O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

"Pedagogia do suprimido", de Zeh Gustavo

O poeta e sambista (membro do Terreiro de Breque) Zeh Gustavo lançou mais um livro de poesia, Pedagogia do suprimido (Verve, 2013). No Algo a dizer, em que escreve regularmente, pode-se ler uma entrevista sobre o livro, dada a Daniel Russell Ribas: http://www.algoadizer.com.br/edicoes/materia.php?MateriaID=1109
O autor havia me pedido uma pequena apresentação para a obra, que compartilho aqui:





Contar o nenhum: o suprimido em Zeh Gustavo




Em Pedagogia do suprimido, a alusão a Paulo Freire, desde o título, anuncia que a formação é um motivo principal desta obra. De fato é, porém no registro da falha, e nisso está uma das originalidades do livro. Zeh Gustavo afirma, no primeiro poema, que “A Pedagogia do Oprimido gostaria/ um homem que gerisse o próprio húmus.” Quem não pôde nascer de tal solo, o “sujeito amplamente espoliado”, o autor chama de suprimido.
Trata-se, pois, de imagens de uma formação fracassada, uma Bildung que não pôde se concretizar perfeitamente, uma filiação que fracassou e nisso encontrou seu triunfo, sua voz particular. O poeta nasce de uma falha da educação... Dessa forma, temos um inventário de dicções do interdito em poemas como “Interdicções”:

letras que não causaram cor
notas riscadas para a sombra dos discursos
horizontes desviados segundo a inapetência do dia
ditos olvidos de uma canção primeira

Trata-se também do fracasso necessário, da aspiração impossível de “O homem que queria ficar menino/ dentro do caderno de rasuras” (“Adultos não existem”). A máquina poética de viagem e lembranças prossegue em “Raia a noite que tudo expõe”: “Eu insisto e me sobrevém um sono fraco,/ sonhos me riem novamente,/ eu sou criança e durmo entre afagos/ dentro de minha casca,/ que teme.” Teme-se o difícil caminho, percorrido “fosso avante”, como se lê no poema dedicado ao ficcionista Marcelo Mirisola, “Da escola”.
Um fracasso necessário para a poesia, talvez: “A casa, toda a casa, logo foi ela/ quem sumiu dentro de alguém.” (“Casa de camas”). Da queda de uma colega de escola nascem, simultaneamente, as experiências com a arte e a morte, em um poema cujo título (“Sabiá sabia já”) invoca um dos símbolos do país, desde Gonçalves Dias.
É o país, portanto, que ensina a queda e conclama, dessa forma, à poesia? No poema “Tia Eulália”, afirma-se esta política inconformista desde a infância:

Tia Eulália não era da xiba,
mas revelava querer
juntar Marx e Freud
pruma teoria-mundo outra,
a Tia Eulália camarada

Formalmente, Zeh Gustavo busca o difícil equilíbrio entre ambos por meio da invenção de palavras e de um uso pessoal do léxico, em poemas escritos com versos livres e brancos. Nos melhores momentos surgem surpresas sintáticas (“A linguagem nos língua.”); nos menores, Manoel de Barros é evocado (“um assobio me entorta”).
O diálogo com a arte é outra das linhas de força do livro. Em “Fernando Toledo e Newton Cavalcanti”, encontramos outra solução para o suprimido: “Por sua vez, mudo que é mudo não cala:/ toca instrumentos inexistidos/ ou parcamente frequentados.”, e  a aposta nas linguagens artísticas que usem o silêncio para dizer o que é recalcado pessoal e socialmente, algo que somente poderia ser dito através da falha: “Meus brônquios falham intervalos musicais”, escreve em “A conta da carne”.
Nessa aventura de dizer a partir do censurado sem calar a censura, na tentativa de torná-la, ela mesma, poética, Zeh Gustavo dá um passo além do livro anterior, A Perspectiva do Quase. Agora, temos algo aquém do quase: “Conto palavras, uma por nenhuma.”


Pádua Fernandes
Autor, entre outras obras, dos livros de poesia Cinco lugares da fúria (São Paulo: Hedra, 2008), Cálcio (Lisboa: Averno, 2012), Código Negro (Desterro: Cultura e barbárie, 2013).

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