O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

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segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Pequena retrospectiva de 2023 à luz (ou às trevas) do ano de 2019

Vi, na véspera do final de 2023, que alguns perfis no Twitter criticaram o deputado federal filho do ex-ocupante da presidência por ele ter desafixado um tweet com índices econômicos de 31 de dezembro de 2022  isto é, do final da gestão anterior, dia em que o próprio Jair Bolsonaro não estava mais no país, pois se evadiu para os Estados Unidos: aparentemente, nem ele mesmo suportava a própria presidência.

O governo Lula melhorou todos aqueles números, porém aquele parlamentar, que não é renomado pela capacidade de análise econômica, certamente retirou a informação não para ocultar aqueles dados de seus eleitores (o que seria, é claro, um procedimento indigno para um homem público), mas para poder meditar melhor sobre o assunto.

No entanto, creio que a direita tem suas razões para julgar que o primeiro ano de mandato do presidente Lula foi pior do que o de Jair Bolsonaro. Afinal, o país melhorou. Para entendê-las, esbocei esta breve comparação. Nem sempre as datas são paralelas; busco sugerir para cada acontecimento um choque ou até mesmo uma convergência, digamos, de espírito no intervalo de quatro anos.



1º de janeiro de 2023: Lula, por meio de decretos, reativou o Fundo Amazônia, revogou a possibilidade de segregação educacional de crianças, jovens e adultos com deficiência criada pela chamada "Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida" de Bolsonaro; estabeleceu diretrizes mais severas para o controle de armas (o registro de armas cairia 79% até o fim do ano), ampliou a composição do Conselho Deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente; extinguiu o programa de Bolsonaro que poderia levar ao estímulo do garimpo ilegal, o "Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala"; por medida provisória, criou auxílio complementar para os beneficiários do Auxílio Brasil e do Auxílio Gás, entre outras medidas, que incluíram a revogação dos processos de privatização de estatais como a Petrobras e os Correios.

1º de janeiro de 2019: O primeiro decreto de Jair Bolsonaro foi estrategicamente direcionado contra os trabalhadores: ele reduziu o valor previsto para o salário mínimo (Temer havia fixado em mil e seis reais para 2019, Bolsonaro baixou para 998 reais). Ele acabou com a política de valorização do salário mínimo, retomada apenas com a volta do presidente Lula. A medida provisória de reorganização dos ministérios jogava a competência para a demarcação das terras indígenas e dos quilombolas para uma órgão sem expertise nem simpatia pelo tema, o Ministério da Agricultura (pressionado, o governo teve de voltar atrás e devolver essas competências para o Ministério da Justiça, embora o Ministro da pasta, Sérgio Moro, dissesse que não tinha "interesse" nesses assuntos: de fato, sua gestão seria considerada "péssima" pelas lideranças indígenas), e acabava com as políticas de diversidade no recém-criado ministério heteróclito da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. 


8 de janeiro de 2023: Tentativa malograda de golpe de bolsonaristas que ficaram acampados semanas em Brasília diante do quartel sobre a amabilidade do Exército, e puderam vandalizar as sedes dos três Poderes sob a leniência das forças de segurança, cuja imagem mais emblemática é a da bunda golpista defecando no Supremo Tribunal Federal. Já há condenados pelos atos criminosos. A CPI sobre o tema concluiu pela responsabilidade de Jair Bolsonaro, mas o Judiciário não decidiu ainda sobre o ex-presidente, hoje inelegível por causa da prática de ilícitos eleitorais.

8 de janeiro de 2019: Golpe efetuado do governo bolsonarista, aliado do secular latifúndio (hoje apelidado de "agronegócio"), contra os quilombolas e os trabalhadores do campo: foi determinada a paralisação da reforma agrária e da demarcação das terras de quilombolas, em evidente descumprimento da Constituição da República: vejam os artigos 184 a 191 e o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Um exemplo de inconstitucionalidade alçada ao patamar de política de governo.


10 de janeiro de 2023: A Polícia Federal encontrou o que chamou de "minuta de golpe" na casa de Anderson Torres, ex-ministro da justiça de Jair Bolsonaro e secretário de segurança pública do Distrito Federal - segurança que falhou ostensivamente no 8 de janeiro.  A minuta previa a declaração de "estado de defesa" no Tribunal Superior Eleitoral para reverter os resultados das eleições de 2022.

10 de janeiro de 2019: Matéria do G1: "Flávio Bolsonaro não comparece ao MP-RJ para depor sobre relatório do Coaf", caso que trata da "movimentação financeira atípica de funcionários do seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj)".


14 de janeiro de 2023: Prisão do ex-ministro da justiça de Jair Bolsonaro e ex-secretário de segurança do Distrito Federal Anderson Torres, em razão das investigações da tentativa de golpe em 8 de janeiro. Ele ficaria 117 dias preso.

14 de janeiro de 2019: O governo italiano telefonou para Jair Bolsonaro para agradecer pela entrega de Cesare Battisti à Itália, onde ele passou a cumprir pena de prisão perpétua. O governo Lula havia negado sua extradição, considerando-o refugiado político.


16 de janeiro de 2023: A Ministra dos Povos Originários, Sonia Guajajara, anunciou a revogação da instrução normativa que autorizava (inconstitucionalmente, aliás) a exploração de madeira em terras indígenas, editada pelo governo de Jair Bolsonaro. A criação do Ministério dos Povos Originários, inédito no Brasil, foi uma promessa de campanha do presidente Lula.

16 de janeiro de 2019: O movimento indígena da Paraíba entregou representação ao Ministério Público Federal denunciando ações anti-indígenas do governo de Jair Bolsonaro, notadamente o esvaziamento da competência da Funai e a atribuição das demarcações indígenas à pasta da ruralista Tereza Cristina (reeleita senadora pelo Mato Grosso do Sul em 2022), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. No Maranhão, fazendeiros invadiram terras do povo Awa Guajá, desrespeitando decisão judicial contra os invasores.


24 de janeiro de 2023: 1777 dias da execução da vereadora da cidade do Rio de Janeiro Marielle Franco e do motorista Anderson Pedro Gomes.

24 de janeiro de 2019: O deputado federal reeleito Jean Wyllys (PSOL-RJ) anunciou que não tomaria posse na Câmara para seu novo mandato em razão das ameaças de morte que sua família estava sofrendo. Ele partiu para o exterior e só voltou ao país com o novo governo Lula. Cito sua carta da época, em que mencionou o silêncio da Polícia Federal mesmo depois de ele ter apelado à Organização dos Estados Americanos pedindo proteção:

mesmo diante da Medida Cautelar que me foi concedida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, reconhecendo que estou sob risco iminente de morte, o Estado brasileiro se calou; no recurso, não chegou a dizer sequer que sofro preconceito, e colocaram a palavra homofobia entre aspas, como se a homofobia que mata centenas de LGBTs no Brasil por ano fosse uma invenção minha. Da polícia federal brasileira, para os inúmeros protocolos de denúncias que fiz, recebi o silêncio.


27 de março de 2023: Começou o especial na TV Brasil sobre o golpe de 1964.

27 de março de 2019: O Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, afirmou perante a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados que não houve golpe em 1964. Era um homem sensível, a dizer coisas doces nos locais mais apropriados: como se sabe, o Congresso Nacional chegou a ser fechado durante a ditadura militar e vários parlamentares foram cassados.


30 de março de 2023: Reconstituição da Comissão de Anistia, que havia sido extinta em dezembro de 2022 pelo governo de Jair Bolsonaro.

30 de março de 2019: Ato unificado Ditadura Nunca Mais, em São Paulo, contra as políticas pró-ditadura do governo Bolsonaro e pela transformação do antigo DOI-Codi de São Paulo em local de memória. Cito Adriano Diogo, que foi presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva": “Não é admissível uma delegacia de polícia funcionar num prédio que abrigou o DOI-Codi. É como se uma usina de gás alemã funcionasse até hoje em um campo de concentração”.


31 de março de 2023: As Forças Armadas, sob a determinação do presidente Lula, não celebram mais o golpe de Estado (de 1º de abril de 1964).

31 de março de 2019: Com autorização de Jair Bolsonaro, as Forças Armadas celebraram a ditadura militar, libertando a nostalgia autoritária represada da direita brasileira

Em São Paulo, a sociedade civil realizou no Parque Ibirapuera a I Caminhada do Silêncio, em memória dos desaparecidos da ditadura e dos da democracia. Eu fiz o cartaz abaixo de Olavo Hanssen, torturado e assassinado pelo DOPS/SP em 1970. Na ligação, pode-se ler a narrativa que escrevi sobre o ato.



7 de abril de 2023:  Fechamento do espaço aéreo pela Força Aérea Brasileira sobre a terra indígena dos Yanomâmi por causa dos garimpeiros ilegais que invadiram  envenenaram com mercúrio e devastaram a região. A medida foi antecipada: ela só ocorreria em março. Meses depois, os militares deixariam a região e os garimpeiros voltariam.

7 de abril de 2019: O músico Evaldo Rosa dos Santos foi executado com 257 tiros por soldados do Exército quando passava com seu carro pela Estrada do Camboatá para ir a um chá de bebê. Seu sogro, Sérgio Araújo, foi atingido também. O catador Luciano Macedo, ao tentar ajudá-lo, foi alvejado e morreu dias depois. No mesmo dia, o Comando Militar do Leste emite nota chamando as vítimas de "assaltantes".


4 de abril de 2023: Suspensão, por meio de portaria do Ministro da Educação, Camilo Santana, do cronograma nacional de implementação do novo ensino médio.

8 de abril de 2019: Demissão, por inapetência administrativa, do ministro da educação Ricardo Vélez, colombiano naturalizado brasileiro, que havia chamado os brasileiros de "canibais" e louvado a ditadura militar. O filho vereador do então ocupante da presidência havia tentado negar o óbvio da crise da pasta, mesmo para os modestos padrões administrativos do bolsonarismo, mas os fatos desmentiram-no rapidamente:



30 de abril de 2019: O ministro da educação, Abraham Weintraub, um caso raro de professor da Unifesp sem doutorado, depois de ter arbitrariamente dito que bloquearia 30% do orçamento da UnB, da UFF e da UFBA devido a alguma "balbúrdia", determinou sem aviso às instituições o contingenciamento de 30% do orçamento de TODOS os institutos e universidades federais.


23 a 28 de abril de 2023: Realização do Acampamento Terra Livre, ocupação dos povos indígenas brasileiros em Brasília, que ocorre anualmente para que possam apresentar suas reivindicações às sedes dos Poderes. Pela primeira vez na história, um presidente da república apareceu no ATL: Lula foi ao encerramento no dia 28 e assinou a demarcação de seis Terras Indígenas.

11 de abril de 2019: Jair Bolsonaro assinou mais um decreto de ataque à democracia participativa, de número 9759, com a ementa eufêmica "Extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal.", que acabou com colegiados, inclusive o Grupo de Trabalho Araguaia e o Grupo de Trabalho de Perus, que buscou identificar ossadas de desaparecidos políticos ocultadas no Cemitério de Perus, em São Paulo. Nesses casos, ele teve que recuar.


3 de maio de 2023: Prisão do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid. Segundo a Polícia Federal, ele teria buscado suporte legal para que o então ocupante da presidência, derrotado nas eleições, desse um golpe de Estado.

3 de maio de 2019: O Ministério Público Federal propôs ação para a nulidade da Portaria do Ministério de Direitos Humanos que descaracterizou a Comissão de Anistia, nomeando membros contrários à anistia política: "vê-se que 07 membros nomeados para a nova composição do Conselho da Comissão de Anistia são agentes de carreiras ou têm histórico e postura públicos que são INCOMPATÍVEIS com a função do órgão, seja por manifesta contrariedade à política pública de reparação das vítimas de Estado ou devido à atuação judicial contrária à política de reparação, ou ainda por se posicionarem contrários à instauração da Comissão Nacional da Verdade, seja porque integram as forças coercitivas do Estado".


8 de maio de 2023: O educador Daniel Cara, em mais uma manifestação contra o Novo Ensino Médio, afirma ao Instituto Humanitas Usininos que: 

Ninguém que entende verdadeiramente de educação, que conhece a realidade escolar, defende a reforma do Ensino Médio, que estabeleceu o NEM. Portanto, professores, formadores de professores, pesquisadores, estudantes e suas entidades e movimentos querem a revogação do NEM. 

Do outro lado, há fundações e associações empresariais, secretarias estaduais de educação e, infelizmente, o Ministério da Educação do governo Lula.

Em 16 de maio, publicou-se Nota Técnica assinada por ABECS (Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais), Campanha Nacional pelo Direito à Educação, CEDES (Centro de Estudos Educação e Sociedade) e REPU (Rede Escola Pública e Universidade) sobre a consulta "homologatória" que o ministério da educação abriu sobre o NEM. Outras entidades somar-se-iam à oposição ao NEM, cuja discussão no Congresso Nacional acabou sendo postergada para 2024.

7 de maio de 2019: O ministro da educação de Bolsonaro, Abraham Weintraub teria diversas brigas com a ortografia durante o mandato ("paralização", "suspenção", "imprecionante" viraram destaques no léxico bolsonarista). Não era apenas essa a característica que o qualificava como intelectual bolsonarista, contudo. Em audiência pública no Senador, o professor da Unifesp revelou certa ignorância literária confundindo Kafka com cafta. A Livraria Leonardo da Vinci, do Rio de Janeiro, dias depois, mandou-lhe um "pedaço" da novela A metamorfose, de Kafka, para que o ministro pudesse apreciá-la. Aparentemente, em 22 de julho do mesmo ano, ele ainda não havia apreciado a iguaria, irritando-se porque, no Pará, tentaram lhe explicar a diferença entre o escritor e o prato culinário.

9 de maio de 2019: Suspensão de bolsas de pesquisa da Capes. Em ataque nunca antes visto à ciência e à educação brasileiras, até o final do mandato de Bolsonaro seriam milhares de bolsas suspensas: ainda não vi um levantamento detalhado das perdas sofridas nesse período.

Maio de 2019: O grande Alberto Pimenta lançou pelas Edições do Saguão, de Lisboa, o livro Zombo, com o gentil poema sobre o "Bolso ignaro". Ele não mencionou o ministro brasileiro da educação, porém.


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10 de junho de 2023: "Homem negro amarrado por PMs em São Paulo tem liberdade negada: Tribunal de Justiça de SP negou o pedido de habeas corpus ao homem negro que foi carregado com as mãos e pés amarrados por policiais militares paulistas".

10 de junho de 2019: Decreto presidencial de enfraquecimento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, ligado ao ministério ocupado por Damares Alves (hoje senadora), acabando com os cargos dos peritos. Esse imenso retrocesso capitaneado por Bolsonaro e Damares levou o Ministério Público Federal a publicar a seguinte nota pública: no dia 13 seguinte, assinada pelo Subprocurador-geral da República Domingos Sávio Dresch da Silveira:

O desmonte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, por meio de alterações em sua composição e funcionamento - as quais, na prática, destroem as condições de desenvolver as atividades essenciais para a prevenção e o combate à tortura, com a exoneração dos onze peritos do Mecanismo Nacional, o remanejamento de cargos e a transformação do trabalho dos peritos em "prestação de serviço público relevante, não remunerada" -, constitui dramático retrocesso no processo de afirmação e efetivação dos direitos humanos no Brasil. A existência de um órgão autônomo com atribuição legal para realizar a fiscalização das condições de privação de liberdade, composto por peritos tecnicamente qualificados, com perfil interdisciplinar, tal qual a composição do Mecanismo, concretiza a promessa constitucional de recusa e vedação à tortura e alinha o Brasil aos países com política pública relevante de defesa e promoção dos direitos humanos.

Em 28 de março de 2022 o Supremo Tribunal Federal julgaria essas medidas inconstitucionais.


30 de junho de 2023: O Tribunal Superior Eleitoral julgou Jair Bolsonaro inelegível por 8 anos em razão de abuso de poder, em razão de ter chamado embaixadores estrangeiros no Brasil, em 2022, para proferir um insólito discurso de ataque ao sistema eleitoral brasileiro. O episódio representou não só um embaraço diplomático, mas um momento inquietante do processo eleitoral, ensombrecido pela interferência dos militares em 2018 e 2022.

30 de junho de 2019: Carlos Bolsonaro, vereador da cidade do Rio de Janeiro e filho do então presidente, criticou o general Augusto Heleno, então chefe do Grupo de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, por causa da "prisão na Espanha do sargento Manoel Silva Rodrigues, acusado de ter traficado 39 quilos para a Europa em avião da Força Aérea Brasileira (FAB) que fazia parte da comitiva que acompanhava o presidente em viagem rumo ao Japão". Foi o episódio de tráfico de cocaína por militar em avião da comitiva do presidente Jair Bolsonaro, descoberto pelas autoridades espanholas, não por militares brasileiros: outro embaraço diplomático.


28 de julho de 2023: Divulga-se que Jair Bolsonaro recebeu mais de 17 milhões via PIX entre janeiro e julho e, depois, que aportou aproximadamente a mesma quantia para fundos de renda fixa, quando ainda era presidente da república, e os advogados do ex-presidente publicaram nota afirmando que a divulgação "consiste em insólita, inaceitável e criminosa violação de sigilo bancário, espécie, da qual é gênero, o direito à intimidade, protegido pela Constituição Federal no capítulo das garantias individuais do cidadão".

28 de julho de 2019: "Jair Bolsonaro, atacou em 29 de julho de 2019 Felipe Santa Cruz, presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Indignado porque a OAB conseguiu impedir a violação do sigilo profissional dos advogados, necessário para o direito de defesa, ele afirmou que, se Santa Cruz 'quisesse saber como é que o pai dele desapareceu durante o período militar, conto pra ele. ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele.'" O desaparecido político era Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, de quem Bolsonaro já havia dito que ele teria sumido bêbado em acidente de carnaval... 


3 de agosto de 2023. Matéria do Brasil De Fato: "Em 12 meses, desmatamento sobe 16,5% no Cerrado e cai 7,4% na Amazônia, mostra Inpe". O desmatamento no cerrado, em sua maioria, estaria ocorrendo de forma legal por causa da cumplicidade dos governos locais.

2 de agosto de 2019: Demissão do diretor do INPE: Bolsonaro, sem evidentemente nenhuma capacidade técnica para fazê-lo, queria desmentir os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) sobre desmatamento, e Ricardo Galvão negou-se a submeter os dados científicos aos interesses devastadores da extrema-direita. O ocupante da presidência acusou-o sem fundamento de estar a serviço de "alguma ONG" e exonerou-o. O ministro da ciência e tecnologia, Marcos Pontes (hoje senador por São Paulo), ficou contra o cientista e a favor da exoneração. Ricardo Galvão passou a presidir o CNPq no governo Lula.


10 de agosto de 2023: O senador Ciro Nogueira (PP-PI) declarou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, "completamente ultrapassada" por supostamente querer voltar às "cavernas" e pressionou pela saída do governo porque ela, tentando implementar medidas contra o desmatamento ilegal, paralisaria o soi-disant "agronegócio" brasileiro. Certamente o senador equivocava-se, pois um setor econômico que precisasse da ilegalidade para sobreviver deveria ser considerado uma questão de crime organizado e não deveria receber, como recebe, subsídios bilionários governamentais. A Ministra continua no governo.

10 de agosto de 2019: O tristemente inesquecível Dia do Fogo: fazendeiros fizeram queimadas em torno da BR-163, no Pará e, cito o relatório do Centro Indigenista Missionário (Cimi), "os focos de incêndio nas cidades de Novo Progresso e Altamira cresceram 300% e 743%, respectivamente, de um dia para o outro".

O relatório Violência contra os povos indígenas do Brasil - Dados de 2019 acrescentava:

Cinco dias antes, o jornal Folha do Progresso havia publicado uma conversa com um dos produtores que planejavam a ação e sentiam-se, segundo o jornal, “amparadas pelas palavras do presidente Bolsonaro”. “Precisamos mostrar para o presidente que queremos trabalhar e [o] único jeito [é] derrubando. Para formar e limpar nossas pastagens é com fogo”, explicou a liderança não identificada.

O governo Bolsonaro conseguiu intensificar suas políticas na área ambiental e superou a marca do Dia do Fogo em 22 de agosto de 2022, com 3.358 focos de incêndio em 24 horas. Não à toa, seu ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, que já havia sido secretário da mesma área para o governo do Estado de São Paulo na gestão de Geraldo Alckmin (hoje vice-presidente da República), logrou ser eleito em 2022 deputado federal por esse Estado.


11 de agosto de 2023: Operação da Polícia Federal contra a "suposta tentativa, capitaneada por militares ligados a Bolsonaro de vender ilegalmente presentes dados ao governo por delegações estrangeiras", envolvendo o advogado Frederico Wassef e os militares Mauro Cid, ex-ajudante de Ordens de Jair Bolsonaro, e o pai dele, o general Mauro Cesar Lorena Cid. Tratava-se da apuração de "venda ilegal de joias dadas de presente por delegações internacionais". O caso foi revelado por André Borges, que estava no Estado de S.Paulo e foi depois demitido do jornal. As joias presenteadas pela Arábia Saudita a Jair e Michelle Bolsonaro e não declaradas na alfândega chegavam ao valor de 16 milhões e meio.

11 de agosto de 2019: O deputado federal pelo Estado de São Paulo Carlos Bolsonaro (reeleito em 2022, hoje, como o pai, no PL) fez esta importante advertência: "As [sic] vezes tem-se a errada impressão que terrorismo é apenas quando ocorre algum ataque. Brasil tem que abrir seus olhos para grupos que lavem dinheiro aqui, que aqui tenham livre trânsito, fáceis maneiras de conseguir passaporte brasileiro e etc."



14 de agosto de 2023: Matéria do Congresso em Foco: "Abin acha ligação entre garimpo ilegal no Pará e atos golpistas de 8 de janeiro": "De acordo com o documento, os empresários Roberto Katsuda e Enric Lauriano estão diretamente associados ao garimpo ilegal no estado. Também têm vínculos com políticos e com uma rede de apoiadores da prática ilícita e do ex-presidente Jair Bolsonaro na região.".

4 de outubro de 2019Demissão de Bruno Pereira da coordenação-geral de índios isolados, depois de ter atuado com muito êxito na maior destruição de equipamentos do garimpo ilegal naquele ano. O indigenista falou na ameaça de "aniquilamento dos povos indígenas, da nossa diversidade. São mais de 200, mais de 300 povos indígenas e 400 terras indígenas que terão seus territórios disputados. Eu não vejo um cenário positivo".  A Funai, com Bolsonaro, passou a ser presidida por Marcelo Xavier, nome indicado pela bancada do latifúndio. Bruno Pereira acabaria sendo assassinado por sua atuação em prol dos indígenas, fora da Funai, em 5 de junho de 2022 com o jornalista Dom Phillips.


17 de setembro de 2023: Estreia da peça "A Casa", na Ocupação Mulheres Mirabal, em Porto Alegre. O espetáculo foi feito a partir da dramaturgia de Angélica Freitas, em parceria com a diretora Nina Picoli e a atriz Janaína Kremer. A peça discute "questões sociais e direito à moradia". É despiciendo lembrar que essas questões aparecem também na conhecida obra poética de Angélica, que é completamente incompatível com o bolsonarismo. O compositor e cantor Vitor Ramil (além de escritor), em seu espetáculo musical "Avenida Angélica", que estreou em 2019, ressaltou as questões da cidade na poesia da autora.

17 de setembro de 2019: Um dos deputados estaduais bolsonaristas de Santa Catarina, não interessado em questões sociais e direito à moradia (aparentemente já resolvidos naquele Estado que o reelegeu em 2022), mas em visões alternativas sobre racismo (alternativas em relação ao direito brasileiro), bem como sobre diversidade e violência doméstica, propôs moção de repúdio (não votada) contra a poesia de Angélica Freitas, que estaria "ferindo os valores cristãos"


18 de setembro de 2023: Primeiro réu condenado, por 17 anos, pela tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro. O Supremo Tribunal Federal julgou-o. As notícias destacam o "histórico de violência" do bolsonarista Aécio Lucio Costa Pereira.

25 de setembro de 2019: O Superior Tribunal de Justiça manteve o trancamento da ação penal do Riocentro (a tentativa de atentado terrorista do Exército em uma festividade do Primeiro de Maio durante o governo de Figueiredo, que seria atribuída à esquerda e justificaria o fim da abertura política). O relator, Ministro Rogerio Schietti Cruz, votou pela reabertura, mas sua posição, e do Ministério Público Federal, foi derrotada


21 de setembro de 2023: O Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a tese legitimadora de genocídio e de remoções forçadas contra os povos indígenas, o marco temporal. Os ministros indicados por Jair Bolsonaro, Nunes Marques e André Mendonça, foram votos felizmente vencidos: afinal, eram apenas dois, já que Lula venceu em 2022. 

21 de setembro de 2019: Raoni, a histórica liderança Caiapó, criticou Jair Bolsonaro e afirmou que ele não tinha um "coração bom" e queria "destruir os indígenas".


17 de outubro de 2023: Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Atos de 8 de Janeiro de 2023, presidida pelo deputado federal Arthur Maia e relatada pela senadora Eliziane Gama. Ela foi instaurada a partir de requerimento de certo deputado federal bolsonarista que apoiou os manifestantes contra o resultado das eleições, mas se revelou prejudicial para os golpistas. Nas conclusões, lemos:

O Oito de Janeiro foi limitado. Não eram milhares os seguidores radicalizados. A violência das invasões provocou revolta. A chama do evento cedo se apagou. Não conseguiu se propagar para além da Praça dos Três Poderes. Não durou mais do que três horas.
De pouco adiantou a omissão premeditada e deliberada da cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal.
De pouco valeram a conivência e a leniência de setores das  Forças Armadas.
Pouco acrescentou o treinamento, a preparação, a articulação dos manifestantes, de seus instigadores e financiadores.
O Oito de Janeiro não deu certo.
E o feitiço se virou contra o feiticeiro.
Em lugar de extrair, da insurreição, um salvo-conduto, Jair Bolsonaro nela evidenciou a sua culpa e o seu dolo. Suas estratégias, antes difusas, ganharam visibilidade e coerência; seus instrumentos tornaram-se evidentes; sua participação — como principal autor intelectual da longa obra, em vários capítulos urdida — saiu do silêncio e das sombras e veio para a luz esclarecedora do dia.

13 de outubro de 2019: Matéria do Fantástico: "Exclusivo: mensagens mostram a fúria de garimpeiros por fechamento de garimpo ilegal". Cito Daniel Camargos no Repórter Brasil sobre o contexto político da ascensão do garimpo ilegal: "Articulados e organizados, a pressão realizada pelos garimpeiros é ouvida pelo governo e encontra eco no discurso do presidente Jair Bolsonaro."


31 de outubro de 2023: Nova condenação de Jair Bolsonaro pelo TSE, com oito anos de inelegibilidade e multa, por, entre outros ilícitos, usar o ato cívico do 7 de setembro para sua campanha eleitoral. O candidato a vice-presidente, general Braga Neto, também foi condenado.

31 de outubro de 2019: O deputado federal Eduardo Bolsonaro defendeu, em entrevista a um canal do youtube de um dos jornalistas apoiadores do governo do pai dele, Leda Nagle, a edição de um novo AI-5 contra a esquerda, se ela agisse como a do Chile daquele momento (isto é, indo às ruas e sendo baleada e torturada).


1º de novembro de 2023: Depois de Lula ter dito que não editaria a medida, ele assinou o decreto de Garantia de Lei e Ordem nos seguintes portos e aeroportos: "Porto do Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro; Porto de Santos, Estado de São Paulo;  Porto de Itaguaí, Estado do Rio de Janeiro; Aeroporto Internacional Tom Jobim, Estado do Rio de Janeiro; e Aeroporto Internacional de São Paulo/Guarulhos, Estado de São Paulo". A medida teria a finalidade de "fortalecimento do combate ao tráfico de drogas e de armas e a outras condutas ilícitas", com duração até 3 de maio de 2024.

1º de novembro de 2019: Assassinato de Paulo Paulino Guajajara. Ele pertencia ao grupo dos Guardiões da Floresta e foi alvejado por invasores da Terra Indígena Arariboia, no sul do Maranhão. Laércio Guajajara estava com ele, foi alvejado, porém sobreviveu.


13 de novembro de 2023: Depois de Israel ter deixado os cidadãos brasileiros de fora de várias listas de repatriação, apesar da pressão do Itamaraty, finalmente os brasileiros que estavam na Faixa de Gaza conseguiram chegar ao Brasil. Lula recebeu-os com estas palavras: "se o Hamas cometeu um ato de terrorismo e fez o que fez, o estado de Israel também está cometendo vários atos de terrorismo ao não levar em conta que as crianças não estão em guerra, as mulheres não estão em guerra” (cito a matéria de Gabriel Andrade para a Carta Capital). Contando com os brasileiros em Israel e na Cisjordânia, foi a maior repatriação da história brasileira, com aproximadamente 1.400 pessoas.

13 de novembro de 2019: Jair Bolsonaro reuniu-se com o presidente da China, Xi Jinping, e, em breve discurso que acenava com a abertura do mercado e dos recursos brasileiros para os chineses (em contraste com seus discursos eleitoreiros de 2018), afirmou alucinatoriamente que "O Brasil é exemplo mundial ao conciliar preservação do meio ambiente e produção agropecuária".

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30 de novembro de 2013: O Superior Tribunal de Justiça decide, no caso de Luiz Eduardo Merlino, assassinado no DOI-Codi em 1971, que os herdeiros do coronel Brilhante Ustra (antigo comandante do centro de repressão) não devem indenizar a família do jornalista. Com isso, o STJ deixou de aplicar a própria jurisprudência, bem como feriu as obrigações internacionais do Estado brasileiro determinadas pela sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil (Guerrilha do Araguaia).

26 de novembro de 2019:Matéria de Felipe Betim em El País: "Paulo Guedes repete ameaça de AI-5 e reforça investida radical do Governo Bolsonaro: Num momento em que presidente insiste em aumentar excludente de ilicitude para proteger excessos de agentes militares, ministro da Economia traz de volta fantasma de decreto da ditadura".


12 de dezembro de 2023: Data da Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Ela foi aprovada sem debates, em acordo entre petistas e bolsonaristas. Escreveram Adilson Paes de Souza e Gabriel Feltran, a partir do projeto aprovado, que a lei está muito próxima do decreto-lei 667 de 2 de julho de 1969 e "mimetiza a organização policial do período mais pesado da repressão militar" e as torna "Livres de controle, interno ou externo" (mesmo das secretarias estaduais de segurança; as ouvidorias perderam qualquer ilusão de autonomia), permitindo-lhes criar "órgãos semelhantes ao Dops". O presidente Lula fez vários vetos, o que melhorou o monstrengo legislativo, mas não resolve a questão, pois o que deveria estar sendo discutido é a desmilitarização da polícia, como recomendou, por exemplo, a Comissão Nacional da Verdade. E os vetos: serão mantidos ou derrubados pelo Congresso? A tramitação segue. Dois dias depois, vetos de Lula à lei do marco temporal foram derrubados com auxílio (ou sabotagem, para quem considerar que o governo era realmente contrário à lei) do próprio Ministro da Agricultura, Carlos Fávaro.

16 de dezembro de 2019: O  Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura, em razão do enfraquecimento do Mecanismo Nacional feito por Bolsonaro e Damares, condenou as políticas do governo. Cito o relatório do Subcomitê (SPT):

o SPT considera que as reformas atuais são contrárias ao OPCAT [ Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura] e não fortalecem o Sistema Nacional de Prevenção do Estado-Parte, como alegado pelas autoridades nacionais; pelo contrário, enfraquecem o papel do Mecanismo Preventivo Nacional a um ponto em que se corre o risco de que o mesmo se torne praticamente inoperante, devido aos muitos obstáculos que enfrenta agora. Antes da reforma, a política de prevenção da tortura era insatisfatória no sentido de que o sistema de MNPs [Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura] não havia sido estabelecido em todas as partes do país, algo que deveria ter sido alcançado até 2008. Além disso, as mudanças atuais significam que os MNPs ainda não estabelecidos em muitos dos estados do Brasil podem seguir um modelo - o proposto pela atual reforma - que os tornaria incapazes de operar de acordo com o OPCAT, colocando o Brasil em grave violação de suas obrigações internacionais.


20 de dezembro de 2023: "CGU abre processo contra Weintraub por abandono de cargo em universidade". O ex-ministro da educação de Jair Bolsonaro e candidato não eleito à Câmara dos Deputados em 2022 não teria mais aparecido na Unifesp para exercer a docência.

11 de dezembro de 2019: "Ministro da Educação reafirma que há plantações de maconha nas universidades: Oposição acusa ministro de sensacionalismo e de falta de projeto; Weintraub disse que está promovendo uma revolução no ensino". A declaração absurda ocorreu na Câmara dos Deputados.  O então ministro colheu o ensejo para repetir a fake news bolsonarista, homofóbica e transfóbica do kit gay


21 de dezembro de 2023: Publicação da Emenda Constitucional nº 132, a da reforma tributária. Há décadas uma iniciativa dessa magnitude era discutida, mas foi este governo, com Fernando Haddad à frente do Ministério da Fazenda, que logrou fazê-la, apesar (ou por causa) de várias e severas críticas, deve-se lembrar, de economistas de esquerda. 

Dezembro de 2019: Conforme informou a Revista Piauí em matéria de Thais Bilenky e Marcella Ramos, "A offshore aberta por Guedes [Ministro da Economia de Bolsonaro] tinha em dezembro de 2019 38,5 milhões de reais – ou 50 milhões de reais em dezembro de 2020, considerando apenas a valorização cambial." O governo Bolsonaro e o presidente da Câmara, que já era Arthur Lira, acabaram desistindo, em 2021, de cobrar o imposto por lucros obtidos por donos de offshores. A matéria, "Uma economia milionária (para o ministro)" referia-se aos célebres Pandora Papers, que suscitaram um consórcio internacional de jornalismo investigativo para analisar esses documentos vazados de paraísos fiscais, que incluíam Paulo Guedes e vários outros nomes, como o presidente Macri, da Argentina.


22 de dezembro de 2023Decreto de regras para indulto natalino que exclui do benefício, entre outros casos, os condenados pela tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro. De fato, é perigoso para todo o país deixar soltos por aí pessoas que tentaram acabar com a democracia e enforcar ministros em praça pública.

24 de dezembro de 2019: Publicação do decreto presidencial de indulto de natal com previsões especiais "aos agentes públicos que compõem o sistema nacional de segurança pública" e "aos militares das Forças Armadas, em operações de Garantia da Lei e da Ordem, conforme o disposto no art. 142 da Constituição e na Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, que tenham sido condenados por crime na hipótese de excesso culposo". Leonel Radde, policial e hoje deputado estadual pelo PT-RS, foi um dos que considerou a medida um "estímulo ao mau policial". Curiosamente, Bolsonaro havia declarado durante a campanha, marcado pelo populismo punitivista, que acabaria com o indulto.


28 de dezembro de 2023: O Congresso Nacional promulgou a lei inconstitucional e anticonvencional do marco temporal, que havia sido vetada parcialmente pelo presidente Lula, e cujo conteúdo havia sido declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. O marco temporal, como já expliquei, é uma tese de legitimação de genocídio e de remoções forçadas, que o Congresso Nacional passa a homenagear, em afronta aos padrões mais elementares de direitos humanos. 

28 de dezembro de 2019: Nenhuma terra indígena havia sido demarcada pelo governo de Jair Bolsonaro. Ele terminaria o governo da mesma forma, em frontal violação ao artigo 232 da Constituição da República.


31 de dezembro de 2023: Sobre o direito à memória e à verdade: o ano terminou sem a recriação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, extinta por Jair Bolsonaro em 15 de dezembro de 2022.


quinta-feira, 6 de julho de 2023

Desarquivando o Brasil CXCV: Zé Celso e os territórios do teatro e da liberdade

O homem de teatro morreu hoje, e o que posso dizer sobre ele é que, sempre que precisávamos de Zé Celso, José Celso Martinez Corrêa, ele estava lá.
Anos atrás, quando estava em São Paulo a maior ocupação urbana da América Latina, e ela estava sob ameaça de uma ação de reintegração de posse, Zé Celso apareceu para dar solidariedade. Fabio Weintraub fez o convite para ele se apresentar na Ocupação Prestes Maia e publicou fotos desse momento. O Oficina fez lá, em 20 de fevereiro de 2007, uma apresentação baseada em Canudos, com Zé Celso no papel de Antônio Conselheiro, na analogia entre a luta pela terra na peça e na luta pela moradia na cidade. No mesmo dia, o grande geógrafo Aziz Ab'Saber (um apoiador de primeira hora da ocupação e de sua biblioteca, organizada por Severino Manoel de Souza) falou sobre Canudos:

Naquele momento, pensei que a concepção de teatro de Zé Celso passava pela noção de territorialidade, o que lhe permitia participar de forma tão pertinente dos debates sobre o meio urbano e a habitação, e de compreender o tipo de espaço que é o Teatro Oficina - o que era mais uma razão para lutar por ele e pela obra de Lina Bo Bardi. A configuração do Oficina, com o palco como rua e o público naquelas arquibancadas, tantas vezes convocado a delas descer (e quantas vezes os artistas nelas sobem), parece-me acentuar o caráter político do teatro, não só pelos textos encenados, mas pelo próprio espaço da encenação, do rito.
Canudos, por sinal, foi um dos três maiores espetáculos que vi em teatro (salvo o teatro de ópera, que é outro gênero) na vida, e os outros dois não eram brasileiros.
Em outro momento em que pedimos ajuda a Zé Celso foi o lançamento em São Paulo de uma campanha que foi realizada nos idos de 5 de abril de 2014 em prol das terras e direitos indígenas, "Índio É Nós", terminaria com uma mesa com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl e a demógrafa e antropóloga Marta Azevedo. Elas não precisam de apresentação, claro. Eu fiz a mediação.
Kehl teria feito a última fala: ela aproveitou para convidar para o lançamento do livro de memórias de Augusto Boal e aproveitou para "reverenciar" Zé Celso, que estava assistindo. Ele levantou-se e falou, de improviso, entre outras coisas, que "O Shakespeare fala de ser ou não ser, o que é maravilhoso. Mas o Oswald fala de tupy or not tupy no sentido do corpo indígena, que todos humanos têm muito".
Ele tinha 77 anos. Disse que passou a ver o terreno do teatro Oficina como tekohá, mencionou a concepção revolucionária de Lina Bo Bardi e o conflito com Sílvio Santos, e a razão de insistir na luta: "Não é para mim. Eu não podia deixar que [...] aquela terra fechasse".
Marcelo Zelic passou por trás de Zé Celso para falar com Maria Rita Kehl. Logo depois, Zé Celso fez outra surpresa e terminou a fala. Depois disso, chamei-o de "xamã do teatro brasileiro", lembre que, dia 19, faríamos a "Marcha para refundação da cidade de Piratininga" com o pessoal Teatro do Oficina e chamei David Karai Popygua (o mesmo que, nove anos depois, faria o duplo indígena de Peri na ópera O Guarani, de Carlos Gomes), que chamou para os atos do seu povo em 17 e 24 de abril.
Por causa da campanha, nós queríamos em São Paulo fazer um ato com os Guaranis do Jaraguá no 19 de abril e chamamos algumas companhias de teatro para participar. A única que aceitou foi a maior, a mais antiga e a mais jovem de todas com que falamos, o Oficina, por causa do comprometimento de Zé Celso com as causas indígenas. Se bem me lembro, foi ele que deu a ideia de que o ato fosse uma "refundação" da "cidade de Piratininga".
Saímos do Vão do MASP (depois eu leria um ficcionista contemporâneo escrevendo em nome próprio, fora dos livros, que "lugar de índio não é na Paulista"; os Guaranis já fizeram VÁRIOS atos lá), com Letícia Coura puxando com sua forte voz "Tupi or not Tupi" de Surubim Feliciano da Paixão, com uma estrofe nova escrita por Fabio Weintraub, que era um dos organizadores da campanha.
Descemos a Consolação, paramos no Cemitério para reverenciar Oswald de Andrade, fomos até o Parque Augusta, que estava sendo ameaçado de destruição pelo capital imobiliário. A mobilização para conservá-lo durou alguns anos e foi vitoriosa. Lembro de David identificando, dentro do Parque, árvores da Floresta Atlântica.
Boa parte do pessoal ficou lá, onde havia uma programação própria da campanha pelo Parque. Os que restaram seguiram até o Bexiga e o Oficina. João Baptista Lago fez um vídeo com Zé Celso e os outros artistas do Oficina: https://www.youtube.com/watch?v=9MAnqDrIIpM. A performance incluiu os Choros 10 de Villa-Lobos e cantos antropofágicos.
Zé Celso estava bem, cantou e dançou. Também nesse momento víamos sua adesão à causa indígena 
pela questão da luta territorial.
Em 2014, vi sua peça Walmor y Cacilda - O RoboGolpe. Cinquenta anos depois do golpe que derrubou João Goulart, ele via e encenava a atualidade do autoritarismo e a resistência da cultura. Escrevi uma nota naquela ocasião, destacando a questão das terras indígenas:

Zé Celso, sempre antenado com o presente, inclui os índios desde o início da peça. Para ele, e isso é explicitado no "poema primal" que lê perto do final da peça (levanta-se nesse momento; é impactante, pois estava em cadeira de rodas até então), o núcleo do golpe é o "direito absoluto de propriedade": em nome dele, e contra as reformas da base, foi dado o golpe, em nome dele os índios são espoliados de suas terras, e o próprio Oficina está sendo ameaçado (há décadas) pelo grupo de Silvio Santos.

Já no início da peça (no vídeo, depois dos 28 minutos), os atores declamaram "Sem reintegração de posse/ A terra é de Oxóssi". Contra os "assassinos da mata selvagem, nossa mãe geratriz".

Em 2017, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) autorizou que prosseguisse o processo de autorização da construção das torres do Sílvio Santos - um destombamento, de fato. Outro dia mesmo escrevi sobre OUTRO destombamento na região, o que parece que se tornou uma especialidade dos soi-disant órgãos de defesa do patrimônio em São Paulo.
Naquele ano, o Oficina estava remontando O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. Em 1967, Zé Celso foi o primeiro a montar essa peça. Como escrevi na época, tanto naquele momento quando na remontagem, com o próprio Renato Borghi voltando meio século depois ao papel de Abelardo I, Oswald era encenado depois de um golpe de Estado. Por causa de seu teatro, o Oficina foi considerado subversivo e foi destacado em panfleto do Ministério da Educação, o conhecido "Como eles agem". Segundo o documento, "é o teatro também utilizado como poderosa arma ideológica e de dissolução dos bons costumes"; mencionam-se os exemplos de O, Calcutá e Hair, e o Oficina como um dos grupos teatrais "acobertados sob o rótulo de 'Arte'", eles "movimentam-se no sentido de disseminar a ideologia comunista através de suas peças":





A peça referida é Na selva das cidades, de Brecht, que o grupo encenou com direção de Zé Celso já em 1969. O documento está no Arquivo Nacional.
A encenação, segundo artigo de Patricia Morales Bertucci, era crítica da ditadura justamente por meio da  apropriação dos materiais urbanos:

[...] foi uma intervenção no espaço simbólico do bairro do Bixiga, pois a arquiteta Lina Bo Bardi se apropriou dos objetos abandonados pelos antigos moradores dos cortiços desocupados pelo Estado, dos restos das demolições e do material de construção da Ligação Leste-Oeste no entorno do Teatro Oficina. Com isso, o grupo transformou a materialidade urbana em linguagem, o que considero como uma forma artística crítica de oposição simbólica da dominação do espaço pela ditadura

Tratava-se de restos produzidos pelas intervenções urbanas do prefeito nomeado pela ditadura, Paulo Maluf. É muito interessante que o Oficina tenha feito desses resíduos recusados do desenvolvimentismo um território de crítica e liberdade.
Na nota que escrevi em 2014, incluí alguns trechos de seu depoimento dado em uma das vezes em que foi preso pela ditadura, em 1978. Uma das prisões anteriores foi a de 1974, ano, como se sabe, da Revolução dos Cravos, que deu fim à ditadura salazarista em Portugal. Zé Celso foi para lá depois da prisão e, naquele país, teve suas atividades e declarações acompanhadas pelos serviços de informação, como soía acontecer com os exilados, banidos e pessoas consideradas perigosas para o regime que estavam no exterior.




Trata-se de um documento confidencial do Ministério da Aeronáutica de 6 de dezembro de 1974, guardado no acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Não verifiquei se a citação de Zé Celso no jornal português Diário de Lisboa está correta, mas é muito provável que esteja (deixo para algum eventual leitor eventualmente verificá-la). 

Afirmou ainda que, em PORTUGAL, "a liberdade está na rua" e que essa liberdade deve ser aproveitada para criar um Teatro novo, para se demonstrar "as condições que favorecem o fascismo". 

Um teatro como o Oficina, que faz da rua seu território, é capaz de nela soltar a liberdade para combater o fascismo, ainda um problema no Brasil. Imagino que a Companhia Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, com o viúvo Marcelo Drummond e os outros artistas, continuará a saber fazê-lo.


segunda-feira, 22 de maio de 2023

Os Guaranis e O Guarani: Carlos Gomes revisitado no Teatro Municipal de São Paulo

Sobre Il Guarany, ou O Guarani, ópera de Carlos Gomes inspirada no romance de José de Alencar, li e ouvi diversas manifestações sobre o sucesso incrível de público da última montagem no Teatro Municipal de São Paulo. Ela contou com o time de Roberto Minczuk (regente), Ailton Krenak ("concepção geral"), Cibele Forjaz (direção cênica), Denilson Baniwa (codireção artística e dramaturgia) e Simone Mina (figurino, além de codireção artística e cenografia). Havia, portanto, indígenas na concepção e na direção artística da ópera que leva personagens indígenas para o palco, além de dois atores indígenas, Zahy Tentehar Guajajara e David Vera Popygua Ju, e a Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá KYRE'Y KUERY, que apresentaram a música de sua própria cultura, como uma espécie de interlúdio na composição de Carlos Gomes. Creio que isso jamais foi tentado na história dessa ópera, estreada em 1870.

A audácia artística foi recompensada com o sucesso de público que levou a uma récita extra, o que deve ter sido difícil por causa das conhecidas dificuldades das agendas dos artistas que trabalham em ópera. Em geral, eles têm compromissos marcados com antecedência de dois anos.

Gosto muito de ópera e já cantei (no Coro da Cidade de São Paulo) em três produções (até agora; espero participar de La Traviata em agosto). Também escrevi vários textos sobre direitos dos povos indígenas e participei em eventos, atos e manifestações desses povos ou com eles. Em geral, as pessoas que encontro no meio da ópera não conhecem as do ativismo indígena e vice-versa. Gostei imensamente de ver esses dois mundos por que tenho tanto interesse cruzando-se.

Talvez por esse cruzamento não ser tão frequente, imagino que a direção tenha caído na tentação do didatismo em relação às lutas indígenas. O soprano que cantava Ceci, na sua segunda ária, tinha que competir com várias projeções de filmes e textos (por sinal, o Teatro poderia investir mais em revisão de português: "ali" com acento, entre outros erros, não dá!). Nesse ponto, a direção cênica sabotou Carlos Gomes, pois era difícil prestar atenção na cantora.

E não deveria fazê-lo? Tentar algo como uma partida Guaranis vs. Guarany? Não se deveria sabotar uma história da colonização? Creio que não, pois O Guarani é mesmo uma grande ópera; o que deve ser feito é torná-la nova, o que é outra coisa, que acabou sendo realizada por esta nova concepção cênica. Lendo os textos incluídos no belo libreto vendido no Teatro, inclusive a nota feita muito por alto por Ailton Krenak, creio que Ligiana Costa, responsável pelo dramaturgismo, escreveu o mais esclarecedor das tensões entre a obra do século XIX e nosso tempo (nota: entre eles, está o texto de um dos grandes ficcionistas brasileiros, Pedro Cesarino, que acho que não é mais reconhecido como escritor por ser também um importante antropólogo).

A dramaturgia funcionou desde antes do começo esperado da ação: a coreografia durante a Protofonia, combinada com a arte de Denilson Baniwa, gerou uma cena comovente: a luta, os massacres e o renascimento dos povos indígenas foram ali encenadas durante aquela peça sinfônica tão significativa (e muito bem regida por Minczuk), que acabou assumindo o papel de um dos retratos musicais do Brasil. Esta música deixou de parecer "batida", acusação que alguns críticos lhe fazem, talvez por causa do programa A Voz do Brasil...

A montagem foi um grande sucesso artístico, razão pela qual poderíamos imaginar detratores completamente ignorantes em ópera e sem muita inteligência para entender as coisas do teatro reclamando de que "a ópera foi cortada" porque o balé não foi encenado ou de que a música não foi respeitada, pois a música Guarani foi ouvida, funcionando como interlúdio. Imagino que um grau de idiotia mais extremo pudesse invocar o direito do consumidor contra a montagem, já que estamos no país dos bacharéis -- mas seria extrapolar as deficiências diplomadas da inteligência nacional aos píncaros do absurdo. Ora, como se sabe, é extremamente comum cortar música de balé em representações de ópera (quantas vezes você que me lê assistiu a uma récita do Otello de Verdi com o balé?), inclusive em gravações. Ligiana Costa, em seu texto, tem o cuidado de lembrar que muitas das montagens do Guarany ignoram o balé. Ademais, o método do enxerto (como se fez com a música Guarani duas vezes durante a ópera) não é infrequente nas encenações contemporâneas, inclusive com a introdução de personagens novos, em geral mudos.

Houve um tempo, bem anterior a Carlos Gomes, o da ópera barroca, em que o enxerto era quase o modo de produção do espetáculo. Os cantores cantavam suas árias preferidas não importa em que ópera e de que autor e em que idioma. Trata-se, contudo, de outro assunto.

Não aconteceu nada, em termos cênicos ou musicais, naquele Guarani que não ocorra normalmente nos palcos de ópera de hoje: duplos, projeções, textos de outras proveniências. Creio até que virou moda, nos últimos anos, os personagens terem duplos não cantados - vi no cinema, por exemplo, uma produção francesa Così fan tutte em que os cantores tinham como duplos bailarinos, que não cantavam, mas encenavam com sua coreografia a comédia. A diferença é que indígenas estavam na direção e no palco.

Desta vez, os cantores que interpretavam Peri e Ceci tinham duplos indígenas: David Vera Popygua Ju (como Peri; já o mencionei neste blogue algumas vezes em sua atividade de liderança Guarani) e Zahy Tentehar Guajajara (ela me pareceu o devir-indígena de Ceci). O procedimento não era inédito, claro, mas não devemos diminuí-lo por isso: devemos julgá-lo por sua eficácia. Creio que ele funcionou muito bem, especialmente na cena do batizado de Peri (por amor a Ceci, ele se cristianiza), provavelmente a mais violenta para a sensibilidade de hoje. No fundo do palco, os músicos e atores indígenas encenaram uma consagração do duplo de Peri, que ganhou cocar, arco e flecha. O batizado etnocida foi contrabalançado por aquela outra cerimônia, que indicou a permanência e a resistência daquele povo e suas crenças, apesar da violência cristã da colonização.

Muitas vezes os conquistadores espanhóis apareceram sob pedestais e assumiram poses de estátuas. Li um crítico que não gostou da ideia, mas a achei genial: era evidente que os encenadores queriam criticar as estátuas e outras homenagens aos colonizadores, assassinos e traficantes de indígenas, tão comuns, por sinal, em São Paulo. Imagine a violência de um Estado que resolve nomear uma estação de metrô com o escravizador Fernão Dias de indígenas em vez de Paulo Freire. O genocídio recebe as homenagens oficiais monumentalizadoras... Essa política oficial de ódio aos povos indígenas foi na ópera eficazmente ridicularizada.

Em revanche, a ideia de fazer o cacique Aymoré um antropólogo branco que lê Davi Kopenawa e Bruce Albert (havia mais bibliografia, mas, de onde estava, foi o único livro que identifiquei, A queda do céu), embora provavelmente corresponda às fantasias de maus cientistas, era mais engraçada que interessante.

A regência de Roberto Minczuk foi muito vigorosa, exemplar de um maestro de ópera; não lembrava em nada o sonífero musical daquele disco com Plácido Domingo (o grande tenor merecia um regente à sua altura, mas não obteve). O Coro Lírico, ao contrário da Orquestra do Teatro, estava meio desencontrado no dia em que assisti à produção, desde a aparição dos caçadores. Vi o segundo elenco. Vocalmente, destacaram-se os baixos e os barítonos. Lício Bruno estava ótimo como Cacique, David Marcondes impressionou como Gonzales. Em um papel mais curto, Don Alvaro, ouviu-se a bonita voz do tenor Guilherme Moreira. Os interpretes do casal protagonista, Débora Faustino e Enrique Bravo, foram valentes ao enfrentar tessituras não tão adequadas às suas vozes. O soprano lírico de Faustino não tinha toda a agilidade nem todo o agudo exigidos (a conclusão da ária "Gentil di cuore" teve que ser assumida pelo coro, por exemplo - um soprano ligeiro teria sido mais feliz); o tenor estava mais à vontade, porém soava como um lírico tendo que assumir um papel que foi de Mario del Monaco.

Este tenor italiano, na autobiografia Minha vida, meus sucessos, incluiu uma foto com o torso nu, caracterizado como Peri (segundo ele, mais despido do que vestido), e escreveu que agradou muito nesse papel no Rio de Janeiro em 1947, onde foi muito bem recebido e interpretou também Il Trovatore, de Verdi, e o Fausto no Mefistofele, de Boito. Estamos agora em outros tempos: a solução da montagem de 2023 foi evitar caracterizar os brancos como indígenas - o coro, quando interpretava os Aymorés, vestia redes (visualmente, o efeito era muito bonito). Enrique Bravo vestia algo parecido e não houve nenhuma tentativa de maquiá-lo como indígena, solução que ficou hoje antiquada e é considerada até racista. A estratégia de usar como duplo um ator Guarani dispensava-a, por sinal.

Dito isso, em ópera o que determina a escalação de um papel é a voz; uma cantora japonesa não pode ser escolhida para cantar a Madama Butterfly se é, por exemplo, um contralto ou um soprano ligeiro... O contralto não alcançaria as notas nem da entrada da personagem e o soprano ligeiro ou destroçaria a música do segundo ato ou destruiria a própria voz tentando fazer justiça à partitura. A falecida Jessye Norman, negra nascida nos Estados Unidos, estreou em Berlim cantando um papel para o qual muitos esperam louras alemãs: Elisabeth, do Tannhäuser, de Wagner. Ela cantou diversos papéis concebidos para cantoras brancas, assim como Leontyne Price, Martina Arroyo, Grace Bumbry (que morreu recentemente e foi o primeiro artista negro a ser protagonista em Bayreuth, no Teatro construído para as óperas de Wagner) e, hoje, Pretty Yende, entre outras, porque é a voz que comanda. Quando o brilhante Lawrence Brownlee canta, por exemplo, Rossini (neste vídeo, na Ópera de Paris), o que resta aos racistas senão envergonhar-se? Poderiam até regenerar-se e tornar-se pessoas decentes, mas alguns deles reclamam ridiculamente de "genocídio branco" (como fizeram quando a sul-africana Pretty Yende e o mexicano Javier Camarena protagonizaram com grande sucesso La Fille du Régiment, de Donizetti, no Metropoltian Opera House) vendo tantos artistas de outras raças ocupando os palcos de ópera... 

Voltando a São Paulo: outro elemento interessante foi fazer o espetáculo continuar depois que a música de Carlos Gomes acabou, outro procedimento típico dos encenadores contemporâneos de ópera. Neste Guarani, a atriz Zahy Tentehar Guajajara, que também é cantora (com uma voz de tamanho mais modesto, porém: ao contrário do Coro Guarani, ela precisou de microfone, mesmo sem ter que competir com a orquestra do Teatro), cantou uma canção indígena e os Guarani levaram um cartaz exigindo demarcação de sua terra. Dessa forma, os povos originários é que deram a palavra final. Foi muito lindo.

No entanto, o espetáculo NÃO tinha acabado ainda! Todo o elenco, indígena e não indígena, e o maestro (não vi se Cibele Forjaz estava lá também; provavelmente sim, pois tinha acabado de receber aplausos com os outros artistas) foram para a escada: os músicos Guarani voltaram a fazer sua música e mostravam um cartaz exigindo demarcação das terras: 



Relembremos que a Terra Indígena Jaraguá é a menor no país, tem menos de 2 hectares. O então governador Geraldo Alckmin foi ao Judiciário para impedir a ampliação da demarcação.

Depois, David puxou o lema "Não ao marco temporal" e a música Guarani voltou a ser ouvida. Para quem não sabe o que é essa tese pró-genocídio contra a qual os povos originários lutam, escrevi um resumo neste blogue.





Já vi algo análogo no Teatro Municipal de São Paulo em 2022: depois da apresentação de Café, ópera que Felipe Senna escreveu a partir do conhecido libreto de Mário de Andrade, membros do MST, que tinham participado da récita (o ponto alto da apresentação, aliás), foram para as escadarias e lá, depois do término da obra operística, continuaram sua performance reivindicando a reforma agrária. Foi também um encontro imprevisto de mundos: o do movimento social dos Sem-Terra e o da ópera. Outro sucesso de público.

É por isto que amo a ópera: além da generosidade do gênero, que consegue acolher outras artes e outros mundos, ele pode fazer tudo parecer possível: o acesso à terra aos camponeses, a derrota do latifúndio, a efetividade dos direitos dos povos originários, a queda dos colonizadores. 

Tudo isso deve ser possível, no palco e fora dele. O espetáculo tem que continuar.


P.S.: Falando nas tradições operísticas: o espetáculo foi dedicado a Niza de Castro Tank, grande soprano ligeiro, um dos protagonistas da primeira gravação da ópera, em 1959, regida por Armando Belardi, e que foi uma das maiores intérpretes do compositor. Ela morreu no ano passado, aos 91 anos, depois de uma longa e importante carreira.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Desarquivando o Brasil CXCIV: Marcelo Zelic, a pesquisa e o engajamento com os povos indígenas

Foi um baque saber da morte de Marcelo Zelic na segunda-feira, dia 8 de maio de 2023, com apenas 59 anos, por causa de acidente vascular cerebral. Seu trabalho foi importantíssimo para a memória, verdade e justiça no Brasil, especialmente para os povos indígenas

O Centro Indigenista Missionário (Cimi) inventariou sua contribuição para os povos indígenas no Brasil ("Marcelo Zelic, militante da memória, nos deixa um legado pela verdade e pela justiça"). O Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi) publicou uma nota de pesar. O Centro de Trabalho Indigenista (CTI) fez o mesmo, assim como o MST.

O texto de Cristiano Navarro, Fábio Bispo e Renato Santana para o Infoamazonia ("A luta por memória dos crimes da ditadura e Justiça de Transição perde um de seus principais defensores: Marcelo Zelic") rememora sua participação do Grupo tortura Nunca Mais - São Paulo e a na Comissão de Justiça e Paz, bem como de sua participação no Acampamento Terra Livre (ATL) no mês passado, seu apoio à criação de uma Comissão da Verdade Indígena e sua recente coordenação de um projeto de memória interétnica.

Ismael Machado (li-o no Brasil de Fato) focou no relatório da Comissão da Verdade do Estado do Pará, de que Zelic e ele mesmo foram organizadores com Angelina Anjos e Marco Apolo Santana Leão. 

O Grupo Tortura Nunca Mais - São Paulo também relembrou sua trajetória. 

A antropóloga Artionka Capiberibe teceu um fio no twitter com uma foto recente lembrando da articulação no ATL para a criação de uma comissão da verdade indígena. O jornalista Rubens Valente, que também esteve com ele recentemente, publicou outra foto, em que Zelic posou apontando para um cartaz com a estimativa da CNV de 8.350 indígenas mortos (no mínimo) durante a ditadura. Para a Agência Pública, escreveu um texto mais longo ("O último sonho de Marcelo Zelic"), de que cito esta passagem que sintetiza algumas das principais façanhas do pesquisador: a recuperação do Relatório Figueiredo e do filme Arara e a criação e coordenação do portal Armazém Memória.


Zelic já era reconhecido como um grande pesquisador da temática, tendo sido o autor da descoberta, ou redescoberta, do processo administrativo produzido na segunda metade dos anos 1960 que ficou conhecido como Relatório Figueiredo, cuja divulgação levaria à extinção do SPI (Serviço de Proteção ao Índio). O processo estava arquivado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, mas indexado apenas com um número, sem explicações sobre o conteúdo. Zelic reconheceu sua importância e o resgatou do limbo em que permaneceu mais de 40 anos. Foi também Zelic o responsável por localizar um filme produzido pelo governo nos anos 70 que mostrava um indígena simulando a prática de tortura num pau-de-arara, um singelo “ensinamento” dos torturadores aos membros de uma “guarda indígena” que funcionou em Minas Gerais durante a ditadura.
Na condição de coordenador do Armazém Memória e membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo, Zelic e sua equipe de colaboradores coletaram, escanearam, organizaram e disponibilizaram uma impressionante coleção de documentos e outros dados relativos aos direitos humanos https://armazemmemoria.com.br/. Apenas sobre os povos indígenas são 18 bibliotecas com 2,2 milhões de páginas.


A deputada Célia Xakriabá, a única indígena exercendo mandato atualmente no Congresso Nacional, lamentou a morte. Como voltamos a ter um governo democrático, a Funai também publicou sua nota. No governo passado, isso certamente não aconteceria.

Creio que o Ministério dos Povos Indígenas não se manifestou, tampouco a Ministra Sônia Guajajara e o presidente Lula, que, no entanto, lamentaram a morte, também recente, do ex-deputado federal David Miranda.

Por curiosidade, fui ver o que a Agência Brasil havia publicado sobre a morte de Marcelo Zelic; ela a noticiou em três idiomas: além do português, o espanhol e o inglês. Percebi que, entre três de novembro de 2014 e 29 de março de 2023, não há notícia alguma sobre ele nessa agência governamental de notícias. Certamente não por falta de trabalho do pesquisador e militante (que só suspendeu por um tempo suas atividades por causa do primeiro AVC), mas talvez por falta de interesse de governos decididos a ocultar as pautas de luta dos povos indígenas.

Para o caso de alguém se interessar, deixo aqui meu breve testemunho. Eu conheci pessoalmente Marcelo Zelic em 2014, no lançamento da campanha "Índio é Nós", em 19 de abril; ele falou em mesa com uma liderança da Terra Indígena Jaraguá, (David) Karai Popygua. As falas de ambos foram filmadas: https://www.youtube.com/watch?v=z-bjwrBR8RM (no final do vídeo, pode-se ver a apresentação de Marlui Miranda). O editor Sérgio Cohn participou também para trazer o número da Poesia Sempre sobre poesia indígena, que teria sofrido censura na Biblioteca Nacional. 

Naquela ocasião, Zelic falou do conteúdo das milhares de páginas do Relatório Figueiredo, de 1967, que ele havia encontrado. Elas apresentavam um amplo levantamento dos crimes contra os povos indígenas cometidos pelos agentes do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), que acabou sendo substituído pela Funai.

Ele denunciou as medidas anti-indígenas do governo federal de então, do PT ("a ministra Gleisi Hoffmann entrou aí com uma jogada para suspender as demarcações de terras indígenas no Paraná", criticou) e os assassinatos das lideranças indígenas. Ademais, cobrou a Comissão Nacional da Verdade, então em funcionamento, para que ela investisse no trabalho com estes povos:


E os centros de tortura contra indígenas, vão entrar nesse relatório? [...] A Comissão vai incluir esses estudos, vai aprofundar esses estudos, no sentido de incorporar a esse relatório, ou só vai valer o que é centro de detenção para militantes de esquerda urbanos e alguns rurais? [...] Então nós temos uma situação que é um embate para que a Comissão Nacional da Verdade, ela efetivamente faça investimentos no grupo da Maria Rita Kehl. Faça investimentos no sentido de contratar uma equipe grande para pesquisar porque há violações em todos os Estados do Brasil, quase todos nesse período. E não são violações pequenas. Para que haja investimentos no sentido de digitalizar e se colocar numa ferramenta de pesquisa essas seiscentas mil páginas.


Maria Rita Kehl é que estava a coordenar as pesquisas sobre os povos indígenas. Depois, voltei a cruzar com ele no segundo semestre de 2014, quando eu havia passado a fazer pesquisa para a Comissão Nacional da Verdade e para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva". Ele, com Manuela Carneiro da Cunha (que também participou, na mesma mesa de Kehl e Marta Azevedo, do lançamento de "Índio é Nós") e outros pesquisadores estavam a ajudar a CNV para o capítulo sobre as violações de direitos dos povos indígenas, que sofria oposição dentro da Comissão.

Na Comissão "Rubens Paiva", que era presidida por Adriano Diogo, não havia oposição alguma. Lá, ajudei a organizar três audiências sobre o tema; nós o chamamos para falar. No relatório, no capítulo sobre as violações de direitos dos povos indígenas, ele é referido algumas vezes. Cita-se sua fala na 149ª audiência pública da Comissão:


No momento em que uma Comissão da Verdade, como a Comissão Estadual de São Paulo que se dedica a apurar o tema indígena. Uma das poucas Comissões estaduais que se debruçou sobre a temática indígena, nós temos São Paulo, nós temos Amazonas, nós temos Mato Grosso do Sul algum trabalho e a Comissão Nacional.
Quando o relatório da Comissão Nacional apresenta inúmeras, inúmeras violências praticadas para o roubo de terras indígenas no país, o Supremo Tribunal Federal, Adriano, a sua 2ª Turma, vota, através do caso dos GuaraniKaiowá, do Mato Grosso do Sul, um entendimento de que existe um marco temporal para se definir se uma terra deve ou não ser demarcada como terra indígena [...]
Rasga o STF a Constituição com uma nova interpretação, feita pela 2ª Turma, que se for confirmada pelo Plenário, ela joga um manto escuro em cima de toda essa violência que estava embaixo do tapete e que vem à tona, agora de forma mais sistematizada, pelos trabalhos das Comissões estaduais e Nacional da Verdade.
É uma situação que eu gostaria primeiro de solicitar, nós fizemos uma denúncia, através de um artigo que chama “Povos indígenas: ainda uma vez o esbulho.”, que eu queria sugerir à Comissão Estadual da Verdade que pudesse tirar uma moção, para enviar a todos os Ministros do STF, repudiando a decisão, repudiando a decisão da 2ª Turma e solicitando que essa posição seja revista, para que a gente possa incluir os povos indígenas no processo de Justiça de Transição em que vive o Brasil.

Aqui ele se referia à tese anti-indígena, anticonstitucional e ilícita perante o Direito Internacional do "marco temporal", que ganhava terreno no Supremo Tribunal Federal com ajuda de Ministros como Gilmar Mendes. Essa questão também ainda não foi resolvida.

Ele já organizava o que viria a ser o formidável Armazém Memória; ele me pediu, na época, os documentos da Comissão para colocar no futuro portal.

Depois disso, cruzei com Zelic no evento "Resistência Indígena contra o Genocídio", realizado no Campus São Paulo do Instituto Federal de São Paulo em 29 de novembro de 2018. Também falaram, além de nós, (David) Karai Popygua e Benedito Prezia, que o rodeiam nesta foto que tirei na ocasião:




A fala dele foi filmada (e a dos outros). Ele explicou, entre outros temas, a importância dos documentos para as reivindicações dos povos indígenas, inclusive as de caráter judicial:


Eu, quando peguei o relatório Figueiredo e vi ali aquele documento, que só existiam três cópias impressas [...] fiz questão de visitar o povo Terena, sentar no chão com o povo Terena, passar o micro e dizer "vocês sabem mexer com o computador?", e aí levanta um Terena e fala, "oh, Zelic, sou advogado", "pô, desculpa aí", sentar e discutir com eles o que podia ter dentro desses documentos.


Depois, estive com ele em 13 de março de 2020 no Seminário de 5 anos do relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" (na semana seguinte, começariam as medidas de isolamento social da pandemia). 


Não o vi mais pessoalmente. A última vez em que trocamos mensagens, faz pouco tempo, perguntei do relatório da Comissão Estadual da Verdade e Memória do Pará, que havia sido anunciado para 2021, depois para março de 2022 e só veio à luz no ano seguinte. Felizmente, ele saiu ainda a tempo de Zelic, que foi um dos organizadores do trabalho, vê-lo disponível para todos. Os povos indígenas são abordados no tomo II.

As recomendações da Comissão aparecem no final do tomo III. Para dois temas, contudo, ela decidiu repetir as recomendações do relatório da CNV, de 2014:


Frente à situação atual do país e os retrocessos em direitos humanos que vivemos, atingindo em especial os povos indígenas e a comunidade LGBTQI+ num claro ciclo de repetição das violências vividas no passado, a CEV-PA reafirma ao Estado brasileiro a necessidade de dar seguimento às recomendações temáticas do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, apresentadas em 2014, incorporando-as na lista abaixo a este relatório, como pontos também fundamentais para o desenvolvimento, respeito e aprofundamento dos conceitos de democracia, pluralidade étnica, liberdade sexual e justiça social em nossa sociedade.


É como se o tempo tivesse parado para aquelas reivindicações dos povos indígenas, que incluem a demarcação e a desintrusão de suas terras. Na verdade, pode-se até mesmo dizer que o relógio andou violentamente para trás. O caso contra Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional por genocídio parece-me forte exatamente em relação aos povos indígenas.

Faço notar, porém, que as recomendações que são reiteradas pela Comissão do Pará são as que aparecem no tomo II do relatório da CNV. Elas, por algum motivo, são amplamente ignoradas por vários pesquisadores e instituições, que costumam tratar apenas das que estão listadas no tomo I. Aquelas foram escritas pelos pesquisadores e militantes e ofertadas à CNV. No caso dos povos indígenas, são as mesmas que foram entregues também à Comissão "Rubens Paiva" no fim de 2014 por Timóteo Popygua, que o fez em nome da Comissão Guarani Yvyrupa.

Quase nove anos depois, quem sabe elas serão efetivamente implantadas, agora que temos indígenas a frente de um Ministério inédito, o dos Povos Indígenas, e da Funai? Parece possível, e Zelic viveu o suficiente para ser parte desta mudança e ver-lhe o começo.