O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

Mostrando postagens com marcador Rebecca Atencio. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Rebecca Atencio. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Desarquivando o Brasil CXLIX: A memória, esse país canibal: lançamento de O amor, esse obstáculo, de Micheliny Verunschk




Hoje, em São Paulo, sairá o último volume da trilogia de romances de Micheliny Verunschk sobre a ditadura militar brasileira: O amor, esse obstáculo (São Paulo: Patuá, 2018). Deixo aqui o início da apresentação que fiz para este livro, que cruza as dimensões das memórias individuais e coletivas. Um dos traços originais do livro é o fato de sua trama se passar já depois da atuação da Comissão Nacional da Verdade. Ele busca explorar o campo que a CNV deixou por descobrir, e cuja atualidade se mostrou dramaticamente tão viva com as eleições de 2018, na vitória, inclusive para presidência da república, de candidatos negacionistas da história e incentivadores de crimes contra a humanidade. No livro, a personagem com Alzheimer é apresentada como símbolo da memória do país...



A memória, esse país canibal: a trilogia de Micheliny Verunschk sobre a ditadura militar brasileira


Depois dos romances Aqui, no coração do inferno (Patuá, 2016) e O peso do coração de um homem (Patuá, 2017), Micheliny Verunschk completa sua trilogia sobre a ditadura militar com O amor, esse obstáculo.
Os personagens do rapaz canibal e da filha do delegado torturador, que haviam se encontrado na imaginária cidade de Santana do Mato Verde na primeira parte da trilogia, voltam a cruzar-se neste volume, que representa mais um exemplo do novo ciclo de memória cultural na literatura brasileira contemporânea.
Neste último romance, Laura, a personagem principal, tenta encontrar a verdade sobre a própria história familiar, especialmente no tocante aos crimes cometidos por seu pai, um torturador que atuou para a ditadura sob o codinome de Capitão Garrote.
Além da tortura e das execuções extrajudiciais de caráter diretamente político, ela tenta entender a violência doméstica que ele produziu, o que pode ter incluído tortura e feminicídio avant la lettre, e que leva à ideia do amor como obstáculo, escolhida como título do livro. A repressão política e a violência de gênero cruzam-se de maneira complexa em O amor, esse obstáculo; elas podem aliar-se, mas também podem ser cometidas de maneira autônoma, e ambas sobreviveram à ditadura.
O peso do coração de um homem teve Cristóvão como centro da narrativa. Agora, Laura volta a ser narradora. O livro inicia-se com a notícia da morte do pai. Ele é encontrado enforcado, o que suscita suspeitas: cometera suicídio, ou fora assassinado por haver comparecido à Comissão Nacional da Verdade para depor sobre as graves violações de direitos humanos por ele perpetradas durante a ditadura? O episódio não deixa de evocar o assassinato de Paulo Malhães pouco depois de seus depoimentos à Comissão da Verdade do Rio e à Nacional.
As providências do enterro do Capitão Garrote são tomadas pelo clube militar, que ele frequentava.
A protagonista decide retornar à cidade natal para recuperar o seu passado, que se confunde, sob certos aspectos, com a história recente do país. Confrontada com as várias dificuldades na tentativa de esclarecer os crimes cometidos pelo pai, desabafa: “Mas o que eu gostaria mesmo é que o mar se levantasse e devolvesse os mortos que foram atirados do céu, que cada um dos desaparecidos nos voos da morte retornasse com seu nome, suas histórias, seus dedos refeitos em coral e sal a apontar os culpados”. Laura sabe, no entanto, da impossibilidade desse resgate.
No romance, conta-se também o reencontro de Laura com Cristóvão, o rapaz canibal, no Rio de Janeiro, o que gera mais desdobramentos à narrativa. Nos volumes anteriores da trilogia, vimos que o pai dela o havia prendido em casa para evitar que ele fosse linchado, e que ela escolhera perder a virgindade com ele. Agora, essa história se torna mais evidentemente alegórica do país: “O fato cru e sem retoques é que papai tornara a nossa casa uma casa-canibal”.
A história é contada, por conseguinte, a partir do prisma da memória e da busca da verdade.
Por essa razão, há algo muito significativo em comum entre esta trilogia e o primeiro romance de Verunschk, Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, 2014). No livro anterior, também nos deparamos com a exploração da memória e a busca pela verdade, além da tematização da violência contra a mulher.
Nesta última parte da trilogia, permanece o traço estilístico de usar citações como sequências da narrativa; um dos capítulos é um poema de Juan Gelman, escritor argentino que foi vítima, com sua família, da ditadura de seu país e da uruguaia.
Nesta apresentação, não contaremos o final do livro; fazemos notar, no entanto, que o desfecho deixa ainda elementos a resolver, assim como o processo histórico que o país hoje atravessa no tocante às continuidades da ditadura.
Da personagem da madrasta, que perdeu a memória por causa do Alzheimer, temos uma revelação importante da história. Ela repetidamente é apresentada a Laura, e dela se esquece, o que leva a este comentário: “Assim a memória individual, assim a história de um país”.
No século XXI, teria começado, segundo Rebecca J. Atencio (em Memory’s Turn: Reckoning with Dictatorship in Brazil, The University of Wisconsin Press, 2014), um novo ciclo de memória cultural na literatura brasileira contemporânea: depois de os temas relativos à ditadura militar terem sido postos de lado, os escritores passaram a retomá-los ou reinventá-los.


domingo, 24 de agosto de 2014

Desarquivando o Brasil XCI: Memory's Turn, de Rebecca Atencio (e uma nota sobre os índios brasileiros)

Estive numa aula em São Paulo do curso da professora Rebecca Atencio, da Universidade de Tulane, e ganhei seu livro Memory's Turn (The University of Wisconsin Press, 2014). A obra é notável, e uma das razões por que deve ser lida é a própria escolha do objeto, que não é muito estudado na literatura sobre justiça de transição no Brasil.

A autora propõe uma classificação de diferentes ciclos de memória cultural, e suas relações com as instituições e seus mecanismos, sem sucumbir à tentação de ver uma simples relação de causalidade entre um plano e outro. Ela o faz desde a ditadura militar até recentemente, relacionando-os com a justiça de transição e com a lei de anistia.
A escolha das obras é representativa dos ciclos e  abarca gêneros diferentes: literatura, série de tevê, cinema, teatro. No campo institucional, o Legislativo, o relatório Direito à memória e à verdade, o Museu da Liberdade (que se tornou da Resistência).
Atencio está corretíssima em afirmar, sobre a lei de anistia, que "For the family members of the dead and disappeared and their supporters, the Amnesty Law represented a defeat. Still, much of the Brazilian society preferred to view the law less critically [..]" (p. 32), e que um novo ciclo de memória cultural se formava, preferindo a conciliação; a autora o analisa nos livros de Fernando Gabeira (O que é isso, companheiro) e de Alfredo Sirkis (Os carbonários), em contraste com o de Renato Tapajós (Em câmara lenta, obra em nada conciliatória com o terror de Estado), que foi preso e teve o livro censurado.
Attencio nota como, depois da liberação do livro de Tapajós, em 1979, ele chamou bem menos atenção do que em 1977, pois não estaria mais de acordo com o clima cultural, alterado com a aprovação daquela lei e o retorno de exilados.
Flora Sussekind, no fundamental Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos, vê essa literatura política dentro de um quadro mais amplo, o do "cárcere do eu", o que inclui obras tão diferentes como a prosa de Pedro Nava e a de Reinaldo Moraes, a poesia de Drummond: "recuperação da intimidade com o leitor e do perfil do narrador". Sussekind, ao tratar do livro de Renato Tapajós, lembra de sua "pouca preocupação literária" e de como os seus limitados recursos literários fazem com que a "a experiência do choque a que se poderia submeter o leitor, não chega a se realizar". Talvez isso também explique o declínio no interesse pelo livro.
Atencio critica as ambiguidades da narrativa e a relativa despolitização da guerrilha no livro mencionado de Gabeira, e mostra como ele, assim como Sirkis (ambos, por sinal, ingressaram na política institucional), acabou por se opor à punição dos crimes contra a humanidade perpetrados pela ditadura militar.
Faço notar que essa ênfase na conciliação, que a autora tão bem vê após a lei de anistia, foi o traço da memória a que se apegaram quase todos os Ministros do Supremo Tribunal no julgamento de 2010 sobre a recepção dessa lei pela Constituição de 1988, apagando os antecedentes da campanha pela anistia.
No capítulo seguinte, a série de tevê Anos rebeldes, veiculada pela TV Globo, é analisada em toda sua ambiguidade; lembrou da ditadura, mas a retratou de forma que não parecesse tão ruim; com isso, "it recycled the discourse of reconciliation by memory" (p. 60) que estavam presentes nos livros de Gabeira e de Sirkis. Com agravantes, não fora a TV Globo, ela mesma, um produto e suporte do regime autoritário: erotização e justificativa da tortura, abrandamento do caráter ditatorial do governo (com o falseamento de dados históricos, como a redução do número de prisões políticas), a transformação dos conflitos políticos em assuntos de família, e a ausência de torturadores, como se o crime não tivesse responsáveis, e o uso político da série para o impeachment de Collor.
Attencio muito bem afirma que que, se era bem conhecido o fato de que Globo havia colaborado com a censura durante a ditadura, não o era de que "it continued, on its own initiative, to suppress information about crimes against humanity in the new democratic era was much less widely known" (p. 71). Escrevi em outra nota que é uma pena, e é significativo, que as Organizações Globo não tenham criado a sua própria comissão da verdade...
O terceiro capítulo trata já do século XXI e compara duas formas de verdade e memória: o relatório publicado pelo governo federal Direito à memória e à verdade e um livro de ficção de Fernando Bonassi, Prova contrária, que inspirou o filme de Tata Amaral Hoje.
O livro de Bonassi, sustenta Atencio, possui um caráter crítico, ao apontar os efeitos da denegação da justiça, e ajudou a forjar o novo ciclo de memória. O relatório oficial, pelo contrário, diminui a questão da justiça, concentrando-se na memória, e não trata da punição dos assassinos e torturadores da ditadura.
O último capítulo trata da peça criada para o espaço do DOPS/SP em 1999, Lembrar é resistir, que não cheguei a ver, escrita por Analy Álvarez e Izaías Almada, que fazia criativo uso do espaço (que se tornava personagem) e dos arquivos da polícia política. Atencio afirma que o fim forçado da encenação, em 2000, fez parte de uma política de silêncio imposta pelo governo do Estado.
A peça, porém, teve o efeito de envolver público na reivindicação do espaço como um lugar de memória. As autoridades estaduais não pensavam da mesma forma, e preferiram integrá-lo dentro das políticas de "revitalização" da região. Dessa orientação política nasceu o Memorial da Liberdade, que não duraria muito e que Atencio considera, com toda razão, "ineffective"
Estive na abertura do "Memorial da Liberdade"; foi um verdadeiro ato de apagamento da memória, e vi a decepção dos ex-presos políticos que lá compareceram: as celas foram descaracterizadas e, num gesto de vandalismo de Estado, foram apagadas inscrições de décadas feitas pelos presos nas paredes. Monteiro Lobato, por exemplo, havia escrito que esteve ali. Atencio diz que esse apagamento foi realizado em 1983; no entanto, na abertura, vi muitos dizendo que aquilo havia ocorrido recentemente, daí as acusações, que o livro menciona em nota, de que os próprios formuladores do Memorial foram os responsáveis.
O nome ("da Liberdade") também foi contestado, pois ignoraria a luta política dos presos. Quando reaberto como "Memorial da Resistência", alguns ex-presos refizeram parte das inscrições.
Quando Memory's Turn for traduzido e lançado no Brasil, o que espero que logo ocorra, dará uma grande contribuição para os debates sobre a justiça de transição e a memória neste país. Em termos teóricos, interessam muito o seu olhar alerta para as complexas interações entre os mecanismos institucionais e a produção cultural no âmbito dos ciclos de memória cultural (que não podem ser explicados pela simples causalidade), bem como a análise de como uma obra pode ter um impacto diferido ao longo do tempo histórico.
Eu teria uma pequena observação: no livro, menciona-se rapidamente a questão da hegemonia da esquerda nos anos 1960, referindo-se a texto de Roberto Schwarz, "Cultura e política no Brasil: 1964-1969", que foi, como se sabe, bastante discutido e contestado. Um de seus problemas, de ordem conceitual, explica-o Marcelo Ridenti em O fantasma da revolução brasileira: um uso pouco apropriado da noção de hegemonia - que era burguesa, ao contrário do desejo de R. Schwarz. Diz Ridenti: "No máximo, esboçou-se a gestação de uma hegemonia alternativa, ou contra-hegemonia, que acabou sendo quase totalmente abortada e incorporada desfiguradamente pela ordem vigente". Apenas certas camadas mais intelectualizadas estariam realmente mais comprometidas com a produção cultural da esquerda.

Tenho um senão a fazer em passagem da página 50, na comparação com a Argentina; afirmar que a repressão deu-se no Brasil "mostly targeting members of active opposition groups" não se aplica em nada aos povos indígenas.
A observação é importante, pois esses povos  não formavam, em regra, grupos de oposição política; no entanto, eles constituíram, de longe, em números absolutos e em relativos, o maior número de vítimas da ditadura militar, que os sacrificou em nome dos projetos de colonização, muitos em aliança com empresas estrangeiras.
O caráter genocida da ditadura militar levou o Estado brasileiro a uma condenação no Tribunal Bertrand Russell em 1980. O governo tentou impedir Mário Juruna de viajar para o Tribunal, alegando sua "incapacidade" jurídica, mas a Justiça federal concedeu-lhe autorização.
Parte da imprensa brasileira manteve-se fiel ao governo nessa questão e tratou as denúncias de genocídio como fantasia, contribuindo para que tais ações (que confirmam o caráter criminoso do regime) ficassem recalcadas na memória cultural.
Creio que se deve pesquisar, no futuro, se as correntes iniciativas relativas à justiça de transição, oficiais (a Comissão Nacional da Verdade, por exemplo) e não oficiais (como os escrachos feitos pelo Levante Popular da Juventude) inspirarão um novo ciclo de memória cultural, e se este ciclo terá como ênfase a justiça na forma de punição dos crimes da ditadura militar.
Será necessário também verificar se essas iniciativas produzirão documentos que reproduzam o silenciamento, feito pelo governo militar e seus apoiadores, do genocídio dos povos indígenas.
Tratar-se-á simultaneamente de questão para os cidadãos brasileiros e de objeto de estudo de pesquisadores de variada nacionalidade, e espero que Rebecca Atencio continue entre eles.