O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 1 de março de 2020

Uma ópera que se tornou revolução: "O anel do Nibelungo", do amigo de Bakunin (30 dias de ópera: dia 29)

Entre os não muito numerosos compositores que participaram das revoluções do século XIX, está Richard Wagner. Infelizmente, a decadência (mas não a de ordem musical) veio com o tempo, e o fim de sua vida o veria no meio da aristocracia alemã mais reacionária, para o horror de Nietzsche.
A amizade com Bakunin e militantes socialistas inspirou Wagner a escrever o embrião de O anel do Nibelungo ("Der Ring des Nibelungen"; nota: algumas pessoas que não sabem alemão veem o "des", o genitivo, e querem escrever "dos Nibelungos" em português, mas, se fosse plural, seria "der"). Trata-se da impressionante saga formada por quatro óperas, O ouro do reno ("Das Rheingold", o prólogo, que dura apenas umas duas horas; as outras levam de quatro a cinco horas sem contar os intervalos), A Valquíria ("Die Walküre"), Siegfried e Crepúsculo dos Deuses (Götterdämmerung). Os quatro títulos nasceram a partir do que foi planejado inicialmente em 1848 como uma só ópera, A morte de Siegfried.
Daquele ano, de revoluções na Europa, em diante (a obra só estreou em 1876, depois de vários percalços, entre eles o exílio, e a interrupção para a composição de Tristão e Isolda e d'Os Mestres Cantores), o projeto foi aumentando em proporções, até chegar a esse espetáculo que exige quatro noites e muito trabalho dos diretores, dos cenógrafos, dos iluminadores, da orquestra, dos cantores, do regente, dos produtores... É uma façanha montá-lo, e também porque a música é difícil de executar. Alguns dos papéis exigem muito dos limites do corpo humano, especialmente Wotan (nem para a estreia Wagner conseguiu encontrar um baixo-barítono que pudesse cantá-lo, e se contentou com um barítono que, se não podia fazer justiça aos graves da parte, pelo menos cantaria os agudos), Brünnhilde (soprano dramático) e Siegfried (tenor dramático).
Como tantas vezes ocorre em Wagner, o ciclo é inspirado na mitologia nórdica. O que é interessante é a ligação do ciclo com as atividades revolucionárias do compositor e de seu amigo de Bakunin. Como se sabe, os levantes de 1848 fracassaram nos Estados alemães. Leio na biografia de Robert W. Gutman (Richard Wagner: The man, his mind, and his music; o autor é insuspeito de simpatia com o biografado, e expõe com clareza os problemas éticos, especialmente o antissemitismo do compositor) que o drama de A morte de Siegfried foi concebido como "teatro da revolução".
Ele quase foi preso com Bakunin em Dresde, mas teve a ideia de dormir em um mosteiro em Chemnitz; durante o sono, o outro revolucionário foi preso. Depois, Wagner conseguiu fugir  tomando o nome de um amigo para viajar incógnito. Depois de uma anistia geral, ele acabou por voltar em 1863.
Wagner revolucionou a música ocidental. No entanto, a presença da revolução social em O anel só foi realmente colocada no centro da obra por Bernard Shaw, no conhecido The perfect Wagnerite: A commentary on the Niblung's Ring, de 1898.
Na edição de 1922, posterior, pois, à Revolução Soviética, ele acrescentou o comentário de que tanto Wagner quanto Marx
[...] profetizaram o fim de nossa época; e apesar de em 1913 aquela época parecesse tão próspera que a profecia parecia ridiculamente desprezível, em dez anos o centro saiu da Europa [...] Alberich prosperou tanto que chegou a se julgar imortal; e suas alianças com Wotan colocaram seus filhos e filhas sob a influência, perigosa para o comércio, de ideais militaristas feudais. [...] Alberich nunca acreditaria que o velho caminho levaria ao abismo, nem exploraria novos; e as massas não conheciam nada sobre caminhos, e muitos sobre a miséria.
Alberich, na primeira cena de O ouro do Reno, é o anão que renuncia ao amor para roubar as riquezas do Reno. Wotan, necessitando de dinheiro para pagar a construção do Walhalla, o castelo dos deuses, pelos gigantes Fafner e Fasolt, resolve com o deus Loge enganar Alberich e roubar o ouro, bem como, entre outros objetos, o anel cuja posse daria o domínio do mundo. Conseguem fazê-lo, mas são obrigados pelos gigantes a conceder até o anel, que foi amaldiçoado por Alberich: https://youtu.be/3ZP-yXsNV2E?t=6098. Nesta produção dirigida por Patrice Chéreau e regida por Pierre Boulez, Wotan é interpretado por Donald McIntyre, Loge, por Heinz Zednik, e Alberich, por Hermann Becht.
Essa foi a produção do centenário do Anel, no teatro de Wagner, em Bayreuth. Chéreau e Boulez montaram a ópera no mundo industrial. Os deuses estão lá, integram a elite.
Os humanos aparecem apenas em A Valquíria e, com eles, aparecem as insurgências. N'A Valquíria, onde encontramos, no início do terceiro ato, a famosíssima Cavalgada das Valquírias, temos a revolta da mulher raptada e casada à força, Sieglinde, que abandona seu algoz e marido, Hunding, por um estranho, Siegmund, que ela descobre ser seu irmão.Ambos são filhos de Wotan.
A descoberta não demove nenhum dos dois de consumar a paixão. Neste trecho, ele canta para ela a canção da primavera, e ela responde: "Tu és a primavera" ("Du bist der Lenz"): https://www.youtube.com/watch?v=NB5e62wSjEQ. Jeannine Altmeyer interpreta Sieglinde, Peter Hofmann, o irmão e amado.
Porém, por força dos tratados e da respeitabilidade das leis familiares, impostas pela Deusa Fricka, Wotan se vê obrigado a punir com a morte Siegmund. Brünnhilde, a Valquíria e também filha de Wotan, comove-se com o amor do casal, desobedece a ordem de deixá-lo morrer nas mãos de Hunding e tenta salvá-lo. O próprio Wotan, porém, quebra a espada de Siegmund, Notung, e ele perece na luta.
Brünnhilde consegue salvar Sieglinde e a faz correr para uma floresta selvagem. Ela já está grávida, conta-lhe a deusa. Wotan vem punir a filha desobediente com a perda da divindade e, com isso, a ter que se submeter a um homem (vejam a crítica ao patriarcado: ele é uma punição para as mulheres), mas ela  consegue convencê-lo a cercá-la de fogo no alto do rochedo, para que somente alguém destemido possa encontrá-la, beijá-la, despertá-la do sono e conquistá-la: https://youtu.be/SfcEfYN6PjU?t=2990. Gwyneth Jones interpreta Brünnhilde, e Wotan é encarnado por Donald McIntyre.
Este homem sem medo será Siegfried, o filho de Sieglinde (que morrerá no parto) e Siegmund.
No final de O crepúsculo dos deuses, os deuses enfim são aniquilados e o anel é devolvido para o rio. Vejam como termina a famosa cena de imolação, em que Brünnhilde devolve o que foi roubado das Filhas do Reno e ordena a construção da pira que incendiará a morada dos deuses: https://youtu.be/_ww4JHkloa8?t=14272. Hagen, filho de Alberich, ainda tenta recuperar o anel, mas é afogado pelas Filhas do rio. Vejam o que Chéreau reservou para o fim: a partir da iniciativa das crianças, os humanos voltam-se para o público.
E o que a plateia fez? Vaiou! Esta produção foi bastante hostilizada quando estreou em 1976, mas, com o tempo, foi ovacionada (a filmagem é de 1980, os aplausos são intensos). A montagem foi revolucionária e incomodou a extrema-direita que frequentava o Festival de Bayreuth, muito atrasada esteticamente (queriam um Wagner de conto de fadas) e, claro, politicamente.
Gwyneth Jones, rememorando as apresentações em depoimento para a revista Diapason, a propósito do falecimento de Pierre Boulez, lembra que a equipe recebeu ameaças de morte por causa da montagem. Nos anos 1930, imagino que elas teriam sido consumadas. Nesse sentido, o nazismo foi antiwagneriano; pois nada mais fiel à música de Wagner (claro que não falo aqui do ideólogo antissemita, mas do compositor, cujos intérpretes mais destacados foram tantas vezes os judeus, de Hermann Levi, o regente que estreou Parsifal, a Daniel Barenboim) do que colocar a revolução no centro do palco e, dessa forma, tentar instaurá-la no mundo.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato (Tosca, de Puccini)
Dia 19: Ópera e orgasmo (A coroação de Popeia, de Monteverdi e Busenello)
Dia 20: Ópera e gênero (La Calisto, de Cavalli)
Dia 21: Ópera e negacionismo (O Guarani, de Carlos Gomes)
Dia 22: Ópera e coragem (Der Kaiser von Atlantis, de Viktor Ullmann e Peter Kien)
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema (Orfeu, de Monteverdi e Striggio, e Murilo Mendes)
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro (A Judia, de Halévy, e Em busca do tempo perdido, de Proust)
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme (La serva padrona, de Pergolesi, por Carla Camuratti)
Dia 26: Uma ópera que se tornou música (O Anjo de fogo, de Prokofiev)
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera (Don Juán segundo Mozart e segundo Schulhoff)
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto (Nabucco, de Verdi)
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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