O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Eu e Tu" de Jorge Roque e o fôlego em xeque

Jorge Roque lançou Eu e Tu (Lisboa: Maldoror, 2021) ainda durante a pandemia. Em tempos de isolamento social, um livro com esse título poderia surpreender. Composto por breves textos em prosa, que oscilam entre o conto e o poema em prosa, ele se inicia em plena taberna com a visão de um bêbado com uísque, o que leva a reflexões sobre a escrita, e termina com um encontro de vizinhos no elevador.

Esses encontros seguem-se com mal-entendidos que estão "sempre na verdade" ("O Belo"), palavras duras ("A mãe, apanhada de surpresa e destroçada no seu amor de mãe, sim, porque uma mãe é uma mãe, sublinha respeitoso, nem pensa no que lhe responde: querido, eu amo‑te, mas com esse tumor que tens na cabeça não chegas ao natal", em "Uma grande anedota"), machismo ("É claro que as gajas chateiam sempre, retoma o fio do discurso, está‑lhes no sangue, não sabem estar quietas, ficar no seu lugar, têm de estar sempre a remexer‑se, a questionar, a interpretar", em "Adrenalina e testosterona"), mais bêbados com uísque ("O cavalo de Gary Cooper") e mais bebidas e jantares, até mesmo em casal ("Joaquinzinhos para dois").

Os cristãos fanáticos a insultar os passantes e a pregar também não conseguem passar bem o seu recado:  


O absurdo de prosseguir, enérgico e convicto, como se entre os ferros e o cimento dos pilares houvesse alguém que o ouvisse. E as suas palavras, justas ou injustas, lúcidas ou insensatas, extinguiam‑se no vento frio de janeiro sob o testemunho da rua deserta. Poderia até ao fim dos tempos perorar a sua razão, a sua justiça, a sua verdade. Para lá de todas as disputas, uma só certeza se podia alcançar: ninguém o ouviria. ("Jesus, filho de ninguém")


Barak Obama é invocado por causa de um cachorro chamado "Barak"; nessa história, ocorre uma triste partida, o que leva a este comentário: "A vida é tramada, disse‑lhe, para ultrapassar o silêncio. Se fosse um mundo cão não era mau, mas é pior este em que vivemos." 

Uma exceção no livro (e na obra de Jorge Roque), a centralidade de um personagem feminino, aparece em "A gargalhada", em que histórias de violência sexual são acompanhadas do "olhar com que o gordo, o empregado de mesa e eu lhe observaríamos as mamas, coxas e rabo". Em seguida, aparece mais uma dose de machismo na voz de frequentadores portugueses de restaurantes: "pois, que eu saiba, todos somos filhos de um homem e de uma mulher, por conseguinte, sem mulheres não haveria homens e vice‑versa, não era preciso as feministas virem com reivindicações parvas" ("Chulipas").

Machismo e xenofobia somam-se no bem intitulado "Os portugueses": "com as mulheres que agora há por aí, tão diferentes daquelas do seu tempo, todas cheias de santos e pecados, e não se referia às brasileiras ou às ucranianas, com essas nem era preciso engate, o que queriam era a autorização de residência, referia‑se a portuguesas, chavalas algumas".

Esse preconceitos parecem reforçar a incomunicabilidade que está no centro do livro, resumido nesta passagem: "Fala para se ouvir falar, é o que dói mais escutar. Fala para se ouvir a ser ouvido. Ninguém o ouve e ele, mesmo fingindo, sabe‑o." ("Náufrago")

Onda há sucesso na comunhão (significativamente, com animais não humanos, desprovidos da fala articulada) é a interessante culminação da filosofia na construção de uma "Capoeira" para gatos, em contraste com o patético de um professor de fala arrogante de "Guedes", história em que voltam o restaurante e seus personagens.

O final, "A luta", não se dá sem evocar de longe a conclusão de O tempo reencontrado, o último volume de Em busca do tempo perdido, de Proust. Aqui também temos um velho senhor a equilibrar-se com dificuldade. Em Proust, a partir daí temos uma impressionante imagem do tempo, com o solo distanciando-se dos pés. No breve texto de Jorge Roque, os passos estão contados; mas os vizinhos, separados por décadas de vida e alguns andares, acabam por ter um breve encontro. 

Nesse ponto é que se pode ler algo como uma alusão à pandemia de covid: "É uma vida, fôlego a fôlego calculada, basta o ar escasso consumido numa breve troca de palavras para que o frágil equilíbrio se desfaça e o peito arqueje em busca do precioso ar." 

Mas a questão é outra: a comunicação põe o fôlego em xeque. Por isso, apesar de nunca mencionar a pandemia, neste livro o problema do isolamento impõe-se como, talvez, uma condição vital.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Relançamento de Memória e sociedade, de Ecléa Bosi

 


Em 11 de novembro de 2023, às 16 horas, em São Paulo, ocorrerá o relançamento do clássico de Ecléa Bosi Memória e sociedade: lembranças de velhos. Nele falarão Amelinha Teles, Fabio Weintraub, Luciana Araújo, Paulo de Salles Oliveira, com mediação do historiador Tiago Bosi, neto da autora, falecida em 2017. O evento ocorrerá na Livraria Simples (Rua Rocha, 416).

Em 16 de agosto de 2023, ocorreu outro evento de relançamento, mas de cunho acadêmico, no Instituto de Psicologia da USP. Felizmente, ele foi filmado: começou a ser transmitido com som (embora fraco) depois de uma hora e vinte minutos, o que impediu o registro sonoro da apresentação do CoralUSP, mas não das falas da mesa, que podem ser vistas e ouvidas por meio desta ligação: https://www.youtube.com/live/GImAxTK4N6U?si=2gk0TUKYTSSg-Sm4&t=4832

Destaco na interessante mesa a fala da deputada federal Luiza Erundina, que conheceu e militou com Bosi (e se apresentou não como deputada, mas na condição de antiga amiga da autora), começa a falar perto de 1 hora e 33 minutos. Ela observou que o lema "não há democracia sem o poder popular" é a "perspectiva" da obra de Ecléa Bosi, o que é muito acertado. Mencionando a militância contra a ditadura militar de ambas, evocou, Aurora Maria Nascimento Furtado, estudante de Psicologia da USP e militante da ALN que, lembrou Erundina, "deu a vida pela liberdade": ela foi executada em 1972, depois de torturas que incluíram a "coroa de Cristo", uma fita de aço usada para esmagar o crânio.

Comento que, em outros espaços, a lembrança de um morto político suscitaria gritos de "presente"; isso não ocorre nesse ambiente da USP.

O livro traz as mencionadas lembranças de velhos com as análises da autora, configurando uma pioneira obra (no Brasil e no mundo) de memória social. Em outro momento de destaque da mesa, Fabio Weintraub, a partir de duas horas e 9 minutos do vídeo, fala da "comunidade de destino" estabelecida entre os depoentes e a autora: trata-se de um método da pesquisa, que significa, citando Bosi, "sofrer de maneira irreversível, sem possibilidade de retorno à antiga condição, o destino dos sujeitos observados". Daí, a "argúcia política" da análise que Ecléa Bosi faz da memória social, diz Fabio Weintraub.

A partir de 2 horas e 39 minutos, Luís Galeão destaca em Memória e sociedade a lembrança de Iara Iavelberg, que foi aluna do Instituto e nomeia o seu centro acadêmico. Ela foi amiga de Bosi. Guerrilheira da Vanguarda Popular Revolucionária, Iavelberg foi outra morta política da ditadura militar, para quem o governo forjou uma versão oficial de morte por "suicídio", desmentida posteriormente por laudos.

Com efeito, é inegável o caráter político desta obra, editada pela primeira vez em 1979, no início da gestão do general ditador João Figueiredo. Esse caráter reflete, devo lembrar, a própria trajetória pessoal da autora. Ecléa e seu marido, falecido em 2020, Alfredo Bosi, engajaram-se na oposição à ditadura militar, mas isso é pouco falado, até por causa da discrição dos dois intelectuais a respeito de sua própria militância. Entre outras ações, eles esconderam militantes procurados pela polícia. Espero que essas histórias - e as memórias dos que os conheceram - ainda sejam resgatadas e contadas. Ela mesma resgatou tantas histórias alheias.