O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 29 de março de 2025

Desarquivando o Brasil CCX: A União se desculpa pela Vala de Perus e a imprensa esquece dos movimentos sociais

Finalmente ocorreu o pedido de desculpas do Estado brasileiro "pela negligência na condução da identificação dos remanescentes ósseos da Vala de Perus", que foi acordado nas audiências de conciliação do processo judicial sobre esses trabalhos de identificação. Essa vala clandestina em São Paulo, no Cemitério Dom Bosco, foi usada pela ditadura militar para ocultar corpos de vítimas do Esquadrão da Morte, militantes políticos, mortos da epidemia censurada de meningite e indigentes. Ela foi descoberta em 1990, mas até agora, aparentemente, apenas cinco desaparecidos foram identificados.

Os remanescentes ósseos foram retirados em 1.049 sacos. Hoje o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp estima que eles compreendem 1062 casos, acondicionados em 1065 caixas.

Recordo, como escrevi antes, que o governo do Estado de São Paulo, que também foi negligente, recusou-se a fazer esse pedido, razão pela qual esse tema saiu da esfera conciliatória em relação a esse ente estatal. É bem possível que seja obrigado a fazê-lo por decisão judicial.

A cobertura da imprensa foi mais ou menos homogênea entre as notícias que consegui encontrar. A EBC parece ter dado o tom, com o foco na Ministra Macaé Evaristo. Não houve diferença significativa entre os veículos situados mais politicamente à direita (como o G1 e a Folha) ou à esquerda (como A Ponte e O Vermelho): todos ignoraram o fato de que a cerimonialista do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania aparentemente esqueceu que estava prevista a fala dos movimentos da comunidade de Perus e que Fofão, da Comunidade Cultural Quilombaque, teve que tomar o microfone para que a programação combinada na audiência na Justiça Federal fosse efetivamente seguida.




Foi ignorada também a carta de reivindicação da criação de um memorial, que ele entregou à Ministra.

Outro momento descartado pelos jornalistas foi a chegada de Antônio Pires Eustáquio, o funcionário do Serviço Funerário que revelou a localização da Vala em 1990. Tínhamos a informação de que ele não apareceria devido a problemas de locomoção (o local não é de fácil acesso). No entanto, ele conseguiu aparecer depois do pedido de desculpas da União e fez uma breve intervenção, que eu filmei:



É interessante vê-lo dizer que, a despeito das várias ameaças de morte que sofreu, conseguiu sobreviver "por causa da democracia". 

A imprensa em geral seguiu a orientação estadocêntrica do próprio evento. Embora o Ministério tivesse o nome dos familiares presentes e dos desaparecidos correspondentes, eles não foram anunciados, embora a cada pausa fosse trombeteada a presença de, por exemplo, alguma chefe de gabinete de vereadora que tivesse acabado de chegar ao evento. E eram vários: de André e Maurício Grabois, de Gilberto Olímpio Maria, Hiram de Lima Pereira, Jaime e Lúcio Petit da Silva, João Maria Ximenes de Andrade, entre outros que não vi e já me desculpo por não citar. Os movimentos sociais de cultura e os de memória, verdade e justiça tampouco receberam o destaque merecido.

O público era grande e muita gente ficou em pé: a estrutura montada pelo Ministério para o evento foi subdimensionada. Entre os presentes no público do evento, estavam Ricardo Ohtake, o artista do monumento da Vala; Teresa Lajolo, a relatora da CPI de Perus em 1991; Adriano Diogo, que presidiu a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", na qual foi realizada a audiência de criação do órgão que faz a identificação dos remanescentes ósseos (depois dos anos de negligência da Unicamp, da USP e da UFMG): o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo. Eles não discursaram nem tiveram assento à mesa.

A fala de Gilberto Molina, representando os familiares, foi um ponto alto da cerimônia: ele tratou do "velório de quarenta anos" por que a família passou até a identificação de seu irmão, Flávio Molina. Ressaltou que outras famílias seguem esperando os resultados há meio século.

Ele recebeu esta placa da Ministra e a concedeu para a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, movimento da sociedade civil que também lá estava assistindo ao evento. Agradeço a Criméia Almeida ter-me permitido tirar esta foto.



Comprei, no dia seguinte, dois tabloides, O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo, bem como o jornal O Globo. Todos falaram do 24 de Março na Argentina, com ênfase nas medidas anunciadas por Milei, que está tentando tornar a teoria dos dois demônios uma doutrina oficial. 

Nenhum desses três veículos de imprensa mencionou os eventos análogos no Brasil, nem mesmo o pedido de desculpas. De fato, sem essa imprensa não estaríamos tão atrasados em matéria de justiça de transição.

Abaixo, copio a carta entregue pela comunidade de Perus na cerimônia exigindo a construção de um memorial, outra medida essencial de justiça por seu caráter educativo em memória e direitos humanos. Faço notar que o IPDMS, exceção no campo da pesquisa jurídica no país, instituição acadêmica a que pertenço, assinou-a.




PELA CONSTRUÇÃO DE UM MEMORIAL DOS MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS E DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS




A/C Excelentíssima Senhora Ministra dos Direitos Humanos




Nós, integrantes do Território do Interesse da Cultura e da Paisagem Jaraguá-Perus Anhanguera e coletividades signatárias, por meio desta, solicitamos, em caráter de urgência, a implementação de um Memorial para a Reparação Histórica, referente aos mortos e desaparecidos políticos pelo crime de Estado dos governos ditatoriais, que servirá também como um espaço de formação e defesa permanente dos Direitos Humanos, no Cemitério Municipal Dom Bosco, localizado na Estrada do Pinheirinho, 860, em Perus, São Paulo.

Em 04 de Setembro de 1990, foi realizada a abertura de uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, da qual foram retirados 1.049 sacos com ossos humanos vítimas do aparato repressivo do período da ditadura civil-militar no Brasil. O evento foi um marco na luta dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos na medida em que se deu início ao processo de reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, das inúmeras violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade que tinham a pretensão de serem ocultados pela ditadura.

A luta pelo direito à memória, entendido aqui como a preservação da história, da identidade e da verdade, garante que fatos históricos, especialmente aqueles relacionados a regimes autoritários e violações de direitos, não sejam esquecidos ou distorcidos. É uma luta pela promoção da justiça, reparação histórica e pela construção de uma sociedade mais democrática.

É de suma importância ressaltar que a construção de um Memorial para a Reparação Histórica referente aos mortos e desaparecidos políticos da Ditadura Civil-Militar desempenhará papel crucial na luta pelo direito à memória, não apenas no campo simbólico, mas também material. Isso porque, um espaço físico de memória transforma a história, a memória e o sofrimento causado pelo Estado, em algo tangível e acessível. A função não é apenas honrar o passado, mas também educar, inspirar e fortalecer a luta por justiça, verdade e democracia no presente e no futuro. Sem esses espaços efetivos, corre-se o risco de que as violações de direitos humanos ocorridas na ditadura caiam no esquecimento ou sejam interpretadas de forma conveniente, permitindo que ciclos de violência e opressão se repitam.

O processo de construção desse Memorial em Perus e de tantos outros que gostaríamos de ver edificados pelo país, devem seguir princípios basilares como transparência, estímulo à participação social e ampliação da discussão sobre direito à memória e aos direitos humanos. Deverá sobretudo ser realizada por meio de articulação interfederativa - aos entes responsáveis, e com constante comunicação com a sociedade civil em todas as fases do processo.

Dessa forma, passados 35 anos da abertura da vala de Perus, a construção de um espaço físico tem como objetivo a manutenção e defesa da memória, justiça e verdade da trajetória política brasileira. É um passo importante para reafirmar no presente e para as gerações futuras que “os crimes contra a liberdade serão sempre descobertos”.


São grupos e coletividades signatárias desta carta:

Território do Interesse da Cultura e da Paisagem - Jaraguá-Perus Anhanguera - TICP-JPA
Agência Queixadas
Agrupamento Debate CUTista - SINPEEM Independente e de Luta
Associação dos Aposentados Perus
Associação dos Professores da PUC - APROPUC-SP
Bando Undirê
Bloco Carnavalesco "Os Zatt'revidos" de Pirituba
Bloco D. Yayá
Campanha Tolstói
Canal Fala Escola
Casa do Hip Hop Perus
CEB's São José
Centro de Memória Queixadas - Sebastião Silva de Souza
CEU EMEF Perus
CEU EMEI Jorge Amado
CIEJA PERUS I
Coletivo Anhanguera Luta & Resistência
Coletivo Brigada pela Vida
Coletivo Código da Arte
Coletivo Favelô
Coletivo Janela Aberta
Coletivo Literário Sarau Elo Da Corrente
Coletivo Mães do Morro
Coletivo Matriarcal PanAfricanista Yaa Asantewaa
Coletivo Paulo Freire Noroeste
Coletivo Paulo Freire São Paulo
Coletivo Periferia no Foco
Coletivo Perus tem Rock!
Coletivo Povo De Luta Perus/Anhanguera, Taipas, Jaraguá E Pirituba
Coletivo Revolução Materna
Coletivo Rock de Subúrbio
Coletivo Salve Kebrada
Coletivo Slam do Pico
Coletivo Vozes da Base
Comunidade Cultural Quilombaque
CPDOC Guaianás
DOC_ARTE: Práticas Documentais e Arte
EMEF Philó Gonçalves dos Santos - EcoParque Escola Philó
EMEF Prof. Remo Rinaldi Naddeo
Espaço Cultural Morro Doce
Fórum de Trabalho Social em Habitação de São Paulo
Frente Popular em Defesa da Escola Pública de SP
Grupo Capoeira Raiz Da Resistência Núcleo Zumba
Grupo de Estudos em Psicologia Política, Políticas Públicas e Multiculturalismo - GEPSIPOLIM
Grupo de Estudos Sobre Conflitos Internacionais - GECI
Grupo de Pesquisa Imagens, Metrópolis e Culturas Juvenis
Grupo de Pesquisa Linguagem em Atividades no Contexto Escolar - GP LACE
Grupo de Teatro TONAEJA
Grupo Pandora de Teatro
Instituto Cultural Bola de Fogo
Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais - IPDMS
Instituto DIPI
Instituto Pólis
Instituto Reeducação Para Todos Os Povos/Guerreiros Da Vila Da Paz
Laboratório de Estudos de Saúde e Sexualidade - LESSEX
Morada Jaraguá Okênozune
Movimento Cultural das Periferias
Movimento Negro Unificado de São Paulo - MNU/SP
Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento
Movimento Renova Sinesp
Núcleo de Cultura e Pesquisas do Brincar
Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trabalho, Atividade, Subjetividade - NUTAS
Núcleo de Estudos e Pesquisa Trabalho e Profissão - NETRAB
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Aprofundamento Marxista - NEAM
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Crianças, Adolescentes, Famílias e Sistema de Garantia de Direitos - NCAF
Núcleo de Estudos Psicossociais da Dialética Exclusão/Inclusão - NEXIN
Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade
Núcleo de Preservação da Memória Política - NÚCLEO MEMÓRIA
Núcleo do PSOL Perus
Observatório do Futuro - FAFICLA
Ocupa Ramp
Ocupação Artística Canhoba
Partido dos Trabalhadores - Diretório Regional Perus/Anhanguera
Partido dos Trabalhadores - Diretório Regional Pirituba
Periferia Preta
PLPs- Promotoras Legais Populares
Projeto Arte de Subúrbio
Projeto Brincadas
Rede Cultural Anhanguera
Rede Paulista de Educação Patrimonial - REPEP
Rede Viva Periferia Viva
Reduto do Rap
Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo - SINPEEM
Sindicato Dos Trabalhadores Na Indústria Do Cimento, Cal E Gesso De São Paulo
Street Roots
Tapijás Coletivo Artístico
Tempero de Oyá
Territórios, Memórias e Identidades
União de Mulheres de São Paulo
Vereador Nabil Bonduki - PT
Vereador Toninho Véspoli - PSOL

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