O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 28 de setembro de 2013

Mutilação e cancelamento da música, ou o Teatro Municipal de São Paulo

Em São Paulo, mas não no Teatro São Pedro, que, com seus recursos mais modestos do que a outra instituição que monta ópera nesta cidade, trará ainda neste ano do bicentenário de nascimento de Verdi (e de Wagner, e centenário de Britten, já homenageado) uma das maiores obras-primas do gênero, a última ópera do autor, o engraçadíssimo Falstaff.
Vi a última récita da equivocadíssima montagem de Don Giovanni, ópera de Mozart, no Teatro Municipal de São Paulo. Em um texto de duas páginas, o encenador tenta justificar sua visão, que apresenta o personagem Don Giovanni como Drácula. Também nesse livreto, temos um texto do Pondé, o colunista da Folha de S.Paulo e professor da PUC/SP, de escasso interesse musical, assim como o que fez para a Aida, espetáculo anterior daquele Teatro.
Um dos absurdos da montagem vampiresca de Don Giovanni estava em desdizer a música do compositor: quando Mozart escreveu em "Vedrai carino" uma de suas árias mais sensualmente delicadas, vimos a camponesa-vampira, agora um ser das trevas, morder o pescoço de seu noivo.
O vampirismo forçado poderia ser defendido como uma estratégia pós-moderna de tensão entre a música e a encenação? Creio que não, pois acabou se revelando uma redução absurda daquele drama. A oposição entre Don Giovanni e os demais personagens perdeu-se no processo de vampirização coletiva, e com isso o próprio fio que sustenta a história. E, mais grave ainda, desaparece o sentido da irrupção do sobrenatural na cena do cemitério e, principalmente, na ceia em que o Comendador, como estátua, aparece, e acaba por terminar com a descida do protagonista ao inferno.
Trata-se, pois, de uma montagem que vai contra a música de Mozart, e isso não pode ser perdoado. O maestro colaborou com essa empreitada antimozartiana. A oposição ao compositor aconteceu, de fato, em mais de um sentido: após a entrada do coro, na cena em que Don Giovanni vai para o inferno, foi cortada toda a parte do Leporello (!!!) e, depois, suprimiram-se algumas páginas da partitura ficando só os três versos finais (!!!!) do libreto. Ao que se transformou num solo de Don Giovanni, depois da mutilação operada pelo maestro, emendou-se o "Questo è il fin di chi fa mal". Horror.
Para terem uma ideia, vejam os versos de Lorenzo da Ponte, o libretista. Em vermelho, está o que foi cortado; em preto, o que sobrou:


Donna Elvira, Zerlina, Don Ottavio e Masetto
Ah, dov’è il perfido?
Dov’è l’indegno?
Tutto il mio sdegno
Sfogar io vo’!
Donna Anna
Solo mirandolo
Stretto in catene
Alle mie pene
Calma darò.
Leporello
Più non sperate
Di ritrovarlo,
Più non cercate.
Lontano andò.
Tutti
Cos’è? Favella!
Via presto, sbrigati!

Leporello
Venne un colosso...
Ma se non posso...
Tra fumo e fuoco...
Badate un poco...
L’uomo di sasso...
Fermate il passo...
Giusto là sotto...
Diede il gran botto...
Giusto là il diavolo –
Sel trangugiò.
Tutti
Stelle, che sento!
Leporello
Vero è l’evento!
Donna Elvira
Ah, certo è l’ombra
Che m’incontrò.
Donna Anna, Zerlina, Don Ottavio e Masetto
Ah, certo è l’ombra
Che l’incontrò.
Don Ottavio
Or che tutti, o mio tesoro,
Vendicati siam dal cielo,
Porgi, porgi a me un ristoro,
Non mi far languire ancor.
Donna Anna
Lascia, o caro, un anno ancora
Allo sfogo del mio cor.
Don Ottavio
Al desio di chi m’adora
Ceder deve un fido amor.
Donna Anna
Al desio di chi t’adora
Ceder deve un fido amor.
Donna Elvira
Io men vado in un ritiro
A finir la vita mia!
Zerlina
Noi, Masetto, a casa andiamo!
A cenar in compagnia!
Masetto
Noi, Zerlina, a casa andiamo!
A cenar in compagnia!
Leporello
Ed io vado all’osteria
A trovar padron miglior.
Zerlina, Masetto e Leporello
Resti dunque quel birbon
Con Proserpina e Pluton.
E noi tutti, o buona gente,
Ripetiam allegramente
L’antichissima canzon
.

Tutti
Questo è il fin di chi fa mal;
E de’ perfidi la morte
Alla vita è sempre ugual!


O final de Don Giovanni reúne as outras personagens, que ainda procuram Don Giovanni, até que chega Leporello com as notícias sobrenaturais. Os personagens comentam o que farão da vida depois disso (o que inclui um belo dueto para Anna e Ottavio) e, finalmente, cantam a moral da história, que foi o que sobreviveu da mutilação feita no Teatro Municipal de São Paulo.
Tal cena final é bem século XVIII; uma ópera romântica acabaria, provavelmente, com a descida ao inferno. Stravinsky, em sua mais extensa obra neoclássica, A carreira do libertino (The Rake's Progress), com libreto do Auden, fez o mesmo, a ponto de o próprio compositor ter protestado contra a injusta crítica do jornal Los Angeles Times de que ele teria pegado emprestada "uma página do Don Giovanni" (a reação de Stravinsky está em Themes and Conclusions: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/09/30-dias-de-leituras-stravinsky-conclui.html).
Nem sempre se compreendeu bem esse final: em interpretações românticas de Mozart, ele às vezes era cortado completamente (e não deixando um rabinho de fora, como o que se fez agora em São Paulo). Não se sabe se, em Viena, Mozart o executou, ou se compôs um segundo fim que não chegou até nós (leio a polêmica no Guide des opéras de Mozart publicado pela Fayard); Otto Klemperer conta que Gustav Mahler, no início do século XX, terminava a ópera com a descida ao inferno, mas isso fazia perder a "luz aguda, quase irônica" do final. Na primeira (e notável) gravação de estúdio, que a Naxos relançou, regida por Fritz Busch em 1936, o final já está lá. O que o Teatro Municipal de São Paulo fez seria aceitável há cem anos.
Como Stanley Sadie mostra no volume dedicado a Mozart na série The New Grove, esse final está ligado ao próprio gênero dessa obra, desse dramma giocoso, que continua ligada ao gênero bufo, não obstante a admirável mescla entre e o sério e o cômico: "a comédia subsiste ao lado do drama sério, e ambos se refletem na música. No fim da ópera, os personagens remanescentes deduzem a moral e planejam seu futuro num alegre sexteto em sol maior e, finalmente, em ré maior." (o livro foi publicado pela L&PM em 1988 na tradução de Ricardo Pinheiro Lopes; o trecho está na página 146).
Traição às tensões desta história, ao gênero, e à música do compositor... Após a récita, houve quem aplaudisse, não sei se se tratasse gente que não gostava do compositor ou dessa ópera em particular (e pensasse: quanto menos dessa música, melhor), ou se eram pessoas que simplesmente não conheciam a obra. De qualquer forma, o aplauso (não faço a ressalva para os cantores, destaco principalmente Andrea Rost, a de carreira mais brilhante dos dois elencos, mais uma intérprete de Lucia di Lammermoor que domina as dificuldades do papel de Donna Anna, e Nicola Ulivieri, excelente no papel-título) teve que contar ou com a condescendência ou com a ignorância do público e da crítica. A crítica, principalmente, falhou. Quanto ao público, há sempre gente que está tendo o azar de conhecer a obra justamente nessas montagens, e tem que ver aquilo. O papel da crítica deveria ser o de alertar o público para tais deformações; no entanto, como eu bem descobri, há gente que trabalha com crítica musical em São Paulo e que não conhece o fim de uma das óperas mais montadas e gravadas de toda a história. Pessoas que poderiam denunciar tais equívocos, na verdade, são também sintoma da precariedade musical da cidade e do país.

Coisa totalmente diversa foram as montagens paulistanas de O anel do Nibelungo, de Wagner, por André Heller-Lopes. O anel compõe-se um prólogo, O ouro do reno, mais três óperas, A valquíria, Siegfried e Crepúsculo dos deuses. O Teatro Municipal de São Paulo, com sua precariedade habitual (a gestão de Ira Levin, que trouxe, por exemplo, Jenufa ao Brasil, foi uma exceção), somente consegue montar um desses títulos por ano. O primeiro foi A valquíria, em 2011; ano passado, Crepúsculo dos deuses. Faltam O ouro do reno, programada para 2013, e Siegfried, em 2014.
Na récita que vi em 2011, a orquestra sofreu bastante no primeiro ato. Os cantores, nas duas ocasiões, foram, com exceções muito pontuais, bons ou, pelo menos, dignos. Não me esqueço do impacto do primeiro ato, em que os dois melhores intérpretes daquela montagem, Martin Mühle (voz perfeita para o papel), e Eiko Senda, como os irmãos Siegmund e Sieglinde, depois de toda aquele processo de autodescoberta, finalmente consumam sua paixão um pelo outro.
Em 2012, a grande Eliane Coelho cantou pela primeira vez Brünnhilde; embora o papel pedisse uma voz de outro tipo, ela logrou interpretá-lo com extrema habilidade, excepcional musicalidade, bem como desenvoltura cênica. Gregory Reinhardt, no papel de Hagen, também se destacou.
E as montagens... Gostei delas; é certo que a opção do abrasileiramento nem sempre funcionava bem nessa história tão germânica. Alguns momentos me convenceram inteiramente, como a casa de ex-votos em A valquíria, a cena entre Hagen e Alberich no Crepúsculo. Mais importante do que a beleza visual que André Heller-Lopes atingiu, foi o fato de que sua opção cênica de um Anel brasileiro jamais traiu o lado sobrenatural, mágico, daquela história de deuses, heróis e monstros. Ele soube traduzi-la para símbolos da cultura do Brasil e, assim, manter a tensão entre os diferentes planos dos deuses e dos humanos no libreto de Wagner. E, no plano humano, ele foi provocador (Wagner também era) o suficiente para gerar críticas moralistas: http://euterpe.blog.br/critica/a-malicia-do-desejo-erotico-e-sua-nova-vitima-o-mito
O atual diretor do Teatro Municipal de São Paulo, no entanto, em decisão artisticamente muitíssimo equivocada, decidiu CANCELAR a montagem de O ouro do Reno, que será apresentada em forma de concerto, ou seja, sem a encenação de André Heller-Lopes. A foto que o próprio diretor cênico publicou dos ensaios indicava que a beleza visual das outras montagens seria repetida no espetáculo infelizmente cancelado. São Paulo (e o Rio de Janeiro) continua bem atrás de Manaus, que logrou fazer a primeira montagem brasileira desse ciclo do Wagner.
Infelizmente, repito, porque se tratava de uma concepção original, que só mesmo no Brasil poderia ter sido imaginada, com beleza visual e um bom grau de coerência com a obra do compositor.
Alguns veículos de comunicação noticiaram outros problemas da atual gestão, como possíveis sabotagens, que estão sob investigação, reclamação de cantores nacionais preteridos por estrangeiros e várias outras questões. Para mim, a desistência dessa montagem do Anel, assim como o Don Giovanni mutilado, o principal problema é artístico, e a recente decisão de extinção do Coral Paulistano confirma-o.

Em desastrosa decisão da direção do Teatro Municipal, o Coral Paulistano será unido ao Coral Lírico, em mais uma etapa da destruição da importantíssima obra de Mário de Andrade nas instituições culturais brasileiras; ele o fundou em 1936, e cada vez estamos mais aquém da visão de cultura daquele grande escritor: http://blogs.estadao.com.br/joao-luiz-sampaio/teatro-municipal-vai-unir-coral-lirico-e-coral-paulistano/
A decisão é completamente antimusical. Um coro não tem nada que ver com o outro. O Coral Lírico concentra-se na ópera, e o faz bem. O Coral Paulistano canta principalmente o repertório de câmara, muitas vezes a cappella, que é muito diferente do de ópera e, várias vezes, exige uma abordagem vocal completamente diversa - em geral, menos potência e menos vibrato. Não se canta da mesma forma, por exemplo, as partes para coro do Crepúsculo dos deuses e as Valsas de amor de Brahms (só para pensar em dois compositores contemporâneos e da mesma língua; se eu lembrasse de alguém como Janequin, as diferenças seriam ainda maiores...). Esse Brahms, vi o Paulistano interpretar muito bem sob a regência de Thiago Pinheiro.
E o Paulistano tinha um trabalho com o repertório brasileiro muito significativo. Por exemplo, sob a regência de Mara Campos, vi-o apresentar, entre outras peças, o Moteto em Ré Menor de Gilberto Mendes, a partir do poema "Beba Coca-Cola" de Décio Pignatari, que é bastante difícil de cantar...
Também esse trabalho será perdido com esta gestão que, imitando o desastre de vários anos das autoridades estaduais de São Paulo no campo da cultura, provavelmente passará para a história principalmente pelo que fechou, cancelou e extinguiu.

P.S.: Foi criada uma petição de protesto contra a extinção do Coral Paulistano. Já a assinei: http://www.avaaz.org/po/petition/SALVEM_O_CORAL_PAULISTANO/?cHhvdcb

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Veronica

Nos idos de 2002, creio, eu havia publicado esta vinhetinha no zine Nasdaq, que era editado por Eduardo Sterzi e Tarso de Melo.


VERONICA

– Não entendo; a sua história acabou?
– Hoje está um dia quente.
– Mas ninguém casou na história!
– Sabe, eu nunca quis me casar.
– Como ninguém casou no fim da história, ela não terminou.
– Acho a castidade uma virtude, contanto que ela não seja praticada.
– Mas é claro que ela poderia ter acabado se alguém tivesse morrido.
– A eternidade também é uma virtude se não for praticada.
– Uma história acaba ou com um casamento ou com morte. Se os dois ocorrem, nem o leitor pode continuar.
– Com um infarto fulminante, o final ficaria abrupto. Com uma doença degenerativa, longo… Mas não: o melhor é escrever abruptamente uma prolongada agonia e muito lentamente um fim súbito. Provaria que vida e escrita são opostas.
– Uma história em que alguém se casasse com um morto acabaria com todas as histórias.
– Mas morte e escrita são opostas?
– Por isso não entendo. A história não terminou.
– Quer casar comigo?
– Eu não gosto de sopa.
– Também não. Quer casar comigo?
– Acho que não. O dia está muito quente.
– É mesmo.
E então o matou.


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

"Opisanie Świata", a antropofagia política de Veronica Stigger

Veronica Stigger encontrou em uma narrativa mais longa, a novela Opisanie Świata (São Paulo: CosacNaify, 2013), também uma formidável forma de expressão. Afora o gênero novo, porém, esse livro não representa uma mudança maior na poética de Stigger: também nele está presente a pluralidade de gêneros, o que inclui o uso de cartões postais e reclames antigos. A dimensão plástica, por sinal, é constante da obra desta autora e um de seus traços mais originais.
Aqui, pode-se ouvir a escritora explicar por que escolheu um título em polonês e como escreveu o livro: http://culturafm.cmais.com.br/comecando/entrevistas/veronica-stigger-apresenta-seu-livro-opisanie-swiata-pela-cosac-naify
Abaixo, uma foto da autora, que tirei em janeiro deste ano, entre os poetas Fabio Weintraub e Eduardo Sterzi. Todos estávamos em viagem...

A narrativa desse livro começa na Polônia e termina na Amazônia, o que, segundo Stigger, foi-lhe sugerido por Eduardo Sterzi como um desafio. Veja-se que esse arco geográfico poderia ser o de uma trajetória antropofágica, o que é exatamente o que a autora logra: o personagem principal será, de fato, apropriado pelo Brasil no meio do colapso europeu, assim como os outros estrangeiros que aqui encontra.
Há vários diálogos com autores do modernismo: o navio de Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, é avistado durante a travessia, um elefante drummondiano é redesfeito e, em apêndice, a autora elenca suas fontes de escrita, algumas orais. Uma leitura da rica intertextualidade desta novela precisaria também abordar a escolha dos nomes dos personagens, Opalka (que lembra o famoso pintor, cuja obra cortejava a desaparição), que é o protagonista, e Raul Bopp, seu companheiro de viagem.
O Bopp de Stigger tem, como o Glenn Gould de Thomas Bernhard, elementos em comum com o artista, mas, em larga medida, é um personagem com personalidade distinta da que um biógrafo descreveria. A presença de Bopp neste livro, creio, deve-se ao teor político da antropofagia assumida por Stigger.
Nesta breve nota, tratarei apenas disso. O grande Murilo Mendes, em curto e certeiro texto, "Sobre Raul Bopp", destacou que o outro poeta havia afirmado que "a maior volta do mundo que eu dei foi na Amazônia", apesar de ter viajado para tantos países, mesmo antes de embarcar na carreira diplomática. Murilo trata da presença da Amazônia na poesia de Bopp como
[...] a parte incomunicável do Brasil, seu lugar secreto, a floresta amazônica, plantada no tempo passado, em sua solidão e intimidade. A parte indígena do Brasil que Bopp considera como cenário adequado para sua revolução, seu plano de rutura com uma Europa que, grávida da história, se vê novamente em seus filhos americanos, mas que não pode ainda penetrar na dimensão amazônica.
O mundo que escapou a Jean-Arthur Rimbaud.
Murilo considera, com razão, Cobra Norato um "documento capital" do movimento antropofágico. Em que sentidos esse movimento pode se mostrar atual, isto é, inspirar novos discursos? Alexandre Nodari é um dos que têm criado esses discursos novos, referindo-se notadamente a Oswald de Andrade. Veronica Stigger preferiu apropriar-se de Bopp neste livro; também nele, ir à Amazônia significa chegar ao mundo.
Não vou contar a história (a autora ainda está lançando pelo país o livro, e hoje o faz em São Paulo, na livraria da Vila da Fradique Coutinho), mas adianto que parte do gênio de Stigger está em como revela (no fim da história) os andaimes da memória usados para construir a ficção, e o quanto eles implicam a perda, o abandono de um estado inicial, como nos rituais.
Os rituais de iniciação descritos, o próprio caráter iniciático da longa viagem de navio da Europa ao Brasil (com o sacrifício de um dos passageiros e o suicídio de outro) implicam a perda do continente natal, a perda também da família.
É notável que a chegada à Amazônia faça-se sob a égide da perda. Nesse ponto, podemos ver o quanto a escritora, com uma história que se passa nos anos 1930, fala dos tempos de hoje, em que essa região está em tremendo perigo. Qual seria a nova "descrição do mundo" (a tradução do título), a nova viagem que deve ser feita? Este livro, com a narrativa desta chegada da Amazônia, concomitante com o início da II Guerra Mundial, parece apostar em uma nova descrição antropofágica, cujo caráter político faz-se completamente oportuno neste contexto de ataque generalizado, pelos poderes instituídos e pelo agronegócio, aos povos indígenas, às comunidades tradicionais e ao meio ambiente, assuntos a que já aludi algumas vezes: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/09/terra-sem-lei-x-o-iii-encontro-nacional.html
Stigger não trata disso como matéria (ela não tematiza Belo Monte no livro, por exemplo), e sim como poética, o que me parece extraordinário. Creio que o tão comovente final do livro afete o leitor não só pelo que ocorre à família de Opalka, mas também por envolver-nos coletivamente: a perda também é nossa, é também das gerações futuras, descobrimo-lo nas rasuras de Opalka.
A negatividade desta história de Stigger, ausente de Cobra Norato, aponta, no entanto, para uma imaginação política que consiga transformar a memória em ficção. Trata-se da viagem apontada por aquelas rasuras, e da forma como a escritora se apropria da literatura brasileira do século XX, dando-nos pistas para a criação de um novo mundo.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

"Pedagogia do suprimido", de Zeh Gustavo

O poeta e sambista (membro do Terreiro de Breque) Zeh Gustavo lançou mais um livro de poesia, Pedagogia do suprimido (Verve, 2013). No Algo a dizer, em que escreve regularmente, pode-se ler uma entrevista sobre o livro, dada a Daniel Russell Ribas: http://www.algoadizer.com.br/edicoes/materia.php?MateriaID=1109
O autor havia me pedido uma pequena apresentação para a obra, que compartilho aqui:





Contar o nenhum: o suprimido em Zeh Gustavo




Em Pedagogia do suprimido, a alusão a Paulo Freire, desde o título, anuncia que a formação é um motivo principal desta obra. De fato é, porém no registro da falha, e nisso está uma das originalidades do livro. Zeh Gustavo afirma, no primeiro poema, que “A Pedagogia do Oprimido gostaria/ um homem que gerisse o próprio húmus.” Quem não pôde nascer de tal solo, o “sujeito amplamente espoliado”, o autor chama de suprimido.
Trata-se, pois, de imagens de uma formação fracassada, uma Bildung que não pôde se concretizar perfeitamente, uma filiação que fracassou e nisso encontrou seu triunfo, sua voz particular. O poeta nasce de uma falha da educação... Dessa forma, temos um inventário de dicções do interdito em poemas como “Interdicções”:

letras que não causaram cor
notas riscadas para a sombra dos discursos
horizontes desviados segundo a inapetência do dia
ditos olvidos de uma canção primeira

Trata-se também do fracasso necessário, da aspiração impossível de “O homem que queria ficar menino/ dentro do caderno de rasuras” (“Adultos não existem”). A máquina poética de viagem e lembranças prossegue em “Raia a noite que tudo expõe”: “Eu insisto e me sobrevém um sono fraco,/ sonhos me riem novamente,/ eu sou criança e durmo entre afagos/ dentro de minha casca,/ que teme.” Teme-se o difícil caminho, percorrido “fosso avante”, como se lê no poema dedicado ao ficcionista Marcelo Mirisola, “Da escola”.
Um fracasso necessário para a poesia, talvez: “A casa, toda a casa, logo foi ela/ quem sumiu dentro de alguém.” (“Casa de camas”). Da queda de uma colega de escola nascem, simultaneamente, as experiências com a arte e a morte, em um poema cujo título (“Sabiá sabia já”) invoca um dos símbolos do país, desde Gonçalves Dias.
É o país, portanto, que ensina a queda e conclama, dessa forma, à poesia? No poema “Tia Eulália”, afirma-se esta política inconformista desde a infância:

Tia Eulália não era da xiba,
mas revelava querer
juntar Marx e Freud
pruma teoria-mundo outra,
a Tia Eulália camarada

Formalmente, Zeh Gustavo busca o difícil equilíbrio entre ambos por meio da invenção de palavras e de um uso pessoal do léxico, em poemas escritos com versos livres e brancos. Nos melhores momentos surgem surpresas sintáticas (“A linguagem nos língua.”); nos menores, Manoel de Barros é evocado (“um assobio me entorta”).
O diálogo com a arte é outra das linhas de força do livro. Em “Fernando Toledo e Newton Cavalcanti”, encontramos outra solução para o suprimido: “Por sua vez, mudo que é mudo não cala:/ toca instrumentos inexistidos/ ou parcamente frequentados.”, e  a aposta nas linguagens artísticas que usem o silêncio para dizer o que é recalcado pessoal e socialmente, algo que somente poderia ser dito através da falha: “Meus brônquios falham intervalos musicais”, escreve em “A conta da carne”.
Nessa aventura de dizer a partir do censurado sem calar a censura, na tentativa de torná-la, ela mesma, poética, Zeh Gustavo dá um passo além do livro anterior, A Perspectiva do Quase. Agora, temos algo aquém do quase: “Conto palavras, uma por nenhuma.”


Pádua Fernandes
Autor, entre outras obras, dos livros de poesia Cinco lugares da fúria (São Paulo: Hedra, 2008), Cálcio (Lisboa: Averno, 2012), Código Negro (Desterro: Cultura e barbárie, 2013).