O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Desarquivando o Brasil XX: Márcio José de Moraes, juiz do caso Herzog


Neste dia 30 de setembro, falei na semana jurídica da Unesp. E analisei uma exceção à atuação das autoridades judiciais e do Ministério Público como garantes das torturas, do assassinatos e dos desaparecimentos forçados durante a ditadura militar, assunto a que me referi na nota anterior deste blogue.
Trata-se realmente de uma exceção, explicável porque não era um magistrado da Justiça Militar. O juiz federal Márcio José de Moraes julgou a ação em que Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog, com os filhos, então menores, Ivo e André, processaram a União Federal pelo homicídio do jornalista.
A União sustentou que não poderia ser responsável pelo suicídio. Um consultor jurídico do Ministério do Exército chegou a afirmar que Herzog, quando morreu, não estava preso, contrariando a prova nos autos.
O perito Harry Shibata, que foi um dos que assinaram o laudo de suicídio, revelou não ter examinado o corpo. O magistrado, com esse depoimento, fez muito bem em considerar inválido o absurdo laudo.
Ademais, ele tomou em consideração o depoimento de outros presos, como Rodolfo Konder, que também foi torturado, e pôde ouvir os gritos de Herzog - até que cessaram de todo.
A notável sentença, de outubro de 1978 (ou seja, corajosamente proferida durante o governo Geisel), bem demonstra que, mesmo de acordo com a legislação da época, a prisão havia sido ilegal - e a execução também, naturalmente. Na página que destaco (o documento foi obtido no Arquivo Público do Estado de São Paulo), destaca-se o direito constitucional da proibição de prisão arbitrária, previsto também na então vigente lei de segurança nacional (o famigerado decreto-lei 898/1969) e no Código de Processo Penal Militar:

Esse direito individual, tão comezinho que originariamente conquistado quando da promulgação da Carta Magna de 1215, "... afirma a segurança pessoal. Salvaguarda a liberdade física do homem. Prescreve [deveria ser "proscreve"] o arbítrio..." (cf. MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, "Comentários à Constituição Brasileira", Ed. Saraiva, 1977, vol. 3, p. 92).
Daí porque curialmente não admite exceções, mesmo que se trata de indiciamento em crime contra a Segurança Nacional.

Em outro caso, bem correlato a este, o do operário Manoel Fiel Filho, assassinado praticamente da mesma forma que Herzog, a quase surreal decisão que trancou o inquérito, que já citei neste blogue, caracterizou-se por uma postura metodologicamente oposta à da sentença de Márcio José de Moraes: naquela decisão, a Constituição foi completamente ignorada, e a realidade, negada.
Tal era a cultura duplamente cínica em relação ao direito: não apenas criar uma legislação de exceção que feria garantias constitucionais e do direito internacional, mas também violar sistematicamente essa própria legislação de exceção.
As ações da polícia política no Brasil, pois, violavam sistematicamente a própria legislação da ditadura militar - razão pela qual o apoio institucional da Justiça Militar era tão fundamental para os "porões da ditadura", expressão que julgo inadequada, eis que a ideia de porão não sugere que nela estão inclusos os próprios palácios do poder.
O magistrado que deveria decidir a ação, João Gomes Martins, estava para entrar na aposentadoria compulsória, e a União soube manobrar para que ele não tivesse tempo para decidir. Márcio José de Moraes era muito jovem na época, novo na profissão; provavelmente, imaginava-se que ele não teria a coragem cívica de fazer valer o direito.
Mas ele a teve e honrou o Brasil, honrando suas leis.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Desarquivando o Brasil XIX: Livro do Arquivo Público do RS e impunidade no Judiciário


Estive em abril na Jornada de Estudos sobre Ditadura e Direitos Humanos organizada pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Transcrevi no blogue parte do artigo que apresentei, com uma explicação suplementar. O livro foi lançado e está disponível na internet na ligação que indico abaixo com o sumário.
Ainda não o li inteiramente, mas já chamo a atenção para a variedade dos temas e das abordagens. No momento, quero destacar o importante artigo de Mateus Gamba Torres, "Os olhos vendados de Palas: a indiferença judicial perante a tortura".
O historiador analisa a apelação criminal em processo originado da repressão ao PCB em Santa Catarina em uma operação chamada Barrica Verde, que ocorreu em 1975. Ele verifica que, nesse caso (sabemos que isso era a regra, segundo o Brasil: nunca mais), o Judiciário recusou-se a apurar as denúncias de tortura que os presos faziam. Permito-me citar uma passagem dessa pesquisa, tão relevante em dias de galopante negacionismo dos crimes da ditadura militar, e em que o Judiciário nega ter uma cultura da impunidade:

As testemunhas formais dos depoimentos só confirmam que assinaram documentos, sem presenciá-los, não podendo afirmar se foram ou não obtidas mediante tortura. A testemunha é trazida ao processo justamente para provar a legalidade de meios na ocorrência dos depoimentos, e atestam isso com suas assinaturas nos documentos gerados pelos depoentes. Mas segundo os juízes a segurança nacional era mais importante do que a própria legalidade ou formalidade dos atos. Assim sendo, uma confissão sem testemunhas perante uma autoridade policial tinha maior valor em termos probatórios do que um depoimento prestado em juízo.


Em outros casos, pode-se verificar algo de ainda pior: mesmo depoimentos tomados que relatam torturas (eram exceção, mas existem) e laudos que comprovavam as sevícias (citei dois exemplos nesta nota) não eram levados em consideração pelas autoridades judiciárias, nem pelo Ministério Público, que atuaram, em regra, como garantes da tortura e da execução extrajudicial. É claro que tais autoridades não sofreram sanção alguma por isso - e que tais medidas, ilegais mesmo diante da legislação de exceção da época, vão ao encontro de uma cultura jurídica contrária aos direitos humanos, que ainda existe no Judiciário brasileiro.
O problema foi amplamente comprovado pelo relatório Brasil: Nunca mais. A cultura de impunidade no Judiciário está ligada à cultura de impunidade das autoridades policiais, e esta não pode ser resolvida enquanto aquela permanecer intocada.
Dedico esta nota à magistrada Eliana Calmon. Agora, o sumário do livro, que trata destes sumários de culpa:

I Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos


SUMÁRIO
Apresentação
Suzana Lisbôa __________ 10
Introdução
Clarissa de Lourdes Sommer Alves e Daniela Oliveira Comim _______ 12
I- Iniciando o debate: abordagens sobre ditaduras e suas marcas
Democracia e Estado de Exceção no Brasil
Edson Teles _____________ 14
El sujeto-víctima en las políticas de reparación y memoria
Ricard Vinyes _________ 17
Atletas X Ditadura. A geração perdida
Marcelo Outeiral, José Outeiral, Milton Cougo e Marco Antônio Villalobos _ 23
II- Ditaduras civil-militares de Segurança Nacional: resistência e repressão
A solidariedade não tem fronteiras: o grupo Clamor e a busca por desaparecidos políticos no Cone Sul
Guilherme Barboza de Fraga __________ 30
A Casa da Amizade Brasil-Uruguai e as redes de solidariedade entre militantes e grupos de resistência
às ditaduras do Cone Sul
Bruno Stelmach Pessi _______________ 40
Em defesa dos direitos humanos: os advogados de presos políticos na ditadura civil-militar brasileira
(1964-1978)
Dante Guimaraens Guazzelli ____________ 49
A classe operária e a resistência armada à ditadura militar-civil (1964-1976): perfil socioeconômico das
vítimas
Yuri Rosa de Carvalho _____________ 59
Controle do crime e condição jurídica dos segmentos populares durante o regime militar
Rivail Carvalho Rolim ______________ 70
Os fundamentos da Guerra Revolucionária
Raquel Silva da Fonseca ____________ 80
Pobres, perigosos e subversivos: a Doutrina de Segurança Nacional e os “menores”
Franciele Becher _______________ 90
A luta das mães de presos e desaparecidos contra a ditadura no Brasil
Vanderlei Machado _______________ 100
“Lição de cadeia fica, e cadeia deixa mancha”: as cartas de Flávia Schilling no livro “Querida família:”
(1972-1973)
Diego Scherer da Silva ___________ 106
III- Entre o local e o regional: a ditadura civil-militar no sul do Brasil
As organizações anticomunistas em Porto Alegre (1962-1991)
Thiago Aguiar de Moraes __________ 114
A luta armada contra a ditadura no RS
Davi Ruschel ______________ 124
A Ação Popular (AP) e a Operação Fronteira (1969-1972): Rio Grande do Sul, espaço de resistência
Cristiane Medianeira Ávila Dias _______ 133
O paple ocupado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região durante o golpe de 1964
Paulo Guadagnin ___________ 142
O golpe de 1964 no Rio Grande do Sul: da conspiração à Operação Farroupilha
Murilo Zardo ______________ 151
Urbanização, classe média e ditadura: os vestígios do regime militar em Florianópolis (décadas de 1960
e 1970)
Carla Acordi _______________ 161
Kelly Yshida _______________ 161
“Todos os caminhos levam a Rio Grande”. Desenvolvimento econômico, vigilância e repressão a
serviço da legitimação do regime militar na década de 1970
Leandro Braz da Costa____________ 170
Os Grupos dos Onze e a luta armada: os principais alvos da Justiça Militar no Rio Grande do Sul
durante a Ditadura militar
Taiara Souto Alves ______________ 179
Canoas, 1968 a 1970: a produção de saber sobre a oposição nos documentos sigilosos da ditadura
Douglas Souza Angeli ____________ 188
IV- Cone Sul: contexto de ditaduras e conexão repressiva
Uruguai: esgotamento da Suíça da América e fermentação autoritária nos anos 60
Enrique Serra Padrós ____________ 198
O branco eterno de uma luva de ferro: Ejército de Chile e a transição para uma democracia tutelada
Marcus Vinícius Barbosa _____________ 207
La noche de los lápices e o mito das vítimas inocentes da ditadura militar argentina (1976-1983)
Marcos Oliveira Amorim Tolentino __________ 218
O condor alimenta-se de carne podre: versões diversionistas da coordenação repressiva multinacional e
a farsa binacional sobre o sequestro dos uruguaios em Porto Alegre
Ramiro José dos Reis _____________ 228
O vôo do Condor em Passo Fundo: o sequestro do engenheiro argentino, setembro de 1978
Jorge Christian Fernández _____________ 237
O silêncio do condor: os corpos devolvidos pelo mar em Santa Vitória do Palmar e São José do Norte
em abril de 1978 e a reportagem censurada de Tito Tajes
Diego Antônio Pinheiro Soca _____________ 246
A resistência da oposição ao Regime Stronista: da contestação política à guerrilha armada
Miguel dos Santos _______________ 252
Geopolítica do Anticomunismo: o Rio Grande do Sul e a diretriz das “fronteiras ideológicas”
Marla Barbosa Assumpção ________________ 259
Os “anos de chumbo” no Brasil e a exportação de técnicas repressivas para o Uruguai
Ananda Simões Fernandes ________________ 268
A Operação Condor, o cinema e a mulher: uma abordagem do olhar sobre o feminino em filmes sobre
as Ditaduras de Segurança Nacional
Letícia Schneider Ferreira _____________ 277
V- Ditadura: controle, tortura e transição
A Ditadura civil-militar e o controle dos movimentos sociais no Rio Grande do Sul
Mateus da Fonseca Capssa Lima ____________ 287
Uma história em dois atos: a questão agrária no governo João Goulart (1961-1964) e no governo Castelo
Branco (1964-1967)
Ricardo Oliveira da Silva ______________ 294
Da confissão ao castigo: as diferentes nuanças da tortura durante a ditadura civil-militar brasileira de
1964-85
Fernando Kruel de Abreu ________________ 302
O ataque ao corpo durante a Ditadura Militar brasileira
Anna Cláudia Bueno Fernandes _____________ 310
A transição lenta, segura e gradual do regime militar brasileiro de 1964: apontamentos sobre o papel
central dos atores políticos Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva na distensão
César Augusto S. da Silva ______________ 319
VI- Olhares sobre as ditaduras: arquivos, ensino, imprensa e música
“Contra a censura pela cultura!”: acervo de textos teatrais do Espaço Sonia Duro do Teatro de Arena de
Porto Alegre
Fernanda de Lannoy Stürmer, Maria Lúcia Ricardo Souto e Valéria Raquel Bertotti __ 329
Um olhar sobre a ditadura civil-militar brasileira por meio dos livros didáticos utilizados nas escolas
públicas do país
Marcos Machry _________________ 337
Canção política e engajamento artístico na música popular uruguaia – 1967–1973
José Fabiano Gregory Cardozo de Aguiar ___________ 346
Entre câmeras e juris: os “suportes de consenso” da ditadura civil-militar na televisão brasileira
Francisco Cougo Junior ___________________ 356
VII- Direito à memória, à verdade e à justiça: debates contemporâneos sobre as
Ditaduras de Segurança Nacional
O julgamento da Lei de Anistia no Supremo Tribunal Federal e as disputas pela memória do período
ditatorial brasileiro
Gabriel Dienstmann _____________________ 365
“Quando um justo fala, um carrasco o vem calar”: os movimentos pela anistia sob vigilância do
DEOPS/SP (1977-1983)
Pâmela de Almeida Resende ___________________ 374
Justiça, memória, verdade e mãos amarradas: um estudo de caso sobre a memória da repressão política
no Brasil ditatorial
Carlos Artur Gallo _______________________ 383
Os olhos vendados de Palas: a indiferença judicial perante a tortura
Mateus Gamba Torres _________________________ 393
O direito à memória e à justiça e o judiciário brasileiro
Patrícia da Costa Machado ____________________ 403
O cerco a Pinochet: o processo espanhol
Rafael de Aguiar Pereira ____________________ 410
Os filhos da ditadura: os familiares das vítimas da ditadura militar e o silêncio estatal como violação de
direitos humanos
Gilka Zaione Nascimento ___________________ 421
Civilização e barbárie: liberdade e direitos humanos no âmbito do direito internacional
Renata Meirelles _____________________ 429
O direito internacional dos direitos humanos e a ditadura militar no Brasil: o isolacionismo deceptivo
Pádua Fernandes ______________________ 438
A promulgação da lei de anistia brasileira: um debate sobre responsabilidade penal e interdição do
passado
Caroline Silveira Bauer _____________________ 447

30 dias de leituras: Stravinsky conclui

30 livros em um mês

Dia 17: Um livro que é um prazer culpado.

Themes and Conclusions (temas e conclusões), foi o último livro que Stravinsky lançou, corrigindo, alterando e combinando dois anteriores, Themes and Episodes e Restrospectives and Conclusions. Ele morreu em 1971, e o livro somente sairia em 1972. De certa forma, ele compila as últimas palavras de Stravinsky. Nessa época, ele não compunha mais.
Em todos esses últimos livros, a ajuda de Robert Craft foi decisiva. Esse maestro, que continua ativo e lançando suas gravações de Schönberg e Stravinsky (os dois gênios com que teve contato) serviu de ombro direito e batuta para o compositor russo em seus longos últimos anos (morreu com 88). De Robert Craft, foi lançado o interessantíssimo Diário em uma edição praticamente legível da Difel, com vários erros de revisão.
O livro da dupla diz coisas brilhantes sobre música, o que é fonte tanto de meu prazer quanto de minha culpa: alguém que conhecesse a teoria dessa arte aproveitaria o livro muito mais do que eu. No entanto, leio-o, na impertinente condição de intruso curioso.
Stravinsky não tinha os talentos literários de Schönberg que, sem ser um grande escritor, foi capaz de escrever o próprio libreto para Moisés e Arão, bem como elaborar obras técnicas como o tratado de harmonia. O que Stravinsky tinha era o talento para as tiradas agudas, o que fez com que a entrevista fosse o melhor formato pelo qual podia se expressar. Esse gosto pelas tiradas permite-lhe espalhar citações, geralmente de poesia francesa, como esta "atualização" de Baudelaire: "luxe, calme, and fat bank accounts".
E é um livro de reconciliação com músicos (Beethoven, por exemplo) e outros artistas (como Nijinsky) que ele havia criticado duramente.
A primeira parte é composta de notas, que incluem observações sobre outros compositores. Stravinsky, em geral, é cruel com os colegas, um pouquinho mais do que a média dos músicos eruditos. De Messiaen, por exemplo, ataca Turangalîla ("plus d'embarras que de richesses"), é malicioso com Britten... Há também notas para programas de apresentações e um memorial para Eliot.
Ele foi muito mais próximo de Auden (que escreveu, com seu companheiro Chester Kallman, o libreto da última ópera de Stravinsky, The Rake's Progress), mas também conheceu Eliot pessoalmente. Stravinsky conta do desinteresse do poeta por prosa (que ele cita dizendo "I confess I never finished War and Peace"); indiscrição do músico? Não: mais adiante vemos o compositor dizer que não consegue compor para textos em prosa, e sim apenas para versos. Ele também registra a desconfiança de Eliot em relação à ONU por antieuropeísmo, o que pode soar como um etnocentrismo do poeta.
O memorial termina com uma história que Craft também conta no Diário: os dois, com suas respectivas esposas, jantavam juntos e o maître diz para outro funcionário que lá estavam o maior poeta e o maior compositor vivos. Constrangimento geral, quebrado por Vera Stravinsky: "Bem, eles fazem o melhor que podem."
A segunda parte possui mais substância. E é belo o que ele diz dos quartetos de Beethoven, e também inesperado, pois ele havia passado boa parte da carreira falando sandices sobre esse compositor. Toscanini deixou de falar com Stravinsky (isto pode-se ler nas biografias do maestro) por este ter-lhe dito que achava Beethoven um blefe! Vejam a falta de tato do compositor russo: falar uma coisa dessas logo para um dos maiores intérpretes das nove sinfonias!
Ele havia passado a acreditar que "os quartetos são uma declaração de direitos humanos, e uma eternamente sediciosa no sentido platônico da suversão artística."
E mais:

Um alto conceito de liberdade está encarnado nos quartetos, tanto além quanto incluindo o que Beethoven, ele mesmo, quis dizer quando escreveu ao Príncipe Galitzin que sua música podia "ajudar a humanidade sofredora". Eles são uma medida do humano [...]

Stravinsky faz reparos técnicos a algumas das sinfonias, não obstante seu amor pelos quartetos de cordas.
A terceira parte do livro é composta de prefácios e cartas (é interessante ver o amor do compositor pelas invenções rítmicas da Renascença, bem como as respostas sarcásticas ao indizível crítico de música que o jornal The New York Times tinha na época, e cujo nome não escreverei).
A breve quarta parte é dedicada a maestros e a reger (métier que Stravinsky nunca chegou a dominar), com alguns ataques (o mais feroz, contra Furtwängler), esperados depois da terrível frase inicial: "Maestros, como políticos, raramente são pessoas originais (não é por sua regência que Mahler e Strauss são lembrados)." Klemperer, Stokowsky e Bernstein são elogiados (com algumas reservas), Bruno Walter, Pierre Monteux e Mitropoulos também (mas sem reservas).
A quinta parte, de críticas, contém uma comparação, seção por seção, de três gravações da Sagração da primavera: a dele mesmo, a de Pierre Boulez e a de Zubin Mehta (a segunda de Boulez e a primeira de Mehta, em relação a essa obra), uma crítica dos escritos de Wagner (Stravinsky bem nota que Goebbels e Rosenberg poderiam ter escrito parte deles), e das cartas de Schönberg, com quem se solidariza e, o mais interessante, uma análise detida dos últimos quartetos de Beethoven, a propósito do conhecido livro de Joseph Kerman. Stravinsky demole os preconceitos contra a Grande Fuga, esta música que é minha favorita de todos os tempos.
A sexta parte inclui mais Beethoven (as sonatas para piano) e apreciações sobre o panorama da música contemporânea, em que se confirma a sua conversão à Segunda Escola de Viena: muito mais importante do que um maestro especialista em Brahms seria alguém, como Boulez, simpático aos três As: Arnold (Schönberg), Anton (Webern) e Alban (Berg) - uma brincadeira com o dito de Bülow sobre os três Bs, Bach, Beethoven e Brahms. Sabemos que Robert Craft foi responsável por isso. Na época em que os admiradores de Schönberg e de Stravinsky digladiavam-se, Stravinsky, de fato, não conhecia a música do "rival". Depois da morte do pai da música dodecafônica, Craft conseguiu fazer essa apresentação. Pode-se lê-la no Diário: Stravinsky ficou desconcertadíssimo com a qualidade da música e, por um tempo, não se julgou capaz de compor de novo.
Ainda nessa parte de Themes and Conclusions, um artigo sobre o seu amigo Auden (Huxley, que é às vezes mencionado neste livro, foi outro escritor que foi um grande amigo de Stravinsky).
Nos anexos, duas cartas da esposa de Stravinsky, temos uma nota bem pessoal: ele era um octogenário e tinha vários problemas de saúde. Pouco depois, morreria esse gigante da música, que ainda conheceu pessoalmente grandes do século XIX (Rinsky-Korsakov), passou por praticamente todos os outros grandes compositores da primeira metade do século XX (Debussy, Berg, Prokofiev) e chegou até aqueles que lhe sobreviveriam, como Stockhausen e Ligetti (mortos recentemente) e Boulez, que permanece conosco, regendo e criando música nova. Stravinsky deu-nos praticamente um século de música, com uma obra que soube não só refletir como compor sua época.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

30 dias de leituras: Nós e Büchner

30 livros em um mês

Dia 16: Um livro favorito que se tornou música.

Quando imaginei este tópico (inspirado no "livro que virou filme"), pensei no Otelo de Shakespeare. Não estava pensando no Rossini (aliás, só conheço trechos da ópera dele), e sim na ópera de Verdi e Boito, que é magistral inclusive nas cenas que se afastam da peça, como este dueto de amor, Già nella notte densa, no final do primeiro ato, que resume os acontecimentos do começo de peça de Shakespeare - e que não aparecem na ópera, que inicia com a chegada de Otelo após vencer os turcos.
Mas essa não é minha peça preferida do autor, e sim A tempestade. E a outra peça de que gosto tanto quanto esta é Woyzeck, de Büchner (1813-1837), que inspirou a Alban Berg uma das maiores partituras do século XX, a ópera Wozzeck.
A história do texto e do autor é quase tão dramática quanto a da peça. Tendo morrido de meningite aos 23 anos, Büchner deixou a peça manuscrita em papéis soltos. Ela não foi publicada, inicialmente, com o restante da obra. Ao longo do tempo, a tinta esmaeceu - mas uma primeira edição do texto saiu em jornal em 1878. A dificuldade de decifrar o texto fez com que, ainda no inicio do século XX, o próprio título - e nome do personagem principal - fosse lido erradamente, Wozzeck e não Woyzeck. Por isso a ópera de Alban Berg, que estreou em 1925 (na regência de Erich Kleiber), tem um nome diferente da peça. Não há uma "edição definitiva" da peça, há alternativas e possibilidades de encenação.
Büchner era um homem politicamente engajado; contra o Antigo Regime alemão, defendia os direitos humanos e pensava que a relação entre pobres e ricos era o único elemento revolucionário - ele estava à esquerda mesmo de Heine, cuja presença já não era admissível nos Estados alemães. Como o poeta, morreu no exílio, porém na Suíça - Heine morreria em Paris.
O texto continua vivo nos palcos e inspirou tanto músicos eruditos quanto populares. Nick Cave e Warren Ellis escreveram música para uma montagem recente da peça.
Uma das minhas maiores experiências no teatro foi assistir a essa peça em Buenos Aires em uma montagem impressionante (passava-se em um circo e tinha música ao vivo regida pela maestrina "Alba Berg", na verdade Cecilia Candia) dirigida por Emilio García Wehbi, a partir da adaptação de Ricardo Ibarlucía, que incluía muito adequadamente poemas de Paul Celan. O excepcional ator que interpretava o protagonista, Guillermo Angelelli, arrancou aplausos no meio do espetáculo: era uma cena em que nada dizia, apenas carregava coisas para fora do picadeiro.
Woyzeck, pobre, soldado, cobaia de experiências científicas, identifica sua classe social no palco: "Wir arme Leute" (Nós, os pobres) - e, se os pobres vão ao céu, é para trabalhar e fazer os trovões... As críticas ao capitalismo, ao militarismo (muito antes das Guerras Mundiais) e até à biopolítica, que a peça antevê nas experiências médicas de que Woyzeck é cobaia, vão de braços dados com a forma fragmentária. Muitos antes de Maiakóvsky, era revolucionário em política e em estética - A morte de Danton, sua primeira peça, já era um trabalho muito original. Woyzeck ainda é tão provocante que, em 1978, ela foi proibida, numa montagem do Teatro Universitario de Buenos Aires, pela ditadura militar...
Em uma conferência sobre a peça, perguntei ao palestrante se Büchner realmente achava viável montar essa peça; de tão inovadores eram o conteúdo e a forma, esse era um texto que nenhum teatro aceitaria; se algum o aceitasse, seria proibido pela censura; mesmo se não fosse censurado, o público não viria; e, se o público viesse, lincharia o autor. Parece-me que Büchner escreveu a partir e contra o seu próprio tempo - e, por isso, somente no futuro montagens seriam possíveis. O palestrante, porém, não achou a pergunta interessante e ignorou-a. No entanto, ainda penso que ela faz sentido; e que, se o texto não envelheceu, é porque em suas veias ainda pulsa o sangue do autor, que teria sido derramado, e dos pobres da peça - que continua a sê-lo.
A peça teve várias repercussões no teatro do século XX; tese de Bernhard Johannes Schwarz analisa a influência de Büchner em Brecht.
A música da ópera de Alban Berg, igualmente, é de uma grande coragem artística e até hoje pode soar como vanguarda (pelo menos para quem só chegou até La Bohème...); no primeiro e no segundo atos, ele ainda sua formas como fuga e passacalha para estruturar as cenas (mas a forma musical não se sobrepõe ao teatro, o que é impressionante - sua arquitetura não deixa ver os alicerces do edifício), mas o terceiro ato é todo feito de "invenções": sobre um tema (a leitura da Bíblia por Marie), uma nota (a cena de assassinato), um ritmo, uma tonalidade (o interlúdio em ré menor), sobre um ritmo persistente.
Para quem não a conhece, sugiro ouvir a cena da taberna, em que Wozzeck descobre que é traído por Marie, no teatro e num filme com uma representação tradicional (com regência de Bruno Maderna e as vozes de Kurt Moll e de Franz Grundheber interpretando os bêbados - este cantor se tornaria um grande Wozzeck e gravaria a ópera com Abbado); o final da ópera, a partir da cena em que Wozzeck procura a faca com que matou Marie.
Depois disso, talvez se possa enfrentar a cena em que Wozzeck mata Marie (na regência de Sylvain Cambreling, com os cantores Dale Duesing e Kristine Ciesinski) - e o fortíssimo na nota si...
Tão forte foi o impacto de Woyzeck que, se eu tivesse mantido o tópico original, "livro que virou filme", ainda assim poderia ter escolhido esta peça de Büchner, pois Herzog fez um filme a partir dela. O ator principal é ninguém menos do que Klaus Kinski, em fortíssima atuação.
Para ler a peça em português, temos a tradução de (meu amigo) Tercio Redondo, publicada pela Hedra. Espero que sua tese sobre esta obra-prima do teatro seja também publicada.

sábado, 24 de setembro de 2011

30 dias de leituras: Murilo Mendes, Orfeu reiventado

30 livros em um mês

Dia 15: Um livro que era o mundo.

Os grandes livros são um mundo. Criei de forma muito desajeitada um tópico que pode abarcar qualquer coisa. Devo interpretá-lo, pois, para que produza algum sentido.
Poderia escolher um livro que mais me tenha aberto o mundo. Teria que ser a cartilha com que me alfabetizei, O sonho de Talita...
Preferi pensar em uma leitura mais recente, Convergência, de Murilo Mendes. Em seus temas e paisagens, é um livro muito aberto para o mundo (o que não era algo novo na poesia dele, claro). Os recursos da poesia visual (nos "grafitos" e "murilogramas") que ele empregou nesse livro, o último de versos que publicou, reforçam essa impressão - ele foi mais longe no uso desses recursos do que Drummond em Lição de coisas. E o fez sem perder sua personalidade poética. Diferentemente da maioria dos poetas, ele morreu no auge, ainda arriscando e descobrindo.
Esse livro, um dos maiores da literatura brasileira, tem diversas pedras-de-toque magistrais, como "A versão do robô - talvez genuína." ("Grafito segundo Kafka"). Já as destaquei em outro lugar.
No centenário de nascimento de Murilo, escrevi um texto bobinho sobre o poeta, que foi publicado no Ciberkiosk. Em virtude de certas conjunções que desconheço, o texto me abriu portas fora e dentro do Brasil, a tal ponto que, se eu tivesse um santo, seria o Murilo.
Abaixo, transcrevo o meio e o final; eu partia da identificação do Eterno Feminino em Murilo para chegar a Convergência. Eu estava mais preocupado em ressaltar a coerência do livro no quadro da obra dele, e negar as leituras que o viam como um caso lastimável de velhinho decrépito experimentando peruca nova.
Todas as citações de Murilo vem de Poesia completa e prosa, que a Nova Aguilar lançou em 1994.

Orfeu reinventado: Murilo Mendes, cem anos de um poeta contemporâneo

[...]
Murilo, no entanto, como se verá, não se limita a glosar temas clássicos, operação a que se dedicam mesmo poetas menores; o poeta vai além na comunhão com o mito (cavalga-o em pelo), pois o mito, nesta obra, determina a própria poética.
Mas qual seria o conceito de Eterno Feminino em sua poesia?

Além das outras mulheres e da musa existe uma Mulher sem nome, sem cheiro, sem cor, sem peso e sem forma, que penetra todas as coisas e conhece tudo o que se faz e o que se diz. Essa mulher existe desde a origem dos tempos. Talvez ela seja a projeção feminina do pensamento de Deus.
[ A Musa das Musas, O Sinal de Deus (1935-6), p. 758 ]

Na obra de Murilo Mendes, o papel do poeta corresponde a dar forma ao arquétipo; sendo esse arquétipo o Eterno Feminino, tal missão não corresponderia à de Orfeu?

Na ampla sala do "Concert Hall" uma mulher mulheríssima toda vestida de branco, que nenhum ornato mínimo interrompe, canta a parte de Orfeu na partitura de Gluck. Sei quem é: o contralto Kathleen Ferrier que vive um canto pessoal de experiência. O tom cupo desta voz ao mesmo tempo primitiva e refinada restitui-nos a musicalidade gluckeana em sua nobreza de mito arcaico reelaborado.
[ Os Dias de Londres, Carta Geográfica (1965-7), p. 1102 ]


Mais ainda do que Ferrier, a grande contralto inglesa prematuramente falecida, que usou sua voz única para cantar a ópera de Gluck, Murilo Mendes, com a sua também singular voz, pôde assumir-se Orfeu e tornar-se na própria reelaboração do "mito arcaico".
Mário Faustino julgava que Invenção de Orfeu foi um nome "muito bem escolhido" por Murilo para a obra mais extensa de Jorge de Lima (5). Para Wilson Martins, todavia, o título é incorreto, pois Jorge de Lima teria escrito a "imaginação" de Orfeu, e não sua invenção (6). Não interessa aqui o maior ou menor acerto do título desse livro, mas apontar que Murilo, ao escolhê-lo, na verdade revelava mais de si mesmo do que da obra do amigo.
É muito conhecido o mito de Orfeu. Não se irá contá-lo. Deve-se lembrar, contudo, que Orfeu torna-se adorador de Apolo depois de voltar do Hades (7) e organiza o culto a esse Deus; posteriormente, é morto pelas bacantes, seja por ter criado cultos que lhes eram interditos, seja por repudiar-lhes a corte amorosa, ou por ter introduzido o amor pelos adolescentes, segundo Ovídio (As Metamorfoses). A cabeça de Orfeu despedaçado desce o rio cantando e, de acordo com as Geórgicas de Virgílio, ainda chamando por Eurídice.
A busca do Feminino move-lhe a exploração das profundezas anímicas e, conseqüentemente, permite-lhe atingir o seu canto máximo, que supera a própria morte. Nesse sentido, Orfeu é um "apaixonado do Eterno-Feminino" (8).
Na obra de Murilo Mendes é manifesta a "mitificação da mulher" (9). Manuel Bandeira ressalta que a amada adquire um "desdobramento cósmico" na poesia de Murilo, como o "extremo limite" do "conceito petrarquiano de amor" (10). Todavia, a profundidade da exploração mítica de sua obra proporciona a Murilo ver muitas outras faces do Feminino além da mãe e da amada:

A Górgone apresentou-me a tripleface. "Conheço-a de vista e de ouvido", respondi rangendo os dentes.
[A Górgone, Poliedro, p. 1015]


8 – Três mulheres juram ao poeta amor eterno.
.............
14 – Três mulheres apontam ao povo o coração do poeta.
[ Alpha e Ômega, O Sinal de Deus, p. 766 ]


Nesses excertos, entre outros, Murilo refere-se ao arquétipo da deusa tríplice (11), presente em diversas mitologias. Apenas entre os gregos, podem ser destacadas: as três Erínias (ou Fúrias, vingadoras do derramamento de sangue), as três Moiras (fiandeiras do destino) e as três Górgonas.
Outra comparação de fundo mítico presente na obra de Murilo corresponde à identificação da mulher com a lua:

E tu és cíclica,
Única, onírica,
Envolverônica,
Musa lunar
[ A Lua de Ouro Preto, Contemplação de Ouro Preto, p. 519 ]

Também aí Murilo é fiel ao mito. A Lua, demonstra-o Jung, representa o princípio da psique feminina, tanto para alquimia, quanto para a astrologia e a mitologia. Para o homem, corresponde a uma das representações de sua feminilidade inconsciente - a anima da psicologia junguiana (12).
Uma vez que a poesia de Murilo lida com esses conteúdos inconscientes, não constitui matéria para o espanto, apesar de o poeta ter professado o catolicismo romano, a presença de mitos não apenas pagãos, mas renegados pela Igreja de Roma:

A dona da cidade maldita
Penteia os cabelos no relâmpago
........

A dona da cidade maldita.
Lilith, anda solta ao microfone.
[Revelação, As Metamorfoses (1938-41), p. 324-5]


Outro antigo mito: Lilith, a primeira mulher de Adão, que foi criada diretamente por Deus, não a partir do primeiro homem, e que, por não ter-se submetido a seu esposo, passou a conviver com o Demônio (13). Cuidadosamente apagada da Bíblia cristã, Lilith permanece como símbolo da rebelião à repressão do feminino na psique e na sociedade. Murilo, por meio dos microfones do surrealismo, consegue dar voz ao mito no cotidiano.
Não se esgota aí, porém, a presença da mitologia judaico-cristã a expressar o lado negro do Feminino na poesia de Murilo Mendes. A própria cruz aparece como Mulher:

Arrasto a minha cruz aos solavancos,
Tal profunda mulher amada e odiada,
Sabendo que ela condiciona a minha forma:
E o tempo do demônio me respira.
[Indicação, Parábola (1946-52), p. 545]


Segundo Jung, trata-se de um motivo medieval, em que a cruz é vista como a madrasta malvada de Jesus, que tomou e matou o fruto do ventre de Maria (14). Em outro pólo, a Virgem Maria desempenha para Murilo a "encarnação" do Eterno Feminino, que preside o final dos tempos, numa referência clara ao Apocalipse:

(...) sempre enxerguei a cobra com a cabeça achatada debaixo dos pés de Nossa Senhora (...)
[ Raul Bopp, Retratos-Rêlampago (1973-4), p. 1217 ]


Rosa branca do universo, desejada dos povos,
À tua passagem os elementos confabulam.
Através das gerações teu poder se ampliou,
Maria anunciada muito antes de nasceres
[ Regina Pacis, As Metamorfoses, p. 325 ]


(...) se toda e qualquer mulher, desde a mais grosseira até a mais cristalmente fina, desde a mais obscura até a mais gloriosa é mesmo rainha, com ou sem voto daquela que é rainha do céu, dos limbos e da terra, que bota a serpente debaixo dos pés (...)
[ A Rainha do Sabão, A Idade do Serrote, p. 899 ]


Apresentando-me o outro lado coberto de punhais,
Nossa Senhora das Derrotas, coroada de goivos,
Aponta seu coração e também pede auxílio.
[ Poema Barroco, Mundo Enigma, p. 394 ]

Com efeito, o Eterno Feminino pode representar a "aspiração humana à transcendência", de que a Virgem Maria seria a "mais perfeita encarnação" (15). Embora representante da mulher atemporal, Murilo confere atualidade à Virgem Maria, que aparece, no âmbito dos poemas surrealistas de guerra de Mundo Enigma (livro escrito durante o segundo conflito mundial), compartilhando o sofrimento humano (16). O mito não se converte num refúgio contra a História – pelo contrário, nesta obra, como em outros grandes poetas modernos, a História revisita-o.
E a própria guerra pode ser vista como fruto do Feminino, numa identificação da mulher com o morte, outro motivo arquetípico; Jung demonstra que a afinidade entre a lua e a morte, como a viam os alquimistas, era mediada pelo feminino, pois com o pecado original, de que a mulher (ou a lua) teria sido culpada, a morte entrou no mundo (17).

- Vês a morte graciosa?
- Sim, ela inda é muita moça,
Prepara o vestido novo
Para receber a guerra
Que cresce no bojo desta.
[ Visão Lúcida, As Metamorfoses, p. 370 ]


Morte, grande fêmea,
Eu te justifico e te perdôo.
[ Túmulos Reais (Catedral de Palermo), Siciliana (1954-5), p. 572 ]

Assim como Murilo expressa as duas faces do Feminino (a positiva e a negativa), o Eterno Feminino, na figura de Berenice, amada ideal do poeta, apresenta-se em oposição à Igreja-Fêmea (e o poeta não pode amar duas mulheres simultaneamente) e a Deus:

Aponta-me a mãe de seu Criador, Musa das musas,
Acusando-me porque exaltei acima dela a mutável Berenice.
A igreja toda em curvas
Quer me incendiar com o fogo dos candelabros.
[ Igreja e Mulher, A Poesia em Pânico (1936-7), p. 303 ]


Uma idéia fortíssima entre todas menos uma
Habita meu cérebro noite e dia,
A idéia de uma mulher, mais densa que uma forma.

.....

Uma idéia que verruma todos os poros do meu corpo
E só não se torna o grande cáustico
Porque é um alívio diante da idéia muito mais forte e violenta de Deus.
[ Idéia Fortíssima, As Metamorfoses, p. 316 ]


Vestidos suarentos, cabeças virando de repente,
pernas rompendo a penumbra, sovacos mornos,
seios decotados não me deixam ver a cruz.
[ O Poeta na Igreja, Poemas (1925-9), p. 106 ]


Esses exemplos revelam o antagonismo entre o sexo e a religião cristã, pendant terreno da dualidade do Eterno Feminino.
Muito se reprovou a Mário de Andrade (18) por ter saudado A Poesia em Pânico com críticas contra o mau gosto e as "heterodoxias" no trato da religião da Igreja de Roma. É perfeitamente criticável o julgamento de Mário de Andrade, mas não o seu diagnóstico. Murilo, felizmente, como poeta, é um herege: "Intimaremos Deus/ A não repetir a piada da Criação" [ O Poeta Nocaute, O Visionário, p. 242 ].
A presença do Eterno Feminino revela essa superação porque ele antecede a Igreja Cristã e, na verdade, a contém, como mito:

Alguém te contempla
Desde antes do tempo começar.
Mais tarde a Virgem Maria
Navegava nas ondas do céu
Para ver teu rosto.
[ Menina em quatro idades, O Visionário, p. 199 ]

Murilo sabe que "A potência da mulher cria e derruba os deuses." [ Setor Texto Délfico, Poliedro, p. 1036 ] e expressa a precedência do mito em relação ao dogma cristão também no registro cômico, como nesta passagem em que indaga ao espírito de Jorge de Lima sobre o paradeiro da célebre criação de Jorge, a Nega Fulô:

- Você tem visto a Nega Fulô, Jorge?
- Roubou as chaves de São Pedro, ninguém mais entra no céu. Acabará roubando o próprio São Pedro, então vai dar um fuzuê dos diabos.
[ Texto sem Rumo (1964-6), Conversa Portátil, p. 1469 ]


Erotismo e misticismo são marcas do Eterno Feminino na obra de Murilo, como o diz Aragão (19), o que se deve à recusa a renegar o erotismo em nome da espiritualidade. Como lembra Alberto Pimenta, a cultura ocidental oscila entre a sublimação da mulher ou a "misoginia simbolicamente radicada em Eva" (20). Murilo escapa a essa dicotomia milenar por intermédio de seu tratamento heterodoxo dos mitos judaico-cristãos, assim como Mozart recorreu aos ideais maçônicos, depurando-os porém da misoginia em A Flauta Mágica (21).
Os lamentos de Mário de Andrade, antes vistos, e a análise de Wilson Martins (22), que bem viu a identificação herética entre religião e sexo, devem, porém, ser muito relativizados com a lembrança de precedentes na história da literatura. O maior deles foi Dante: transformado em poeta católico por força da necessidade da Igreja de Roma (a inexistência de qualquer poeta que pudesse rivalizar com A Divina Comédia), o fato é que Beatriz foi por ele transformada num "mito herético", na expressão de Harold Bloom (23). Grande poesia e ortodoxia religiosa raras vezes combinam no ocidente.
Em processo assemelhado ao da obra de Dante, onde Beatriz é a essência da poesia, como aponta Bloom (24), a Mulher, em Murilo, é a própria portadora do canto. O encontro mítico com a musa permite-lhe o acesso aos conteúdos do inconsciente; a inspiração compara-se a uma febre que não se debela, num encontro infindo: "7 – O poeta encontra a Musa Berenice e inaugura o estado de febre permanente." [ Alpha e Ômega, O Sinal de Deus, p. 766 ].
Não se pense, todavia, que o poeta é passivo; ele torna-se em um iniciado nos mistérios e lhe cabe alimentar a tradição - e o próprio arquétipo - com as suas imagens:

Sou um campo onde se decide a sorte dos fantasmas.
Não me podes dispensar, crescimento do mito:
É preciso continuar a trama fluida
Pela qual Lilith, Ariadna, Morgana receberão o alimento.
[Corrente Contínua, As Metamorfoses, p. 319]


Tu estás para mim como eu estou para Deus.
[ Ruth, O Sinal de Deus, p. 746 ]


O mergulho no arquétipo permite ao poeta o auto-conhecimento; à Mulher cabe dizer o nome verdadeiro dele mesmo:

Sigo uma mulher com os dentes
E pergunto qual o meu nome.
[ A Janela Verde, Mundo Enigma, p. 384]

- Vestida de água e céu
Voas acima do tempo.
No espelho do futuro
Te assisto refletida.
Serás tu mesma? Ou sou eu.
[ Poema Abraço, As Metamorfoses, p. 370 ]

Nesse último poema, o penúltimo de As Metamorfoses, Murilo compartilha com os leitores a revelação de que o eterno feminino é parte dele mesmo (era ele mesmo a princesa que dormia, como em Fernando Pessoa – também aqui um trajeto iniciático).
Afirmou-se antes que o mito não se restringiu a fornecer temas, e sim teve a função de determinar uma poética. Murilo nitidamente empregou recursos do surrealismo, e isso distingue este poeta de autores menores: a assunção do papel órfico de renovador de mitos - "le poète, lui, peut donner une autre dimension aux grands mythes de l’humanité" [ Texte de Montréal (1967), Papiers, p.1594 ] - por intermédio de uma linguagem de vanguarda corresponde à grande marca deste escritor. Todavia, Mário Faustino pensava que Murilo Mendes fracassou na tentativa de surrealismo no Brasil porque era católico (25)! Ao contrário do outro Mário, Faustino não foi capaz de perceber o caráter heterodoxo do cristianismo de Murilo...
Murilo Marcondes de Moura, com toda justeza, vê na fusão de religiosidade e vanguarda artística o fator diferenciador desta obra (26). Nessa fusão, a religião cristã, a meu ver, serviu para dotar o poeta de poderosos símbolos de ampla difusão social - ao contrário de William Blake, que preferiu criar uma cosmogonia própria, que torna a obra deste outro grande poeta menos inteligível - e de uma ética voltada à questão social.
Quanto ao surrealismo, cumpriu o papel de proporcionar a Murilo a técnica poética de expressar os conteúdos simbólicos inconscientes - e nisso, ao contrário do que pretendia Faustino, não é incompatível com o cristianismo. De acordo com o próprio poeta: "O surrealismo, tentando ultrapassar os limites da razão humana, aproxima-se às vezes consideravelmente da mística." [ 58, O Discípulo de Emaús, p. 822 ]. O discurso poético de Murilo, em que imagens as mais diversas se justapõem (27), revela-se extremamente adequado para expressar o mito - e lhe veda um tratamento ortodoxo e estreito. De fato, poetas que adotam poéticas mais lineares e lidam com os mesmo temas parecem epígonos.
Todavia, observar o cotidiano com os óculos do mito pode levar a uma visão idealizante da sociedade. Embora o desprezo pelas tiranias e o combate às injustiças sociais estejam bem presentes na obra de Murilo, fundamentados numa ética cristã, nela se expressam sentimentos conservadores no tocante ao papel da mulher na sociedade:

Se a mulher não retornar ao seu princípio:
É máquina instalada dentro dela que deveremos vencer.
Quando esta mulher se tornar de novo submissa e doce
[ O Rato e a Comunidade, Poesia Liberdade (1943-5), p. 408 ]


Bendita seja a hora em que conheci o pai de meu filho!
.........
Eu não existia antes de o conhecer.
Ele sabia mais de mim do que meu pai.
[Dulce, O Sinal de Deus, p. 745]


Em processo análogo, Murilo chega a ver no Eterno Feminino, como sede do mistério, o motor da História:

A mulher determina continuamente no mundo uma transformação maior do que todas as revoluções. [ 714, O Discípulo de Emaús, p. 886 ]

O poeta no meio da revolução
Pára aponta uma mulher branca
E diz alguma coisa sobre o grande enigma
[ Parábola, Os Quatro Elementos (1935), p. 270 ]

Pois, para Murilo, a história rege-se pelo tempo mítico. O real não passaria de um "obscuro mito" [ Joan Miró, Tempo Espanhol, p. 618 ] e por isso a URSS é chamada de "virgem imprudente" que se afastara da "comunidade dos filhos de Deus" [ URSS, Tempo e Eternidade, p. 253-4 ]. Ele não se furta a ver a política sob a ótica e a ética dos mitos judaico-cristãos: as guerras demostram que não superamos a luta de Abel e Caim.

Armilavda, Armilavda, o tempo é o mesmo:
As espadas dos tiranos retalham as partituras das sinfonias austríacas,
Nos palácios da Índia com seus deuses
Lutam tropas de párias e soldados nus,
Na China da surpresa e da metamorfose
Morrem crianças e velhos metralhados.
Consultáramos tantos mapas, lêramos tantos livros:
Mas não tínhamos lido a história de Abel e Caim.
[Armilavda, As Metamorfoses, p. 328]

Religião e surrealismo serviram a Murilo na expressão dos mitos. E o de Orfeu talvez tenha sido o mais importante de todos em sua obra, porque lida com o Eterno Feminino como fonte da poesia. Nesse ponto, chega-se a Convergência (1963-6), o melhor e mais incompreendido livro de Murilo Mendes.
Há quem diga que Murilo adotou nesse livro procedimentos da poesia concreta para seguir um modismo (28). Para Wilson Martins, trata-se de um livro com o "espírito dos anos 30" escrito com a "linguagem dos anos 60" (29), ou seja, um anacronismo talvez involuntário. Arrigucci Jr. vê também anacronismo nos poemas em que o construtivismo predomina, como um desvio da verdadeira poesia do autor (30).
José Paulo Paes, que soube identificar o papel primordial do feminino na poesia de Murilo Mendes - ressaltando as "dimensões ciclópicas" da figura da mulher, não consegue apreciar Convergência, livro a que dedica quatorze linhas num ensaio de dez páginas; reconhece-lhe inventividade, mas julga que se trata de metapoesia sobre a "palavra", não mais sobre a "Palavra" (31). Para Bruno Tolentino, Murilo teria sucumbido a ingenuidades e cacoetes em seus murilogramas de Convergência (32). E, de acordo com Wilson Martins, já após a década de trinta a obra de Murilo teria entrado "em irrecuperável processo de senescência literária" (33) - portanto, uma das mais longas decadências da história da literatura.
Não me é possível concordar com tais análises. De um lado, como bem ressaltou Haroldo de Campos (34), Murilo sempre foi um poeta de vanguarda. Por outro lado, Paes, apesar de ter pressentido o mito que anima a poesia de Murilo, não percebeu que a "inventividade" desse livro, em vez de gratuitos exercícios de um virtuose de palavra, correspondia a uma necessidade do mito que governa a obra daquele autor.
Merquior escreveu que o "rigor epigramático" acentuou-se na "obra tardia" do poeta (35); para João Alexandre Barbosa (36), Júlio Castañon Guimarães (37) e Laís Corrêa de Araújo (38), o último estilo de Murilo corresponde ao desenvolvimento da própria obra, e não a uma adesão oportunista às modas literárias de então. No entanto, tais autores não procuraram ver no mito a relação de Convergência com o restante da obra.
Já Fernando Fábio Fiorese Furtado (conhecido autor do livro de poesia Ossário do Mito) constata uma "geografia mítica" em Murilo e refere-se à "tarefa órfica" do poeta (39). Dentro do mesmo espírito - do estudo de como o mito estrutura a obra de Murilo - este artigo pretende apontar, pois, que a fragmentação do discurso poético na obra final de Murilo Mendes corresponde à dilaceração de Orfeu pelas bacantes. Se o mito corresponde a um sistema dinâmico impulsionado pela "substantivação" de um arquétipo e que tende a tornar-se em narrativa (40), Murilo fez dessa narrativa a sua própria biografia literária: deixou que a dilaceração de Orfeu - último estágio do mito - se entranhasse na sua própria poética.
Murilo teria tomado consciência dessa etapa necessária de sua trajetória no poema Grafito Para a Mãe , de Convergência - e mais uma vez se ressalta a importância do feminino e da morte da mãe para a sua poética; morte e nascimento são confundidos e geram o mito na História: "Morte polêmica/ .../ Catapultou-me da esfera do teu ventre / ... / A primeira ruptura: tempo subtraído-te, /História em mito permutada" [p. 630] .
Nesse último livro de versos em português, Murilo exercerá a fragmentação do discurso como nunca antes, numa série impressionante de "grafitos" e "murilogramas" e dos poemas da seção "sintaxe", e o faz como o Orfeu dilacerado pelas bacantes. Penso que essa abordagem da obra do poeta, embora nova, pelo que conheço, não deixa de ser quase óbvia, porquanto o próprio poeta explicitamente declara tornar-se o último Orfeu que, embora com o corpo despedaçado, consegue manter a integridade da voz:

Lacerado pelas palavras-bacantes
Visíveis tácteis audíveis
Orfeu
Impede mesmo assim sua diáspora
Mantendo-lhes o nervo & a ságoma.
Orfeu Orftu Orfele
Orfnós Orfvós Orfeles
[ Exergo; Final e Começo, Convergência, p. 625 e 703 ]


Aceleram os músculos de jovens mulheres vermelhas
Travestidas em jovens mulheres azuis
inclinadas à
ocisão do homem.
[ Murilograma a Claudio Monteverdi, p. 694 ]

Note-se a orfinvenção: Murilo cria novos pronomes para dizer que, no sujeito que canta, é de Orfeu a voz. O poema a Monteverdi, claro, refere-se a Orfeu, mito que o grande compositor abordou em sua primeira ópera, mas sem incluir em sua partitura, da mesma forma que Gluck e à diferença de Haydn e Telemann, a cena que o murilograma invoca: o assassinato pelas bacantes. Seria esse poema, portanto, uma ironia e não uma homenagem a Monteverdi? Penso que não. Conquanto fuja à obra do músico, penso que Murilo decidiu-se a evocar a cena da morte porque ela corresponde ao motivo desencadeador do estágio último de sua própria poética.
Dilacerado pelo Feminino, Orfeu-Murilo, em contrapartida, fere-o com a fragmentação do discurso: "A infância giravênus. A infância viravênus. A atração de Vênus. A atracação de Vênus. A extração de Vênus [...] A camisa-de-vênus. A camisa-de-força ao fanático de Vênus" [ Metamorfoses (3), p. 721 ]; "A dêmona. A demona. A demoná. / A dissonante" [ Desdêmona, p. 710 ]". Resultado do choque do mito (a eternidade) com o contemporâneo (o tempo), o poeta ousa mesmo comparar as duas infelizes e suicidas apaixonadas por Enéas:

Homem autorfeu
Desarticula o autômato da musa.
[ Grafito para Ettore Colla, p. 656 ]


Desdêmona demona: agora desmembrada.
A engrenagem da flor: poeira desmanchada.
[ Grafito na Ex-Casa Paterna, p. 631 ]


A sibila K-F-199
Escreve com dedos de aço:
"G.C. desvenda o signo.
Perdeu-se a sentença da sibila."
[ Grafito para Giuseppe Capogrossi, p. 656 ]

Revisitando o surrealismo, Murilo logra combinar a dilaceração do corpo com a do discurso em poemas que poderiam ser escritos amanhã:

As vísceras representam-me personagens de Jeronimo Bosch
Dirigidas por Luís Buñuel
Provocando-me
Urinando-me
[ Grafito para Augusto dos Anjos, p. 638 ]

E, finalmente, consegue despir-se do idealismo ao tratar do fato social. João Alexandre Barbosa observa nesse livro um processo de dessacralização do real (41), porém essa afirmação deve ser relativizada, pois se os "termos metafísicos" são incluídos numa "semântica de concreções", na expressão de Haroldo de Campos ao tratar de Tempo Espanhol (42), aqueles termos não são expulsos e a metafísica do poeta prossegue na sua concepção do homem, sempre plasmada pela ética cristã.
[...]
Penso que o processo de dessacralização foi movido pelo último estágio do mito de Orfeu, que Murilo passou a assumir; ainda mais do que na obra anterior, o mito deixou de ser simples tema (e nisso poderia levar à idealização do real) para tornar-se poética (a permitir assim a abordagem do homem e da sociedade por meio da fragmentação, que é simultaneamente discurso e paradigma nesta obra). E uma poética de vanguarda. Murilo, em Convergência, preocupa-se com a renovação da poesia, coloca em cheque a herança portuguesa (Não sei se haverá lugar / Para o poeta elegíaco, / E se poderão coexistir/ FINEGANS WAKE e o só. [Murilograma a Antônio Nobre, p. 680] ) e aponta impasses da poética de outros grandes poetas do modernismo brasileiro: Cecília Meireles, que já havia mergulhado no passado com o grande Romanceiro da Inconfidência, e Carlos Drummond de Andrade, que pela última vez havia conseguido renovar a sua linguagem com Lição de Coisas, livro do poema "Isso é aquilo".

O século, ácido demais para uma pastora
de nuvens, aponta o revólver aos mansos
[ Murilograma a Cecília Meireles, p. 688 ]


E agora, Josés?

Além de Cummings & Pound
Além de Sousândrade
Além de "Noigrandes"
Além de "Terceira Feira"
Além de Poesia-Praxis
Além do texto "Isso é aquilo"
Sereis teleguiados?
[ Murilograma a C.D.A., p. 690 ]

Nada, porém, mais afastado da poesia de Murilo, mesmo na sua última fase, do que o movimento concretista brasileiro; enquanto Murilo chega à fragmentação do discurso por necessidade mítica - "O poeta é o prático do espiritual." [ 729, O Discípulo de Emaús, p. 888 ] - , os concretistas querem realizar um "plano-piloto", em que determinações matemáticas pretendem resumir a poética (43), com a renúncia ao absoluto e a concepção do poema como mecanismo (44). Enquanto os concretistas querem a "despoesia" (título de livro de Augusto de Campos), Murilo afirma:

O desomem desova a desarte a despoesia a desmúsica a despedida do homem.

O desomem desova a fome a peste a guerra a morte.
[ O Desomem, p. 717 ]

O Orfeu em que Murilo finalmente se converte, contudo, jamais renuncia à religião cristã, que permanece como o fundamento ético de sua obra. A referência à crise da poesia não pode ser feita sem o pensamento na "crise da aventura do homem, na desintegração do sagrado" [ Ezra Pound, Retratos-Relâmpago, p. 1279 ].
[...]
Fato é que Murilo não tem antecessores nem sucessores na poesia brasileira - segundo Bandeira, foi um "bicho-da-seda", que tirou tudo de si mesmo (47). [...]
A ética cristã e o mito grego; a complexa e rica combinação dessas duas poderosas tradições (48) define o gênio de Murilo e encerra a sua obra em verso:

O juízo final
Começa em mim
Nos lindes da
Minha palavra.
[ Texto de Consulta, p. 740 ]



Notas

5. Poesia-Experiência. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 239.
6. Pontos de Vista: crítica literária. São Paulo: T. A. Queiroz, vol. III, 1992, p. 454).
7. SOREL, Reynal. Orphée et Orphisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1995, p.27.
8. É o que afirma Schuré (Idem, p. 35).
9. BARBOSA Leila Maria Fonseca e RODRIGUES, Marisa Timponi Pereira. A Trama Poética de Murilo Mendes. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2000, p. 41.
10. Apresentação da Poesia Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Tecnoprint, s/d, p. 152.
11. MCLEAN, Adam. A Deusa Tríplice: Em busca do feminino arquetípico. São Paulo: Cultrix, 1992.
12. JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Petrópolis: Vozes, 1.º vol., 1985, p. 172.
13. SICUTERI, Roberto. Lilith: A Lua Negra. São Paulo: Paz e Terra, 5.ª ed., 1990.
14. Idem, p. 29.
15. CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2.ª ed., 1989, p. 421.
16. As múltiplas faces de Maria na poesia de Murilo, por sinal, não significam uma contradição do poeta; pelo contrário, correspondem à "pluralidade paradoxal" própria da devoção mariana e estudada pela mariologia (DURAND, Gilbert. A Fé do Sapateiro. Brasília: Ed. UNB, 1995, p. 94-5).
17. Idem, p. 23.
18. A Poesia em Pânico. In: MENDES, Murilo. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar 1994, p. 33-4.
19. ARAGÃO, M. L. Murilo Mendes. In: DIDIER, Béatrice. Dictionnaire des Littératures. Paris: Presses Universitaires de France, vol. II, p. 2327, 1994.
20. Idem, p. 169.
21. KERMAN, Joseph. A Ópera como Drama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
22. Idem, vol. IV, 1992, p. 33.
23. Abaixo as Verdades Sagradas: poesia e crença desde a Bíblia até nosso dias. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 61.
24. Idem.
25. Idem, p. 213.
26. Murilo Mendes: A poesia como totalidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Garamond, 1995:48.
27. CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos. Rio de Janeiro: Editora da Univercidade : Topbooks, vol. I, 1999: 872-3.
28. CONTI, Mauro Sergio. Obra convencional é requentada. Folha de São Paulo: Caderno Mais. São Paulo, 27 jan. 2001, p. E6.
29.Pontos de Vista. 1995: IX, 91-2.
30. O Cacto e as Ruínas. 2000:120.
31. Os Perigos da Poesia. 1997: 178.
32. Os Sapos de Ontem. Rio de Janeiro, Diadorim, 1995, p. 35.
33. Idem, vol. X, 1995, p. 271.
34. Metalinguagem & Outras Metas: Ensaios de teoria e crítica literárias. São Paulo: Perspectiva, 4.ª ed., 1992, p. 35.
35. Crítica 1964-1989. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 145.
36. A Metáfora Crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 123.
37. Murilo Mendes. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 84-7.
38. Murilo Mendes. Petrópolis: Vozes, 1972.
39. Murilo nas cidades: os horizontes portáteis da modernidade. In: LOBO, L. e FARIA, M. G. S. A Poética das Cidades. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 11-28.
40. Emprego o conceito de Gilbert Durand (Les Structures Antropologiques de l´Imaginaire. Paris: Bordas, 1973, p. 61-3).
41. Idem, p. 130.
42. Idem, p. 73.
43. Com a evolução da poesia concreta, a poesia teria saído da fenomenologia da composição para a "matemática da composição", onde a palavra é usada segundo uma estrutura matemática previamente estabelecida (o que gerou o afastamento de Ferreira Gullar do movimento), de forma a acabar com a diferença entre a poesia e as artes plásticas; Rogério Câmara, no entanto, parece demonstrar que os concretistas acabaram no design ( Grafo-sintaxe concreta: o projeto noigrandes. Rio de Janeiro: Marca d’Água, 2000, p. 121-30).
44. CAMPOS, Augusto de, PIGNATARI, Décio, CAMPOS, Haroldo de. Teoria da Poesia Concreta. São Paulo: Edições Invenção, 1965, p. 155.
45. LAM, Basil. Beethoven: Quartetos de Cordas. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983, p.145.
46. STRAVINSKY, Igor. Themes and Conclusions. Berkeley: Los Angeles: University of California Press, 1982, p. 260.
47. Idem, p. 150.
48. Davi Arrigucci Jr. também constata a combinação de cristianismo e paganismo, quando analisa o "sentimento trágico da vida" em Murilo (Idem, p. 112-3). Fernando Fábio Fiorese Furtado bem aponta que não se deve sobrevalorizar o elemento cristão em detrimento do dionisíaco (Idem, p. 27). É interessante lembrar que o próprio poeta identificava a importância do elemento helênico em Mozart, para ele "o mais grego dos músicos" [ Herákleion, Carta Geográfica, p. 1059 ] e "um homem da estatura dos antigos" [ 156, O Discípulo de Emaús, p. 829 ].

30 dias de leituras: Kleist no centro da marionete

30 livros em um mês

Dia 14: Um livro antes do fim do mundo.

Imaginei esta categoria para Kleist e seu Sobre o teatro das marionetes. Foi uma de minhas experiências de vertigem com um texto. Trata-se de um conto de raciocínio, em que dialogam um primeiro bailarino que aprecia as marionetes e um narrador. Na história, tudo é muito rápido e aparentemente inevitável, das marionetes até o anunciado fim do mundo.
Li-o em bela tradução de Pedro Süssekind (ele mesmo escreveu o posfácio), em edição bilíngue que a Sette Letras lançou em 1997.
Marionetes que se movem pelo centro de gravidade são capazes de dançar melhor do que seres humanos, cujos movimentos são tomados por afetação. Tais erros viriam de o homem ter comido da árvore do conhecimento.
A referência ao Gênesis prepara o sentido escatológico do conto; no começo, já está o fim.
Alberto Pimenta tem um texto, "O meu centro de gravidade", com espírito bem diverso, mas com uma imagem comum à história de Kleist. Certa vez, quando era um jovem normal (isto é, não escrevia versos), passou mal depois de beber e teve que ser socorrido. Descobriu-se o problema: ele havia engolido o centro de gravidade do vinho e, por isso, tinha agora dois centros de gravidades, o que gerava a dialética e a composição de versos!

– Não terá ele engolido o centro de gravidade do eduardino? – bradou: – Mas por que não disseram isso logo?
Olhou para mim com ar compassivo e doce, e perguntou: - Olha, filho, já sentiste vontade de fazer?... desenhos ou versos ou assim? – Eu fiz que sim.
– Tás fodido – disse ele (na altura os médicos falavam como toda a gente) – isso agora nem com fisioterápia (na altura acentuava-se assim). Esse ardor do corpo passa-te, o pior é o outro. Eu vou-te dar umas pílulas, mas para curar mesmo precisavas de excretar (sabes o que é excretar?), precisavas de excretar o centro que engoliste. Porque agora tens dois! É essa dialéctica (tu sabes o que é dialéctica?) que te lesa a psique, que te lixa.

Publiquei esse texto no início da antologia A encomenda do silêncio, que saiu em 2004 pela Odradek Editorial.
Em Kleist, a ingestão do fruto do conhecimento gerou o efeito oposto ao do vinho de Pimenta: o homem perdeu o sentido do centro da gravidade. Toda a civilização não passa de mera afetação que impede a espontaneidade sábia dos movimentos, por isso o bailarino tem a aprender das marionetes, o espadachim não é capaz de vencer o urso.
A nota fantástica do conto torna-se mais clara quando o bailarino afirma que os bonecos são antigravitacionais. Só um deus poder-se-lhes-ia comparar – e, assim, o inanimado e o animal tocam no extremo do divino (a consciência infinita).
A consciência humana da graça a destrói. No final, anuncia-se o "último capítulo da história do mundo". O próprio autor estava próximo disso – ele se mataria no ano seguinte, em um pacto de morte com Henriette Vogel.
Foi sua forma de forçar as portas do paraíso? Ou foi simplesmente seu centro de gravidade que o levou a dançar como os deuses?

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Leandro Rafael Perez e longos com máscaras

Esta é a apresentação que fiz para o livro de estreia do poeta Leandro Rafael Perez, Lança além do real só, lançado pela editora Patuá no mês passado.

Cartilagem e poesia


Pádua Fernandes


“Se a sereia gritar por socorro/ nem por isso deixa de matar o marinheiro”, escreve Leandro Rafael Perez; ao menos desde Homero, o canto das sereias é uma das vozes possíveis da poesia; ao menos desde Mallarmé, é necessário saber que elas dizem o nada – e o autor deste livro tem consciência disso: “a vastidão me espera em vão gorada nas orlas/ e de uma crueza triste junto ao cerne mofado./ Eu sempre soube que odiaria as gaivotas.”

No entanto, a que nada se destina a lança além do real só? O livro propõe para si uma série de desafios, com risco de dispersão. Aquele que encontra mais êxito é o da voz que nasce das águas (“Quando chove em vários sentidos” é o verso mais retomado), busca singrar novas vias no corpo (“Gosto de fazer braços eloquentes:/ Não o exagero oceânico pianista/ que até as bailarinas têm, tufões,/ quero-os capazes de fist-fucking”) e questiona os gêneros: “trabalhar é homem ter bigodes fartos/ trabalhar é mulher ter os seios que quiser/ travesti bigodudo não tem cliente?/ Vem que a gente constrói um lar junto, meu bem.”; nesta singela oração, lemos “Que todo pai seja padre de um filho travesti.”

Ana Cristina Cesar releu a sereia e as águas pela via do corpo. Leandro Rafael Perez busca também fazê-lo, por paisagens noturnas: “procuro quais holofotes fizeram pélvis,/ pernas, triângulo escaleno, descalça, os seios oculares.”

Com isso, demonstra uma sensibilidade às vezes parente de Mário de Sá-Carneiro (em versos como “Se eu fosse mulher,/ iria a festas longos/ com máscara entre os cabelos”) e de Lúcio Cardoso (testemunha-o “Evite desperdiçar lares toda/ vez que tacar fogo numa casa”).

Quando lemos “cartilagem por sobre o furo perfeito só me esperando voltar a usar brinco cumprido de mulher.”, e o brinco não é comprido, mas algo que se propõe cumprir, uma promessa que se deseja realizar, passa-se a esperar o mesmo desta poesia. Esperar que ela possa tomar posse do corpo e, assim, cantar de acordo com o desejo:

os meus braços quero tê-los assim gêmeos
como os teve minha vó ou meu tio bêbado,
eloquente e eloquente,
quero tê-los inteiros:
palma e dorso, axilas, cada detalhe,
pois não há cotovelo que sozinho baste
ante minha solidão eloquente, eloquente.

30 dias de leituras: Beckett e o jogo após o fim do mundo

30 livros em um mês
Dia 13: Um livro após o fim do mundo.

Fiquei em dúvida - Dias felizes ou Fim de partida? Minhas lembranças de uma grande encenação argentina, com Pompeyo Audivert, Max Berliner, Pochi Ducasse e Lorenzo Quinteros, com direção de Audivert e Quinteros, que vi em 2009, decidiram pela segunda peça.
Não hesitei, contudo, em relação a este autor, Beckett.
Em Fim de partida, até ocorre uma morte - a de Nell, a mãe de Hamm - mas ela não tem nada de "dramática", pois não altera o curso dos não-acontecimentos. A impressão que sempre tive da peça foi a de que todos, no palco, são póstumos, e o mundo também - tal é a força do texto de Beckett.
No palco, há duas duplas. Uma delas, Hamm e Clov (nomes que sugerem diversas alusões, até mesmo a Hamlet) - este, o serviçal. Os pais de Hamm estão dentro de latões, separados. "O fim está no começo e no entanto continua-se.", exclama Hamm, talvez ecoando o início do segundo dos Quatro Quartetos de Eliot, "East Coker": "In my beginning is my end."
O curioso é que o poema de Eliot, embora tenha um espírito muito diverso, tem alguns versos que poderiam, para mim, estar na peça de Beckett: "The houses are all gone under the sea."; "We must be still and still moving/[...]/ Through the dark cold and the empty desolation,".
Em Fim de partida, o próprio mundo acabou - a comunidade entre os homens se desfez, e também o mundo físico: Hamm, em certo momento, pergunta a Clov se ainda é dia; a resposta vem numa formulação negativa, típica de Beckett: "Não é noite". A pergunta é repetida, Clov diz simplesmente "É". No entanto, não há luz. Hamm indaga se o que ele mesmo sente no rosto é um raio de sol - e Clov nega. Hamm ordena que ele abra a janela, porque deseja ouvir o mar - e nada se ouve: "É porque não há mais navegadores.", afirma. Também não há mais caixões, e é em vão que Hamm pede um para Clov.
Clov chega a ver, do alto da escada e com uma luneta, uma criança imóvel do lado de fora. Ele não sai para matá-la porque também isso não vale a pena - se ela realmente existir, irá até lá, ou morrerá.
Beckett, apesar de tudo, é engraçado - mas de um humor tristíssimo. Clov define assim "ontem': "Quer dizer a merda do dia que veio antes desta merda de dia." Em certo momento, Hamm inverte Smile de Chaplin e diz que choramos por nada, para não rir, e acabamos ficando tristes de verdade...
O texto é magnífico, porém mais impressionantes são os gestos e o que as frases carregam de inarticulado. Tanto as frases quanto os gestos são improfícuos e, por isso mesmo, são realizados - o que me parece algo oposto ao reino dos fins kantiano; temos nessa peça um reino, talvez (Hamm tem muito de tirano), mas sem finalidade alguma.
Diz Hamm, no monólogo final: "Momentos nulos, nulos desde sempre, mas que são a conta, fazem a conta e fecham a história." A partida acabou, mas continua; não há mais apostas nem vitória, mas os lances permanecem, sem sentido senão o da própria repetição.
Li o livro na grande tradução de Fábio de Souza Andrade, publicada pela Cosac & Naify. Na apresentação, ele aproxima a peça de Malone morre: "Em Malone, também confinado ao leito à espera do fim, encontramos um parente próximo de Hamm. Esteta e escritor mal realizado, ele acompanha sua progressão rumo ao silêncio [...]" - a progressão rumo ao silêncio; grande forma de qualificar a obra de Beckett.
Para terminar, uma frase da correspondência de Beckett, uma carta de 1938 que se aplica a este leitor depois de reencontrar esta peça: "It has gone pretty well, though it still hurts me to breathe."

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Desarquivando o Brasil XVIII: Comissão da Verdade no Brasil e na Argentina

Em seu discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU, a presidenta Dilma Rousseff, depois de se referir à crise econômica do capitalismo mundial, de lamentar que a Palestina ainda não seja membro da Organização, e de louvar um possível excepcionalismo brasileiro (na paz e na economia), deu uma nota pessoal:

Junto minha voz às vozes das mulheres que ousaram lutar, que ousaram participar da política e da vida profissional, e conquistaram o espaço de poder que me permite estar aqui hoje.
Como mulher que sofreu tortura no cárcere, sei como são importantes os valores da democracia, da justiça, dos direitos humanos e da liberdade.

Disso, ela só poderia mesmo falar em tom pessoal, pois, em nível institucional, nada há de digno para mostrar. O projeto da Comissão da Verdade ainda não foi aprovado, e ele mesmo provavelmente não fará muita diferença: propõe-se uma comissão com poucos membros, sem autonomia financeira, que dificilmente terá condições de realizar o trabalho necessário, mesmo que os militares que a integram queiram fazê-lo.
Lembro, então da CONADEP (Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas) na Argentina, que gerou o impressionante informe Nunca más. Ela foi criada por um decreto do presidente Alfonsín de 15 de dezembro de 1983.
No Brasil, nada semelhante ocorreu na época - afinal, o presidente Sarney, nosso primeiro presidente civil (ou como "se viu", segundo Millôr Fernandes) após a ditadura militar, tinha relações umbilicais com os militares e a ditadura, ex-presidente que havia sido da ARENA. O nosso Nunca mais veio dos advogados, das vítimas e da Igreja Católica, feito clandestinamente, sem participação do governo, ou lei que o amparasse. Por isso, foi fortemente baseado nos processos da Justiça Militar.
No livro argentino, pode-se ler uma fala impressionante do General Roberto Viola, de março de 1981:

Parece-me que você quer dizer que investiguemos as Forças de Segurança, e isso é que não. Nesta guerra há vencedores, e nós fomos vencedores e tenha a plena certeza de que se, na última guerra mundial, tivessem vencido as tropas do Reich, o julgamento não teria se dado em Nurembergue e sim em Virgínia.[p. 476]

Viola, que morreu em 1994 com 69 anos, foi um dos arquitetos da Guerra Suja. Ele ficou pouco tempo no poder (oito meses), tendo sido sucedido por Galtieri, que levou o país à Guerra das Malvinas e à derrota do país e da ditadura. Devemos reconhecer que ele foi bem coerente e lúcido ao comparar o seu regime com o da Alemanha nazista - ambos fundamentavam-se no terror.
Esses mesmos militares, no Brasil, consideram-se vencedores: eles julgaram, e não foram julgados; condenaram, e não foram condenados. Ao fim, aprovaram uma anistia, ato generoso pelo qual o governo perdoou-se pelos crimes que ele mesmo cometeu.
A CONADEP, em nove meses, conseguiu contabilizar 8960 casos de desaparecimentos forçados e 340 centros clandestinos de detenção, tortura e assassinato, entre os quais a tristemente célebre ESMA (Escuela de Mecánica de la Armada).
A Comissão brasileira, se vier, nascerá tardia (ainda mais se abranger fatos desde 1946) e sem poderes. Boa sorte!

P.S.: Leio texto do jornalista João Carlos Magalhães, da Folha de S.Paulo, sobre a aprovação da Comissão na Câmara dos Deputados. Ele afirma que a "versão das vítimas da ditadura já foi extensamente registrada por outras duas comissões federais: Sobre Mortes e Desaparecidos Políticos e da Anistia". Exatamente porque essas duas comissões não foram capazes de trazer elementos sobre vários casos é que se necessita de algo novo, com mais poderes de apuração - não se trata de punição, pois a comissão não será um órgão do Judiciário.
Afinal, já está extensamente registrado que temos um quadro muito lacunar de nosso passado recente.

30 dias de leituras: Golpe de Machado sobre a ciência, golpe do capital contra Machado

30 livros em um mês
Dia 12: Ficção científica favorita

A melhor ficção científica não seria aquela que mostra ficcionalidade da/na ciência? Pensando assim é que eu havia escolhido, tão logo resolvi aceitar este desafio dos 30 dias de leituras, O alienista de Machado de Assis.
O longo conto pertence a um dos maiores livros da literatura brasileira, Papéis avulsos, que Machado publicou em 1882. A Teoria do Medalhão está nele.
Todos conhecem a história de Simão Bacamarte, médico que, às voltas com as mais diversas hipóteses sobre a doença mental, acaba por internar oitenta por cento da população da cidade de Itaguaí na Casa Verde, até que, mudando de hipótese científica, termina por internar a si mesmo (não menos do que isso é a ironia machadiana) e morre sem encontrar solução para o próprio caso.
Itaguaí não tinha asilos, e os loucos andavam soltos ou viviam com as famílias (o movimento antimanicomial nada teria a fazer lá). Simão Bacamarte, o alienista, é que resolve tratá-los e consegue convencer a Câmara dos Vereadores a aprovar o projeto e a fonte do custeio - um novo imposto, com o fato gerador das plumas de cavalo de coche mortuário. Uma ironia de Machado: tais pesquisas financiam-se a partir da morte.
Há mil ironias com a ciência no conto: Bacamarte escolhe a esposa, Evarista, por critérios biológicos-reprodutivos - e, o mais engraçado, ele erra: a união é estéril...
Aqui, quero realçar as relações de O alienista com a história seguinte, Teoria do Medalhão. No Medalhão, pai faz a filho, que acabou de atingir a maioridade, o elogio e a receita dessa figura. Ele deveria tornar-se um, não importando a área que escolhesse para trabalhar. A principal característica dessa figura seria não ter ideias - o pai ensina um regime intelectualmente debilitante para acabar com elas - e as demais características (retórica vazia, marketing pessoal avant la lettre) são explicadas ao longo do conto - a última, não ter ironia...
Se usamos essa categoria, vemos que Bacamarte prende os que fogem a esse padrão, como Martim Brito, que fez um elogio hiperbólico a Evarista e, ao confessar que ele mesmo criou a imagem elogiosa, foi recolhido à Casa Verde. No Medalhão, ter ideias é comparado a sofrer mutilação física - não ter um braço. No Alienista, é uma doença mental.
O palavreado vazio das doutrinas políticas aparece nos dois contos - no Alienista, provavelmente o ponto mais engraçado é o capítulo X, "A restauração", em que o novo governo simplesmente troca os nomes nas minutas deixadas pelo governo rebelde anterior.
Depois da restauração, Bacamarte muda; os próprios medalhões tornam-se os alvos preferenciais - políticos inconstantes em suas opiniões são presos, bem como as pessoas que seguem o que, no Medalhão, corresponde a um regime debilitante de ideias (charadas, anagramas, fofoqueiros).O próprio presidente da Câmara é internado.
Assim, chega-se ao percentual de oitenta por cento da população na Casa Verde (vê-se que o Medalhão, para Machado, era mesmo o ideal nacional...), o que leva Bacamarte a reformular sua teoria e a adotar uma diretriz completamente oposta - que o levará, mais tarde, a internar solitariamente a si mesmo.
Machado acerta o alvo ao criticar de forma tão debochada o cientificismo? Creio que sim; devemos lembrar que doutrinas semelhantes, na época, consideravam os negros, os índios e os mestiços como seres inferiores, e culpavam-nos pelo atraso do Brasil. Isso atingia diretamente o mulato Machado de Assis. Lembremos que até um abolicionista (branco) como Joaquim Nabuco escreveu, em carta, que não se deveria mencionar a cor desse escritor - um episódio tão revelador do Brasil, e silenciado por Angela Alonso na biografia desse político que ela escreveu para a Companhia das Letras.
Já escrevi neste blogue a respeito quando lembrei que declarações de certo deputado federal do Rio de Janeiro, J. Bolsonaro, repetiam as crenças da medicina legal da primeira metade do século XX - correntes mesmo na década de 1990! A edição de 1992 do curso de Hélio Gomes chegava a afirmar que "Para alguns psicólogos, o amor de uma mulher branca por negro e vice-versa pode representar uma forma discreta de tendência masoquista."
O legado do racismo ainda é vasto em nossa cultura. Recentemente, Machado foi usado pela Caixa em mais uma iniciativa de branqueamento do Brasil, em comercial que mostrava as ruas do Rio de Janeiro sem negros, e em que o escritor era um homem branco (diante da grita, a Caixa tirou-o do ar)!
Trata-se de uma ficção científica que realiza este desejo da elite branca no Brasil, o extermínio dos negros e mestiços? Victor da Rosa denunciou a fraude histórica em sua coluna, Ana Maria Gonçalves escreveu brilhante artigo, A Caixa Econômica Federal, a política do branqueamento e a poupança dos escravos, a respeito da eugenia marketeira. Ela recorda o episódio de Nabuco e explica o fundamento jurídico das tentativas oficiais de branqueamento:

Um decreto de 28 de junho de 1890 diz que estava proibida a entrada de africanos no Brasil, e é reforçado por outros em 1920 e 1930, quando os banidos não necessariamente precisam ser africanos, mas apenas parecer. Em 1945, um decreto lei não mais proíbe, mas diz que:

Art. 1o – Todo estrangeiro poderá, entrar no Brasil desde que satisfaça as condições estabelecidas por essa lei.
Art. 2o – Atender-se-á, na admissão de imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia, assim como a defesa do trabalhador nacional.
Tal decreto, me parece que foi revogado apenas em 1980. Mas as “características mais convenientes” da nossa ascendência europeia ainda são as desejáveis e estimuladas pelo governo, como nos mostra, exatamente 100 anos depois do pronunciamento de João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional, esse comercial da Caixa Econômica Federal (ver comercial do mês de setembro.

"Nossa" ascendência europeia?? Trata-se do Decreto-lei n. 7967, de 27 de agosto de 1945, antiga lei de estrangeiros, revogada pela lei n. 6815, de 19 de agosto de 1980.
O artigo segundo, no entanto, já estaria revogado antes da lei de 1980, pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da ONU, celebrada em 1966. Ela foi promulgada, no Brasil, pelo Decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969, já no governo Médici.
O Brasil ratificou a Convenção sem fazer a declaração facultativa que permitisse ao Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, criado pelo tratado, receber denúncias individuais ou de grupos de vítimas, que alegassem a violação dos direitos previstos. Essa competência do Comitê, prevista no artigo 14, só foi reconhecida pelo Brasil em 2002, o que foi objeto de promulgação com o Decreto Federal no 4.738, de 12 de junho de 2003. Enfim, apenas no governo Lula - para uma Convenção promulgada nos tempos de Médici...
Apesar de a ditadura militar brasileira ter adotado uma postura isolacionista contra o direito internacional dos direitos humanos, esse tratado foi uma exceção: o governo decidiu ratificá-lo, pois a adesão do Brasil reforçaria o discurso da "democracia racial" no país. E, como o mecanismo ficou internacionalmente ineficaz no tocante ao Comitê, a Convenção não poderia ser perigosa à ditadura brasileira.
O direito pode existir, desde que não seja eficaz - tal solução que a ditadura militar brasileira deu para a proibição do racismo foi exatamente a mesma que Machado de Assis descreveu como conduta do medalhão.
Volto, pois, a Papéis avulsos, a seu segundo conto, o breve Teoria do Medalhão. Nesse conto, a ciência é ridicularizada de forma diferente do que ocorre no Alienista. O pai diz ao filho que ele não deve tentar escrever um tratado científico sobre a criação de carneiros - o que exigiria estudo e esforço - e sim matar um e dar um jantar, o que o tornaria querido na sociedade.
Quanto ao direito, o que deve ocorrer se uma lei não faz efeito, e o mal que ela deveria combater persiste? Em vez de estudar o problema e buscar as soluções, o Medalhão simplesmente lança uma frase de efeito que seja um clichê: "Antes das leis, reformemos os costumes! - E esta frase sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema, entra pelo espírito como um jorro súbito de sol."
O preconceito é retirado ao pecúlio comum. Ouvi um aluno (louro, curiosamente) querendo justificar a Caixa, dizendo que os negros não tinham mesmo dinheiro para depositar na instituição. E, acrescentei, nem fazer a obra que Machado deixou, não é mesmo?

P.S.: Estava lendo hoje (dia 22 de setembro de 2011) Machado de Assis: o enigma do olhar, de Alfredo Bosi, e encontrei esta frase: "Ser medalhão é atingir aquela plenitude do vazio interior que estava nas dobras da teoria da normalidade do finado Dr. Bacamarte." É mesmo.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

30 dias de leituras: Apuleio e os tráficos entre o humano e o animal

30 livros em um mês
Dia 11: Livro favorito com animais

Um célebre e genial livro com animais é O asno de ouro, de Apuleio, do século II. A história é conhecidíssima: depois de um erro nas artes mágicas, o protagonista é transformado em um asno, é roubado e, após um percurso extremamente acidentado (uma iniciação cheia de provas!) finalmente recupera a forma humana.
Muito antes de ler o livro, havia descoberto a história do Asno na obra infantil de Monteiro Lobato. O relato é coalhado de outros, como é comum nos livros antigos. O mais célebre deles é o de Psiquê e Eros - no qual lemos que a Sobriedade é uma mulher grosseira e suja...
Trata-se de uma literatura (uma época) em que os deuses podiam entrar em diálogo com os humanos, e os humanos com os animais - e mesmo os vegetais. Os três planos podem se relacionar: as formigas auxiliam Psiquê em uma das provas impostas por Vênus; um caniço faz o mesmo, impedindo que ela se suicide jogando-se em um rio. No final dessa história, sua união com Eros é reconhecida pelos deuses e ela ganha estatuto divino. Na cerimônia de Ísis, no fim do livro, os deuses se servem de "pés humanos".
Além da lei dessas transformações, há outra lei que se repete no livro: a do furto e do roubo - o apossamento. Os ladrões abundam em cada página do livro, e o asno troca de dono todo o tempo por esse motivo.
A conversão e a comunicação entre esses estados, humano e animal, encontraria um paralelo nas transferências de posses? Nesses tráficos? Da passagem de dono para dono obedecendo tão-somente ao apossamento, e não às garantias da propriedade? E é curioso que, depois de o asno furtar comida, desconfiem de sua natureza.
Essas conversões - de posse e de estado - cruzam-se no livro: um ladrão, Trasileão, veste-se de urso para melhor roubar - nessa condição, é morto. Lemos então que a boa-fé não se encontra entre os vivos, devido à sua falsidade. A boa-fé dos mortos dever-se-ia, pois, ao fato de eles não poderem mais se transformar? Afinal, no episódio em que o profeta egípcio traz de volta a vida, por um instante, a um morto envenenado pela esposa, o assassinado reclama que foi retirado ao repouso.
O repouso não é a condição dos vivos, que se transformam, nem da mercadoria, que muda de mãos. Porém, ela muda, no livro, fora das condições legais da compra e venda, assim como Lúcio converte-se em asno por magia, e não devido às condições normais do desenvolvimento orgânico. Trata-se de uma outra lei.
A ordem mágica - mesmo nesse livro, proibida oficialmente pelo direito - seria correlata ao apossamento? Isso seria compatível com o final do livro, em que Osíris aparece em sonhos a Lúcio, já humano para toda vida, e incita-o a continuar sua carreira na advocacia (por sinal, ele atribui aos deuses os ganhos como advogado). Sua lei já era outra, oficial, e compatível com os Mistérios que professava. E o próprio livro pode ter sido parte de uma estratégia para livrar-se das acusações de magia que sofreu.
O cristianismo condenaria essas passagens, esses tráficos. Sobre as metamorfoses - um dos nomes de O asno de ouro - Agostinho escreve que há motivo para não acreditar que Apuleio tenha se transformado em asno - a arte dos demônios seria incapaz de dar uma forma irracional ao corpo; sonhos e estados letárgicos é que seriam responsáveis por alucinações desse tipo (capítulo 18 do livro XVIII de A cidade de Deus). E, no livro IX, discorda de Apuleio e nega que demônios possam ser mediadores entre os deuses e os homens. Haveria somente um Deus e Jesus seria o mediador.
A Deus o que é de Deus. Trata-se mesmo de uma outra ordem do mundo...

sábado, 17 de setembro de 2011

30 dias de leituras: Dante inquire

30 livros em um mês
Dia 10: Clássico favorito

Não tive dúvida alguma. É a (Divina) Comédia, de Dante. Um clássico, pois é um livro que nunca terminei de reler, e jamais acabarei, pois seria tolo acalentar a ilusão de apreendê-lo totalmente.
O Inferno é dramático, várias vozes se fazem ouvir com suas sentenças e as razões da condenação; o Purgatório, que é minha parte preferida, possui as virtudes comoventes da esperança; o Paraíso, grande momento teológico-poético na voz do Eterno Feminino, é mais abstrato, e talvez seja a seção mais ousada do poema, por tentar descrever o inexprimível. Uma cultura que vede absolutamente a criação de ídolos (o pecado da idolatria...) não pode gerar uma obra com esse caráter.
Li-a pela primeira na tradução oitocentista de Xavier Pinheiro (de onde tiro as citações desta nota). Vasco Graça Moura realizou uma muito bela recentemente. Sobre isso, e Dante em geral, recomendo um grande estudioso da obra de Dante, meu amigo Eduardo Sterzi (também é um dos melhores poetas contemporâneos brasileiros), autor do indispensável Por que ler Dante, editado pela Globo. Por coincidência, hoje saiu mais um artigo de Sterzi sobre esse autor no Estado de S.Paulo. O texto trata das diversas incertezas sobre a biografia do poeta, o que inclui seu próprio nome e sobrenome...
Tais incertezas provavelmente inspiraram um de meus poetas preferidos, Hans Magnus Enzensberger, a escrever um poema, "Identificação policial", do livro O naufrágio do Titanic.
Li-o pela primeira vez em uma antologia que a antiga editora Brasiliense lançou em 1985, com organização de Kurt Scharf e tradução dele mesmo e de Armindo Trevisan, Eu falo dos que não falam. Em 2000, a Companhia das Letras lançou O naufrágio do Titanic: uma comédia, traduzido por José Marcos Mariani de Macedo.
A sintaxe do poema é bem simples - trata-se de uma enumeração com que termina o canto vigésimo-terceiro do livro. O primeiro e o último versos são "Das ist nicht Dante" e "Das ist Dante", este não é Dante e este é Dante. Entre eles, listam-se representações do poeta - pessoas que fingem sê-lo, sonham sê-lo... "Este é um homem que todos tomam por Dante, só ele próprio não acredita nisso."
Nesse canto, depois das divergências sobre o número de mortos no Titanic, os poetas tomam a palavra e fazem uma grande confusão: "Os poetas deliravam, exigiam, confessavam:/ uma horda completamente fora do controle.", na tradução de José Marcos Mariani de Macedo. Soa bastante cabível aparecer, então, uma "identificação policial" de Dante.
Essa identificação é uma espécie de produção da verdade pelo poder: do que não é Dante (Das ist nicht...) produz-se uma verdade sobre Dante (Das ist Dante). Imagino que se possa usar Foucault para ler esse poema.
Nesse procedimento, porém, temos algo do próprio poeta italiano na Comédia. Uma das questões fundamentais nesse poema é o julgamento - a decisão de quem irá para uma das três instâncias, Inferno, Purgatório e Paraíso. O legislador, acusador e juiz desse terrível tribunal que é a Comédia é o próprio poeta - a própria Beatriz, que aparece como seu superior, só chegou a tal posto por escolha de Dante. Dante é o soberano destas terras, e, como o monarca absolutista, só a Deus deve satisfações.
É possível que as partes mais comoventes do poema sejam as narrativas que os personagens fazem de sua própria história. Na minha lembrança, gravaram-se especialmente o episódio de Paolo e Francesca no Inferno, tão forte (eroticamente) que faz o personagem de Dante tombar como tomba um corpo morto; no Purgatório, a fala de Guido Guinicelli ("Hermafrodito foi nosso pecado") a que se segue o curto e comovente pedido de Arnaut Daniel em provençal - poetas que são homenageados por Dante nesse canto. Nele, é citado um de meus favoritos da época, Guiraut de Borneilh (ou Giraud de Bornelh, há várias grafias), autor desta beleza.
Vejam como Dante se refere a um de seus algozes, o Papa Bonifácio VIII, no Inferno (Canto XIX); o Papa ainda não tinha morrido, mas já era esperado lá... E por quem? Outro Papa, Nicolau V. Vejam a ironia de Dante de dizer que estava ali, diante da alma punida do Papa, "qual monge, que confessa/ Assassino"...
A noção de inquérito, como Foucault apresenta em A verdade e as formas jurídicas, pode iluminar momentos como esse, imagino. Muitos já devem ter feito esse estudo, afinal, as literaturas secundária e terciária sobre Dante são infinitas, porém menores do que a própria Divina Comédia - outra virtude dos clássicos.