ZP-yXsNV2E?t=6098. Nesta produção dirigida por Patrice Chéreau e regida por Pierre Boulez, Wotan é interpretado por Donald McIntyre, Loge, por Heinz Zednik, e Alberich, por Hermann Becht.
Essa foi a produção do centenário do Anel, no teatro de Wagner, em Bayreuth. Chéreau e Boulez montaram a ópera no mundo industrial. Os deuses estão lá, integram a elite.
Os humanos aparecem apenas em A Valquíria e, com eles, aparecem as insurgências. N'A Valquíria, onde encontramos, no início do terceiro ato, a famosíssima Cavalgada das Valquírias, temos a revolta da mulher raptada e casada à força, Sieglinde, que abandona seu algoz e marido, Hunding, por um estranho, Siegmund, que ela descobre ser seu irmão.Ambos são filhos de Wotan.
A descoberta não demove nenhum dos dois de consumar a paixão. Neste trecho, ele canta para ela a canção da primavera, e ela responde: "Tu és a primavera" ("Du bist der Lenz"): https://www.youtube.com/watch?v=NB5e62wSjEQ. Jeannine Altmeyer interpreta Sieglinde, Peter Hofmann, o irmão e amado.
Porém, por força dos tratados e da respeitabilidade das leis familiares, impostas pela Deusa Fricka, Wotan se vê obrigado a punir com a morte Siegmund. Brünnhilde, a Valquíria e também filha de Wotan, comove-se com o amor do casal, desobedece a ordem de deixá-lo morrer nas mãos de Hunding e tenta salvá-lo. O próprio Wotan, porém, quebra a espada de Siegmund, Notung, e ele perece na luta.
Brünnhilde consegue salvar Sieglinde e a faz correr para uma floresta selvagem. Ela já está grávida, conta-lhe a deusa. Wotan vem punir a filha desobediente com a perda da divindade e, com isso, a ter que se submeter a um homem (vejam a crítica ao patriarcado: ele é uma punição para as mulheres), mas ela  consegue convencê-lo a cercá-la de fogo no alto do rochedo, para que somente alguém destemido possa encontrá-la, beijá-la, despertá-la do sono e conquistá-la: https://youtu.be/SfcEfYN6PjU?t=2990. Gwyneth Jones interpreta Brünnhilde, e Wotan é encarnado por Donald McIntyre.
Este homem sem medo será Siegfried, o filho de Sieglinde (que morrerá no parto) e Siegmund.
No final de O crepúsculo dos deuses, os deuses enfim são aniquilados e o anel é devolvido para o rio. Vejam como termina a famosa cena de imolação, em que Brünnhilde devolve o que foi roubado das Filhas do Reno e ordena a construção da pira que incendiará a morada dos deuses: https://youtu.be/_ww4JHkloa8?t=14272. Hagen, filho de Alberich, ainda tenta recuperar o anel, mas é afogado pelas Filhas do rio. Vejam o que Chéreau reservou para o fim: a partir da iniciativa das crianças, os humanos voltam-se para o público.
E o que a plateia fez? Vaiou! Esta produção foi bastante hostilizada quando estreou em 1976, mas, com o tempo, foi ovacionada (a filmagem é de 1980, os aplausos são intensos). A montagem foi revolucionária e incomodou a extrema-direita que frequentava o Festival de Bayreuth, muito atrasada esteticamente (queriam um Wagner de conto de fadas) e, claro, politicamente.
Gwyneth Jones, rememorando as apresentações em depoimento para a revista Diapason, a propósito do falecimento de Pierre Boulez, lembra que a equipe recebeu ameaças de morte por causa da montagem. Nos anos 1930, imagino que elas teriam sido consumadas. Nesse sentido, o nazismo foi antiwagneriano; pois nada mais fiel à música de Wagner (claro que não falo aqui do ideólogo antissemita, mas do compositor, cujos intérpretes mais destacados foram tantas vezes os judeus, de Hermann Levi, o regente que estreou Parsifal, a Daniel Barenboim) do que colocar a revolução no centro do palco e, dessa forma, tentar instaurá-la no mundo.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem (Der Kaiser von Atlantis, de Viktor Ullmann e Peter Kien)
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema (Orfeu, de Monteverdi e Striggio, e Murilo Mendes)
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro (A Judia, de Halévy, e Em busca do tempo perdido, de Proust)
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme (La serva padrona, de Pergolesi, por Carla Camuratti)
Dia 26: Uma ópera que se tornou música (O Anjo de fogo, de Prokofiev)
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera (Don Juán segundo Mozart e segundo Schulhoff)
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto (Nabucco, de Verdi)
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Uma risada favorita: "Platée", de Rameau, e a loucura (30 dias de ópera: dia 13)

No segundo ato de La Bohème de Puccini, o coro precisa fazer dois tipos de risada diferentes consecutivas. Na primeira, a altura das notas e sua duração é escrita; na segundo, quando os homens entram, a altura não é determinada, mas o ritmo foi escrito.
Ao vivo, não é incomum ver imprecisões nesse trecho, e até em gravações de estúdio. Gosto destas duas gravações da década de 1950, esta, regida por Thomas Beecham: https://youtu.be/fUo1rGsCQM4?t=141; e a por Antonino Votto: https://youtu.be/e2hdaAK_kT0?t=2559.
Nos dois casos, a risada está escrita para ser executada de certa forma, não ad libitum.

Logo depois, sem indicação da altura, só de ritmo:


A risada também pode ser prevista sem indicação de ritmo ou de abertura; na mesma Bohème, Um exemplo, no terceiro ato, ocorre enquanto Rodolfo e Marcello socorrem Mimì, está no cabaré e se a ouve Musetta rindo dentro do cabaré de forma espalhafatosa. Marcello corre para ver o que ela está a fazer, e com quem: https://youtu.be/SPodFDQKATY?t=4578

Há também risadas que os intérpretes adicionam ao papel; Musetta entra no segundo ato, segundo a indicação da partitura, sorrindo; daí para os risos, há um passo que várias cantoras não tiveram dificuldade em dar.
Outros risos são mais controversos, como no final do "Credo" do Iago, na ópera Otello de Verdi. não há paralelo para este trecho na peça de Shakespeare (ou na ópera homônima de Rossini). Arrigo Boito escreveu um monólogo para o personagem em que ele explica em que Deus cruel ele acredita. No final, ele diz que "A morte é o nada./ É velha fábula o Céu".
https://youtu.be/1SWYKIN41WQ?t=283
Há quem goste de rir depois disso: https://youtu.be/EBMLJk3ifoI?t=269
Quero, porém, dar outro exemplo, e não deste, tirado de uma tragédia, ou dos primeiros, de uma obra tragicômica. O cômico é muitas vezes diminuído em relação ao trágico, o que é bem injusto. A comédia pode perturbar apenas por existir, sem pedir desculpas a bons sentimentos.
Boulez diminuía Rameau pelos balés próprios do gênero da ópera daquele tempo (em 1975, "Par volonté et par hasard"; não tenho o livro, cito da Diapason de fevereiro de 2016), lembro disso porque escolhi uma cena de Castor et Pollux para o balé favorito; no entanto, Rameau podia chocar o seu tempo, seja pela densidade da música, seja, nesta ópera, pelo cômico sem nenhuma desculpa de virtude redentora: Platée, ópera criada em 1745, apresenta a história da rã que se julga amada por Júpiter, que só está querendo pregar uma peça na esposa, a Deusa Juno, a ciumenta. O libreto foi escrito por Adrien-Joseph Le Valois d'Orville.
Trata-se de algo único na ópera francesa dessa época, uma obra com caráter cômico, e que agradou muito os inimigos da "tragédia lírica" francesa, como Rousseau. Girdlestone, cuja biografia (Jean-Philippe Rameau: His life and work) citei aqui, explica como Platée abriu o caminho para obras como La serva padrona, de Pergolesi, em Paris, e para a futura opéra comique.
Muitas piadas nascem das impressionantes arrogância e feiura da protagonista, e são encarnadas musicalmente por meio de várias estratagemas, como o coaxar de Platée (a língua francesa ajuda nestes momentos, em palavras como "quoi", "crois"). Nessa ópera em que os Deuses se revelam sórdidos, tontos ou pior ainda, surge esta cena genial: a Loucura ("Folie") é uma personagem (quase diríamos que é a mentora de tudo!) e chega quando Platée e Júpiter já estão "juntos", por assim dizer.
A Loucura acabou de roubar a lira de Apolo (talvez fosse o que público estivesse achando da ópera naquele momento) e canta uma ária sobre a infeliz ninfa Dafne ("Aux langueurs d'Apollon, Daphné se refusa"), metamorfoseada em árvore para fugir do assédio de Apolo, mais ou menos o contrário do que está acontecendo em cena.
A coloratura que Rameau emprega para ornamentar o canto da Loucura cai em sílabas inesperadas para gerar o efeito cômico. Quando ela diz que Júpiter a metamorfoseou, "la métamorphosa", o "a" final sofre todos os tipos de abuso até se converter em risada: https://youtu.be/E1EE6CSIo6A?t=144
 "Quando o amor é ultrajado", por exemplo, a cantora tem que ornamentar o "u", gerando estes uivos, ou vaias, não sei, depende de como o público estiver se comportando (isto é, se ele merece ser devorado ou, se se comportar mal, vaiado): https://youtu.be/E1EE6CSIo6A?t=192
Os exemplos que dei aqui vieram da genial produção da Ópera de Paris, com a direção cênica de Laurent Pelly,  regência de Marc Minkowski (que gravou a ópera em disco), o tenor Paul Agnew como Platée e Mireille Delunsch no papel da Loucura, com Les Musiciens du Louvre em 2003. A cantora e o maestro, mesmo em concerto, continuam brilhantes: https://www.youtube.com/watch?v=cpwYjawWCZE. Agnew, há alguns anos, passou a também reger esta música.
Minkowski explicou que, nesta cena, a orquestra começa uma abertura à francesa, um pouco pomposa, quando é interrompida subitamente por um riso: "é toda a orquestra, em verdade, que ri" e a música recomeça. O riso instrumental anuncia a entrada da personagem. No mesmo vídeo sobre a produção de 2003, Pelly sustenta que a Loucura, na verdade, é Rameau, e ela tem o poder de suspender a ação: "a música é mais forte do que tudo". Até contar esta história.
Ivan A. Alexandre, no ensaio"Aux sources de Platée" que acompanha a gravação de Minkowski, escreveu em sentido parecido, "a verdadeira voz da Loucura é claramente a do músico", e não do libretista. Ela realmente assumiu a lira de Apolo.
A dimensão metalinguística da cena (na verdade, de toda a ópera) é realçada, naquela produção, pelo vestido de partituras, pelo fato de ela entregar as páginas arrancadas do vestido da Loucura aos músicos da orquestra, e por de fato dirigir a orquestra em mais de um momento (o mesmo ocorre no concerto). A Loucura, no fim, rege a retirada de Platée para as profundezas do pântano. No libreto, é ela de fato a última a agir, coordenando a retirada dos que vieram assistir ao falso casamento.
A história continua sendo cruel, como lembrou Anthony Tommasini nesta elogiosa crítica recente de apresentação em concerto do Les Arts Florissants em Nova Iorque. Bestas sadias não apreciam o espetáculo. No entanto, sem a Loucura, como criar?


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
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Dia 30: Uma ópera de amanhã

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Uma abertura favorita: "Tristão e Isolda", de Wagner (30 dias de ópera: Dia 10)

Há quem, na plateia, continue conversando não só depois dos últimos sinais de começo do espetáculo, como após seu começo, por não se interessar pelas aberturas, em geral puramente instrumentais. Nem todo público de ópera gosta muito de música.
Até certa época, as aberturas instrumentais não tinham relação com os temas da ópera. Em Haendel, geralmente ocorre dessa forma. Mas se pode ver algo parecido no século seguinte, em Rossini, por exemplo, e as aberturas que ele repete em mais de uma ópera: Aureliano in Palmira, O Barbeiro de Sevilha e Elisabetta, regina d'Inghilterra compartilham a mesma música para cortinas ainda fechadas.
O uso dos temas, em certos casos, pode gerar uma abertura que é, em si mesma, uma miniópera: a do Tannhäuser, de Wagner, em sua versão de Dresde, é o caso, e dura um quarto de hora. Verdi, muito mais rápido em termos de ação teatral, não aprovava esses procedimentos; é conhecido o gracejo que ele fez das novas correntes da ópera, influenciadas por Wagner. O compositor italiano afirmou que escreveria uma abertura com uma duração que superaria todas as sinfonias de Beethoven juntas...
No entanto, não faria sentido negar a qualidade dessas peças de Wagner; mesmo sua duração se harmoniza . É bem conhecido comentário de Nietzsche, ele mesmo um compositor, sobre o sublime e o gênio no prelúdio do Parsifal (estou juntando no mesmo balaio aberturas e prelúdios neste tópico), também de Wagner, somente comparável a Dante.
Acho interessante teatralmente quando a abertura exige a ação cênica, e não serve apenas para apresentar os temas, ou criar um clima propício para o público se concentrar.
Este é, evidentemente, o caso do que Gluck fez em Ifigênia em Táuris (Iphigénie en Tauride); a tempestade do começo da ação irrompe na orquestra, depois é que a voz da protagonista se faz ouvir; aqui, em disco: https://www.youtube.com/watch?v=HcL1Meo7SIE; e em vídeo, ao vivo: https://www.youtube.com/watch?v=u0m07GnesPs
Em Capriccio, de Richard Strauss, com libreto dele mesmo e de Clemens Krauss, a abertura é uma peça de câmara, um sexteto de cordas que a protagonista ouve com muita atenção, enquanto seus dois pretendentes (o poeta e o músico) discutem. O personagem diretor de teatro, La Roche, dorme durante a execução; quando acorda, discute com os artistas e fala mal de Ifigênia em Táuris de Gluck! A ópera já havia começado, inesperadamente, e com uma audição de música, o que apresenta bem a natureza da discussão nela presente: prevalecem as palavras ou a música? A abertura parece já apontar a resposta, que não é dada em palavras no final. No começo, encontramos o fim.
Poderia escolher qualquer uma delas, ou alguma do Fidelio de Beethoven (em sua luta com o público da época, e com o próprio gênero operístico, ele acabou por compor quatro), mas, hoje, quero outra.
Nesta aula de 1973, filmada, do regente e compositor Leonard Bernstein, falando da ambiguidade para aumentar o poder expressivo, mostra como Wagner inspirou-se no "Romeu e Julieta" de Berlioz, e aumentou a ambiguidade tonal já presente no compositor francês. O maestro explica que Tristão e Isolda é o cume da ambiguidade e o ponto de transição a partir do qual a música não seria a mesma, a conduzi-la para a crise do século XX. Trata-se de uma ópera que estreou em 1865. Ele toca ao piano, então, o início do prelúdio; logo surge o chocante acorde. Bernstein pergunta: "Isto é tonalidade? Uma brincadeira com a tonalidade? Ou tonalidade nenhuma?" Wagner não responde.
O prelúdio de Tristan und Isolde, pois, serviu para abrir esta ópera, evidentemente, mas também para descortinar mundos de possibilidades para a música. Em certo sentido, a obra que o prelúdio abriu nunca terminou.
Mais adiante, depois dos 74 minutos, Bernstein mostra como o fim da ópera, com o solo de Isolda, já está contido nas frases iniciais do prelúdio. De fato, são comuns as apresentações em concerto do prelúdio com o final, muitas vezes com um soprano para interpretar a parte vocal. Fecha-se o círculo: no começo, já temos o fim.
Para ouvi-la, uma possibilidade interessante é a fluidez de Carlos Kleiber em estúdio: https://www.youtube.com/watch?v=SF4zN-Okonc&t=6944s; ou esta produção cênica com Pierre Boulez na regência e, para quem quiser ver a ópera toda, estes grandes cantores (Birgit Nilsson, Wolfgang Windgassen, Hans Hotter) na provavelmente única vez em que foram filmados juntos nesta obra: https://www.youtube.com/watch?v=McoRns-aWQQ&t=4704s


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
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quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Pierre Boulez, Gilberto Mendes: formas de engajamento

Morreu Gilberto Mendes no primeiro de janeiro, com 93 anos, e faleceu Pierre Boulez, com 90, no dia 5. Não vou comparar os dois, mas é claro que se trata, nos dois casos, de uma geração para a qual a proposta e a postura da vanguarda faziam sentido, o que não parece ser mais o caso para os compositores jovens de hoje.
Quando Schönberg morreu, estava lá o então enfant terrible francês para dizer que Schönberg realmente estava morto (texto publicado em 1952, recolhido nos Apontamentos de aprendiz, publicados no Brasil pela Perspectiva)... E também propor a superação tanto desse compositor (para ele, pouco avançado no elemento rítmico) quanto de Stravinsky (que seria conservador no plano da harmonia), bem como de Messiaen, de quem foi aluno, no caminho do serialismo integral.

Ele ficará como compositor? Creio que sim, porém não com a dimensão de Schönberg e de Stravinsky... Sugiro, para quem o estiver descobrindo, que ouça, em homenagem a Boulez, a que ele fez para Bruno Maderna, um impressionante Ritual fúnebre: https://www.youtube.com/watch?v=-k7EXNZqIUg
Vi, em jornal de São Paulo, Gilberto Mendes ser contestado em seu domínio da técnica musical, crítica que jamais se faria a Boulez. E também sobre a permanência de sua obra, que tinha uma dimensão performática que a torna mais aparentada, por exemplo, à imaginação artística de Cage, que chega à "negação da necessidade de compor" (cito Paul Griffiths em Modern Music: A concise history) do que com o supertécnico Boulez, que pode incorporar o acaso e a abertura da estrutura musical (como em Pli selon Pli e na terceira Sonata para piano), mas não a ponto de questionar radicalmente o papel de compositor. Há um maître por trás do marteau.
Ademais, só um brasileiro ousaria a Santos Football Music: https://www.youtube.com/watch?v=a_P_USxgGFM ; vejam que a matéria é brasileira, mas, por causa da forma, os compositores nacionalistas de que os nomes da Música Nova divergiram jamais criaram coisas assim. Compreendo perfeitamente que esse happening choque as pessoas mais presas a demarcações de gênero.

Em uma entrevista no sítio da Cité de la Musique/ Philharmonie (vejam na ligação a linha biográfica de Boulez) Boulez trata, na primeira parte, de Messiaen, de quem foi aluno, e de sua própria experiência como professor. Ele afirma que não é possível ensinar a compor (salvo a si mesmo); o que se pode ensinar é a análise musical:
[...] há certos limites para o professor de composição. Eu comparo com um choque, em geral; o professor de composição é um tipo de detonador; mas, se não há matéria, gente que possa detonar, o choque não existe. Mas, do outro lado, se não há detonador, você não sabe no que vai se tornar, o que você é, e nesse caso é bem mais difícil, bem mais longo, e, em alguns casos, bem mais incerto. Portanto, para mim a composição é um choque, em todo caso. 

Os escritos de Boulez ainda jovem são um exemplo clássico de como a vanguarda constrói um tribunal da história para entronizar-se e, desse cimo, escolher o caminho do futuro. Por vezes, o trono é muito baixo, não permite avaliar bem o espaço, e o futuro acaba escolhendo outros sentidos. Para Boulez, esse futuro viria principalmente a partir de Webern, cuja obra completa ele gravou, como maestro, pelo menos duas vezes.
Boulez, como maestro, acabou regendo parte da música que criticou, às vezes duramente, quando mais jovem. No entanto, do meu estreito ponto de vista de mero ouvinte, creio que não há tanta divergência entre Boulez como teórico, como compositor, como administrador e como regente: em todas essas atividades, seu compromisso era com a música do século XX. Ele regeu bastante Wagner, sim, mas sem esse compositor o século teria sido outro; e poucas coisas são tão permanentemente atuais quanto a montagem e a interpretação do Anel do Nibelungo que ele e Patrice Chéreau fizeram em Bayreuth no centenário da obra, em 1976. Foi um dos marcos de montagem operística do século XX, e com uma obra do XIX.
Os teatros de ópera são, em geral, espaço de conservadorismo militante, o que gerou a frase famosa, uma célebre brincadeira, de que eles deveriam ser queimados. Nesse gênero, para que ele nunca compôs, o maestro Boulez teve outro grande triunfo que marcou o século XX: a montagem integral de Lulu, obra póstuma de Alban Berg, que Friedrich Cerha completou (antes disso, era apresentada sem o terceiro e último ato). A montagem de 1979 na Ópera de Paris foi outra parceria com Chéreau.
Mozart e Beethoven foram exceções muito pontuais na regência de Boulez. Lembro de Otto Klemperer, um grande maestro que tinha ambições como compositor, pasmo porque Boulez não tinha interesse nem pelo Requiem de Verdi! A propósito, fiquei muito surpreso com a declaração de Pedro Amaral, em matéria do jornal O Público, de que Boulez passou a ter interesse pelas últimas obras de Verdi, mas já estava velho demais para regê-las.
Ao contrário de Klemperer, suas escolhas como regente eram geralmente ditadas por um compromisso com o que ele julgava que era a atualidade musical. Como administrador de instituições musicais, suas escolhas foram guiadas pelos mesmo princípios, o que levou a compositores tão diferentes quanto Dutilleux (já falecido) e Michel Legrand a criticá-lo por sectário, o que ele certamente era. No artigo que citei, ele assimila a vanguarda ao bom senso, o que não é exatamente uma postura vanguardista, nem faz muito sentido: "Ao declarar que, depois da descoberta dos vienenses, todo compositor que se situa fora das pesquisas seriais é inútil, não pretendemos manifestar um demonismo eufórico; antes, sim, demonstrar o mais banal bom senso".
No ano passado, Legrand o chamou de fascista, mas Boulez já estava doente demais para responder. Com o tempo, algumas dessas rivalidades se dissolvem. Dusapin, em matéria do Libération, aproximou Dutilleux e Boulez...

Alguns jornalistas, vejo, o chamam nas notícias necrológicas de "músico clássico". Talvez não gostasse da alcunha. Em um texto de Foucault, "Pierre Boulez, l'écran traversé", publicado em 1982 e incluído na coletânea Dits et Écrits, temos uma importante análise da relação de Boulez com a história da música:
Boulez detestava a atitude que escolhe no passado um módulo fixo e o procura variar por meio da música atual: "atitude classicizante", como ele dizia; ele igualmente detestava a "atitude arcaizante" que toma a música atual como referência e trata de nela incorporar a juventude artificial de elementos passados. Creio que seu objetivo, nessa atenção à história, era fazer de forma que nada ficasse fixo, nem o passado nem o presente. Eles os queria todos os dois em perpétuo movimento um em relação ao outro [...]
Obras como Dérive 2, uma de suas últimas composições, tentam partir desse perpétuo movimento e oferecê-lo ao ouvinte - e por isso são inacessíveis para as plateias distraídas, que buscam descansar encontrando sempre a reiteração auditiva, ou seja, que buscam não ouvir. Vejam esta interpretação regida por Daniel Barenboim, com integrantes da Orquestra West-Eastern Divan.
Boulez musicou Mallarmé, Gilberto Mendes musicou os poetas do movimento concretista. Ele via como uma retrocesso em sua escrita musical o Moteto em Ré Menor, "Beba Coca-Cola", escrito a partir do célebre poema de Décio Pignatari, e assim explicava seu sucesso. Não há problema algum em gostar dele, porém; vejam a interpretação do Coro da Osesp, regido por Naomi Munakata, no filme A odisseia musical de Gilberto Mendes: https://www.youtube.com/watch?v=6DKRtGjIaD4
A "popularidade" é um problema? Mais de uma vez, Gilberto Mendes disse que não. Por exemplo, nesta entrevista que concedeu aos 91 anos à Revista Brasileira de Música da UFRJ, fez esta autocrítica, extensiva a quase todo o grupo da Música Nova:
O grande Beethoven (1770-1827), Brahms (1833-1897), Bach (1685-1750) sempre foram admirados por todos. Essa “nossa” música não chegou às pessoas, temos que aceitar isso, apenas um compositor ou outro; ela ficou afastada e esse foi o pecado básico: se afastar totalmente da comunicação e, mais ainda, eliminar totalmente a emoção musical. Não vou dizer que não tem nada de emoção, mas é uma emoção extremamente particularizada, apenas para quem está intimamente dentro, não tem aquela emoção que vem do geral, ela não se conecta em ponto algum com o popular e a música do passado sempre se conectou com o popular, mesmo porque a música popular e a música erudita, segundo Bartók (1881-1945) são uma só.
Em Boulez também há essa, digamos, desconexão. Em uma conversação com Foucault, publicada em 1983, "La musique contemporaine et le public", Boulez escreveu que "a evolução correu no sentido de uma renovação sempre mais radical tanto na forma das obras quanto em sua linguagem. As obras tinham a tendência de se tornar eventos singulares que, realmente, têm seus antecedentes, mas são irredutíveis a qualquer esquema condutor admitido, a priori, por todos, o que cria, certamente, uma desvantagem para a compreensão imediata".
Se se tratava de um desafio recompensador para o público, a exigência era maior ainda para o criador, e quase esterilizadora. Boulez passou a compor cada vez menos e a dedicar mais tempo à revisão de suas obras (a notável reportagem do New York Times sobre a morte do compositor, assinada por Paul Griffiths, não deixa de lembrar disso).
Boulez foi um regente excepcional, porém o "homem de gelo", como foi chamado nos EUA, não era muito compatível com partituras que exigiam mais engajamento emocional do que frieza analítica: por exemplo, acho fraca sua gravação de Das Lied von der Erde, de Mahler, com Violeta Urmana, por causa da gélida direção. Com Webern, era outra coisa e ele podia ser bom em compositores distantes de seu estilo: por exemplo, no Concerto de câmara para cravo e outros instrumentos de Manuel de Falla.
O caráter de homem de gelo combinava, talvez, com a reserva sobre sua vida pessoal, necessária em um meio ainda ostensivamente dominado por homens brancos e heterossexuais. Lembro do ambíguo comentário no Diário de Robert Craft, um rival: "A natureza sexual de Boulez ou é neutra, ou muito bem escondida". Mais recentemente, recordo de uma ridícula conta falsa homofóbica no twitter.
Isso não impediu que acumulasse poder na condição de maestro, e sua impressionante carreira, especialmente nos EUA, habilitou-o a voltar para a França em uma posição de força: o IRCAM (Instituto de Pesquisa e Coordenação Acústica/Música), o Ensemble Intercontemporain (hoje dirigido por Matthias Pintscher), a Philharmonie, por exemplo, devem-se a ele. Se ele tivesse trabalhado apenas como compositor, certamente não teria atingido toda essa influência sobre as instituições francesas.
Gilberto Mendes não fez esse tipo de carreira e nunca teve essa influência no Brasil. Foi professor, o que é motivo de opróbrio no país. No entanto, o Festival Música Nova conseguiu resistir, buscando criar novas plateias. Pois a ensurdecedora reiteração da música industrializada cria não-ouvintes ativos. Numa entrevista de 1998, perguntam-lhe sobre "É o Tchan". Ela foi recolhida no livro Gilberto Mendes da série Encontros da editora Azougue, organizado por Marcelo Ariel no ano passado:
É uma avacalhação, uma baixaria, não tem qualidade nenhuma, a música popular não tem como se salvar. Outro dia vi no canal alemão da TV a cabo um programa com a Emsemble Moderne, que já esteve aqui no Festival. Estava lá na Deustch Veller, aqui ninguém sabe o que é, muito menos o Beto Mansur e essa turma que está aí no poder. Não sabem do que se trata e nem se preocupam em saber. Eles gostam de Chitãozinho e Xororó, que não é música caipira. É uma música inventada pela indústria cultural, com um pouco do estilo de Roberto Carlos, aquela frescurada toda. A [sic] gravadoras estão interessadas em lixo que venda. O Caetano pegou uma época boa, se fosse hoje, ele não conseguia gravar. ["Ensemble" e "Deutsche Welle"; o livro não teve revisão]

É interessante a afirmação de que, se Caetano Veloso tivesse surgido no fim do século passado, não teria encontrado espaço na indústria fonográfica. Essa indústria, porém, está em crise, e os músicos de hoje lutam em outros espaços de veiculação de música, o que também é difícil.
Eu acrescentaria que boa parte dessa música de que ele não gostava (embora apreciasse bastante música popular; no lançamento paulista do livro da Azougue, ele cantou jazz dos EUA; e peças como Rastro harmônico não negam o diálogo com essa outra música) não apresentava o engajamento na linguagem musical, sendo programaticamente repetitiva, tampouco o engajamento na política, pois lucrativa para o poder.
Os dois engajamentos foram decisivos na obra de Gilberto Mendes, que é lembrado por seu compromisso socialista; nesse campo, o que dizer de Boulez, além de sua relação com a história da música, como bem delimitou Foucault? Como ele se relacionava com a história tout court?
Se ele não escreveu obras engajadas da forma que o compositor brasileiro ousou, tinha também posições políticas. A França não tem de fato uma grande tradição democrática, e imperialismo não combina com democracia em parte alguma. Durante a guerra colonialista para manter o domínio sobre a Argélia, Boulez foi signatário de um dos manifestos contra essa política francesa e, por isso, foi impedido de retornar a seu próprio país.
O Brasil também teve medidas de banimento, mas durante a ditadura militar...
Termino com esta observação, em homenagem a esse aspecto não muito conhecido do músico. Vejam que jornal foi destacar a política no necrológio de Boulez (não foi Le Monde): http://www.elmoudjahid.com/fr/actualites/88905