O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCII: A Vala de Perus e os cemitérios sepultando a memória política

No dia 4 de setembro de 2024, ocorreu o aniversário de trinta e quatro anos da abertura da Vala de Perus. A descoberta dessa vala clandestina foi uma das confirmações do que os familiares de mortos e presos políticos afirmavam há anos: a ditadura militar matava e escondia os corpos. O Município de São Paulo participava dessa operação de crimes de lesa-humanidade por meio de seu sistema funerário, onde os restos mortais eram ocultados.

A Vala foi descoberta graças a Antônio Pires Eustáquio, funcionário que desconfiou das inumações sem registro de sacos de corpos no local. Por essa razão, ele foi homenageado em 2023 pela Câmara Municipal de São Paulo. 

A abertura da Vala aconteceu em 1990, na prefeitura de Luiza Erundina. Antes dessa primeira mulher prefeita da cidade, não havia condições políticas para isso. Deve-se lembrar que seu antecessor foi Jânio Quadros, cuja gestão autoritária levou a uma prorrogação da ditadura militar no Município de São Paulo, segundo a Comissão da Verdade da Prefeitura. 

Criméia de Almeida e Antônio Pires Eustáquio

Lá não havia 1049 corpos; esse era o número de sacos, e em alguns deles há mais de um indivíduo. E eles não eram todos opositores políticos, que são a minoria neste universo que inclui indigentes, mortos pela epidemia de meningite, assassinados pelo esquadrão da morte, ou seja, os indesejados da ditadura. 

O descaso com que esses remanescentes ósseos foram tratados no Unicamp (a primeira instituição que tentou identificá-los), no tempo em que ficaram lá, levou a mais misturas. Cito a respeito um capítulo do relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo 'Rubens Paiva", "A Formação do Grupo de Antropologia Forense para Identificação das Ossadas da Vala de Perus", escrito pela primeira equipe do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense da Universidade Federal de São Paulo que trabalhou com eles:

Em 2013, a Associação Brasileira de Anistiados Políticos (ABAP), a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, o Ministério Público Federal, com a participação da Polícia Federal, solicita à Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) um diagnóstico, a partir de 21 caixas com suspeitas de ser um desaparecido político, com base em amostra selecionada na etapa da Unicamp e refinada pela USP. Além disso foi feita uma avaliação das fichas de análise originais produzidas pela Unicamp. O resultado fora alarmante: muitos dos ossos nunca haviam sido limpos, estavam mofados e com fungos, as caixas molhadas, a umidade gerada por inúmeros plásticos grossos que envolviam os conjuntos ósseos também causou diversos danos, assim como sacos de tecidos que os envolviam acabaram por aderir aos fragmentos de ossos afetando a integridade dos mesmos; nas 21 caixas havia uma mistura de ossos, representando, portanto, 22 indivíduos; do conjunto, onde estaria suspeito de ser um desaparecido do sexo masculino, havia quatro mulheres e, na classificação etária havia pessoa com mais de 55 anos e um subadulto menor de 20 anos (EAAF, 20135). Ainda em 2013, um dia depois de um ato inter-religioso em homenagem às vítimas da ditadura, o columbário do Araçá fora invadido por pessoas até hoje não identificadas, o que evidenciou a vulnerabilidade em que se encontravam os remanescentes ósseos.

Essa primeira equipe, formada em 2014, era formada por Rafael Abreu Souza, Márcia Lika Hattori, Ana Paula Moreli Tauhyl, Luana Antoneto Alberto, Marina Di Giusto, Marina Gratão, Aline Feitoza Oliveira, Felipe Quadrado, Patrícia Fischer, Mariana Inglez e André Strauss.

O trabalho de identificação dos remanescentes, que é um dever oriundo do direito à memória à memória e à verdade, sofreu percalços também depois de 2014; na volta dos militares ao poder, com a tomada de poder por Bolsonaro, ele ficou praticamente paralisado. Agora retornou. 

O ato de 4 de setembro de 2024 foi organizado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, a Comunidade Cultural Quilombaque e o Projeto de Identificação de Remanescentes Ósseos do CAAF-Unifesp. 

Eu estava lá. A administração do cemitério Dom Bosco tentou IMPEDIR o registro do ato, que ocorreu no singelo memorial, um muro com uma inscrição no local onde era a vala, longe da área de velório. Amelinha Teles, da Comissão de Familiares, telefonou para o secretário municipal de direitos humanos e conseguiu a liberação.

A tentativa de censura é uma consequência da privatização do serviço funerário municipal, que não teve como consequência apenas o aumento do custo e a perda de qualidade no atendimento à população, mas também essas restrições de caráter político, embora o monumento, ele mesmo, não tenha sido privatizado.

Amelinha Teles, Adriano Diogo, Tereza Lajolo falaram da história da Vala. Lajolo foi a relatora da histórica CPI da Vala de Perus, criada em 1990 na Câmara dos Vereadores para investigar esse crime da ditadura; meu telefone tinha pouca memória, por isso não consegui gravar nada de sua fala, que foi a mais didática em explicar as descobertas da CPI. 

Tereza Lajolo e Aline Feitoza Oliveira

Laura Petit falou dos desaparecidos do Araguaia (entre eles, seus três irmãos; apenas Maria Lúcia Petit foi encontrada); Criméia Alice Schmidt de Almeida, ela mesma ex-guerrilheira do Araguaia, também. Vivian Mendes falou do aniversário de morte de Manoel Lisboa e Emmanuel Bezerra, dirigentes do Partido Comunista Revolucionário; ele seria rememorado no mesmo dia, às 15 horas, no cemitério Campo Grande, também em São Paulo.

Vivian denunciou que a administração do cemitério Campo Grande não sabia do memorial para os mortos da ditadura que lá existe e que, evidentemente, está em mau estado de conservação. Ocorre o mesmo com a memória política da ditadura, que os monumentos para os mortos e desaparecidos materializam e os remanescentes ósseos encarnam.

Cleiton Fofão falou do trabalho cultural que faz na Quilombaque com a memória dos Queixadas e da Vala de Perus, e da importância de Antônio Pires Eustáquio, e denunciou o apagamento do memorial de grafite (que será refeito) pela administração atual do Dom Bosco.

A imprensa não estava lá em Perus. Ela participa do esquecimento desta memória política da luta contra a ditadura. Estes singelos vídeos talvez sirvam de lembrança.









segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Desarquivando o Brasil CCI: Um livro premiado e um relatório desaparecido: a tese de Mônica Tenaglia e o relatório da Comissão da Verdade "Rubens Paiva"

O livro As comissões da verdade e os arquivos da ditadura militar brasileira, de Mônica Tenaglia, que a UnB publicou em 2024, ganhou menção honrosa no prêmio Capes de teses em 2020 na área de Ciências Sociais Aplicadas I e venceu o primeiro Jabuti Acadêmico, em agosto de 2024, na categoria de História e Arqueologia.

O tema é importantíssimo: os arquivos e as comissões da verdade brasileiras. As comissões, a partir do trabalho de décadas dos familiares de mortos e desaparecidos políticos (coligido no Dossiê Ditadura), pesquisaram e produziram uma documentação sobre graves violações de direitos humanos que serviu de fundamento para as movimentações no incipiente campo de justiça de transição no país. Por se relacionarem com o direito à memória e à verdade, o acesso e a disponibilização dos acervos das comissões correspondem a uma necessidade da democracia. 

A Revista do Arquivo [do Estado de São Paulo] publicou em 2016 volume sobre o assunto, do qual um artigo aparece entre as fontes da tese, mas não o texto que prefigura a problemática da autora: "A ditadura revisitada" já analisa se as comissões trataram dos arquivos em suas recomendações e como ocorreu o acesso à documentação na pesquisa.

Tenaglia trabalhou com relatórios de nada menos do que vinte comissões da verdade. Escrevo esta breve nota porque me surpreendeu que as informações sobre uma das comissões da verdade para que trabalhei, a do Estado de São Paulo "Rubens Paiva", estivessem em geral equivocadas.

Aparentemente, ela não encontrou o relatório inteiro da Comissão: a autora diz que ele tem 1912 páginas (p. 147 do livro físico; p. 122, da tese na biblioteca virtual da UnB), mas esse número corresponde a apenas o primeiro tomo (o terceiro, com as transcrições das audiências, é muito mais longo, e o quarto não é nada curto) e sem a introdução, como se pode ver no texto disponível portal Memórias Reveladas, que não possui o relatório completo da Comissão "Rubens Paiva": https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/estaduais/comissao-rubens-paiva-tomo_i_completo.pdf

Na ficha sobre a Comissão, Tenaglia afirma que não encontrou a nota metodológica (p. 146; p. 122, da tese na biblioteca virtual da UnB), que, de fato, não aparece em uma seção separada, mas existe e está na introdução do relatório, que aparentemente não foi encontrada - e nem poderia ter sido, se a pesquisadora só leu o texto de 1912 páginas, que contém os capítulos temáticos, mas é estranhamente desprovido dessa seção.

Tenaglia afirma que a Comissão não apresentou recomendações aos arquivos (p. 252 no livro físico; na tese disponível na biblioteca virtual, p. 211); no entanto, o que ela identifica e lista como "recomendações das comissões da verdade aos arquivos" podem ser encontradas em versões análogas no relatório da Comissão "Rubens Paiva"; listo-as:


Introdução:

- Imediata abertura de todos os arquivos da ditadura, em especial da polícia técnico-científica do Estado de São Paulo.

Capítulo O financiamento da repressão

6. Que sejam abertos todos os arquivos que existirem sobre a formação da Operação Bandeirante (Oban), sendo nomeados os seus financiadores.

Capítulo Métodos e técnicas de ocultação de corpos na cidade de São Paulo

3. Criar políticas públicas que auxiliem em formas de organização e documentação dos cemitérios públicos (mapas/plantas dos cemitérios, livros de registros dos sepultamentos e demais documentação);

Capítulo A formação do grupo de antropologia forense para a identificação das ossadas da Vala de Perus

13. Fomentar políticas públicas que auxiliem em formas de organização e documentação dos cemitérios públicos (mapas dos cemitérios, salvaguarda da documentação como os livros de registro de entrada);

Capítulo A sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil

4. Abertura dos documentos sobre a Guerrilha do Araguaia;

5. Investigação e responsabilização pela queima de arquivos relativos à Guerrilha do Araguaia;

Capítulo As violações de direitos dos povos indígenas

9. Destinação de fundos para fomento à pesquisa e difusão sobre as graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas, incluindo pesquisas acadêmicas, obras de caráter cultural e a reunião de documentação pertinente;

Capítulo A atuação dos advogados na defesa dos presos políticos

4. Abrir e investigar os arquivos militares e os arquivos vinculados à Operação Condor para apurar os crimes de estado que se deram fora do aparato do judiciário;


Essas recomendações temáticas aparecem duas vezes no relatório: no final dos respectivos capítulos e, para que pudessem ser lidas todas em conjunto, no final da introdução. Lembro que na enquete que fiz em 2018 com pesquisadores de treze comissões da verdade para a InSURgência, revista do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS), Maria Amélia de Almeida Teles (a Amelinha) reiterou que as recomendações sobre documentação não estão sendo cumpridas - assim como as outras.

Tenaglia afirma que "não foi possível localizar os acervos documentais de outras comissões da verdade locais no portal [Memórias Reveladas]" (p. 283 do livro físico; p. 208 da tese na biblioteca virtual da UnB), e que só o relatório da Comissão Nacional estaria lá. Trata-se de um equívoco. O portal, de fato, não tem todas, mas algumas estão lá, inclusive aquelas 1912 páginas da Comissão "Rubens Paiva":

Comissões estaduais: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/estaduais/

Comissões municipais: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/municipais

Comissões regionais: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/regionais

A tese foi defendida em 2019; não lembro se naquele momento a informação não estava disponível; uma vez que o texto não foi realmente atualizado para a publicação do livro de 2024 (a ficha de meu exemplar físico indica esse ano; mas a versão digital é anterior, de 2023), talvez uma interrupção da disponibilidade explique esse erro.

Mais adiante, vemos que a autora pediu ao Poder Executivo informação sobre o acervo da Comissão "Rubens Paiva" e recebeu a resposta de que "não havia responsabilidade do estado pela informação solicitada" (p. 284; página 208 da tese na biblioteca virtual), o que era correto, pois se tratava de uma comissão do Poder Legislativo e o princípio da separação dos poderes aplica-se à questão. Provavelmente ela deixou de fazer o pedido de informação à Alesp, o que teria evitado outro problema: a localização do acervo físico da Comissão.

Tenaglia tentou entrar em contato pela internet com os "ex-integrantes" da Comissão (p. 289); na prática, contudo, ela só teve um membro atuante: Adriano Diogo. Os outros deputados estaduais listados não participaram das atividades. Não sei de quem a autora recebeu a resposta de que "apesar de o acervo estar disponível na página virtual da Comissão da Verdade, o acervo físico não foi constituído" (p. 289; na tese disponível na biblioteca virtual, na página 211), no entanto, ele não só foi constituído como ajudei a encaixotá-lo. O setor de documentação da Alesp recebeu-o. Encontrei um dos responsáveis pelo setor na semana passada e ele me assegurou de que o acervo continua lá.

O que foi interrompido foi o acesso on-line ao relatório e aos milhares de documentos nele referidos. O servidor da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo volta a responder-me, no momento em que escrevo, que "O servico [sic] requisitado esta [sic] temporariamente indisponivel [sic] devido a sobrecarga ou manutencao [sic]. Por favor tente novamente mais tarde."


A Comissão encerrou seus trabalhos no final da legislatura, em março de 2015. Esse também foi o final do último mandato de Adriano Diogo, e a nova legislatura não se interessou nem mesmo em publicar no Diário Oficial o relatório. Na presidência da Alesp pelo deputado Fernando Capez (2015-2019), houve uma movimentação, iniciada por Diogo, para que houvesse uma publicação em livro, porém Capez a barrou afirmando que não havia dinheiro para isso.
Nessa época, porém, os links funcionavam na maior parte. Na transição do portal Verdade Aberta, o primeiro que abrigou o relatório, para o da Alesp, já houve uma perda: links quebrados de documentação dos mortos e desaparecidos políticos e capítulos faltando do livro Infância roubada, sobre as crianças que foram atingidas pela ditadura (está disponível, porém, em outra parte do portal da Alesp: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/bibliotecaDigital/20800_arquivo.pdf).
A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" foi a primeira no país (ela antecedeu a Comissão Nacional) e sua criação inspirou a multiplicação de órgãos congêneres no Brasil, o que foi uma marca deste país: em outros, como na Argentina, África do Sul, Chile, Equador não houve mais de uma comissão da verdade funcionando simultaneamente. 
A Comissão "Rubens Paiva" introduziu temas como gênero e homossexualidades no debate das comissões. Um tema como a perseguição à população e aos movimentos negros, por exemplo, foi abordado por esta Comissão, e não pela Nacional.
Era importante que este trabalho de milhares de páginas voltasse a ficar disponível para que as iniciativas de memória, verdade e justiça partissem deste patamar de informação e de documentação, e não tenham que refazer (com o risco de lacunas e equívocos) o que já foi pesquisado.
O esquecimento institucional faz tabula rasa das pesquisas já consolidadas. A Alesp deveria resolver esse problema, que diz respeito à história do povo brasileiro e de sua própria história, eis que a "Rubens Paiva" foi uma das comissões mais importantes do Poder Legislativo de São Paulo.

domingo, 25 de agosto de 2024

César Braga-Pinto e as dissidências de gênero na literatura brasileira de 1850 a 1950

Saiu na revista 451 uma resenha que fiz, "O arco-íris e a nação", sobre os dois livros mais recentes em português de César Braga-Pinto: o volume de ensaios Poses e posturas: performances de gênero e sexualidade na literatura brasileira (1850-1950) e a antologia de contos O homem que passou por baixo do arco-íris: e outras histórias sobre sexualidades, gênero e dissidência entre 1880-1950, ambos publicados pela Alameda em 2023. São trabalhos fundamentais para rever a história da literatura brasileira, que não pode fugir do reconhecimento da importância dessas representações das dissidências de gênero, que foram mais influentes no Brasil, explica Braga-Pinto, do que na América hispânica.

As duas obras, juntas, somam mais de novecentas páginas. Por isso, tive de cortar alguns trechos para que a resenha coubesse dentro do espaço do periódico. Sacrifiquei Joaquim Manuel de Macedo, Coelho Neto e José Lins do Rego; doeu-me bastante fazê-lo, pois o ensaio sobre Coelho Neto, em especial, é muito esclarecedor. Parte da análise da antologia também teve que ser apagada, inclusive minha lembrança de Diadorim, talvez impertinente. Se alguém tiver curiosidade, e se isto servir para aguçar o interesse pelo trabalho de César Braga-Pinto, eis os trechos cortados:


[...] Com esse tipo de leitura, ele se interessa por autores secundários (que ele reconhece como tal), porém relevantes para o quadro analisado, e também por escritores canônicos (re)vistos por este prisma. [...]
A partir desses autores, o crítico realiza saltos teóricos de longo alcance; no primeiro ensaio, a partir do travestimento das mulheres que tentavam se alistar para lutar contra o Paraguai e o culto aos militares que se destacaram na Guerra da Tríplice Aliança, Braga-Pinto desvenda “uma genealogia da nacionalidade desracializada” e a criação do “protótipo do novo homem republicano” (p. 39), em um “período crítico na redefinição das categorias de gênero e, principalmente, de masculinidade do Brasil oitocentista” (p. 41).
O ensaio sobre Coelho Neto trata da figura do andrógino, que aparece diversas vezes em sua obra, destacando o romance Esfinge, de 1908, que explorou “questões de gênero (híbrido) e sexualidade” “de forma praticamente inaudita” (p. 57). Na comédia O patinho torto, dez anos posterior, com a personagem Eufêmia, que se revela um homem, “as categorias de gênero são atribuídas menos à biologia do que ao costume e à gramática” (p. 68).
[...]
João do Rio “manipula, em proveito próprio, o conceito de imitação, tornando-o um mecanismo de reconhecimento, sobrevivência, aceitação e ascensão social” (p. 168). Nesse brilhante ensaio, Braga-Pinto ainda corrige Davi Arrigucci Jr. e Brito Broca sobre a importância da recepção de Wilde, que ensejou uma “complexa negociação de novos valores estéticos, subjetividades e desejos” (p. 180).
O ensaio sobre José Lins do Rego centra-se no romance O moleque Ricardo e apresenta menos novidades do que os outros do livro; ele termina com uma curiosa tentativa de dirigir o brilhante diretor de cinema Hilton Lacerda para hipotética filmagem do romance, o que parece reproduzir uma postura de scholar a querer guiar os artistas.
[...]
Em outros textos, falei do paradigma da “medicina moral” como dominante no direito urbano brasileiro do fim do século XIX e início do XX. O mesmo se verifica na literatura da época: a partir de um enfoque cientificista, o discurso médico é empregado para legitimar condenações de cunho moral contra as chamadas dissidências de gênero: nos contos, uma personagem feminina de Medeiros de Albuquerque morre simplesmente por experimentar um primeiro orgasmo (e com um homem negro); a homossexualidade é categorizada como “anomalia estrutural’ no “barro humano” (Carlos Vasconcelos, p. 228). As histórias de travestis e transexuais muitas vezes se passam durante o Carnaval, mas, quando se dão fora dele, muitas vezes terminam com a morte violenta da personagem. Seria de se pensar se um romance genial Grande Sertão: Veredas não encontra parte de sua genealogia nesse tipo de literatura que trata de dissidências e gênero.
Braga-Pinto vê com simpatia um conto de Nestor Vitor que começa com um relacionamento amoroso entre dois rapazes, que não recebe condenação moral do narrador; no entanto, ele segue o mesmo paradigma: o personagem principal, depois do relacionamento com o rapaz, vai passando por um declínio social e psíquico; descobrimos que o pai havia enlouquecido. Incorporando a noção de tara familiar, o conto parece uma ilustração das teorias psicopatológicas da época. O conto renegado de Lygia Fagundes Telles, a obra que fecha o volume, significativamente chama-se “Tara”.
[...]


quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Deu Fim

O ângulo de noventa graus

do pau de arara com a parede

assegura o dez por cento

de crescimento do PIB.


A precipitação de duzentos metros

de napalm nas aldeias

assegura o dez por cento

das fardas no garimpo.


-- Nunca falei em bolos. Confundiram com a palavra balas. Elas se multiplicam sobre vocês.


Dois milhões de francos 

para grampos e alicates 

assegura o dez por cento

das malas diplomáticas.


Menos vinte volts

para a cadeira do dragão 

assegura dez por cento

do valor dos fornos crematórios.


-- A ciência provou que o coração bate um milhão e quatrocentas mil e tantas vezes. Depois disso, paralisa-se. Por isso a ginástica acelera a morte, quase como se fosse um economista.


Trinta por cento de fraude

no índice de preços

assegura dez por cento

dos votos no partido governista.


A economia de seis azeitonas

nos jantares empresariais

assegura dez por cento

a mais de desaparecimentos forçados.


-- Se tiverem fome, terão que migrar. Aceitarão até trabalho sem salário e os empresários poderão investir mais. A Economia lida com recursos finitos. Acabar com a fome não tem fundamento científico. Passe o caviar, por favor.


A duplicação de algemas

nas eleições de sindicatos

assegura dez por cento 

dos canapés das multinacionais,


assim como a triplicação 

de granadas na dívida externa

assegura dez por cento

da erudição do economista.


-- O povo deixou de me eleger. Mas jornalistas, políticos da esquerda, professores e editores escolheram-me seu representante perpétuo. A democracia funciona.


A quintuplicação dos ais

assegura há cinquenta e cinco anos

cem por cento do chicote

sobre as domésticas e outros animais.


 -- A democracia funciona.


segunda-feira, 15 de julho de 2024

Subterrâneo do anjo e aniversário de Walter Benjamin

Como 15 de julho é dia de aniversário do filósofo Walter Benjamin (nascido em Berlim, 15 de julho de 1892; suicidado pelos nazistas em Portbou, 27 de setembro de 1940), vou  deixar aqui este poema que escrevi a partir da famosa Tese IX sobre o conceito de história.

Conto por que decidi finalmente abordar o tema, depois de pensar nele por muito anos. Gustavo Silveira Ribeiro me pediu um poema em 2022 para o terceiro número da revista Ouriço com o tema  de "poesia e história". A ideia realmente óbvia que eu tinha era partir de Benjamin, que escreveu tanto sobre poesia quanto sobre história e percebeu a necessidade de entender a história por meio dos poetas, especialmente, mas não exclusivamente, nos seus estudos sobre Baudelaire e Paris.

Ademais, Benjamin escrevia poeticamente, digamos assim, porque evidentemente refletia por meio de imagens. Comprova-o, entre outros textos, a Tese IX, com sua referência ao quadro de Paul Klee (aproveito e deixo aqui a referência a vídeos de Eduardo Sterzi para a revista FronteiraZ sobre poesia e imagem: https://www.youtube.com/watch?v=Qoa1RgwRfHM).



Eu guardei esse motivo do conceito de história por muitos anos em algum escaninho mental, adiando até o o momento em que me sentisse preparado, o que evidentemente jamais aconteceria. Resolvi finalmente enfrentá-lo com o pretexto da encomenda, que enviei no fim de 2022. Continuo com esse motivo; o "Subterrâneo do anjo" foi apenas o primeiro movimento.

Vejam os autores incluídos na revista, lançada em 2024 com o tema, finalmente alterado, da imaginação. Apesar de eu ter tratado de outras coisas, relativas à encomenda original, os editores tiveram a delicadeza de incluir meu poeminha. O próprio Walter Benjamin, que escreveu também sobre imaginação, está lá, por sinal. 

Essa é uma revista que tem muita procura (seus números esgotam, o que não acontece sempre com os periódicos de poesia), mas ainda está disponível para venda. Como o meu poema saiu lá com a formatação errada, deixo-o aqui também.



Subterrâneo do anjo


Pádua Fernandes





I


Na primeira vez em que fui assassinado pela polícia nacional,

a câmara de gás era portátil,

cabia no porta-malas da viatura.

Na primeira vez em que fui cremado pela polícia nacional,

dispensaram a viatura,

o campo de concentração era o meio de transporte para o país.

Na primeira vez em que a polícia nacional dispersou minhas cinzas,

o hasteamento da bandeira dispensou campos de concentração.

Na primeira vez em que a polícia nacional se cobriu de cinzas

a gentil brisa nascida do despir das togas

antes da sauna vespertina

removeu das fardas o pó.


– O poema mente: os editais para a construção de campos de concentração seguiram quase todas as regras, as empresas agroexportadoras em consórcio com os bancos de investimento venceram a concorrência.

– Mas o Ministério Público fez bem quando opinou pela nulidade do resultado, as empresas de seguro saúde têm notória especialização na matéria!

– O pedido de vistas de um Ministro interrompeu o julgamento quando já se tinha formado maioria para que o edital fosse interpretado de acordo com a Constituição: cotas raciais, sociais e de gênero deveriam ser impostas nos campos.


Na primeira vez em que a criança foi impedida de abortar

e a juíza apontou para o crucifixo do fórum

e o estupro celebrou a família tradicional

e a direita lançou campanhas eleitorais com vouchers para granadas

e a juíza perguntou se a criança acreditava em bonecas

que nasciam na barriga das meninas

e a ministra de direitos humanos explicou a felação infantil sem dentes

para os fiéis interessados

e os eleitores cobriam de cédulas a pastora morta durante o culto

até que ela ressuscitasse sob o peso asfixiante

e os juízes vedaram o aborto legal à criança

pois eram competentes para abortar a legalidade,

os escombros da repetição da primeira vez

fizeram sombra ao sol

e alguns se perguntaram

se era só a noite ou o fascismo;

outros, se era só o fascismo

ou o país. 


– O poeta erra: ele escreve como se existisse algo como o nascimento.

– Era melhor que ele não tivesse nascido. Mas isso pode ser remediado.


Na primeira vez em que morreram cem mil

e os liberais trocaram as políticas de saúde pela dispneia,

na primeira vez em que morreram duzentos mil

e os militares torturaram vacinas em nome da segurança nacional,

na primeira vez em que morreram trezentos mil

e o planeta foi considerado oficialmente plano,

na primeira vez em que morreram quatrocentos mil

e drogas para piolho foram enviadas para as aldeias,

na primeira vez em que morreram quinhentos mil

e a imprensa burguesa louvou a direção correta,

na primeira vez em que morreram seiscentos mil

e os parlamentares trocaram covas por votos,

na primeira vez em que morreram setecentos mil

e a bolsa disparava com os índices da fome,

na primeira vez em que morreu um milhão

e os algarismos foram considerados subversivos,

na vez alguma em que ninguém morreu,

jamais a produtividade do sistema político,

dos juros e do mercúrio

que substituiu os peixes nos rios pátrios

desceria a zero.


– Isto nem parece com poesia, ele faz é ativismo do movimento "Todas as árvores de pé", ramificação que brotou do movimento comunista internacional.

– É para derrubar o cara?

– Claro. Os versos sobre os milhões desviados para tratar a disfunção erétil das forças armadas ameaçam a higidez do Estado.


Na primeira vez em que não se via nada que não fosse polícia,

os olhos do capitão úmidos do adeus ao orçamento público

pingavam polícia,

o patrocínio latifundiário para os cantores da trilha sonora da tortura de camponeses

comprava a polícia,

o desaparecimento do boletim de ocorrência

da chacina de mulheres transexuais

ostentava a presença da polícia,

enquanto as gargalhadas do jornalista e do economista com a notícia de mais um estrangulamento de negros

(diminuição benfazeja do défice da previdência, explicou o economista;

este pessoal ruim de bola nem sabe posicionar o joelho em cima de um pescoço, criticou o jornalista),

queriam esconder a polícia.


– Com as escolas cívico-militares, nada disto será lido pelos estudantes.

– Se elas derem certo, eles não lerão mais nada!

– Assim, poderemos economizar a munição para alvos mais importantes, como alunos de cabelo africano.


A primeira vez em que a polícia nacional atirou no menino autista que não disse como se chamava

e as folhas caídas sobre o corpo encontrado uma semana após reproduziam o mapa do Estado,

a primeira vez em que a federação das indústrias inflou patos gigantes nas ruas

e o golpe de Estado era o que se via no espelho dos palácios,

a primeira vez em que juízes pegaram os papéis deixados sob o pau de arara

para ler nas manchas a lei que aplicariam,

ou aquela em que se decidiu pela incineração coletiva para privatizar com higiene os cemitérios,

ou nesta em que o desvio de verbas da educação para estandes de tiro

levou ao monopólio dos prêmios literários por rascunhos de oficina.


– Antes de explodirmos a casa, ele acrescentou: "Não há primeira vez. Que seja abolido o mito da origem". Não entendi.

– Não teve tempo de terminar o poema. Lerdo. A detonação é o espaço do verso.


Também na primeira vez em que a Terra se tornou redonda

assassinos, togas e cruzes se levantaram.



II


Moramos nos escombros.

Resistimos nos escombros.

Somos feitos dos escombros.

Neste país eles chegam até o céu.

Cairemos sobre vocês.


Nem mesmo voando escaparão

pois soterraremos o anjo.



Encerrada a ilusão das asas,

a história poderá começar.


segunda-feira, 1 de julho de 2024

Encontro de exílios: um soldado, o Diabo, Stravinsky e a Bolívia no SESC

Um dos momentos mais esperados da música em São Paulo é o Festival  SESC de Música de Câmara. Neste ano, só pude ver, em 9 de junho, A História do Soldado, peça de 1918 com música de Stravinsky e texto de Charles-Ferdinand Ramuz, que foi tocada por La Sociedad Boliviana de Música de Cámara, regida por Leonard Evers, e encenada por Leonardo Ventura. O texto, apresentado em português, foi adaptado pelo escritor boliviano Gabriel Mamani Magne.

Chamei de peça, mas o que é A História do Soldado? O Kobbé a incluiu em seu dicionário de ópera, embora não tenha canto. O espetáculo original, certamente sui generis, envolve um narrador, atores, bailarinos e um conjunto de câmara.

No SESC, não houve balé e Leonardo Ventura assumiu todas as partes faladas, inclusive o proto-rap que o Diabo deve emitir pouco antes do fim. A adaptação foi muito interessante. Gabriel Mamani Magne transpôs a história de Ramuz para a Bolívia e o Brasil. 

Em verdade, não houve mera transposição, mas metamorfose: o espetáculo começa antes de os músicos entrarem em cena com Ventura trabalhando com uma máquina de costura, sacos de retalhos em volta, e o som toca notícias da Bolívia, especialmente questões sobre o câmbio, tão importante para imigrantes. As projeções no fundo são imagens daquele país. 

O imigrante trabalhava em São Paulo, numa tecelagem; nessa cidade, casos de trabalho em condições análogas à escravidão encontram-se justamente com estrangeiros, muitas vezes em situação irregular no país, e nesse campo de atividade. Leonardo Ventura teve a ideia de enredar-se nos fios da tecelagem, em um efeito visual marcante. 

No fim da música, voltávamos à máquina de costura e aos retalhos e às notícias em áudio sobre a Bolívia. O Diabo vencia, confundindo-se com a dinâmica do capital que obriga os imigrantes a deixarem seus países e muitas vezes os mergulha em condições degradantes de trabalho. 

Na história de Ramuz, o soldado é iludido pelo diabo e fica três anos fora de casa. Neste espetáculo, o imigrante ficou dez anos (em vez de dez dias) e por isso não é mais reconhecido quando volta: tudo mudou na sua terra natal e sua noiva casou-se.

Chegou a ser dito que a escolha de Ramuz provaria a falta de gosto de Stravinsky para a literatura; Celso Loureiro Chaves, nas notas que fez à publicação separada do verbete do Grove sobre Stravinsky (escrito por Eric W. White e Jeremy Noble), menciona a "evidente disparidade" entre o texto e a música. No entanto, a brilhante adaptação de Mamani Magne confere mais concretude à história e a melhora sensivelmente. 

A execução musical foi feliz nos momentos de dança, como no tango, mas não tanto nos de maior violência, com exceção do solo final da brilhante percussionista, Paola Machicado Torres, que representou a vitória final do Diabo. O maestro e colaborador de Stravinsky Robert Craft, em seu diário, contou que Genet dissera a ambos que a voz do compositor lembrava os instrumentos de percussão n'A História do Soldado, o que era uma boa observação. Na ópera "The Rake's Progress", Stravinsky transformaria em música outra vitória do Diabo.

O espetáculo paulista/boliviano, aparentemente tão pouco ortodoxo, fugiu ao espirito do original? O adaptador, no texto do programa, falou de sua experiência pessoal como boliviano que mora no Brasil; ele quis abordá-la porque "Quando li a obra pela primeira vez, só pensei numa pessoa que está cansada de andar e quer volver para a sua terra". "Volver", e não a palavra "voltar"; de certa forma, ao menos no vocabulário, ele não deixou seu país.

Este Festival SESC trouxe muitos músicos bolivianos, o que seria outro motivo para a adaptação. Creio, porém, que, a mudança para a questão do imigrante, embora na América Latina, realmente aproxima o espetáculo de Stravinsky, inclusive em termos biográficos: o compositor russo migrou depois da Revolução de 1917 e teve de morar em diversos países. Em 1918, ele já tinha percebido que não poderia voltar depois de os bolcheviques terem tomado o poder. Ele estava exilado na Suíça. Em 1920, mudou-se para a França, onde ficaria alguns anos. Com a Segunda Guerra Mundial, mudou-se para os Estados Unidos.

A questão do exílio, na verdade, está no centro dessa peça, mas só fui capaz de percebê-la quando vi este espetáculo em São Paulo. Ele teve a capacidade de aproximar-se de Stravinsky por meio de um deslocamento: transpondo-a para a América Latina, percebi o que sempre esteve lá na obra concebida na Suíça. Trata-se do efeito próprio da poesia: deslocamento de palavras e imagens para ver melhor o que sempre esteve presente, ou passou a estar sempre presente depois de ter sido visto.

Na poesia, o exílio pode tornar-se lugar de encontro; esse foi impacto da renovada História do Soldado  no Festival SESC de Música de Câmara.


P.S.: Eu quase tinha acabado de escrever esta nota quando aconteceu a tentativa de golpe de Estado na Bolívia, felizmente malogrado. Cito a reação de Mamani Magne: "Cada vez que un militar habla de patria cae sangre. Zúñiga habló de patria y dios, la ecuación letal. Hay que cuidar la democracia porque hay que cuidar vidas. No olvidemos que las balas nunca llegan a las cabezas, sino a los más vulnerables".