O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 7 de dezembro de 2019

A ópera de hoje: "La Bohème" de Puccini (30 dias de ópera: Primeiro dia)

Escrevi "La Bohème" de Puccini e não "La Bohème", de Puccini, com vírgula, porque existe outra ópera com o mesmo título, de Leoncavallo, escritas na mesma época.
Leoncavallo ofereceu o libreto que havia escrito a Puccini, que não se interessou pelo texto, mas certamente pelo tema, pois decidiu escrever a ópera com outros libretistas, Luigi Illica e Giuseppe Giacosa. Leoncavallo sentiu-se traído e musicou o próprio libreto. A obra de Puccini estreou um ano antes, em 1896, e sempre foi mais popular do que a do autor de I Pagliacci. Eu mesmo nunca vi a ópera de Leoncavallo montada. Acabo de pesquisar no portal OperaBase e não há nenhuma montagem dessa ópera desde agosto de 2016 (que foi até onde pude retroceder), e nenhuma programada para a temporada 2019-2020. Da outra Bohème, 105 só para esta nova temporada.
Para ouvir a partitura de Leoncavallo, que acho que só foi gravada integralmente duas vezes, sugiro esta ligação com o disco regido por Heinz Wallberg, com cantores excelentes. Algumas árias são ocasionalmente gravadas; vejam Caruso e "Io non ho che una povera stanzetta", ou, nos dias de hoje, no disco de verismo de Jonas Kaufmann, "Testa adorata".
É certo que nenhum desses trechos tem a riqueza da orquestração da ária do tenor na ópera de Puccini, tampouco sua inspiração melódica; vejam Roberto Alagna, bem jovem, gravando "Che gelida manina" e pedindo para o maestro Richard Armstrong esperar que ele termine o dó agudo... E depois ataca a frase seguinte em pianíssimo, o que é muito difícil depois daquele fortíssimo.
Veja-se que se trata bem do espírito de certa ópera italiana, a mais popular, com suas notas agudas (o que excita a audição daquele público que, musicalmente, só se interessa por halterofilismo vocal, no que Adorno chama de "fruição culinária" da música) e sua história que demanda as lágrimas.
Quando jovem, eu não gostava muito da Bohème por causa disso, embora apreciasse bastante algumas das árias. O sucesso impressionante da ópera de Puccini, no entanto, justifica-se pela música, que é muito bem construída, e por causa do libreto, que parte da comédia romântica do primeiro e do segundo atos para a seriedade do terceiro ato, ainda moderada com a briga cômica entre Musetta e Marcello, até o quarto, em que a tristeza reina até o fim, a morte de Mimì. A construção não soa artificial porque a doença desta personagem apresenta-se desde a sua entrada, ouve-se no seu tema característico. Suas primeiras frases, tanto no texto quando na melodia, representam a falta de fôlego causada pela subida da escada.
O libreto, no qual Puccini interveio, é muito bem estruturado. No fim, a felicidade amorosa revelou-se um intervalo entre a pobreza e a morte. Todos os protagonistas, os boêmios, são pobres e, se isso gera boa parte das piadas do primeiro e do segundo ato (com o calote no senhorio e a saída sem pagar a conta no Café Momus), também acarreta a necessidade de separação no terceiro e, no fim, a impossibilidade de tratamento e a morte no quarto. Nesta parte final, destaca-se uma rara ária de Puccini para a voz de baixo, "Vecchia zimarra", momento em que o personagem, o filósofo Colline, despede-se do casaco (que servia, além de proteger do frio, de estante, pois ele guardava seus livros nos bolsos) para vendê-lo a fim de conseguir dinheiro para os remédios de Mimì.
Por que a escolhi como "ópera de hoje", se é de do fim do século XIX? Estou a cantando agora na Associação Coral da Cidade de São Paulo. A produção estreou no dia 30 de novembro de 2019 e tem suas últimas apresentações nos dias 7 e 8 de dezembro.


Como ainda há um ou outro ingresso para comprar, e esta montagem do diretor Rodolfo García Márquez e do maestro Luciano Camargo ficou muito interessante (testemunharam-na uma crítica da estreia, por Danae Stephan, e da récita seguinte, quando os problemas da primeira noite foram resolvidos, por Carlos Eduardo Cianflone), indico ainda aqui a ligação para a compra: https://uhuu.com/evento/sp/sao-paulo/opera-la-boheme-8489
Por causa da produção, fui finalmente ler o livro de Henry Murger, Scènes de la vie de bohème, fonte das duas óperas. Um livro muito interessante que não se apresenta como romance, e sim como "estudos de costumes" da classe dos boêmios. A falta de linearidade deveria tornar a categoria romance estranha para este livro no século XIX, mas não para os leitores do século XX e de hoje. Os boêmios são artistas e intelectuais, ou aspirantes a tal, que... não jantam dois dias seguidos. No fim do capítulo VII, por exemplo, Rodolphe indaga a Marcel onde jantarão naquele dia; o amigo responde: "Saberemos amanhã".
No livro, claro, é tudo mais complexo. A personagem da Musette tem uma trajetória invejável e casa em excelentes condições financeiras. Antes do casamento, para se despedir do amado Marcel (com quem ela não contraiu matrimônio porque ele não tem dinheiro), ela passa algumas noites com os boêmios, no frio e na fome. Nada disso está na obra de Puccini. É na ópera, contudo, que podemos sentir o impacto da personagem quando cantava em restaurantes; o ponto alto do segundo ato é a antológica Valsa da Musetta (aqui, cantada por Anna Rita Taliento, numa produção com Luciano Pavarotti e Mirella Freni, que continuavam muito bem e haviam gravado a ópera décadas antes com Herbert von Karajan), uma versão pré-Frenéticas de "Eu sei que eu sou bonita e gostosa".
Nos anos 1950, três sopranos de muito destaque na época gravaram a ópera completa: Renata Tebaldi, com a regência de Tullio Serafin; Maria Callas, com o maestro Antonino Votto; Victoria de los Angeles na gravação de Thomas Beecham (esta última foi incluída na coleção recente "400 anos da Ópera", vendida nas bancas de jornais do Brasil, Argentina, Portugal e outros países). A revista inglesa Opera fez, naquela época, uma comparação entre as três interpretações; embora o periódico preferisse aquela regida pelo maestro inglês, comentava que a Mimì na voz de Callas (que nunca interpretou o personagem em cena) seria a única que poderia ter traído Rodolfo.
A traição fica no ar no terceiro ato; no fundo, a observação era um grande cumprimento à genial cantora grega, pois Mimì, de fato, traiu várias vezes o Rodolphe no livro. Puccini, na idealização da personagem operística, preferiu não deixar claras as aventuras amorosas da jovem florista. Como numa sociedade patriarcal as possibilidades profissionais e de ascensão social das mulheres são sempre limitadas, é compreensível que as mulheres pobres, como são as namoradas dos boêmios, procurassem parceiros que pudessem melhorar suas condições materiais. E esse não era o caso do poeta Rodolphe, tampouco do Rodolfo da ópera.
Henry Murger era também poeta, e no livro podemos ler os poemas de Rodolphe, um autorretrato, a Mimì. Na ópera o que há de mais parecido com isso é a declaração de amor do primeiro ato, que, no livro, bem como aquele episódio da mãozinha gelada, ocorre com outros personagens. Há muito mais poesia, pintura e música no livro. A morte de Mimì também é mais impressionante no romance: Rodolphe recebe a notícia de seu falecimento pelo estudante de medicina que dela cuidava; na semana seguinte, o estudante o encontra e lhe conta que ele se enganou, Mimì havia sido transferida de quarto, por isso ele estava vazio. No dia da visita, Rodolphe não apareceu, pois a julgava morta, e ela se preocupou com ele: se não havia aparecido, certamente deveria estar doente! Ao saber da feliz notícia, resolve tentar vê-la imediatamente, mas... Ela acabara de falecer, desta vez verdadeiramente, no dia anterior, sem que eles tivessem se encontrado mais uma vez.
Também Rodolphe era frágil em termos de saúde, e nisso também ele servia de autorretrato de Murger, que morreu repentinamente, no auge do sucesso, antes dos 40 anos (ele viveu de 1822 a 1861). No belo necrológio que Théodore de Banville escreveu ("Des souvenirs et des larmes"), que conheceu tanto o autor quanto a Mimì da realidade, e que era realmente encantadora, o escritor conta (eu traduzo) que "A primeira vez que vi Murger, há vinte anos, foi sobre um leito de hospital onde ele já expiava o crime de rimar não possuindo nem espírito de intriga, nem patrimônio, nem espírito de intriga, nem paixões políticas."
Depois ele o reencontrou "curado de sua doença, mas não da poesia". Os desvios que a ópera de Puccini opera em relação ao livro (e os desvios são sempre necessários nesse tipo de transplante, tendo em vista a mudança de gênero artístico) mantém este núcleo essencial: a poesia é um assunto mortal. Quando ouvimos os tão líricos temas de amor de Puccini retornarem na cena final de Mimì (que se torna, com estas reminiscências no leito de morte, mais poeta do que Rodolfo), sabemos que a poesia está neles, e que a personagem por eles está condenada. Banville diz algo parecido sobre o livro, ao esclarecer que a "cena do hospital, tão poderosa, era completamente verdadeira" e que Mimì, tendo misturado sua vida à dos poetas, acabou tendo a morte deles.
Ao personagem do poeta, resta apenas repetir, sem imaginação verbal nenhuma, o nome daquela que, tornando-se poesia ao incorporar os temas do lirismo pucciniano, não tinha mais condições de viver: "La storia mia è breve".


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida
Dia 3: Uma estreia assistida
Dia 4: A primeira ópera assistida
Dia 5: O primeiro disco de ópera
Dia 6: Uma despedida presenciada
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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