O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 3 de novembro de 2013

Desarquivando o Brasil LXXI: Pilar Calveiro e o biopoder ontem e hoje

Pilar Calveiro lançou seu Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina no Brasil. Janaína Teles chamou-a para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", no dia 30, e para a USP no dia seguinte. Pude ver apenas a audiência na ALESP, mas perdi a apresentação que Teles fez da autora argentina, que foi sequestrada pela repressão e internada em campos de concentração. Ela conseguiu sobreviver ao terror e foi para o México, onde reside e leciona.
O fato de este livro, tão importante, ser publicado no Brasil apenas em 2013 seria outro sinal de nosso atraso (também acadêmico) no campo da justiça de transição? Eu o conheci pela tradução francesa, de 2006, por Isabelle Taudière, publicada por La Fabrique. Depois consegui um reimpressão de 2008 da edição argentina, lançada em 1998, ou seja, três anos depois de a tese de Calveiro ter sido defendida no México.
Por sinal, esse livro não abarca toda a tese: a análise crítica que ela fez das organizações de esquerda só apareceu posteriormente, em Política y/o violencia, de 2005.

Martina Franco, no prefácio da tradução francesa, aponta que o livro não causou imediatamente grande repercussão na Argentina, apesar de sua novidade em teorizar o que havia sido contado apenas na condição de memória; no entanto, "A obra é, doravante, um clássico a que pesquisadores e atores do passado se referem inevitavelmente."
O livro tem como principal fundamento teórico a obra de Foucault: o poder concentracionário cria novos sujeitos, torna-os em corpos obedientes: "el objetivo era obtener información útil, pero además, quebrar al individuo, romper al militante anulando en él toda línea de fuga o resistencia, modelando un nuevo sujeto adecuado a la dinámica del campo, un cuerpo sumiso que se dejara incorporar a la maquinaria" (p. 69). Trata-se do biopoder.
Na audiência da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, onde tirei estas más fotos, ela apresentou seu livro e dimensionou o sistema repressivo na Argentina, que contou com mais de trezentos campos de concentração. Na mesa, os professores Janaína Teles e Marcus Orione, o deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão, Rosa Cardoso, membro da Comissão Nacional da Verdade, e Alberto Albiero. Um relato da audiência pode ser lido aqui, com breves trechos do livro: http://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=339307http://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=339307 Deixo nesta nota apenas minhas impressões.
A autora explicou quem eram as vítimas (em geral, militantes, mas também vítimas casuais, o que foi fundamental para disseminar o terror) e os responsáveis pelo sistema de repressão ("homens médios" capazes de realizar "tudo aquilo", pois eram burocratas, e o sistema diluía as responsabilidades - o que lembra Hannah Arendt). Caracterizou o poder concentracionário como disciplinar no tocante à sociedade, assassino em relação à discordância, e burocrático, em razão da máquina que o movia (sobre esse poder, sugiro ler também este artigo: http://www.revistas.unam.mx/index.php/rap/article/view/28360). E explicou o "universo binário" da repressão, que dividia o país em amigos e inimigos. O que os militares pretendiam era a "normalização da sociedade", no sentido de Foucault.
Calveiro ressaltou que a "questão central" é que o problema persiste, com um direito de exceção dirigido contra os pobres e os excluídos; ademais, as duas "supostas guerras" de hoje, contra o terrorismo e contra o crime organizado, utilizam os desaparecimentos forçados: "É por isso que reverter esse processo é assunto de todos".
Trata-se do assunto do livro mais recente de Calveiro, Violencias de Estado: La guerra antiterrorista y la guerra contra el crimen como medios de controle global (Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2012), em que ela trata de campos como o de Guantánamo, que integra uma rede global que inclui prisões clandestinas, combinando meios legais e ilegais de repressão: "La existencia de centros de detención clandestinos gestionados por los servicios de inteligencia de distintos Estados, la política de desaparición forzada de personas -tanto en instituciones legales como ilegales- son prueba de esta conexión de circuitos legales y ilegales en el funcionamiento de la gran red represiva global." (p. 160). Ainda estou lendo esta importante obra, que aborda a atualidade dos desaparecimentos forçados.

O deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da Comissão, perguntou-lhe sobre a importância de Federico García Lorca em sua vida, e ela respondeu que cresceu com os relatos da Guerra Civil Espanhola, e que sentia que o escritor lhe era próximo em sentimento. No campo de concentração, quando pôde voltar a caminhar, andava recitando poemas do Romanceiro Gitano.
Na segunda foto, vê-se no telão Maria Amélia Teles, que é um dos coordenadores da Comissão. Ela falou das diferenças entre Argentina e Brasil no campo da justiça de transição, lembrando que, aqui, a comissão da verdade veio mais tardiamente. Também lembrou da cooperação entre as ditaduras na América do Sul por meio da Operação Condor. Calveiro respondeu que ainda se sabe pouco sobre a participação brasileira na Operação.
Ela terminou lembrando que a "desumanização do outro" na América Latina vem dos tempos coloniais, e que "a colônia é provavelmente o modelo mais binário que existe", com a construção das categorias colonizador e índios (que, na verdade, são um "monte de outros"); "é como a matriz do autoritarismo". Esse binarismo serve de pretexto para o Estado destruir o "outro subversivo", e isso deve ser considerado "inaceitável"; "o Estado não deve selecionar quem pode viver". Trata-se de um problema a afetar hoje os imigrantes ilegais e, na América Latina, os povos indígenas, os pobres, os moradores de periferias.
Creio ser muito pertinente a reflexão de Calveiro, que aponta as continuidades da repressão do passado recente com a de hoje; ela mesma repetiu, na entrevista que deu a Renan Quinalha e a Tatiane Merlino logo depois da audiência, que "Sempre me chamou a atenção a afirmação de Hannah Arendt segundo a qual 'o poder concentracionário chegou para ficar'."
Sugiro, por sinal, a leitura da entrevista, em que revisita a história de seu marido, que desapareceu no Brasil: http://www.viomundo.com.br/denuncias/pilar-calveiro.html
A participação brasileira na repressão continental ainda precisa ser desarquivada.

Como tenho o original e a tradução francesa, não comprei ainda a edição brasileira do livro de Calveiro; espero que a tradução seja boa. É verdade que a editora já lançou traduções plagiadas, mas tal não pode ser o caso deste livro, que ainda não tinha sido publicado em português; (re)vejam a matéria do jornal Opção (http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/plagio-mancha-boa-reputacao-da-editora-boitempo) e o blogue de Denise Bottmann, que foi plagiada (http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/2012/07/you-kiddin-rite-parte-iii.html) e, por isso, acusada (!) pela editora de querer "holofotes": http://naogostodeplagio.blogspot.com.br/search/label/boitempo

Um comentário:

  1. Que bom saber que "Poder y desaparición" de Pilar Calveiro foi lançado no Brasil, fico sempre na expectativa do Brasil se espelhar um pouco na Argentina em relação aos juízos dos genocidas e avanços em Direitos Humanos. Li esse livro muito recentemente em espanhol, vale mesmo!

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