O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 29 de junho de 2025

Desarquivando o Brasil CCXIII: Lady Tempestade, o teatro e a advocacia de presos políticos



Li a peça de Sílvia Gomez Lady Tempestade, publicada pela Cobogó em 2025, e vi a montagem de Yara de Novaes no dia 26 de junho último: uma obra importante sobre a ditadura militar a partir da experiência histórica de uma advogada, Mércia de Albuquerque, que defendeu presos políticos em Pernambuco, falecida em 2003, e recebeu na peça essa bela alcunha de intempérie.

Os advogados de presos políticos dessa época eram um punhado de profissionais que, em regra, acabaram também sendo sequestrados (como elas mesma) e, em geral, contavam com nenhum ou quase nenhum apoio da OAB (que nem é citada na peça: Sobral Pinto, em revanche, é homenageado). As mulheres, como ela, que fizeram esse trabalho tiveram também de enfrentar a misoginia do sistema de repressão. 

Como o filme Ainda estou aqui, a obra produz seu impacto não só por traduzir, mesmo que apenas parcialmente, a densidade da matéria histórica, mas por servir de veículo para uma grande atriz. No filme de Walter Salles, as lacunas, imprecisões e até erros históricos quando a história avança para os anos 1990 e o século XXI não chegam a diminuir a impressionante presença de Fernanda Torres. 

A peça é bem melhor nesse aspecto. A dramaturgia é simples: uma atriz recebe de certo homem os diários de Mércia Albuquerque, resiste mas fica obcecada pela leitura, o filho dela também passa a lê-los até que ela veste roupa de advogada e incorpora a personagem, que conta em primeira pessoa as próprias histórias. A montagem de Yara de Novaes não mantém a divisão em dois atos que a a autora previu.

Assim como Andréa Beltrão interpretava brilhantemente todos os personagens em espetáculo anterior, a sua Antígona, ela interpreta a advogada, os "gafanhotos" (os agentes da repressão), familiares das vítimas e outros personagens. Ela compartilha o palco com o filho, que faz o curto papel do filho da advogada, e com espectadores que assistem do palco (é a função que cumprem, de testemunhas).  

Com uma atriz menos dotada, a narrativa de histórias, que inclui anunciar as várias passagens riscadas do diário, não funcionaria. Aliás, já via vários atores sem técnica precisarem de... amplificação para se apresentar no Teatro Anchieta, do SESC-SP!  Não é o caso de Beltrão.

A atriz-personagem desincorpora depois a advogada, mas é visitada pelo fantasma de Mércia (somos lembrados de que o teatro "é gentil com os fantasmas"). Elas dialogam brevemente e a fantasma vai-se. 

Ao som do segundo movimento da Sétima de Beethoven (antes, ouvimos o trecho da Nona em que o coro canta "Freude, schöner Götterfunken"), há ainda mais um gesto teatral (não previsto no texto publicado da peça) com os papéis que fotografei acima, talvez páginas do projeto Brasil: Nunca Mais.

Não li ainda os diários da advogada. No livro da peça, os textos aproveitados estão em negrito.

Como as mães são a grande referência na obra, e os mortos não são apresentados com nome completo, quem não conhece a história não saberá que o filho de Rosália é Jarbas Pereira Marques; eis sua foto no volume III da Comissão Nacional da Verdade:




Ele foi uma das vítimas do Massacre da Chácara São Bento, que atingiu militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), traídos por Cabo Anselmo. Não vemos essa explicação na peça, mas a descrição, pela advogada, da luta das mães e dos corpos destroçados. Gregório Bezerra, em revanche, é evocado com o nome completo: sua tortura em público no Recife logo após o golpe de 1964 é a cena que desperta a vocação da advogada.
Com efeito, um dos méritos do espetáculo é a ausência de didatismo: o público também não é informado de que o José cujo corpo ela enfim consegue encontrar para ser enterrado pela família em Belo Horizonte chamava-se José Carlos Novaes da Matta Machado: eis o seu perfil elaborado pela Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara, de Pernambuco.
Mércia não é citada aí, mas no da Comissão Nacional da Verdade, sim:




O teatro cumpre, assim, seu papel na esfera pública de fazer o público interessar-se e pesquisar o assunto. Trata-se, por sinal, de um dever da cidadania.
Ao contrário da dramaturgia, as instituições do país não se mostraram ainda à altura da coragem de Mércia, que já imaginava uma justiça de transição avant la lettre (o conceito nem existia) neste enfrentamento:

O senhor sabe que um dia esta ditadura vai acabar, não sabe?
Que ditadura, minha senhora?
E quando ela acabar, nós nos encontraremos no tribunal.

Não aconteceu. A justiça encontra solo mais propício nos palcos do que no Judiciário.

Nenhum comentário:

Postar um comentário