O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Ricardo Lísias, Bernardo Carvalho e os discursos do capital


Sempre que é publicado um livro de Bernardo Carvalho, procuro-o e o leio. Em geral, no mesmo dia em que sai a notícia da publicação, como ocorreu com Reprodução. Assim que o terminei, percebi, como vários outros leitores, um paralelo, embora superficial, com obra recente de Ricardo Lísias, O livro dos mandarins, de 2009.
Houve quem dissesse (e até escrevesse) que certamente Bernardo Carvalho teria lido o romance anterior, mas ele mesmo negou tê-lo feito em entrevista ao jornal Zero Hora: http://wp.clicrbs.com.br/mundolivro/2013/10/01/bernardo-carvalho-fala-de-seu-novo-livro-reproducao/
Estive na última quarta-feira em um evento do SESC em que ele falou com Veronica Stigger e Marcelo Mirisola, perguntei sobre esse paralelo e ele ratificou a declaração dada ao jornal, de que não vejo por que duvidar. Os dois livros são muito diferentes, apesar de ambos terem um propósito satírico e apresentarem pessoas ligadas ao mundo corporativo que desejam aprender chinês (sem muito sucesso, por sinal).
Bernardo Carvalho tenta reproduzir tiques de certa linguagem da internet em um registro oral em que nem sempre eles soam verossímeis: na primeira parte, o personagem estudante de chinês fala "curti" como se fosse uma espécie de pontuação ("Morreram, curti, mas nasceram outros no lugar", p. 45), numa referência pouco sutil do romancista ao facebook. Na terceira, aparentemente, o autor esqueceu desse tique estranho.
Nas três partes, temos principalmente uma única voz de um diálogo que soa, dessa forma, como um monólogo. O procedimento é cansativo e, para que aquela falação se torne mais compreensível e, talvez, verossímil, o personagem estudante de chinês faz muitas perguntas e repete demais o que lhe está sendo dito: por conta desses artifícios narrativos, ele não apenas se mostra burro e preconceituoso, mas parece um pouco surdo.
Em termos de linguagem, trata-se do livro menos interessante do autor. Quando, no fim, o romancista vê-se obrigado a explicar o que aconteceu, percebe-se que a própria trama (em geral, o ponto forte de Bernardo Carvalho) o derrotou. E, se é verdade que ele pensou o livro como uma obra política (As iniciais, romance publicado em 1999, parece-me muito mais forte nesse quesito) por conta de sua crítica à internet, só podemos lamentar que essa crítica seja superficial, pois se limita à superficialidade dos discursos e à banalidade das paixões tristes que dominam os "colunistas" de internet e certas pessoas que escrevem em redes sociais.
Como se trata de Bernardo Carvalho, o livro, apesar dos problemas, tem momentos interessantes como este, que me parece explicar aqueles discursos banais: "A língua do futuro dá ao homem o que ele quer ouvir." (p. 53). Temos aí um sentido de "reprodução".
O livro de Ricardo Lísias tem, na verdade, pouquíssimos pontos de contato com Reprodução. A forma como em O livro dos mandarins apresenta-se o empobrecimento da linguagem do seu personagem principal, Paulo, cujo nome vai sofrendo mutações ao sabor do ambiente em que está, é muito mais interessante.
Como é possível parodiar uma linguagem como a dos manuais de autoajuda para executivos sem que o próprio livro se torne desinteressante? Lísias logra fazê-lo, embora o livro decole realmente a partir da segunda parte, quando o protagonista vai para a... África.
O estudante de chinês de Bernardo Carvalho consegue finalmente embarcar para a China e voltar. O executivo de banco criado por Ricardo Lísias, em uma ideia genial do autor, nunca põe os pés naquele país, porém jamais deixa de estar lá. Dessa forma, ele pode escrever e dar conferências, sem constrangimento algum, sobre a língua que não compreende (sua linguagem é curiosamente descuidada, aliás: "Há algum tempo, o doutor coleciona palavras cujo significado sejam inspiradores para a vida corporativa", p. 289) e sobre sua estada nas terras onde nunca pisou de fato, mas são o que move todos os seus passos: esta China é o espírito dos tempos do capitalismo contemporâneo.
Muitos são os passos no romance: Brasil, Reino Unido, Sudão, Egito e, novamente, o Brasil. É curioso que o protagonista, desde a infância, sinta uma dor móvel nas costas, que pode fazê-lo desmaiar nos momentos de maior tensão. Parece-me que Lísias cria uma imagem engraçada da própria mobilidade do capital financeiro, sempre sujeito a crises.
O estrondoso vazio do personagem principal, cujo nome vem sempre de seu entorno (os nomes dos outros personagens também são flutuantes), e que antes sofre a ação do que a movimenta (mesmo a sua volta ao Brasil é involuntária), torna-o a pessoa certa para o momento. Ele volta ao Brasil e seu empreendedorismo ganha novos contornos. É necessário e oportuno seu avassalador vazio para que tudo se reduza à dimensão de negócio. Trata-se do triunfo do neoliberalismo, de que a figura de certo ex-presidente aparece como ícone triunfal: "o seu maior diferencial será a proposta de junção das ideias do sociólogo Fernando Henrique Cardoso com as práticas chinesas contemporâneas. Pois é, parece que tem ainda uma história de massagem antiestresse." (p. 304).
A "massagem" no instituto Confucius, de que não adianto mais nada, se coaduna perfeitamente com a ética deste mundo corporativo: "sem fazer nenhuma operação ilegal, ele se adiantou ao jornalista, observou que de fato havia algo estranho com certas transações do banco em diversas contas offshore e, sem muita cerimônia e absolutamente nenhuma ilegalidade, fez o banco assumir algumas iniciativas de caridade, por ele batizadas de desenvolvimento social" (p. 92). As questões sociais são apropriadas e reduzidas ao marketing, e a literatura, à autoajuda.
Essa máquina de apequenamento e redução para multiplicação do capital conduz à terrível imagem final do livro, que trata a sério o que foi visto com deboche: a construção destas identidades no capitalismo contemporâneo parte da mutilação. O último capítulo faz o leitor rever a primeira parte do livro, que não entrega seus segredos na primeira leitura: a mutilação já estava lá, naquele homem incapaz de amor (vejam a relação com a mãe moribunda e com a secretária), e ela o revela como um fator de produção perfeitamente amoldado àquele ambiente corporativo.
A construção das subjetividades no capitalismo contemporâneo era um dos eixos de As iniciais, de Bernardo Carvalho, mas não no registro satírico de Lísias, embora haja ironia em diversas passagens no livro de 1999, como no discurso, perto do fim deste romance, sobre o fim do capitalismo, que era, a propósito, um título possível para o livro, a que o autor renunciou, se bem me lembro das entrevistas da época, porque as livrarias o guardariam nas estantes de economia...
O discurso, descobre-se, é uma fala de um (mau) ator: "O fim do capitalismo começa aqui. É essa a nossa única contribuição. Estamos na vanguarda da miséria. Saímos na frente para a anunciar ao mundo o que os espera. Somos o início do fim, o começo do caos. E só estamos esperando para contaminar o resto do mundo." (p. 125).
A contaminação, com efeito, é um tema importante nesta obra, e também no âmbito privado dos personagens, por conta da SIDA. Os paralelos entre o particular e o coletivo são muito importantes neste livro, que já anuncia a "virada antropológica" que sua obra teria com Nove noites (2002). Em As iniciais, temos uma personagem antropóloga que acaba por mostrar, de forma reflexiva, como Bernardo Carvalho faz uma espécie literária de etnografia de certa classe social nesse livro, um dos melhores da ficção brasileira contemporânea.
O livro dos mandarins também está nessa categoria. Se o fascismo contemporâneo constrói subjetividades que amam o poder, como imaginava Foucault, temos no personagem de Lísias uma impressionante apresentação desse fascismo, tão mais pertinente por não se limitar à simples paródia de discursos.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Paulo Ferraz, a rua em torno e a poesia sem centro


Ontem, no dia 14, estive na defesa de tese de Fabio Weintraub, O tiro, o freio, o mendigo, o outdoor: representações do espaço urbano na poesia brasileira pós-1990, orientada por Iumna Maria Simon, na FFLCH/USP. Na tese, o poeta e ensaísta discordou desta resenha sobre os dois livros de Paulo Ferraz publicados em 2007.
Como ela não está mais disponível (foi publicada no antigo K Jornal de Crítica, São Paulo, n. 13, junho 2007, p. 7), e houve quem se interessasse em lê-la (e até quem concordasse), achei que talvez não fosse má ideia incluí-la aqui.
Por sinal, em diversos debates sobre poesia a que pude assistir em São Paulo, os livros de Paulo Ferraz estavam no centro. Creio que ele é uma referência importante para os poetas mais jovens desta cidade.


A rua em torno e a poesia sem centro: dois lançamentos de Paulo Ferraz


Simultaneamente, o poeta Paulo Ferraz lançou, em junho de 2007, dois livros: De novo nada e Evidências pedestres (São Paulo: Selo Sebastião Grifo). O primeiro corresponde  a um poema longo; o segundo, a uma coletânea de poesias mais curtas. Apesar de serem estruturalmente diferentes,  parecem pertencer  a um só projeto: uma tentativa de apreensão das experiências urbanas que evoca o soneto "A uma passante" de Baudelaire.
O poema de Baudelaire, central em De novo nada, episódico em Evidências pedestres (por exemplo, “Violão (bossa nova) de rua”, p. 20 a 22; “Veja esta dama”, p. 58 a 59) é muito conhecido: a mulher passa pelo poeta na rua e se vai, fazendo com que ele imagine o amor que poderia ter ocorrido entre ambos – notável exemplo da experiência urbana, segundo Walter Benjamin. Em De novo nada, a mulher multiplica-se em várias figuras femininas. A primeira é a quiromante que diz "Deixa ler sua sorte". Logo após o primeiro verso, o pórtico "SÓ O IMPENSÁVEL É IMPOSSÍVEL".
A imagem feminina também se manifesta em outdoor, em jornais, na balconista suburbana e em referências clássicas, como Antígona (verso 140) e Eurídice (verso 262). Enquanto a quiromante tenta ler a mão, o locutor devaneia a respeito dos assuntos os mais diversos – sociedade de consumo, a mulher, a vanguarda, a língua, a infância – até que, no fim, sem nada entender, ela declara, sentenciosa: "só o impensável é impossível". O locutor fica "sem eira nem beira" e vê alguém dormindo no chão da praça, "trajando/ papel e plástico", com o rosto coberto da imagem da "mulher que estava no outdoor".
Na metamorfose das imagens da mulher, que é a língua e a cidade, Paulo Ferraz não se contenta em repetir a passante baudelairiana e concebe uma atualização consequente e audaz das experiências urbanas. Não se trata de simples paráfrase do poeta francês, ou de uma releitura contemporânea como já fez um poeta como Carlito Azevedo no livro Collapsus linguae (“A uma passante pós-baudelairiana”); trata-se de motivo gerador do discurso poético. O malogro ocorre, contudo, por causa dos problemas de dicção, de intertextualidade e de estrutura mal resolvidos.
A estrutura, em certo sentido, devido à forma da ocorrência de vozes, lembra Eliot (que é destacado na orelha do livro, escrita por Viviana Bosi, e é citado nos versos 300 a 307) e, pela alternância de reminiscência e reflexões, um pouco o “Poema Sujo” de Ferreira Gullar (que é citado nos versos 367 a 369). No entanto, o poeta não consegue disfarçar o caráter episódico da estrutura, com transições gratuitas como a dos versos 296 e 297, e a tentativa forçada de recapitulação a partir do verso 560 – os fios do poema permanecem soltos.
A intertextualidade maníaca, defeito de certa poesia brasileira atual, pesa no lado negativo da balança: Joyce, Drummond, a “Tristeza do Jeca”, Mallarmé e outros surgem muitas vezes de forma gratuita ou ornamental, o que acarreta problemas de dicção – boa parte das diferentes vozes tem um tom sentencioso que soa idêntico e deslocado, mesmo nas falas da quiromante "menos cigana/ que mendiga", embora o problema seja mais frequente nas manifestações em caixa alta – e também de ironias mal resolvidas. Se a referência a "Haroldo, O/ Que Sabe" (a partir do verso 252) é deliciosamente crítica ("Sua Eurídice foi o novo", verso 260), por vezes o poema não consegue ultrapassar o caricatural (versos 219 a 236), o que impede, a meu ver, que as reflexões sobre a arte tenham mais profundidade.
A forma do poema longo acabou por superar o fôlego construtivo do poeta, que se mostra mais feliz nos poemas curtos de Evidências pedestres. Eles, se partem da modernidade inaugurada por Baudelaire (o flâneur), também não se limitam a repetir o modelo oitocentista e logram mostrar-se contemporâneos. Aqui, pode-se ler o mélange adultère de tout – verso do “Epitáfio” de Corbière, que Ferraz cita logo no primeiro poema, cortando porém a palavra adultère, sutilmente legitimando as misturas.
A inspiração em boa parte do livro é plástica: “Basta,/ todavia, ficarmos/ sós para buscar o/ cômodo equilíbrio/ das curvas, o frouxo/ das fibras e, dentes/ à mostra, comermos/ com os cotovelos/ simetricamente/ plantados na mesa.” (“Ainda barrocos”, p. 25) – e o tema da arte é um dos principais, muitas vezes de forma irônica (“Tragédia urbana”, p. 9, “Da utilidade da poesia (e do poeta)”, p. 19, “História literária particular”, p. 40 e 41, o divertido “De uma crítica publicada num suplemento cultural de domingo”, p. 32 a 35) e também de forma séria, como o drummondiano “Canteiro” (p. 18), espécie de Elefante que começa a ser montado a partir do esqueleto, e “Lembra” (p. 36), tributo a Gullar. Poemas líricos de amor e sexo predominam na segunda metade do livro.
Evidências pedestres revela heranças como a de Cabral (“É ou não”, p. 16 e 17, evoca “Dois Parlamentos”) e, às vezes, evoca um Nelson Ascher que não rimasse (“A um salva-vidas amador”, p. 63).
Apesar de esse livro ser formalmente mais bem resolvido, não é o mais interessante: em De novo nada a aposta é mais alta: busca-se fazer um poema sem centro[1], recorrendo a vozes alheias e ao descentramento do sujeito; a técnica do motivo gerador, muito mais frequente em música, também encerra muito interesse.
O descentramento, contudo, ainda não é suficiente, o que atrapalhou a manifestação da alteridade nesta poesia e, por conseguinte, a sua vocação social. Essa vocação é reivindicada também em Evidências pedestres, no entanto, só consegue realmente aparecer em uma agenda negativa, pela ironia contra uma arte alienada ou alienante. Caso interessante dessa ironia ocorre em “De uma crítica publicada num suplemento cultural de domingo”: encena-se a pobreza como obra de arte, providenciada, porém, a “completa assepsia de todos/ logo que se sai da sala” (p. 35).
Deve-se esperar mais de Paulo Ferraz: sob a imagem da mulher do outdoor, fim de De novo nada, nenhum sem-teto ainda consegue despertar.



[1] Dessa forma interpreto o “nada” do título, talvez a contrapelo do autor, que escreveu: “Mas num mundo em que novidades surgem a cada instante (e não raro desistoricizadas, o que não se confunde com o que escrevia acima, pois não adianta pôr cadáveres nas ruas), num mundo em que o que vai por fora (design) é mais importante que o vai dentro (conteúdo), num mundo que cada vez mais se constitui de abstrações, de imagens que não mimetizam o real, de fantasmagorias históricas, de superfícies espelhadas, num mundo em que tudo é comercializável, em que tudo existe para acabar numa tabela de preços, apregoar que a arte é um nada é uma forma de resistência, de lutar com palavras e imagens.” (http://denovonada.zip.net/arch2005-11-20_2005-11-26.html)
 


quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Desarquivando o Brasil LXXIII: Estudante, operário e assassinado: audiência sobre Olavo Hanssen




Na próxima segunda-feira, dia 18 de novembro, a partir das 9 horas, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" realizará uma audiência pública sobre o caso de Olavo Hanssen.
Trata-se de um dos casos mais emblemáticos da ditadura militar, embora ele não esteja entre as vítimas de maior fama, em razão de suas circunstâncias e desdobramentos: preso em São Paulo por distribuir panfletos considerados subversivos (ele tinha outras passagens pela polícia, todas pela mesma razão), na data significativa do Primeiro de Maio (já escrevi como esse dia era considerado "sensível" pela repressão: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/05/desarquivando-o-brasil-lviii-o-primeiro.html) foi torturado e envenenado; seu corpo, abandonado perto do Museu do Ipiranga. Seu caso gerou dois procedimentos internacionais contra o Estado brasileiro, e em um deles a ditadura foi desmascarada no exterior.
Em 25 de maio deste ano, a Comissão fez um belo ato em sua memória, que relatei nesta nota: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/05/ato-em-memoria-de-olavo-hanssen-e.html


Antes de ser operário na indústria química, ele foi estudante da Politécnica da USP. Seu nome, escrito erradamente (expliquei esse problema na nota que acabei de citar), está incluído no memorial às vítimas da ditadura militar, com menos de um ano e já quase em ruínas, que a USP ergueu em recôndito canto da Praça do Relógio. Ao lado, foto que tirei no mês de setembro deste ano.
Hanssen foi um jovem da periferia, com brilhante inteligência, que logrou em 1960 passar para engenharia de minas na USP. Sua irmã, Clarice Hanssen, em depoimento dado ao biógrafo Murilo leal (Olavo Hanssen: uma vida em desafio. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013), destacou a alegria da família por esse sucesso. No entanto, depois de dois anos de curso, o Partido Operário Revolucionário Trotskista, a que ele pertencia, decidiu pela proletarização de seus quadros. ele foi para a indústria química e para a política sindical.
Esse Partido, uma das pequenas organizações clandestinas de esquerda da época, não fazia luta armada. Hanssen só foi preso por distribuir panfletos, a primeira vez em 1963, quando ainda estava na USP. Como em 1970, os papéis referiam-se a Cuba.
A repressão à liberdade política e a censura já existiam antes do golpe militar, o que é às vezes ignorado. No governo Médici, porém, é que ele foi torturado e morto, e justamente quando o governo federal emitia um comunicado oficial de que não existia tortura no Brasil... A ideia negacionista de que somente "perigosos terroristas armados" é que foram mortos "em legítimo combate" pelas forças de repressão política encontra um poderoso desmentido no seu caso.
Seu caso serviu também para mostrar o conluio entre Executivo e Judiciário nos crimes contra a humanidade: o inquérito correspondente, aberto depois de denúncias de sindicatos, do MDB e de Sobral Pinto, foi arquivado sob o pretexto absurdo de que Hanssen poderia ter-se suicidado (a lista de ferimentos indicados no laudo necroscópico não deixa dúvidas sobre as sevícias).
No entanto, o caso foi marcante também por ter sido um dos que desmascarou no plano internacional a fachada democrática que a ditadura militar tentava ostentar. O assassinato foi noticiado também no exterior, e gerou uma pioneira condenação contra o Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Ainda restam indagações sobre sua morte: o que precisamente lhe ocorreu depois que foi retirado, em vida, do DOPS/SP? Foi levado diretamente ao Hospital do Exército? Quando lhe foi injetado veneno? Por que decidiram abandonar seu corpo?
Seu caso é exemplar também de nossa ignorância sobre o passador recente: até este ano, praticamente todas as publicações (inclusive as poucas que fiz) escreviam seu sobrenome com apenas um s, a partir de um erro do próprio DOPS, como se vê no documento ao lado, disponível no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo, em que o chefe do Arquivo Geral do DOPS afirma não ter foto alguma de Olavo Hanssen, assassinado no ano anterior.  Em P.S., a mentira oficial: "o epigrafado suicidou-se o ano passado".
Contra o apagamento do nome, da imagem e da história, será realizada mais esta audiência.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Desarquivando o Brasil LXXII: Imagens de Sobral Pinto

Na semana passada, vi o filme "Sobral - o homem que não tinha preço", de Paula Fiuza, sua neta, realizado com apoio da Ordem dos Advogados do Brasil. Ele não é muito bom, inclusive tecnicamente (a música, desnecessária, barulhenta e intrusiva, às vezes atrapalha a compreensão dos depoimentos e, principalmente, da narração), mas deve ser visto, pois não há outro documentário sobre o grande advogado, e ele traz cenas interessantes da época da ditadura militar.
O livro começa com Fernando Augusto Fernandes que, em sua pesquisa de mestrado, descobriu arquivos de áudio de sustentações de Sobral Pinto na Justiça Militar. A dissertação pode ser lida aqui: http://www.uff.br/dcp/wp-content/uploads/2011/03/Tese-de-2011-Fernando-Augusto-Fernandes.pdf  O livro, que ainda não li, Voz humana: a defesa perante os tribunais da república, inclui disco com sustentações orais na Justiça Militar: http://www.youtube.com/watch?v=yE8rEba9reA
Pode-se ouvir Sobral Pinto, em 1976, denunciando as "confissões" obtidas por meio de tortura. Deve-se lembrar que essa prática criminosa (mesmo para o direito de exceção da ditadura militar, embora fosse prática rotineira) era realizada até mesmo nas auditorias militares onde, muito pelo contrário, deveriam ser denunciadas.
Como quem não deve não teme, a escuta desses arquivos foi proibida, e o advogado e pesquisador Fernando Augusto Fernandes tenta levantar essa proibição na Justiça.
O filme começa, pois, muito apropriadamente expondo não só as barreiras institucionais que persistem, após a democratização do país, contra o direito à memória, como a difícil missão de fazer a justiça no Brasil - em qualquer época. As dificuldades específicas trazidas pelo Estado Novo e a ditadura militar são ressaltadas pelo filme, e Paula Fiuza, nesta entrevista, justifica seu enfoque: http://www.conjur.com.br/2013-nov-02/entrevista-paula-fiuza-diretora-sobral-homem-nao-preco
Sobral Pinto foi favorável ao golpe de 1964, mas, logo depois, passou a opor-se à ditadura. Antes da OAB e do IAB, o jurista denunciou o regime. Um dos documentos destacados pelo filme, e que eu não conhecia, foi esta carta de Sobral Pinto a Armando Falcão de 3 de abril de 1974: http://dhnet.org.br/memoria/mercia/ditadura/advogados/sobralpinto_armandofalcao.htm
Ele passa um sermão no Ministro e lhe escreve para colocar "a autoridade de seu alto cargo ao serviço da manutenção eficiente e intacta da própria legislação da assim chamada Revolução Brasileira":
[...] os textos legais por mim invocados são da autoria do Governo Militar, que dirige o país em nome da assim denominada Revolução Brasileira. Não são textos decretados pelo liberalismo político, hoje tão menosprezados e ridicularizado, como se fosse uma ideologia decrépita e criminosa. Foram decretados por aqueles que se apresentam ao nosso povo como os salvadores de sua civilização.
Tal era a hipocrisia do regime. O que distinguiria o regime brasileiro das ditaduras comunistas era apenas manter a propriedade privada e a autonomia do Judiciário para julgar conflitos de direito privado.
Em cenas de arquivo, vemos Sobral Pinto com sua grande verve, seja no escritório, seja nas ruas (especialmente no comício pelas Diretas Já na Candelária, em que foi aplaudidíssimo), e Prestes a falar de seu antigo advogado. Outros clientes rememoram-no, como Hélio Fernandes e Rogério Duarte. Filhos e netos dão seu testemunho, bem como nomes que o conheceram e que o filme falha completamente em apresentar. Modesto da Silveira, que trabalhou com Sobral Pinto, aparece diversas vezes, mas o público que o desconhece não saberá que ele foi o advogado que mais defendeu presos políticos durante a ditadura militar. O filme nada diz. Rosa Cardoso também está presente, mas em nenhum momento se explica seu papel na defesa de presos políticos, muito menos se indica que ela é membro da Comissão Nacional da Verdade.
Até mesmo a prisão de Sobral Pinto durante a ditadura militar, habilmente contada por meio da montagem de depoimento do próprio advogado com outro, feito para o filme, de José Carlos Baleeiro, deixa de apresentar com mais pormenores o contexto das prisões, que foram generalizadas, atingindo civis e militares, comunistas, não-comunistas e até mesmo anticomunistas.


Na notícia do Diário da Noite, de 16 de dezembro de 1968, Pery Bevilacqua e Mourão Filho, que obviamente não eram nada comunistas, mas se opuseram à linha dura, foram destacados na manchete. No texto, logo depois deles, está Sobral Pinto. A matéria, com sua eclética lista de nomes, ilustra o estrago feito já nos primeiros dias do Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro: Juscelino Kubitscheck e Ênio Silveira, Darcy Ribeiro e Carlos Lacerda...
O jornal pode ser encontrado no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).
A opção por dar um peso maior à família (um sintoma do "homem cordial" segundo Sérgio Buarque de Holanda) sacrificou sua vida pública. O filme tem muitas lacunas no tocante ao engajamento político de Sobral Pinto. A neta e diretora, em outra declaração, diz que preferiu concentrar-se na "figura humana", a que a biografia feita por "um brasilianista americano" não teria feito jus: http://divirta-se.uai.com.br/app/noticia/cinema/2013/10/31/noticia_cinema,147993/documentario-sobre-vida-do-jurista-sobral-pinto-tem-pre-estreia.shtml).
A referência ligeira é injusta com o trabalho de John W. F. Dulles (1913-2008), que escreveu sobre Carlos Lacerda, Castelo Branco, Getúlio Vargas e deixou uma biografia em dois volumes de Sobral Pinto. O primeiro, Sobral Pinto: A consciência do Brasil, foi publicado pela Nova Fronteira em 2001, em tradução de Flávia Mendonça Araripe. O segundo, Resisting Brazil's Military Regime: an account of the battles of Sobral Pinto (University of Texas Press, 2001), continua, infelizmente, inédito em português.
Dulles fez uma crônica, tão detalhada quanto sua pesquisa, da vida do grande jurista; não há, porém, muita análise histórica; para James Green, o livro é um tanto tedioso; em outra resenha, Frank D. McCann criticou o excesso de detalhes e a falta de uma tese central. No entanto, trata-se de uma fonte muito valiosa sobre a época. O autor, por exemplo, não oculta que, embora Sobral Pinto tenha sido um grandioso defensor da liberdade, aceitando diversos clientes de que discordava politicamente (nesse sentido, foi uma das maiores encarnações da ética da advocacia no Brasil), ele tinha problemas com a igualdade. Ele permaneceu até o fim adversário da igualdade de gênero. No seu apostolado pela família católica, combateu o divórcio e chegou a ser contra o voto feminino: http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes_ate102011/R03754.pdf
Seu conservadorismo era também um elitismo, baseado no discurso da competência. Em 1987, ele recebeu, com Ives Gandra da Silva Martins e Ronaldo Caiado, dois conservadores, e Pietro Maria Bardi o prêmio Homem de Visão da antiga revista Visão. Aproveitou para renovar seus ataques à Teologia da Libertação, criticar as mulheres, que não entendiam que sua grandeza estava na "modéstia", e afirmou que um morador de favela poderia ser sério e honesto, mas não poderia ser vice-presidente da Assembleia Constituinte.
Em dezembro de 1988, afirmou que a nova Constituição não poderia ser efetivada, pois precisava de muitas leis complementares. Além disso, nela predominariam más disposições, como a descrição de família, no artigo 226 como uma união estável entre homem e mulher, sem exigir o casamento formal (p. 209). Ele poderia ter imaginado que o conceito mais tarde abrangeria uniões de pessoas do mesmo sexo?
Outro problema do filme de Paula Fiuza é não apresentar suficientemente a heterogeneidade dos opositores à ditadura; nesse amplo leque ideológico, Sobral Pinto estava à direita da maior parte da oposição. A esse respeito, destaco aqui um documento de espionagem do DEOPS/SP, que pode ser lido no acervo do APESP,  sobre conferência dada pelo jurista em 8 de junho de 1965, na sede do Grêmio da Politécnica da USP.

O título era bastante provocador para a época: "Ordem jurídica e sobrevivência da democracia". O evento fora promovido pelo Centro Dom Vital de São Paulo. Segundo a espionagem, ele discursou sobre sua defesa de Prestes e de Harry Berger (um dos casos mais graves de tortura na ditadura de Vargas, e para quem Sobral Pinto teve a famosa ideia de usar a lei de proteção dos animais) durante a Era Vargas, reafirmou que era católico e reclamou que o "cristianismo autêntico" não era aplicado desde a "revolta de Lutero".
Sobre os IPMs, disse que eram "vergonhosos" e que seriam conduzidos "muitas vezes" "até com ignorância". Certamente.
Mais adiante, ele teria entrado em conflito com uma esposa de general que havia respondido a inquérito penal militar. O relatório não informa a identidade. Mantenho a ortografia da época e os erros do original:

A espôsa de um general que respondeu a IPM, disse que alí tinha ido porque admirava Sobral e perguntou-lhe se o presidente que alí estava, era um usurpador do poder. Sobral respondeu que não, pois, juridicamente havia um pode que era o Congresso, que elegeu o atual presidente. A senhora, revidando, disse que o Congresso tinha sido castrado e era um carneiro dizendo mé e que foi um ato ilegal a tirada do poder de Goulart. Sobral confirmou que foi favorável ao afastamento de Goulart, pelo que foi exposto e que não considerava uma revolução, pois, esta teria que ter um programa, como a revolução comunista o tem. A mesma senhora disse que o Congresso estava constantemente sendo desrespeitado. Sobral disse que não, pois, tôdas as decisões foram acatadas, com dificuldades, mas, foram. a senhora disse que o caso de arraes era uma prova de desrespeito. Sobral respondeu que não, pois, a decisão foi respeitada. A senhora retrucou dizendo que o governo queria prendê-lo outra vez. Sobral disse que, o que o govêrno não queria era uma manobra, dizendo que arraes chefiava um movimento subversivo e seria chamado para depor e aí prenderiam-no novamente, mas que isto era dos coroneis e êle não sabia até onde os coroneis exerciam o govêrno. Vivamente inflamada, a senhora disse que estava decepcionada e que Sobral era um cínico, gerando no ambiente, profundo silêncio. O presidente do Grêmio interrompeu a palestra, advertindo a senhora do general e o Prof. Sobral Pinto, levantando-se, disse que não debateria com mais ninguém que o ofendesse daquela forma e que não devolvia o insulto por ser homem educado.
A história mostraria, pouco depois, que Sobral Pinto estava enganado. Em 27 de outubro do mesmo ano, foi editado o segundo Ato Institucional, que extinguiu todos os partidos políticos existentes, impondo o bipartidarismo, e acabou com as eleições diretas para presidente da república.
Voltando ao filme, quero destacar duas belas imagens: em cena de arquivo, João Nogueira canta a capella o samba "Vovô Sobral", por ele composto para Sobral Pinto, que ouve comovido e agradecido. Mais comovido ainda, um homem não identificado atrás do compositor chora silenciosamente.
João Nogueira conta que se inspirou no discurso da Candelária, quando Sobral Pinto explicou o princípio da soberania popular presente no parágrafo primeiro do primeiro artigo da Constituição: "Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido". O músico, provavelmente como a maior parte dos milhares que aplaudiram o jurista naquele momento, não conhecia essa previsão constitucional. De fato, com as práticas da ditadura militar, era difícil até suspeitar da existência formal desse princípio.
Creio que não só esse momento, mas sua trajetória de décadas como "defensor da liberdade em geral", na expressão de Prestes, ainda correspondem a uma lição para o país.
Significativamente, outro dos momentos mais bonitos não é protagonizado por Sobral Pinto, mas por seu ensinamento: um antigo funcionário do escritório do advogado, Didier Mesquita, reconstitui o caminho que o jurista fazia para chegar ao trabalho e conta que muitos o cumprimentavam, pois era bastante conhecido. Uma dessas pessoas, um camelô, pergunta sobre o que se trata a gravação e, ao ouvir o nome de Sobral Pinto, lembra-se dele como quem defendeu Prestes; afirma também que era um grande brasileiro. E fala que, para a democracia, é necessário haver pessoas que defendam os direitos.
Essa ideia logo me evocou a noção de cooriginariedade dos direitos humanos e democracia, que Habermas desenvolve e já estava implícita em Kant; trata-se, cito Ricardo Terra, de "a soberania popular pressupondo os direitos humanos e vice-versa, uma não podendo pretender o primado sobre a outra" (Kant & o direito, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 58).
É provável que o camelô não conhecesse a filosofia do direito de nenhum desses autores (trata-se de uma leitura muito especializada, a maior parte dos advogados certamente também não os conhece), e que o engajamento de Sobral Pinto e a experiência histórica tenham sido os fatores que o levaram a essa conclusão. Em inspirar direitos com e para o povo, temos a marca do grande jurista.

domingo, 3 de novembro de 2013

Desarquivando o Brasil LXXI: Pilar Calveiro e o biopoder ontem e hoje

Pilar Calveiro lançou seu Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina no Brasil. Janaína Teles chamou-a para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", no dia 30, e para a USP no dia seguinte. Pude ver apenas a audiência na ALESP, mas perdi a apresentação que Teles fez da autora argentina, que foi sequestrada pela repressão e internada em campos de concentração. Ela conseguiu sobreviver ao terror e foi para o México, onde reside e leciona.
O fato de este livro, tão importante, ser publicado no Brasil apenas em 2013 seria outro sinal de nosso atraso (também acadêmico) no campo da justiça de transição? Eu o conheci pela tradução francesa, de 2006, por Isabelle Taudière, publicada por La Fabrique. Depois consegui um reimpressão de 2008 da edição argentina, lançada em 1998, ou seja, três anos depois de a tese de Calveiro ter sido defendida no México.
Por sinal, esse livro não abarca toda a tese: a análise crítica que ela fez das organizações de esquerda só apareceu posteriormente, em Política y/o violencia, de 2005.

Martina Franco, no prefácio da tradução francesa, aponta que o livro não causou imediatamente grande repercussão na Argentina, apesar de sua novidade em teorizar o que havia sido contado apenas na condição de memória; no entanto, "A obra é, doravante, um clássico a que pesquisadores e atores do passado se referem inevitavelmente."
O livro tem como principal fundamento teórico a obra de Foucault: o poder concentracionário cria novos sujeitos, torna-os em corpos obedientes: "el objetivo era obtener información útil, pero además, quebrar al individuo, romper al militante anulando en él toda línea de fuga o resistencia, modelando un nuevo sujeto adecuado a la dinámica del campo, un cuerpo sumiso que se dejara incorporar a la maquinaria" (p. 69). Trata-se do biopoder.
Na audiência da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, onde tirei estas más fotos, ela apresentou seu livro e dimensionou o sistema repressivo na Argentina, que contou com mais de trezentos campos de concentração. Na mesa, os professores Janaína Teles e Marcus Orione, o deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão, Rosa Cardoso, membro da Comissão Nacional da Verdade, e Alberto Albiero. Um relato da audiência pode ser lido aqui, com breves trechos do livro: http://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=339307http://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=339307 Deixo nesta nota apenas minhas impressões.
A autora explicou quem eram as vítimas (em geral, militantes, mas também vítimas casuais, o que foi fundamental para disseminar o terror) e os responsáveis pelo sistema de repressão ("homens médios" capazes de realizar "tudo aquilo", pois eram burocratas, e o sistema diluía as responsabilidades - o que lembra Hannah Arendt). Caracterizou o poder concentracionário como disciplinar no tocante à sociedade, assassino em relação à discordância, e burocrático, em razão da máquina que o movia (sobre esse poder, sugiro ler também este artigo: http://www.revistas.unam.mx/index.php/rap/article/view/28360). E explicou o "universo binário" da repressão, que dividia o país em amigos e inimigos. O que os militares pretendiam era a "normalização da sociedade", no sentido de Foucault.
Calveiro ressaltou que a "questão central" é que o problema persiste, com um direito de exceção dirigido contra os pobres e os excluídos; ademais, as duas "supostas guerras" de hoje, contra o terrorismo e contra o crime organizado, utilizam os desaparecimentos forçados: "É por isso que reverter esse processo é assunto de todos".
Trata-se do assunto do livro mais recente de Calveiro, Violencias de Estado: La guerra antiterrorista y la guerra contra el crimen como medios de controle global (Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2012), em que ela trata de campos como o de Guantánamo, que integra uma rede global que inclui prisões clandestinas, combinando meios legais e ilegais de repressão: "La existencia de centros de detención clandestinos gestionados por los servicios de inteligencia de distintos Estados, la política de desaparición forzada de personas -tanto en instituciones legales como ilegales- son prueba de esta conexión de circuitos legales y ilegales en el funcionamiento de la gran red represiva global." (p. 160). Ainda estou lendo esta importante obra, que aborda a atualidade dos desaparecimentos forçados.

O deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão, perguntou-lhe sobre a importância de Federico García Lorca em sua vida, e ela respondeu que cresceu com os relatos da Guerra Civil Espanhola, e que sentia que o escritor lhe era próximo em sentimento. No campo de concentração, quando pôde voltar a caminhar, andava recitando poemas do Romanceiro Gitano.
Na segunda foto, vê-se no telão Maria Amélia Teles, que é um dos coordenadores da Comissão. Ela falou das diferenças entre Argentina e Brasil no campo da justiça de transição, lembrando que, aqui, a comissão da verdade veio mais tardiamente. Também lembrou da cooperação entre as ditaduras na América do Sul por meio da Operação Condor. Calveiro respondeu que ainda se sabe pouco sobre a participação brasileira na Operação.
Ela terminou lembrando que a "desumanização do outro" na América Latina vem dos tempos coloniais, e que "a colônia é provavelmente o modelo mais binário que existe", com a construção das categorias colonizador e índios (que, na verdade, são um "monte de outros"); "é como a matriz do autoritarismo". Esse binarismo serve de pretexto para o Estado destruir o "outro subversivo", e isso deve ser considerado "inaceitável"; "o Estado não deve selecionar quem pode viver". Trata-se de um problema a afetar hoje os imigrantes ilegais e, na América Latina, os povos indígenas, os pobres, os moradores de periferias.
Creio ser muito pertinente a reflexão de Calveiro, que aponta as continuidades da repressão do passado recente com a de hoje; ela mesma repetiu, na entrevista que deu a Renan Quinalha e a Tatiane Merlino logo depois da audiência, que "Sempre me chamou a atenção a afirmação de Hannah Arendt segundo a qual 'o poder concentracionário chegou para ficar'."
Sugiro, por sinal, a leitura da entrevista, em que revisita a história de seu marido, que desapareceu no Brasil: http://www.viomundo.com.br/denuncias/pilar-calveiro.html
A participação brasileira na repressão continental ainda precisa ser desarquivada.

Como tenho o original e a tradução francesa, não comprei ainda a edição brasileira do livro de Calveiro; espero que a tradução seja boa. É verdade que a editora já lançou traduções plagiadas, mas tal não pode ser o caso deste livro, que ainda não tinha sido publicado em português; (re)vejam a matéria do jornal Opção (http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/plagio-mancha-boa-reputacao-da-editora-boitempo) e o blogue de Denise Bottmann, que foi plagiada (http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2012/07/you-kiddin-rite-parte-iii.html) e, por isso, acusada (!) pela editora de querer "holofotes": http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/search/label/boitempo