O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

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sábado, 29 de março de 2025

Desarquivando o Brasil CCX: A União se desculpa pela Vala de Perus e a imprensa esquece dos movimentos sociais

Finalmente ocorreu o pedido de desculpas do Estado brasileiro "pela negligência na condução da identificação dos remanescentes ósseos da Vala de Perus", que foi acordado nas audiências de conciliação do processo judicial sobre esses trabalhos de identificação. Essa vala clandestina em São Paulo, no Cemitério Dom Bosco, foi usada pela ditadura militar para ocultar corpos de vítimas do Esquadrão da Morte, militantes políticos, mortos da epidemia censurada de meningite e indigentes. Ela foi descoberta em 1990, mas até agora, aparentemente, apenas cinco desaparecidos foram identificados.

Os remanescentes ósseos foram retirados em 1.049 sacos. Hoje o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp estima que eles compreendem 1062 casos, acondicionados em 1065 caixas.

Recordo, como escrevi antes, que o governo do Estado de São Paulo, que também foi negligente, recusou-se a fazer esse pedido, razão pela qual esse tema saiu da esfera conciliatória em relação a esse ente estatal. É bem possível que seja obrigado a fazê-lo por decisão judicial.

A cobertura da imprensa foi mais ou menos homogênea entre as notícias que consegui encontrar. A EBC parece ter dado o tom, com o foco na Ministra Macaé Evaristo. Não houve diferença significativa entre os veículos situados mais politicamente à direita (como o G1 e a Folha) ou à esquerda (como A Ponte e O Vermelho): todos ignoraram o fato de que a cerimonialista do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania aparentemente esqueceu que estava prevista a fala dos movimentos da comunidade de Perus e que Fofão, da Comunidade Cultural Quilombaque, teve que tomar o microfone para que a programação combinada na audiência na Justiça Federal fosse efetivamente seguida.




Foi ignorada também a carta de reivindicação da criação de um memorial, que ele entregou à Ministra.

Outro momento descartado pelos jornalistas foi a chegada de Antônio Pires Eustáquio, o funcionário do Serviço Funerário que revelou a localização da Vala em 1990. Tínhamos a informação de que ele não apareceria devido a problemas de locomoção (o local não é de fácil acesso). No entanto, ele conseguiu aparecer depois do pedido de desculpas da União e fez uma breve intervenção, que eu filmei:



É interessante vê-lo dizer que, a despeito das várias ameaças de morte que sofreu, conseguiu sobreviver "por causa da democracia". 

A imprensa em geral seguiu a orientação estadocêntrica do próprio evento. Embora o Ministério tivesse o nome dos familiares presentes e dos desaparecidos correspondentes, eles não foram anunciados, embora a cada pausa fosse trombeteada a presença de, por exemplo, alguma chefe de gabinete de vereadora que tivesse acabado de chegar ao evento. E eram vários: de André e Maurício Grabois, de Gilberto Olímpio Maria, Hiram de Lima Pereira, Jaime e Lúcio Petit da Silva, João Maria Ximenes de Andrade, entre outros que não vi e já me desculpo por não citar. Os movimentos sociais de cultura e os de memória, verdade e justiça tampouco receberam o destaque merecido.

O público era grande e muita gente ficou em pé: a estrutura montada pelo Ministério para o evento foi subdimensionada. Entre os presentes no público do evento, estavam Ricardo Ohtake, o artista do monumento da Vala; Teresa Lajolo, a relatora da CPI de Perus em 1991; Adriano Diogo, que presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", na qual foi realizada a audiência de criação do órgão que faz a identificação dos remanescentes ósseos (depois dos anos de negligência da Unicamp, da USP e da UFMG): o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo. Eles não discursaram nem tiveram assento à mesa.

A fala de Gilberto Molina, representando os familiares, foi um ponto alto da cerimônia: ele tratou do "velório de quarenta anos" por que a família passou até a identificação de seu irmão, Flávio Molina. Ressaltou que outras famílias seguem esperando os resultados há meio século.

Ele recebeu esta placa da Ministra e a concedeu para a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, movimento da sociedade civil que também lá estava assistindo ao evento. Agradeço a Criméia Almeida ter-me permitido tirar esta foto.



Comprei, no dia seguinte, dois tabloides, O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo, bem como o jornal O Globo. Todos falaram do 24 de Março na Argentina, com ênfase nas medidas anunciadas por Milei, que está tentando tornar a teoria dos dois demônios uma doutrina oficial. 

Nenhum desses três veículos de imprensa mencionou os eventos análogos no Brasil, nem mesmo o pedido de desculpas. De fato, sem essa imprensa não estaríamos tão atrasados em matéria de justiça de transição.

Abaixo, copio a carta entregue pela comunidade de Perus na cerimônia exigindo a construção de um memorial, outra medida essencial de justiça por seu caráter educativo em memória e direitos humanos. Faço notar que o IPDMS, exceção no campo da pesquisa jurídica no país, instituição acadêmica a que pertenço, assinou-a.




PELA CONSTRUÇÃO DE UM MEMORIAL DOS MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS E DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS




A/C Excelentíssima Senhora Ministra dos Direitos Humanos




Nós, integrantes do Território do Interesse da Cultura e da Paisagem Jaraguá-Perus Anhanguera e coletividades signatárias, por meio desta, solicitamos, em caráter de urgência, a implementação de um Memorial para a Reparação Histórica, referente aos mortos e desaparecidos políticos pelo crime de Estado dos governos ditatoriais, que servirá também como um espaço de formação e defesa permanente dos Direitos Humanos, no Cemitério Municipal Dom Bosco, localizado na Estrada do Pinheirinho, 860, em Perus, São Paulo.

Em 04 de Setembro de 1990, foi realizada a abertura de uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, da qual foram retirados 1.049 sacos com ossos humanos vítimas do aparato repressivo do período da ditadura civil-militar no Brasil. O evento foi um marco na luta dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos na medida em que se deu início ao processo de reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, das inúmeras violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade que tinham a pretensão de serem ocultados pela ditadura.

A luta pelo direito à memória, entendido aqui como a preservação da história, da identidade e da verdade, garante que fatos históricos, especialmente aqueles relacionados a regimes autoritários e violações de direitos, não sejam esquecidos ou distorcidos. É uma luta pela promoção da justiça, reparação histórica e pela construção de uma sociedade mais democrática.

É de suma importância ressaltar que a construção de um Memorial para a Reparação Histórica referente aos mortos e desaparecidos políticos da Ditadura Civil-Militar desempenhará papel crucial na luta pelo direito à memória, não apenas no campo simbólico, mas também material. Isso porque, um espaço físico de memória transforma a história, a memória e o sofrimento causado pelo Estado, em algo tangível e acessível. A função não é apenas honrar o passado, mas também educar, inspirar e fortalecer a luta por justiça, verdade e democracia no presente e no futuro. Sem esses espaços efetivos, corre-se o risco de que as violações de direitos humanos ocorridas na ditadura caiam no esquecimento ou sejam interpretadas de forma conveniente, permitindo que ciclos de violência e opressão se repitam.

O processo de construção desse Memorial em Perus e de tantos outros que gostaríamos de ver edificados pelo país, devem seguir princípios basilares como transparência, estímulo à participação social e ampliação da discussão sobre direito à memória e aos direitos humanos. Deverá sobretudo ser realizada por meio de articulação interfederativa - aos entes responsáveis, e com constante comunicação com a sociedade civil em todas as fases do processo.

Dessa forma, passados 35 anos da abertura da vala de Perus, a construção de um espaço físico tem como objetivo a manutenção e defesa da memória, justiça e verdade da trajetória política brasileira. É um passo importante para reafirmar no presente e para as gerações futuras que “os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos”.


São grupos e coletividades signatárias desta carta:

Território do Interesse da Cultura e da Paisagem - Jaraguá-Perus Anhanguera - TICP-JPA
Agência Queixadas
Agrupamento Debate CUTista - SINPEEM Independente e de Luta
Associação dos Aposentados Perus
Associação dos Professores da PUC - APROPUC-SP
Bando Undirê
Bloco Carnavalesco "Os Zatt'revidos" de Pirituba
Bloco D. Yayá
Campanha Tolstói
Canal Fala Escola
Casa do Hip Hop Perus
CEB's São José
Centro de Memória Queixadas - Sebastião Silva de Souza
CEU EMEF Perus
CEU EMEI Jorge Amado
CIEJA PERUS I
Coletivo Anhanguera Luta & Resistência
Coletivo Brigada pela Vida
Coletivo Código da Arte
Coletivo Favelô
Coletivo Janela Aberta
Coletivo Literário Sarau Elo Da Corrente
Coletivo Mães do Morro
Coletivo Matriarcal PanAfricanista Yaa Asantewaa
Coletivo Paulo Freire Noroeste
Coletivo Paulo Freire São Paulo
Coletivo Periferia no Foco
Coletivo Perus tem Rock!
Coletivo Povo De Luta Perus/Anhanguera, Taipas, Jaraguá E Pirituba
Coletivo Revolução Materna
Coletivo Rock de Subúrbio
Coletivo Salve Kebrada
Coletivo Slam do Pico
Coletivo Vozes da Base
Comunidade Cultural Quilombaque
CPDOC Guaianás
DOC_ARTE: Práticas Documentais e Arte
EMEF Philó Gonçalves dos Santos - EcoParque Escola Philó
EMEF Prof. Remo Rinaldi Naddeo
Espaço Cultural Morro Doce
Fórum de Trabalho Social em Habitação de São Paulo
Frente Popular em Defesa da Escola Pública de SP
Grupo Capoeira Raiz Da Resistência Núcleo Zumba
Grupo de Estudos em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo - GEPSIPOLIM
Grupo de Estudos Sobre Conflitos Internacionais - GECI
Grupo de Pesquisa Imagens, Metrópolis e Culturas Juvenis
Grupo de Pesquisa Linguagem em Atividades no Contexto Escolar - GP LACE
Grupo de Teatro TONAEJA
Grupo Pandora de Teatro
Instituto Cultural Bola de Fogo
Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais - IPDMS
Instituto DIPI
Instituto Pólis
Instituto Reeducação Para Todos Os Povos/Guerreiros Da Vila Da Paz
Laboratório de Estudos de Saúde e Sexualidade - LESSEX
Morada Jaraguá Okênozune
Movimento Cultural das Periferias
Movimento Negro Unificado de São Paulo - MNU/SP
Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento
Movimento Renova Sinesp
Núcleo de Cultura e Pesquisas do Brincar
Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Atividade, Subjetividade - NUTAS
Núcleo de Estudos e Pesquisa Trabalho e Profissão - NETRAB
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Aprofundamento Marxista - NEAM
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Crianças, Adolescentes, Famílias e Sistema de Garantia de Direitos - NCAF
Núcleo de Estudos Psicossociais da Dialética Exclusão/Inclusão - NEXIN
Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade
Núcleo de Preservação da Memória Política - NÚCLEO MEMÓRIA
Núcleo do PSOL Perus
Observatório do Futuro - FAFICLA
Ocupa Ramp
Ocupação Artística Canhoba
Partido dos Trabalhadores - Diretório Regional Perus/Anhanguera
Partido dos Trabalhadores - Diretório Regional Pirituba
Periferia Preta
PLPs- Promotoras Legais Populares
Projeto Arte de Subúrbio
Projeto Brincadas
Rede Cultural Anhanguera
Rede Paulista de Educação Patrimonial - REPEP
Rede Viva Periferia Viva
Reduto do Rap
Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo - SINPEEM
Sindicato Dos Trabalhadores Na Indústria Do Cimento, Cal E Gesso De São Paulo
Street Roots
Tapijás Coletivo Artístico
Tempero de Oyá
Territórios, Memórias e Identidades
União de Mulheres de São Paulo
Vereador Nabil Bonduki - PT
Vereador Toninho Véspoli - PSOL

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCV: Mais notas sobre o Vinte de Novembro e a ditadura

2024 foi o primeiro ano em que o 20 de Novembro, o Dia da Consciência Negra, foi comemorado como feriado nacional. Tratava-se de antiga reivindicação dos movimentos negros para consagrar a data do assassinato de Zumbi, chefe do Quilombo de Palmares, pelo colonialismo português em 1695. Esse Quilombo durou um século e foi a mais longa rebelião de escravos da história.

Dez anos atrás, escrevi neste blogue "Notas sobre o 20 de Novembro e o racismo na ditadura", em que tentei explicar que a ditadura era racista e negava a discriminação racial alegando que se tratava de uma invenção dos comunistas para criar tensões sociais, em uma espécie de, segundo o jargão da doutrina de segurança nacional, de "guerra psicológica adversa".

Concluí em 2014 dizendo que a data deveria ser feriado nacional, o que finalmente foi alcançado por meio da aprovação do projeto do senador Randolphe Rodrigues, que se converteu na Lei 14.759 de 21 de dezembro de 2023.

Os movimentos negros seguiram a estratégia de alcançar vitórias locais, com feriados municipais e estaduais, para depois chegar à dimensão nacional. Eu trabalhava na Prefeitura do Rio de Janeiro quando o então prefeito Cesar Maia foi ao Judiciário tentar impedir que o 20 de Novembro se tornasse feriado municipal. A Prefeitura, felizmente, acabou derrotada com uma decisão do Supremo Tribunal Federal em 2000 (no Recurso Extraordinário 251.470-5 RJ) que consagrou a autonomia municipal na criação de feriados.

No caso da lei do Município e São Paulo, o julgamento no STF aconteceu em 2022, e só os Ministros indicados por Jair Bolsonaro votaram contra a instituição do feriado. Ambos julgaram que o valor histórico e cultural da data não tinha maior valor jurídico diante da competência da lei federal em matéria de Direito do Trabalho, postulando assim a inefetividade dos direitos culturais e do combate ao racismo, tal como previstos na Constituição da República. 

Houve até o momento em que a discriminação específica contra os negros foi negada em matéria de racismo religioso, alegando-se que "todos sofrem" preconceito:


O SENHOR MINISTRO ANDRÉ MENDONÇA - Senhora Presidente, permita-me? Ministra Cármen tem razão nas suas preocupações. Em momento nenhum, divirjo nesse aspecto. Acho que esse é um ponto comum. Sei dos preconceitos, não da mesma forma, mas segmentos religiosos também sofrem preconceitos, não tão percebidos. 

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Principalmente os de matriz africana. Não são os evangélicos que sofrem, não são os católicos. 

O SENHOR MINISTRO ANDRÉ MENDONÇA - Sofrem também.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Os católicos também, como sofreram a vida inteira. Agora, no Brasil, a religiosidade dos cultos atingidos por estes bárbaros preconceitos são os de matriz africana, na esteira exatamente dessa cultura. 

O SENHOR MINISTRO ANDRÉ MENDONÇA - Todos sofrem.


Esse tipo de negação foi política de Estado durante a ditadura militar. Para acrescentar apenas mais um exemplo, entre tantos possíveis, àqueles que indiquei em 2014, menciono este relatório do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo, de 11 de setembro de 1969, categorizado como pertinente ao campo "estudantil". Investigava-se a articulação de "universitários de cor" ("de cor": denominação eufêmica para os negros que era muito usada pelos racistas) por um movimento denominado "Grupo de Integração do Negro na Sociedade".



O documento, assim, como o que citarei mais adiante, está no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo. 

Destaco este trecho do relatório:




Nele, lê-se, a respeito da proposta que apareceu na Faculdade de Direito da USP, que "sua própria denominação não faz sentido, visto não existir em nosso país o problema do segregacionismo", afirmando porém que havia poucos "elementos de cor" no meio universitário - o que deveria ser prova do contrário, isto é, de que o problema efetivamente existia.

O relatório segue afirmando que o fracasso da iniciativa decorria desse problema, da falta de articulação com os movimentos (aparentemente, os policiais tinham bons contatos dentro do pessoal do Clube 220, onde teriam achado suas fontes para essa afirmação) e do AI-5 e suas "modificações ocorridas na situação política nacional" (outro eufemismo!) que desencorajaram a participação na campanha.

Aquelas modificações significavam severas limitações aos direitos de reunião, de associação e de expressão, razão pela qual o estudo da questão não pode desvincular-se da teoria dos movimentos sociais. A ditadura combatia o associativismo popular e buscava enquadrar os movimentos como ameaças à segurança nacional; tratei disso mais demoradamente em artigo, "Movimentos sociais e segurança nacional: notas sobre contestação e vigilância durante a ditadura militar no Brasil". 

Na segunda metade da década de 1970, com a Abertura, os movimentos negros conseguiram rearticular-se. O Movimento Negro Unificado foi criado em 1978 em São Paulo e manteve a defesa da data do 20 de Novembro, data bem mais pertinente para as lutas da população negra do que o dia da Lei Áurea, o 13 de Maio.

Como exemplo, lembro deste relatório policial sobre um debate do Dia da Consciência Negra, que ocorreu na PUC de São Paulo em 1983 e congregou Thereza Santos, que o DEOPS/SP, como se vê abaixo, não sabia quem era, Milton Barbosa, do Movimento Negro Unificado, e o sociólogo Florestan Fernandes.



A questão continuava a ser sensível e a merecer relatórios policiais. Note-se que os três debatedores eram marxistas; deles, apenas Milton Barbosa continua vivo, e segue atuante. A luta antirracista concentrava-se na esquerda, da qual Thereza Santos esperava ajuda para a "conscientização negra". Sobre a questão do 20 de Novembro, lê-se que "Florestan Fernandes disse que 13 de Maio não é uma data importante na vida do negro e sim na do branco". 

Com efeito, era o que os movimentos defendiam: a figura de Zumbi como referência, e não a da Princesa.

É significativo que, quando os militares voltaram ao poder, na administração federal passada, o candidato que lhes serviu de representante tenha ofendido quilombolas mais de uma vez, e que seu governo tenha sido marcado pelo eclipse das políticas contra a discriminação racial, o que incluiu a Fundação Palmares, cujo presidente nessa época (punido em abril de 2024 pela Controladoria-Geral da União por assédio moral) desfez homenagens a personalidades negras, tirou o machado de Xangô da identidade visual da Fundação e queria mudar-lhe o nome para Princesa Isabel! 

Agora, como seu antigo chefe, além de ter sido derrotado nas eleições de 2022 (concorreu a deputado federal), está inelegível por oito anos. Kaô Kabecilê, Xangô, o orixá da justiça.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

O bolsonarismo como golpe de Estado permanente: Uma retrospectiva de 2022 no Twitter

O bolsonarismo elegeu-se ameaçando a democracia: em 2018, no Twitter e em outras redes, os eleitores de outros candidatos (em geral, do PT) criaram o slogan "seu voto me põe em risco", que foi, no entanto, bem recebido pelos bolsonaristas, que desejavam realmente "isso mesmo". Logo depois da vitória no segundo turno, eles cunharam "votei nele pra isso mesmo", comemorando cada medida anunciada do futuro governo e, durante o mandato, as poucas façanhas hercúleas, como esta: 


Somente este tweet teve mais de seis mil "curtidas". As centenas de milhares de mortos durante a pandemia também receberam, não raro, a confirmação do voto "pra isso mesmo", o que seria de esperar em um país que vê na chacina uma técnica de governo e, no genocídio, um mecanismo eficaz de ampliação da fronteira agrícola. Nesse sentido, o bolsonarismo funcionou em regime de golpe de Estado permanente, no que certamente cumpriu os objetivos do Partido Militar: manter a tutela fardada sobre a república brasileira.

Tentou-se dar um golpe de Estado mais uma vez no Brasil; formulo a frase com sujeito indeterminado porque as investigações prosseguem. Em 18 de novembro, matéria de Rodrigo Rangel indicou a existência de um "QG do Golpe" no comitê de Bolsonaro em Brasília. Em 12 de dezembro, tentaram invadir a Polícia Federal em Brasília e incendiaram carros. Em 30 de dezembro, a Operação Nero, da Polícia Federal, prendeu suspeitos de participar de atos antidemocráticos. Em oito de janeiro de 2023, os bolsoterroristas, cumprindo o que tinham anunciado e planejavam abertamente, invadiram, saquearam e danificaram imóveis dos três Poderes em Brasília.

Essas movimentações eram muito visíveis no Twitter, uma rede social em que os perfis participantes escreviam mensagens breves, que continua a existir no momento em que escrevo, apesar de sua sobrevivência ter sido colocada em questão por causa da sua compra por Elon Musk. Por meio dos tópicos ou palavras mais discutidas ou repetidas (hashtags), essa rede mostra ou influencia com muito dinamismo a agenda de debates: um político como Trump usava-a como instrumento de poder.

Por causa desse dinamismo e de sua repercussão na discussão pública, grassam nela perfis automatizados e os perfis falsos, para os mais variados fins: de pesquisa acadêmica, de apoio político e  até de supostos fãs de times de futebol e participantes de reality show. Eles são usados, não raro, para direcionar o debate para seus fins particulares e praticar assédios de toda sorte. Serviram também para replicar nas redes os ataques a opositores e à imprensa. Jair Bolsonaro teve um surto misógino em debate presidencial durante o primeiro turno e atacou uma jornalista da TV Cultura, Vera Magalhães, que, em debate posterior, ainda foi assediada por um deputado estadual bolsonarista que não lograria reeleger-se em São Paulo. Nas duas ocasiões, milhares de tweets atacaram-na.

Por vezes, o uso dos tópicos tinha finalidade diversionista: aparecia uma denúncia contra o governo de Bolsonaro, os perfis requentavam os mesmos temas contra o PT ou Lula. Nesses momentos, podia-se ver perfis mais identificados com a esquerda reverberando o alcance desses tópicos, simplesmente comentando-os, o que é um erro estratégico neste mundo de algoritmos:


Também aí ocorre uma reprodução de táticas usadas por Trump nos Estados Unidos. Quando o bolsonarista Roberto Jefferson atirou em agentes da Polícia Federal em 23 de outubro de 2022, resistindo a uma ordem de prisão, houve quem falasse em "Capitólio Tabajara" (cito a revista Fórum). Piero Leirner usou a mesma expressão para os atentados de 8 de janeiro de 2023, acentuando a responsabilidade dos militares no emprego da guerra híbrida, que se trava marcadamente no campo da contrainformação:


Faço a nota de que a expressão, certamente inadequada, como lembra este tweet, foi usada no sentido de cópia brasileira de original estrangeiro:


O original vem dos EUA. O 8 de janeiro de 2023 em Brasília é cópia do 6 de janeiro de 2021 em Washington, ocasião em que apoiadores de Trump tentaram impedir a posse do governo vitorioso. A diferença é que os brasileiros golpistas vieram depois da posse: certamente os organizadores imaginavam que não fariam frente ao esquema de segurança e à multidão, muito superior em termos numéricos, de pessoas que foram assistir à posse de Lula.

O Twitter foi um campo importante para a "guerra híbrida". Dito isso, os perfis de esquerda, ou simplesmente do campo democrático, várias vezes conseguiram emplacar tópicos críticos a Bolsonaro. No 7 de setembro, a comemoração dos duzentos anos da Independência virou um ato de campanha de Bolsonaro que, com todo o ridículo de sua oratória claudicante, tentou puxar um coro de que era "imbrochável" (contudo, ele não conseguiu realmente levantar as vozes). No Twitter, prevaleceram as mensagens que tratavam da suposta impotência do presidente da república.

Em junho de 2022, em razão de matéria que afirmava que Bolsonaro teria pedido ajuda dos presidente dos EUA contra Lula, o tópico BOLSONARO LESA PÁTRIA ficou em primeiro lugar entre as mensagens da rede social no Brasil:


Com efeito, em 2022, os perfis bolsonaristas passaram a ficar cada vez mais isolados no Twitter, falando apenas entre si. Não obstante esse isolamento gradativo, eles tentaram arduamente fazer campanha ameaçando gople caso seu candidato não saísse vitorioso. Como aconteceu a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, resolvi escrever esta minirretrospectiva tendo a tuitosfera bolsonarista como guia, bem como as reações a ela.

Em janeiro de 2022, publicaram-se tweets exigindo a repetição da tática, vitoriosa em 2018, de prender o candidato líder das pesquisas com o fim de de eleger novamente a extrema-direita:


Eu avistei diversos desta natureza, mas preferi separar este por ser uma resposta ao Instituto Lula, talvez confundido com o próprio presidenciável.

Dando o tom da violência política da campanha, em fevereiro o então presidente da república sugeriu que "não ficaria tão difícil acertar" "um gordinho", em resposta a um perfil que comentou zombeteiramente um vídeo que mostrou Bolsonaro com muita dificuldade em fazer uma arma funcionar. Bem de acordo com o decoro do cargo para os padrões da direita.


Além da violência, que gerou assassinatos políticos também em 2022 e uso de drones para lançar fezes e veneno em eventos da oposição, grassaram as informações falsas de toda sorte: bolsonaristas quiseram até ver em um velho senhor em iate a figura de Lula. Em fevereiro, outra inverdade desse tipo surgiu: um perfil que assumiu a imagem do Anonymous publicou que Adélio bispo teria dado novo depoimento à Polícia Federal, o que era falso, mas descambou para perfis bolsonaristas publicarem que Adélio teria confessado que agiu a mando do PT; Jair Bolsonaro soltou pequeno vídeo relembrando o evento em 2018. A Polícia Federal ignorou a princípio os pedidos de esclarecimento, o que enseja a propagação da notícia mais tempo. Finalmente, Rubens Valente conseguiu o desmentido da Polícia. O jornalista Paulo Motoryn sintetizou o mecanismo das informações falsas desta forma:


No entanto, a notícia existiu por tempo suficiente para ser repassada em vários grupos de mensagem e o desmentido, tantas vezes, gera efeito de convencimento menor do que a calúnia.

Lula, consistentemente, esteve na frente das pesquisas eleitorais para a presidência. Além de incontáveis tweets exigindo nova prisão do político, bem como a miríade de insultos que lhe eram feitos (não os reproduzo aqui), a tática de atacar a Justiça Eleitoral pareceu ser usada de forma regular, como se quisessem justificar um golpe em caso de derrota.


A derrota só poderia, para esses perfis, derivar da suposta fraude eleitoral comandada por aqueles Ministros do STF, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso (atacados por esses perfis ao longo de quase todo o governo de Bolsonaro), o que justificaria o que alguns chamaram de "contra-golpe" (é óbvio que se escreve "contragolpe", mas reproduzo a curiosa ortografia desses bolsonaristas). Veja-se que, neste tweet de março que selecionei, a invocação do fantasma do comunismo, inexistente porém muito eficiente para mobilizar os mais loucos e fanáticos, ou seja, aqueles que irão questionar menos as ordens do líder.

O fantasma voltou não como o espectro do famoso Manifesto, mas em um texto muito menos bem escrito: a celebração antidemocrática do golpe de 1964 pelo governo federal, que parecia desejar a instalação de uma atmosfera de golpismo festivo.


Os militares comemoram esse ataque à democracia no país com antecipação, no fim de março, em vez do primeiro de abril do golpe. Por isso o tweet do Ministério da Defesa é de 30 de março, bem como a crítica do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais: ódio e nojo é uma citação de Ulysses Guimarães, referindo-se à ditadura militar.

Em abril, o deputado federal filho do presidente da república resolveu retomar uma tática do pai para projetar-se ainda mais no cenário político: Bolsonaro, na votação do golpe de 2016 na Câmara, fez uma apologia à tortura e à ditadura contra a presidenta Dilma Rousseff. O filho fez o mesmo, porém com ainda menor eloquência, usando um emoji contra uma jornalista, Míriam Leitão, que foi presa política durante a ditadura militar e era crítica contumaz do então governo. Não reproduzo o tweet aqui, mas a reação de Guilherme Boulos, que seria, meses depois, o deputado federal eleito com o maior número de votos em São Paulo:


É claro que ele não foi cassado. Imagine se a defesa da tortura fosse incompatível com a efetiva ética parlamentar brasileira; difícil conceber algo assim, tão divorciado dos costumes nacionais.

Os bolsonaristas ameaçavam repetidamente a Justiça Eleitoral, embora não tivessem tantas razões para isso. Neste tweet de abril, vemos o então presidente fazendo propaganda eleitoral meses antes do prazo determinado pela legislação. A tática da motociata parecia flagrantemente copiada de Mussolini (um dos modelos políticos do agora ex-presidente). Ela permitia aproveitar o máximo de espaço com um número menor de gente do que seria necessário se estivessem a pé, além de causar mais transtorno ao trânsito do que causariam os pedestres.


Esses eventos geraram muito mais tweets do que motos nas ruas, muitas vezes no tom mais ou menos velado de ameaça à Justiça Eleitoral: bolsonaristas só aceitariam o resultado das eleições se ele andasse em duas rodas. Aproveito e registro que, não raro, nestas exibições públicas sobre duas rodas, Bolsonaro exibia seu desapego não só em relação ao direito eleitoral mas também às normas de trânsito, andando sem capacete:



O tweet evoca Genivaldo de Jesus Santos, assassinado por agentes da Polícia Rodoviária Federal em Sergipe, que usaram a viatura como câmara de gás. Ele foi abordado porque estava sem capacete. O atual Ministro da Justiça, Flávio Dino, determinou em 6 de janeiro de 2023 que a família fosse indenizada.
Rodrigo Haidar comentou a evidente inconsistência do Judiciário no trato destas propagandas antecipadas de Bolsonaro. 


A cantora referida é Pabllo Vitar, que levantou a toalha com o rosto de Lula em um festival de música; por essa razão, o partido de Bolsonaro conseguiu a proibição de manifestações políticas no evento. Quando ela, em primeiro de janeiro de 2023, encerrou as apresentações musicais da posse do presidente Lula, relembrou o incidente.
Um dos juristas diletos do bolsonarismo é Ives Gandra da Silva Martins. Seu nome virou tópico no Twitter algumas vezes. Em abril, ele voltou a declarar que as Forças Armadas estariam acima dos três Poderes constitucionais, gerando um aluvião de tweets bolsonaristas. Cito as ponderações contrárias de Wellington Saraiva, com as quais concordo:


De fato, somada à reverberação múltipla dos bolsonaristas no Twitter e em outras redes sociais, a declaração contrária à Constituição parecia soar como ameaça ao Supremo Tribunal Federal. Como, em geral, os bolsonaristas não tinham passado pela formação jurídica, tiveram a inteligência suficiente para perceber logo que a desleitura constitucional de Ives Gandra, pretendendo achar um "árbitro" entre os Poderes fora do sistema de freios e contrapesos e escolhendo-o entre os militares, favorecia evidentemente o militar Bolsonaro:



Não apenas Ives Gandra da Silva Martins apresentou concepções inovadoras (em relação à Constituição; em si, eram posições arcaicas) sobre o papel dos militares. O Ministro Barroso teve a ideia, estranha para alguém que é por tantos considerado como um constitucionalista, de chamar as Forças Armadas para o processo eleitoral. Sem a mínima condição técnica de colaborar efetivamente, elas passaram o ano com relatório desta qualidade, em meio, como diz esta notícia, da "pressão de Bolsonaro e do ministro da Defesa":


Milhares de tweets bolsonaristas, que não reproduzo aqui, atacaram a Justiça Eleitoral em cada um desses momentos de tensão institucional.
Ao longo de todo ano, mas, na verdade, desde pelo menos desde 2017, como já escrevi aqui, os perfis bolsonaristas fazem analogias com o processo eleitoral dos EUA adotando as posições do Partido Republicano e de Trump. Selecionei este tweet do fim de maio como amostra dos que já faziam questão de deslegitimar uma vitória da esquerda: ela seria tão fruto de fraude quanto a de Biden em 2020...


Era previsível que tentariam repetir o atentado do Capitólio aqui. Adriana Carranca, no fim de junho, fez comentário semelhante porque o filho senador de Bolsonaro recusou-se a responder se o pai aceitaria a derrota para Lula (que continuava à frente nas pesquisas eleitorais), mas afirmou que a reação dos apoiadores seria imprevisível:



A posição parecia-se com a terceirização do golpe, com a tentativa de elidir a responsabilidade, que é um dos objetivos de toda terceirização: deixa-se que os apoiadores façam o trabalho sujo pelo líder. 

Em 10 de julho, em Foz do Iguaçu, o policial federal bolsonarista Jorge José da Rocha Guaranho invadiu a festa de aniversário do guarda municipal e tesoureiro do PT Marcelo Arruda. Assassinou-o, mas Arruda ainda logrou atirar nele, tentando defender a si e aos seus. A polícia prendeu-o e divulgou, em um primeiro momento, que ele teria morrido. Parte da imprensa, fiel à teoria dos dois demônios, que certamente deve constar em manuais de redação ocultos, logo partiu para igualar agressor e vítima. Até mesmo a imprensa especializada:

Marcelo Arruda teria gostado de ver, certamente, que Lula e seus apoiadores conseguiram superar o ódio e a violência bolsonaristas, bem como a teoria dos dois demônios cultivada pela imprensa burguesa.

Li diversos tweets de pessoas que não ousam usar, por exemplo, broches ou adesivos de candidatos não bolsonaristas (não só de Lula ou do PT) com medo de serem atacadas na rua. O bolsonarismo, com seu uso eficaz da violência política, teve certo sucesso em constranger os eleitores de outros partidos. 

Outra fonte de constrangimento eleitoral que surgiria se fosse aprovada foi a proposta do Ministério da Defesa de criar uma votação paralela em papel:



Esta recebeu também vários tweets de apoio, como se viessem de um Estado paralelo. No dia 18, pouco depois, Bolsonaro atacaria o sistema eleitoral brasileiro em uma exposição para a qual foram convidados embaixadores estrangeiros, o que gerou tanto a reação da sociedade civil quanto a inação do presidente do Congresso Nacional e do procurador-geral da república. Os perfis bolsonaristas apoiaram massivamente o então presidente, porém cito aqui a jornalista Flávia Oliveira mencionando a atuação do "Pacto pela Democracia":


No mesmo dia 19, a Embaixada dos EUA no Brasil declarou que as eleições no Brasil são um "modelo" para o mundo.
O lançamento da candidatura de Bolsonaro seguiu a  estratégia de comunicação ambígua adotada pelo bolsonarismo, dando sinais tanto de institucionalidade quanto de golpismo. 


Nesse momento, irromperam tweets sobre as comemorações de 7 de setembro na linha de que, em 2021 o golpe não havia sido dado, mas em 2022 ocorreria, porque "a corda" tinha sido "esticada demais", os "generais melancias" seriam presos (melancia, por ser verde por fora e vermelha por dentro, virou metáfora para comunistas dissimulados), assim como Lula, o MST, Anitta, o STF e Pabllo Vitar, e o "reino de Cristo" venceria junto com o "agro" e o Neymar, garantindo a permanência de Gusttavo Lima no Brasil, talvez (esta parte não me ficou clara) participando das novelas de Glória Perez. Parece confuso, mas tentei resumir a linha de pensamento bolsonarista no Twitter.
Reproduzi antes um tweet de Leonardo Sakamoto; na imprensa, ele fazia apreciações muito críticas de Bolsonaro e seu governo, o que gerou diversos ataques na rede social; em algumas vezes, pelo efeito de rebanho típico das redes sociais, esses perfis conseguiam suspender do Twitter algum jornalista. Os políticos de oposição sofreram e sofrem ataques coletivos semelhantes (alguns chegaram a fechar seus perfis, salvo para seguidores, como o presidente do Senado); contra as mulheres, os insultos eram em geral mais duros, tendo em vista que a misoginia é um dos fundamentos do bolsonarismo. Os bons jornalistas e estas mulheres na oposição sofreram muitos obstáculos em seu trabalho. Aqui reproduzo um tweet de agosto da deputada federal, reeleita, Sâmia Bomfim que indicava matéria do Metrópoles sobre empresários bolsonaristas que teriam defendido golpe de Estado para impedir a posse de Lula:


Não reproduzo os diversos xingamentos e ameaças à deputada e ao jornal, contribuição típica do bolsonarismo à esfera pública. Outros perfis replicaram a matéria, como JairMeArrependi e o Sleeping Giants Brasil que, replicando seu modelo nos EUA, buscou combater os discursos de ódio por meio do ativismo digital:



No STF, em geral não eram atacados os dois Ministros indicados por Bolsonaro e aprovados pelo Senado Federal. Os perfis bolsonaristas em geral atuavam como se os dois não fossem magistrados, e sim advogados do então presidente da república no Tribunal (o que, claro, se correspondesse à verdade e fosse aprovado, seria atentatório ao Estado de direito e deveria gerar o impeachment de ambos), e nesses termos os defendiam. Também por essa razão, atacavam os outros Ministros.


O professor Conrado Hübner Mendes já escreveu diversas vezes sobre a estratégia de magistrados em tribunais superiores paralisarem o julgamento por meio de pedido de vista quando a posição contrária vai prevalecer. Os novos Ministros do STF não representaram novidade alguma nessa questão. No caso dos decretos de Bolsonaro de descontrole do uso das armas, que poderiam ensejar mais violência política (ou depois: imaginem os golpistas de 8 de janeiro todos armados), o pedido de vista de Kassio Nunes Marques interrompeu um julgamento que já estava definido contra o governo federal: 


André Mendonça fez o mesmo em outro julgamento importante, o da Pauta Verde, o mais importante julgamento de Direito Ambiental no ano; com isso, também evitou uma derrota do governo que fazia reuniões com criminosos ambientais. Mauricio Guetta, um dos advogados do Instituto Socio-Ambiental (ISA), fez notar a identidade de táticas nos dois julgamentos e chamou-a de "tônica atual":



Lembro deste caso porque a erosão ou implosão das instituições democráticas promovida pelo bolsonarismo foi mais efetiva no campo da "Pauta Verde", com a explosão de desmatamento, de assassinato de indígenas, camponeses e ambientalistas. Aqui também temos o golpismo e o uso das instituições contra o chamado Estado de Direito.

Os debates na televisão geraram muita movimentação no Twitter. Não vou reproduzi-los, tampouco os que gritavam fraude eleitoral quando os resultados confirmaram que haveria segundo turno, e com Lula na frente. Salvo por este tweet dos Judeus pela Democracia, com o qual concordo:


A campanha do candidato do Partido Liberal tinha resolvido incorporar, zombeteiramente, a referência que Lula fez a esse grupo racista de extrema-direita dos Estados Unidos. Virou até tópico bolsonarista no Twitter, mas não sem razão: já em 2018, David Duke, da Ku Klux Klan, elogiou Bolsonaro afirmando "ele soa como um de nós". É claro que o racismo é um dos núcleos do bolsonarismo, e a apropriação jocosa do grupo promovedor de linchamentos de negros nos EUA deve ter dado ao candidato um ar ainda mais simpático para o eleitor de extrema-direita.

Muito ódio, pois, inclusive religioso - dimensão fundamental do bolsonarismo, que contou com o auxílio providencial do discurso de ódio tanto de pastores famosos quanto de obscuros contra a esquerda e as minorias. Houve vários tweets de demonização de Janja, a esposa de Lula, com o racismo religioso que ataca os cultos afro-brasileiros. Não reproduzo os criminosos racistas aqui. Eles não odeiam apenas o Candomblé e a Umbanda, resalto. 
Como o bolsonarismo é um movimento predominantemente neopentecostal, não me surpreendeu que, em 12 de outubro, os bolsonaristas xingassem o Arcebispo durante a missa e atacassem fiéis durante a celebração de Nossa Senhora da Aparecida. Bolsonaro, batizado há poucos anos pelo pastor Silas Malafaia, foi fazer campanha explorando a festividade católica, porém ao menos teve a decência de não comungar, tampouco rezar.
O assassinato de indígenas não teve trégua durante a campanha. Para os povos originários, que viram o eleitorado brasileiro eleger em 2018 um candidato que prometeu descumprir o capítulo da Constituição da República sobre os indígenas (e cumpriu a promessa!), o resultado da eleição era literalmente uma questão de vida ou morte. Lula, por sua vez, havia prometido criar o Ministério dos Povos Indígenas, inédito no Brasil. Ele também cumpriu a promessa, com a nomeação de Sônia Guajajara, que havia sido eleita deputada federal. Assim é a vida: em 2021, intimada pela polícia de um governo anti-indígena:


Em 2023, já escolhida como Ministra do governo democrático, com a posse adiada por causa da tentativa de golpe dos apoiadores do governo anti-indígena passado:


Precisamos que ela assuma, como Joênia Wapichana já conseguiu na presidência da Funai. Reproduzo um tweet de Beto Marubo sobre o assassinato de mais um Yanomami, em outubro de 2022; notícia típica do governo passado:


A campanha no Twitter retomou as mentiras contra Lula e as ameaças de execução deste candidato.  A rede social tinha passado a etiquetar as mensagens que eram informações falsas; muitas delas foram produzidas por causa dos números do primeiro turno, que não agradaram os bolsonaristas: 



O candidato Bolsonaro, usando o patrimônio público em sua candidatura, mobilizou o genro de Sílvio Santos e então Ministro das Comunicações para anunciar que sua chapa do PL teria tido tempo de propaganda subtraído por veículos de comunicação e pela Justiça Eleitoral. Mas não havia provas. Tampouco subtração.


Os tópicos bolsonaristas de fraude eleitoral foram sobrepujados por "cadê as provas gigolô", que tomou o Twitter no Brasil, um apelido afetivamente dado pelo deputado (reeleito) André Janones ao genro de Sílvio Santos.


Para entender esse tipo de disputa, lembro, neste momento, da matéria de Breno Pires, "'O show de Jair': Como o PT enfrentou a milícia bolsonarista", publicada na revista Piauí em dezembro de 2022. O bolsonarismo criou um "ecossistema de desinformação" que o PT conseguiu enfrentar graças a suas estratégias nos campos digital e jurídico, que incomodaram "algumas das vozes mais influentes do show do Jair", como Eduardo Bolsonaro, que teve de apagar posts, Bernardo Küstler e outros nomes que tiveram suas contas banidas no Brasil. 

O sucesso judicial do PT, bem como a atuação do TSE incomodaram os governistas. A Procuradoria-Geral da República, que se manteve virtualmente inerte diante de denúncias contra Jair Bolsonaro (Vladimir Aras, o Procurador-Geral da República, por alguma razão, é quase tão admirado pelos perfis bolsonaristas quanto Ives Gandra da Silva Martins), resolveu propor ação direta de inconstitucionalidade questionado a resolução do TSE contrária à desinformação no processo eleitoral.

A resolução, cito o texto da Comunicação do STF, "proíbe a divulgação ou o compartilhamento de fatos inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral e autoriza o TSE a determinar às plataformas digitais a remoção imediata (em até duas horas) do conteúdo, sob pena de multa de R$ 100 mil a R$ 150 mil por hora de descumprimento." Ela permite também suspender perfis em redes sociais, o que muito incomodou os bolsonaristas. A argumentação de Aras não convenceu e ela foi mantida pelo STF em 25 de outubro com apenas dois votos vencidos: os Ministros indicados por Bolsonaro.

A violência nas ruas continuou, alimentando o clima golpista. No último dia de campanha, 29 de novembro, a deputada bolsonarista Carla Zambelli, reeleita, saiu correndo, com arma na mão e auxiliares ao redor, atrás de um apoiador do PT que a xingou.

A perseguição armada ocorreu em São Paulo, à revelia da proibição legal de porte de arma nas 24 horas que antecedem a eleição. É claro que a possível prática de crime eleitoral não muda o voto de um bolsonarista, porém. Nesse momento, os tweets de apoio à deputada não lograram dominar a rede.

A Polícia Rodoviária Federal, cujo diretor era bolsonarista, descumpriu ordem do Supremo Tribunal Federal no dia do segundo turno da eleição, 30 de outubro, e fez blitze bloqueando estradas e parando ônibus nos Estados em que, coincidentemente, Lula estava na frente nas pesquisas. A tuitosfera bolsonarista apoiou intensamente a medida nesse dia, afirmando que se tratava de ação contra a "fraude eleitoral". 

Mesmo assim, apesar dessas ações, da compra de votos legitimada por emenda constitucional, de pressões oficiais e oficiosas, da campanha  massiva de informações falsas etc., o candidato deles foi derrotado.

A impressionante vitória de Lula contra toda essa rede acabou por ressaltar o caráter antidemocrático do bolsonarismo. O Senado dos Estados Unidos, em medida certamente facilitada pela política intervencionista daquele país, aprovou resolução no sentido de cortar relações se Bolsonaro desse um golpe de Estado. O youtuber Felipe Neto fez um comentário ironizando tanto os EUA quanto os bolsonaristas, que não gostaram do tweet (eles detestam Felipe Neto, que foi antipetista e defendeu o golpe de 2016, mas depois arrependeu-se e apoiou Lula). Entre as ameaças que recebeu, destaco esta por sua iconografia:


Bolsonaristas odeiam o meio ambiente e os ambientalistas; quando recorrem a animais, fazem-no em geral para usá-los como ameaça: "a onça vai beber água", "a cobra vai fumar" etc. Fossem mais francos, diriam: "as onças e as cobras morrerão vítimas do agrobanditismo, da mineração ilegal e de outra atividades criminosas que vicejam no governo que apoiamos".

Os neonazistas no Twitter, faziam campanha para Bolsonaro ao menos desde 2017; por algum motivo, viam nele alguém simpático às suas aspirações. O professor Michel Gherman já explicou diversas vezes que o bolsonarismo "apresenta tendências nazistas e fascistas". Autoridades do governo federal, com efeito, emularam gestos ou símbolos dos fascismos, no estilo "apito de cachorro": a população em geral não perceberá, mas os cães ouvirão e entenderão o chamado. 

Após a derrota eleitoral, o mimetismo nazista abandonou a relativa sutileza e tornou-se mais evidente, como notou este perfil:


O Instituto Brasil-Israel acusou, no 2 de novembro, a "normalização de símbolos fascistas e nazistas ao longo dos últimos anos":


Corroborando essas "tendências", nos dias 9 e 10 de janeiro de 2023, os defensores dos bolsoterroristas compararam a prisão dos golpistas em estádios e com acesso a celular (eles filmam de lá e postam nas redes sociais, é impressionante) com "Auschwitz", que virou tópico no Twitter junto com "Holocausto". "Lula vai cair", também. 


É preciso ter muito ódio aos judeus para ousar comparar essa detenção com telefone celular e acesso à internet aos campos de concentração nazistas. O "morre" como tópico se deve a uma notícia falsa de morte no "campo de concentração" de suposta idosa bolsonarista, que um pastor evangélico, Ricardo Martins (por sinal, ele fez recentemente live com Osvaldo Eustáquio, blogueiro bolsonarista que teve prisão decretada pelo Ministro Alexandre de Moraes) resolveu divulgar, embora a imagem da senhora venha de um banco de dados. O nome dele está no alto à esquerda da foto; Raull Santiago divulgou-a corretamente, com o carimbo de "FAKE":


Além do ódio aos judeus e a outras minorias, os neonazistas e alguns milhões de brasileiros compartilham o fato de que o candidato em que votaram foi derrotado em 2022. Busquem os estudiosos outras similitudes. Estaria entre elas a violência como arma política? Em novembro, bolsonaristas foram presos em Mato Grosso acusados de atear fogo em carros que tentavam passar por bloqueios nas estradas. Representantes do informal Partido Militar Brasileiro, à revelia da legislação da corporação, publicaram tweets que foram interpretados por bolsonaristas, por alguma razão, como incitação ao golpe: 


Além da derrota eleitoral e do STF, a então recentíssima condenação a 10 anos de prisão de Jeanine Añez, que tomou o poder na Bolívia depois do golpe contra Evo Morales, também parecia preocupar Bolsonaro, que havia chegado a oferecer asilo político para a golpista.

No Twitter, o que sugeria que se preparavam reações contra o resultado das eleições foi a criação de diversos perfis explicitamente bolsonaristas em novembro. Vários surgiram em outubro, o que fazia sentido, tendo em vista o segundo turno. No entanto, por que eles apareceram, com o número eleitoral de Bolsonaro ou com a imagem do derrotado, depois que as eleições terminaram?? Evidentemente, não as consideravam um assunto terminado: o golpismo multiplicava-se em perfis.



Novembro também foi o mês em que o adquirente da rede social, Elon Musk (muito admirado por bolsonaristas), começou a intervir mais fortemente no Twitter, demitindo várias pessoas (especialmente do Brasil, ferindo a moderação das mensagens), reabilitando perfis que foram banidos por discurso de ódio (Donald Trump, por exemplo, retornou) e eliminando, acrescento, a previsão explícita sobre covid-19 entre as hipóteses de denúncia por informação falsa.

Nesse mês, perfis bolsonaristas esperaram que o estranho, sem previsão legal, relatório do Ministério da Defesa sobre as eleições autorizasse o fechamento do STF e do TSE, o que garantiria a permanência de Bolsonaro no poder. Perfis apócrifos de homenagem a nomes admirados pelo bolsonarismo postaram até o suposto resultado do documento. 


Em verdade, ele não concluiu por nada disso, o que não dissuadiu perfis bolsonaristas de repetirem que teria havido fraude. Diversos tópicos surgiram para esse fim, inclusive este em inglês: BrazilWasStolen. A resposta do Twitter, em reação às denúncias que os outros usuários faziam (a precária segurança dessa rede social depende basicamente da fiscalização deles), continuou a mesma: etiquetar as mensagens com "Informe-se. Entenda por que especialistas em eleições afirmam que os processos eleitorais são seguros e protegidos. Saiba mais." 


Outra informação falsa era a da internação ou do falecimento de Lula com sua substituição por suposto sósia. Em muitas versões, ele teria morrido no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. A causa mortis variava de acordo com o perfil, que geralmente dizia possuir conexões privilegiadas com a instituição hospitalar.


Vejam no primeiro desse par de tweets o neologismo cunhado para servir de eufemismo para golpe: pretendia-se "deseleger" Lula, chamado doravante de "deseleito". A desonestidade política manifestava-se também na pobre criação lexical.

O PL ainda tentou contestar judicialmente a eleição alegando genericamente fraude nas urnas eletrônicas no segundo turno. Depois de ser obrigado a aditar a inicial para incluir as do primeiro turno (o que poderia levar à anulação da vitória de diversos candidatos bem-sucedidos do partido), o Partido acabou multado em mais de 22 milhões por litigância de má-fé:


Isto foi em 23 de novembro. O tópico no Twitter para zombar os bolsonaristas e o Partido Liberal foi "Faz o 22", que, coincidentemente, era o número do partido:

Imagino que essas movimentações do partido tenham mantida acesa a disposição dos manifestantes golpistas de bloquearem estradas ou acamparem diante de quartéis, que incluiu oração cristã para pneus e envio de sinais luminosos com os telefones celulares para os céus. No início do mês, um manifestante que tentou impedir a passagem de um caminhão e e foi transportado por quilômetros acabou virando meme.


Em 28 de novembro, outro revés: vários perfis bolsonaristas lamentaram a divulgação da notícia de que Eduardo Bolsonaro estava no Catar vendo jogos da Copa do Mundo com a esposa em área VIP com bufês de luxo. Depois, o deputado reeleito pelo Estado de São Paulo mostraria pen drives para explicar que estaria levando ao exterior denúncias sobre o Brasil, o que, até mesmo para a capacidade de percepção de bolsonaristas, pareceu um pouco inverossímil. Este perfil crítico ao bolsonarismo, Jairmearrependi, foi um dos que aproveitou para expor que os próprios Bolsonaros colocavam os bolsonaristas em papel ridículo:


O deputado federal filho do presidente derrotado não estava sozinho nessa atitude; além dos jornalistas que moravam nos Estados Unidos, havia outros apoiadores dos manifestantes golpistas que não queriam, certamente com muitas razões, com eles se misturar, como este pastor evangélico:


The Washington Post publicou em 23 de novembro que Eduardo Bolsonaro viajou aos Estados Unidos para aconselhar-se com Steve Bannon sobre as eleições, e que ele o orientou a contestar os resultados. O fato de os golpistas acampados usarem lemas em inglês (Brazil was stolen, que virou um tópico no Twitter) seria outra prova, segundo a matéria, da proximidade entre os movimentos de direita no Brasil e naquele país.

Em 29 de novembro, foi veiculado no Instagram vídeo da deputada federal (apesar de sua conta ter sido retida judicialmente), reeleita por São Paulo, Carla Zambelli pedindo golpe de Estado aos "generais quatro estrelas", que seriam os "guardiões da nossa Constituição". A mensagem antidemocrática chegou ao Twitter, mas não a reproduzo aqui.

Os golpes da realidade não cessaram, porém, para os golpistas. Em 2 de dezembro, o então vice-presidente conclamou-os a deixarem as manifestações, tendo em vista a eleição de Lula. Os tweets bolsonaristas, em geral, acusaram-no de traidor. Já este representante do monarquismo (entende-se que a ideia de "passar a faixa" lhe seja hereditariamente estranha), reeleito deputado pelo avançadíssimo Estado de São Paulo, foi um dos políticos que tuitou mensagens que foram entendidas pelos outros bolsonaristas como incitação ao golpe de Estado e ao insulto ao presidente eleito:


Reanimando os boatos golpistas de fraude eleitoral, um argentino amigo da família Bolsonaro fez alguns vídeos sem realmente sentido tentando alegar que havia falhas nas urnas eletrônicas, pelo menos as mais antigas. Houve uma intensa veiculação desses boatos, que não repito aqui, e o Ministro Alexandre de Moraes chegou a bloquear, em cinco de dezembro, a conta de uma deputada federal bolsonarista, Bia Kicis, por tê-los reiterado.

O Supremo Tribunal Federal, naturalmente, foi um alvo incessante das microvociferações golpistas no Twitter. Este perfil, que não existe mais, foi um dos que apostou que a Polícia Federal em novembro desobedeceria, criminosamente, a Corte e apoiaria os bloqueios das rodovias pelos caminhoneiros que, descontentes com a derrota de Bolsonaro nas eleições, resolveram tentar bloquear a democracia.



Corria entre os bolsonaristas a notícia de que Bolsonaro estava com medo, o que aparentemente gerou defecções, pelo menos no Twitter. Alguns tentavam consolar-se com a ideia de que ele poderia ainda dar um "golpe constitucionalizado" (ou seja lá o que for o que os bolsonaristas pretendem com a sua interpretação desvairada do artigo 142 da Constituição da República). Mas a bravata misturava-se a sinais de impotência, como neste pedido de socorro às Forças Armadas:



A referência era à recente deposição forçada de Pedro Castillo, presidente do Peru, de esquerda. O curioso deste tweet, além da mistura de bravata com impotência, tão típica dos personagens em questão, foi a escolha de uma foto do 7 de setembro de 2021, ocasião em que Bolsonaro tinha voltado a ameaçar o Supremo Tribunal Federal e a acenar com o golpe de Estado, procedimentos normais vindos de um representante do informal Partido Militar Brasileiro e que, portanto, não levariam a um processo de impeachment, uma vez que as regras democráticas não valem para a direita, muito menos para a extrema-direita. Em 2021, Bolsonaro já tinha encolhido. Em 2022, lembre-se, o 7 de setembro serviu como evento para discutir a supostamente declinante potência sexual do chefe de governo: o país tinha encolhido, talvez na mesma proporção.

A mistura de bravata e impotência, em verdade tão comum, voltou a aparecer por causa da diplomação de Lula: vários tweets asseguravam que ela não ocorreria. Como o desejo não se transformou em realidade, surgiu uma nova versão, visivelmente inspirada no que um blogueiro foragido falou em 2020 para alimentar a fantasia de que Trump teria vencido Biden: só teria havido a diplomação de Lula para que o "crime" se consumasse e, dessa forma, ele e o Ministro Alexandre de Moraes pudessem ser presos!


O "tic tac" é a onomatopeia favorita pelos golpistas: uma espécie de contagem regressiva para a tomada à força do poder, detenções ilegais e outros crimes porventura desejados pelos que a leem: um significante vazio, tão importante para a constituição e a aglutinação das redes da extrema-direita. No caso, ocorreu apenas a contagem regressiva para o fim de direito do mandato, que Bolsonaro acabou abandonando aos poucos; afinal, ele deixou o país antes de o governo acabar oficialmente, em gesto por muitos interpretado como uma fuga.

O bolsonarismo teria sido muito mais fraco sem o engajamento da imprensa. Em 30 de dezembro, três comentaristas da Jovem Pan, Rodrigo Constantino, Paulo Figueiredo e Fernando Conrado, tiveram suas contas em redes sociais retidas por determinação do Ministro Alexandre de Moraes. Antes disso, porém, provocações como a deste morador dos Estados Unidos não eram incomuns e incitavam os admiradores de Bolsonaro a resistirem ao resultados das eleições:


Jornalistas tentavam manter o ânimo desses coletivos declinantes, mas como animar os golpistas diante da ausência do líder? O filho vereador tentava de vez em quando, apesar de suas dificuldades com as palavras, a sintaxe e a lógica, que para alguns correspondia a um estilo literário muito pessoal. Em 13 de dezembro, ele renunciou à difícil linguagem verbal para oferecer o que os bolsonaristas viram como um sinal de esperança de que tudo, como dizem os paranoicos, está planejado e orquestrado. Um então participante do governo federal logo aderiu entusiasticamente à eloquência carluxiana no mesmo diapasão, com um emoji:


O ridículo do tweet acentua-se pelo fato de mostrar uma orquestra, formação pela qual Bolsonaro não demonstrou interesse artístico e à qual não deu atenção em matéria de políticas públicas; e de ser a Orquestra Cubatão Sinfonia, um projeto de educação musical. A foto foi capturada da divulgação do grupo no Projeto Orquestras Locomotiva. Além de se tratar de orquestra e educação, havia outro fator a desagradar bolsonaristas: ela não seguia o negacionismo científico; pelo contrário, adotava precauções contra a covid-19. Cito a matéria:

Vale lembrar que a apresentação da Orquestra cubatense contará com todos os protocolos sanitários de combate à covid-19: cada artista utilizará seu próprio instrumento musical, as cadeiras e as estantes (utilizadas para acomodar as partituras) serão higienizadas antes e após o concerto. Os músicos e musicistas contarão com placas de acrílico instaladas, garantindo uma importante proteção entre as pessoas, principalmente por conta dos instrumentos de sopro.

Para quem quiser assistir à apresentação de primeiro de setembro, regida por André Farias, sugiro vê-la por meio desta ligação: https://youtu.be/fNSQRNQN1zc?t=3214

Em 18 de dezembro de 2022, o general Augusto Heleno viu-se obrigado, diante da repercussão, a desdizer um insulto ao presidente eleito e uma ameaça golpista proferidos diante de um punhado de pessoas que queriam ouvir as indignidades. Lázaro Rosa foi um dos que notou a preocupante falibilidade da memória recente do militar idoso:


Em 2018, lembre-se, um tweet do General Villas Bôas, então comandante do Exército serviu para ameaçar de golpe de Estado o Supremo Tribunal Federal caso libertasse Lula, como confirmou Fabio Victor em seu "Poder camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro" (São Paulo: Companhia das Letras, 2022). Outros tempos, apenas quatro anos antes.

Um momento particularmente revelador de autodecepção foi o dia em que perfis resolveram divulgar que a segunda posse de Bolsonaro foi colocada por alguém como um dos eventos do Google; portanto, ela ocorreria, no pensamento tipicamente infantil "se está na internet, é verdade".


Esse perfil homenageava o autor preferido de Bolsonaro, um dos 377 agentes de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar segundo a Comissão Nacional da Verdade, que morreu sob a declaração judicial de torturador. Ele desapareceu do Twitter pouco depois e mudou de nome para algo mais ameno, ligado a carros. Terá o novo governo Lula um impacto tão forte no campo da justiça de transição, fazer essa gente voltar para o esgoto?

No dia 30 de dezembro, em sua última teletransmissão aos fãs na condição de presidente da república, Bolsonaro chorou novamente, gerando mais decepções não por causa do péssimo governo, mas pela falta de... golpismo! Vejam este curioso comentário sobre as "quatro linhas":


Trata-se de como os bolsonaristas, inspirados pelo líder, passaram a se referir à "moldura constitucional" dentro da qual os atos do presidente da república deveriam se dar. O bolsonarismo alimentou-se ideologicamente da ética antideontológica de que os fins (golpistas, antidemocráticos etc.) são superiores aos meios (legais) e glorificou a violência e a ruptura institucional como novas virtudes cívicas. Ademais, é exasperante ver que uma administração que parecia tantas vezes avizinhar-se de atos ilícitos (se realmente isso aconteceu, talvez o saibamos durante o novo governo Lula) ser acusada de restringir-se aos parâmetros constitucionais!

Nem todos se desanimaram, no entanto. Como se sabe, manifestantes continuaram usando banheiros unissex diante de quartéis. Nesse momento, os bolsonaristas já tinham se convertido em uma seita messiânica a buscar sinais da Vinda do escatológico Golpe. Os sinais poderiam estar na roupa, no cenário, ou em uma palavra dita no final:


Agudo contraste entre a palavra e o semblante. Para alguns, a chorosa fala ao vivo de Jair Bolsonaro, se entendida com uma série de indícios imaginários, seria não o sinal de que o Golpe viria, mas de que ele já tinha dado certo:


Nada faz sentido; como os perfis desta natureza em geral mostram um conhecimento limitado da língua, não se saberá se era realmente "porque acredito" ou se as duas listas correspondiam aos motivos "por que" o perfil acreditava, ou acredita até hoje. 

Um candidato eleito a deputado federal tinha vivido um momento de otimismo quando o ainda presidente da república saiu do mutismo no início de dezembro e, em breve exibição de virtudes bélicas e coragem cívica, chorou diante de um bando de admiradores:


Dias depois, o deputado eleito desanimou-se diante da perspectiva da fala de fim de ano de Mourão, o vice-presidente eleito senador pelo Estado do Rio Grande do Sul. No entanto, um perfil censurou-o por adotar a atitude supostamente derrotista:



A ação aconteceu. Cito agora o livro antes referido de Fabio Victor: 

Especulava-se que, insufladas por seu líder, as milícias bolsonaristas seriam capazes de tentar sua própria invasão do Capitólio, ou um golpe à Bolívia de 2019 [...] ou mesmo uma atualização da Marcha sobre  Roma dos fascistas em 1922.

A maioria dos militares nunca levou nenhuma dessas possibilidades muito a sério. Quando o assunto vinha à tona, um general gostava de dizer que "nosso Capitólio" (o Congresso Nacional) já fora invadido em protestos de Sem-Terra, de indígenas e de movimentos, sem que houvesse comoção.

Ora, se temos ainda democracia, é justamente por causa dos povos indígenas e dos movimentos sociais, que resistem aos massacres cotidianos. Quanto a direita se mexe, temos outras coisas, como o Di Cavalcanti esfaqueado, o Victor Brecheret roubado, o relógio do século XVIII destruído entre outros danos, continuando o trabalho de destruição que o líder dela havia começado. A biblioteca do Senado Federal ficou incólume provavelmente porque os bolsonaristas, com toda sua cultura, não sabiam do que se tratava.

Jair Bolsonaro declarou não ter apoiado os golpistas de 8 de janeiro. No entanto, ele continua no Twitter a se apresentar como presidente da república e candidato à reeleição, e tem listado suas "realizações" durante o mandato, como se as eleições não tivessem ocorrido. Eis como está o perfil dele em 9 de janeiro de 2023, com o último tweet mencionando o número de escolas de doutrinação militar:


Isto envia uma mensagem de três palavras para os bolsonaristas que foram roubar, espancar, depredar e defecar em Brasília, mas também para os outros, que apoiaram, financiaram, torceram ou ficaram só assistindo os atos terroristas: golpe de Estado. Os mecanismos de justiça de transição, evitados para e pelos golpistas de 1964, não podem ser deixados de lado agora.