O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 1 de março de 2024

Desarquivando o Brasil CXCVIII: Curso 10 Anos do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, 60 Anos do Golpe de 1964


Ministrarei um curso presencial no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP em 8 de março, das 15 às 18 horas, de título 10 Anos do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, 60 Anos do Golpe de 1964.
No ano passado, escrevi uma proposta pensando inicialmente em um curso mais longo. Adaptei-a para o SESC e propus uma atividade de três horas para introdução à leitura do relatório da CNV, pensando em três tempos: os antecedentes da Comissão; a elaboração do relatório e sua estrutura; consequências do documento. 
Creio que dará certo pois testei o formato na Calourada da Faculdade de História da USP, a convite do Centro Acadêmico, em 26 de fevereiro, em um tempo bem menor de fala.
A propósito, fiquei feliz com o convite e o interesse dos estudantes, que pareceram me confirmar a importância de o relatório da CNV ser mais conhecido por causa da atualidade das questões tratadas, da potencialidade de fundamentar demandas de justiça e do fato de tão pouco das suas recomendações para reformar as instituições e evitar a repetição das graves violações de direitos humanos ter sido implementado. Se pensarmos no governo federal passado, tivemos diversas vezes justamente o oposto do que a CNV recomendou, com os nefastos resultados conhecidos.
Não ignorarei, claro, outras iniciativas de justiça de transição: na foto da propaganda, veem-se relatórios e livros da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, do Brasil: Nunca Mais, de outras comissões da verdade e o pioneiro relatório argentino, o Nunca Más da Conadep (Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas).
O relatório argentino foi publicado em 1984 no primeiro governo civil, o de Raúl Alfonsín, após a última ditadura militar. No Brasil, algo bem diverso ocorreu: José Sarney tomou posse em 1985 e jamais se interessou pela criação de uma comissão da verdade, tampouco os governos subsequentes, até a lei de 2011 que previu a CNV,
Este é o programa que escrevi para o portal do SESC-SP:

Trata-se de atividade de introdução à leitura do relatório da Comissão Nacional da Verdade, abordando três tempos: a) os antecedentes da Comissão (como a campanha pela Anistia, o "Brasil: Nunca Mais", a lei dos desaparecidos políticos e os processos relativos à Guerrilha do Araguaia); b) o relatório: sua elaboração (método de trabalho e relação com outras comissões da verdade e as Forças Armadas) e estrutura (divisão em volumes e temas); c) as consequências do documento: a efetividade de suas recomendações e a repercussão sobre movimentos sociais e outras comissões. A proposta parte da importância das questões de memória e verdade para a democracia, contra a negação e/ou a exaltação dos crimes da ditadura.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Desarquivando o Brasil CXCVII: "O intento golpista e, consequentemente, criminoso": minutas de golpe e atos institucionais

As investigações da Polícia Federal sobre os ataques às sedes dos três Poderes por apoiadores de Bolsonaro levaram, desde 2023, à descoberta de minutas de golpe de Estado com Anderson Torres, ex-ministro de Jair Bolsonaro, com Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do mencionado inelegível, e na própria sala no Partido Liberal (PL) do referido ex-ocupante da presidência da república.
O Direito, entre outras várias coisas (prática social, estrutura institucional, pacto entre particulares) é uma linguagem do Estado. Por isso, esse tipo de ato de rompimento do estado de direito, em geral, formaliza-se juridicamente. Trata-se de um paradoxo que é constitutivo do Direito: ele pode ser transformado também pela própria violação, como alertou, entre outros, Hans Kelsen. Ademais, o momento atual dos golpes na América Latina passa pelo uso distorcido dos instrumentos jurídicos: medidas de lawfare, impedimento sem crime de responsabilidade, como aconteceu com Dilma Rousseff, autorização inconstitucional da reeleição, como fez Bukele em El Salvador controlando o Judiciário etc.
No entanto, é importante, tanto por questões jurídicas quanto políticas, notar que teria ocorrido uma ruptura institucional, caso alguma das minutas tivesse sido editada. A tentativa de golpe de Estado teria como finalidade a manutenção de Jair Bolsonaro no poder segundo as investigações da Polícia Federal até o momento.
Houve quem lembrasse, diante das minutas de decretos golpistas, dos atos institucionais da ditadura
militar. Eles eram normas jurídicas impostas pelo Poder Executivo federal que fugiam à Constituição e ajudaram a institucionalizar o regime de arbítrio. Nesta nota, tento pensar um pouco na comparação.
É verdade que os próprios partidários e admiradores do militarismo já o fizeram, antes mesmo da campanha (a oficial) de Bolsonaro à presidência da república: em 2014, Dilma Rousseff derrotou Aécio neves nas urnas. O PSDB questionou o resultado e agiu para desestabilizar politicamente o governo reeleito. No início de 2015, as passeatas convocadas com ajuda da grande imprensa para derrubar a presidenta reeleita contaram com pedidos de "intervenção militar", "AI-5" e tiveram como estrela até antigos agentes da repressão processados pelo Ministério Público. Conto um pouco desse processo no meu livro mais recente, Ilícito absoluto: a família Almeida Teles, o coronel C. A. Brilhante Ustra e a tortura (Patuá, 2023).
Rememoro aqui só alguns exemplos. O filho deputado federal de J. Bolsonaro, de nome Eduardo, então no PSL de São Paulo (quando o pai fracassou na criação de um partido próprio e acabou migrando para o PL, o filho acompanhou-o), em 31 de outubro de 2019 resolveu ameaçar "a esquerda" no Brasil com um novo AI-5. Em 19 de abril de 2020, Jair Bolsonaro participou de ato no quartel-general em Brasília; os manifestantes pediam simultaneamente, com a dissonância cognitiva típica dos adeptos de Bolsonaro, AI-5 e liberdade de expressão
Em junho de 2020, o antigo assessor de Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, foi preso em imóvel de um advogado ligado a Jair Bolsonaro, Frederick Wassef; lá estava um cartaz do AI-5 de decoração.
Em 8 de fevereiro de 2024, ficou um pouco mais clara a nova tentativa de metodologia jurídica do arbítrio com o que foi revelado pela decisão de 26 de janeiro de 2024 do Ministro Alexandre de Morais no âmbito da Petição 12.100 Distrito Federal, sobre (eis o longo objeto) o "eixo de atuação 'tentativa de Golpe de Estado e de Abolição violenta do Estado Democrático de Direito', com operação de núcleos e cujos desdobramentos se voltavam a disseminar a narrativa de ocorrência de fraude nas eleições presidenciais, antes mesmo da realização do pleito, de modo a viabilizar e, eventualmente, legitimar uma intervenção das Forças Armadas, com abolição violenta do Estado Democrático de Direito, em dinâmica de verdadeira milícia digital":

A representação contempla vasto relato de complexa e coordenada atuação de organização criminosa, direcionada a propósito que inviabilizaria a manutenção do arranjo político do país, por meio da adoção de medidas que estipulavam estratégias de subversão da ordem jurídico-constitucional e adoção de medidas extremas que culminaram na decretação de um Golpe de Estado, tudo a fim de assegurar a permanência no poder do então Presidente JAIR MESSIAS BOLSONARO.
A concorrência de todos os investigados em comento, maior ou menor medida, para o intento golpista e, consequentemente, criminoso pode ser inferida a partir dos elementos informativos que guarnecem a representação policial e foram anteriormente expostos.

"Intento golpista e, consequentemente, criminoso", escreveu o Ministro. De fato. Note-se, porém, que a decisão está gramaticalmente errada: em vez de "culminaram na decretação de um Golpe de Estado", deveríamos ter "culminariam na decretação de um Golpe de Estado", eis que a medida de exceção não chegou a termo.
No  aditamento à decisão, de 7 de fevereiro de 2024, seria incluído Valdemar Costa Neto, presidente do Partido Liberal (PL), pelo qual Jair Bolsonaro concorreu à reeleição, e cuja estrutura teria sido usada para a tentativa de abolição do estado democrático de direito: "A concorrência de todos os investigados, inclusive no que diz respeito a VALDEMAR COSTA NETO, em maior ou menor medida, para o intento golpista e, consequentemente, criminoso".
Em 1964, a formalização jurídica do golpe foi realizada por meio do chamado Ato Institucional. Em 2022, preocupou-se com uma formalização, mas por meio de decreto. Nos dois momentos históricos, tratou-se de normas próprias do chefe do Executivo. Segundo a Polícia Federal, a minuta de golpe incluía a prisão de alguns Ministros do STF, do Presidente do Senado (não o da Câmara dos Deputados, que, coincidentemente, já fez campanha para Bolsonaro), além de convocar novas eleições. Cito a decisão de 26 de janeiro de 2024 do Ministro Alexandre de Morais:

os elementos informativos colhidos revelaram que JAIR BOLSONARO recebeu uma minuta de Decreto apresentado por FILIPE MARTINS e AMAURI FERES SAAD para executar um Golpe de Estado, detalhando supostas interferências do Poder Judiciário no Poder Executivo e ao final decretava a prisão de diversas autoridades, entre as quais os ministros do Supremo Tribunal Federal, ALEXANDRE DE MORAES e GILMAR MENDES, além do Presidente do Senado RODRIGO PACHECO e por fim determinava a realização de novas eleições. Posteriormente foram realizadas alterações a pedido do então Presidente permanecendo a determinação de prisão do Ministro ALEXANDRE DE MORAES e a realização de novas eleições.

O Ministro escreveu que "Nesse contexto, está comprovada a materialidade dos tipos penais de tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito (art. 359-1 do código penal) e de tentativa de golpe de Estado (art. 359-M do Código Penal)". Ele citou as conclusões da Polícia Federal:

Os elementos fornecidos pelo acordo de colaboração demonstram que FILIPE MARTINS levou ao então Presidente JAIR BOLSONARO, no mês de novembro de 2022, um documento que detalhava diversos ''considerandos'' (fundamentos dos atos a serem implementados) quanto a supostas interferências do Poder Judiciário no Poder Executivo e ao final decretava a prisão de diversas autoridades, entre as quais os ministros do Supremo Tribunal Federal, ALEXANDRE DE MORAES e GILMAR MENDES, além do Presidente do Senado RODRIGO PACHECO. O assessor teria sido acompanhado do advogado AMAURI FERES SAAD. O então Presidente JAIR BOLSONARO teria solicitado a FILIPE MARTINS que fizesse alterações na minuta, tendo o mesmo retornado alguns dias depois ao Palácio do Alvorada e alterado o documento conforme solicitado. Após a apresentação da nova minuta modificada, JAIR BOLSONARO teria concordado com os termos ajustados e convocado uma reunião com os Comandantes das Forças Militares para apresentar a minuta e pressioná-los a aderirem ao Golpe de Estado.

A decisão de janeiro afirma que "Embora a atuação da organização tenha se acentuado ao longo do ano de 2022, é certo que, desde 2019, já se anteviam condutas de integrantes do grupo direcionadas a propagar a ideia de vulnerabilidade e fraude no sistema eletrônico de votação do país como apontado na presente investigação e nos INQ 4781 e INQ 4878." Na verdade, como estratégia eleitoreira, era anterior: o incitamento à desconfiança no sistema eleitoral fez parte da estratégia de campanha do então candidato J. Bolsonaro em 2018: seus adeptos reforçavam o discurso de que, se ele não tivesse vencido, não teriam aceitado o resultado das eleições. A desconfiança sobre as urnas eletrônicas foi reforçada por J. Bolsonaro durante o mandato.
A investigação da polícia federal dividiu a ação em cinco núcleos: de desinformação a ataques à Justiça Eleitora, o jurídico, o operacional de apoio às ações golpistas, de inteligência paralela e de oficiais de alta patente. O jurídico seria formado por Filipe Garcia Martins Pereira, Anderson Gustavo Torres, Amauri Feres Saad, o padre José Eduardo de Oliveira e Silva e o ajudante do ocupante da presidência, o militar Mauro Cesar Barbosa Cid. Dito isso, a origem das minutas ainda é incerta.
A minuta encontrada em 12 de janeiro de 2023 na casa de Anderson Torres, ex-ministro da justiça do governo de Bolsonaro e ex-secretário de segurança do Distrito Federal na época do 8 de janeiro de 2023, foi publicada na imprensa em 2023. Ela se baseava juridicamente na competência do Presidente da República de "decretar o estado de defesa e o estado de sítio;" (art. 84, IX da Constituição da República). No entanto, era o caso de decretar esses estados, que levariam à limitação de direitos constitucionais e inflam os poderes da presidência da república?
A decretação do estado de defesa, que levaria à intervenção na Justiça Federal, segundo o artigo 136 da Constituição, tem como finalidade "preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza".
Ou seja, não era o caso. Se a ordem pública ou a paz social sofriam instabilidade, ela vinha do próprio ocupante da presidência da república e de seus aliados e/ou admiradores. Estaria em jogo o velho princípio de que não se deve beneficiar da própria torpeza. 
No Conselho da Defesa, o Executivo tem maioria. No Conselho da República, a aliança com os líderes do Senado e da Câmara seria importante para a aprovação. De qualquer forma, ele estaria em uma posição de força, em um congresso em que a direita e extrema-direita já tinham maioria, de impedir que um governo de centro-esquerda eleito fosse empossado.
A minuta de decreto golpista criaria um grupo executivo do golpe, apelidado de Comissão de Regularidade Eleitoral, cuja composição, no artigo 5o., seria determinada em boa parte pelo Ministério da Defesa: ficava evidente a iniciativa militar do golpe. A OAB, a ONU e talvez a OEA (com a anotação "Avaliar a pertinência da manutenção deste dispositivo na proposta") seriam convidadas a participar do golpe. Essa comissão de intervenção na Justiça Eleitoral prepararia um relatório sobre as eleições, a ser entregue à presidência da república. 
O decreto não mencionava a perseguição a pessoas específicas, mas previa a "prisão por crime contra o Estado". À semelhança dos atos institucionais da ditadura, previa que o Judiciário não poderia "impedir ou retardar" as ações da comissão golpista; no entanto, as prisões poderiam ser relaxadas por decisão judicial:

Art. 3° Na vigência do Estado de Defesa:
I – Qualquer decisão judicial direcionada a impedir ou retardar os trabalhos da Comissão de Regularidade Eleitoral terá seus efeitos suspensos até a finalização do prazo estipulado no $1°,art. 19,
II – a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que poderá promover o relaxamento, em caso de comprovada ilegalidade, facultado ao preso o requerimento de exame de corpo de delito à autoridade policial competente;

Esta minuta foi um dos documentos apresentados à CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Atos de 8 de janeiro de 2023), com a informação de que ele teria sido entregue a Jair Bolsonaro pelo assessor Filipe Martins. Ele teria circulado nos círculos políticos bolsonaristas:

Em entrevista ao jornal O Globo no dia 27 de janeiro de 2023, Valdemar Costa Neto disse que a minuta de golpe circulava entre interlocutores do governo de Bolsonaro:

Aquela proposta que tinha na casa do ministro da Justiça, isso tinha na casa de todo mundo. Muita gente chegou para mim agora e falou: 'Pô, você sabe que eu tinha um papel parecido com aquele lá em casa. Imagina se pegam.

Em depoimento prestado à Polícia Federal, afirmou que sua declaração era apenas "força de expressão", e que chegou a receber o documento “algumas vezes”.
Também a deputada Carla Zambelli admitiu ter recebido, em seu gabinete, uma cópia da minuta golpista: “Escreveram e também levaram no meu gabinete. Não sei quem fez”.

Entre as pessoas citadas nesse texto, somente a deputada federal reeleita Carla Zambelli não foi presa nas atuais investigações. O relatório da CPMI mencionou também o então comandante da ABIN, general Augusto Heleno. O documento foi reforçado pelo vídeo da reunião de 5 de julho de 2022, de Bolsonaro com seu companheiro de chapa nas eleições de 2022 (general Braga Netto), a alta cúpula do governo e o deputado Filipe Barros, Augusto Heleno falou em dar uma "virada de mesa" antes das eleições e espionar a campanha do PT. Cito o relatório de 2023:

Augusto Heleno teve acesso, em reuniões particulares, fora da agenda oficial do presidente, a "minutas de golpe", sem que tivesse se insurgido contra a possibilidade de decretação de ações golpistas, como de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que seria colocada em prática para iniciar a intentona autoritária de Jair Messias Bolsonaro.

Além disso, o relatório da CPMI tratou de outra minuta, de decreto de garantia de lei e ordem (GLO), com estudos jurídicos "que, segundo os investigadores, eram destinados a dar suporte a um eventual golpe de Estado." O material foi encontrado no celular de Mauro Cid, em mensagens trocadas com outro militar, o sargento Luis Marcos dos Reis.

Entre os “estudos”, estavam vídeos e posicionamentos do jurista Ives Gandra Martins a respeito da aplicação do art. 142 da Constituição Federal e um documento sobre o “papel das Forças Armadas com poder moderador”. O documento, enviado por Cid no dia 28 de novembro de 2022 para um outro número com seu próprio nome, trazia elementos para uma minuta de decretação de estado de sítio e Garantia da Lei e da Ordem.

O documento, "Forças Armadas como Poder Moderador" (arquivo "Análise Ideia Ives Gandra", criado em 25 de outubro de 2022) pretende que as Forças Armadas, em razão do artigo 142 da Constituição da República, seriam o (inexistente) Poder Moderador, acima do Poder Judiciário: 




Os alvos dos militares, segundo essas seções do documento, eram o Judiciário e os meios de comunicação. A Constituição da República, em contraste, prevê a submissão das Forças Armadas ao poder civil, e não submete as decisões judiciais ao arbítrio militar, além de garantir a liberdade de imprensa.
A completa inconstitucionalidade disto tudo é demasiadamente óbvia. Nisso, lembramos também dos atos institucionais, que instauravam uma normatividade própria, alheia às Constituições, mesmo aquelas impostas (as de 1967 e de 1969) pela ditadura militar, o que é curioso: os primeiros atos institucionais vieram para dar uma formalização jurídica para o golpe o arbítrio, para que os militares agissem afastando a aplicação da Constituição de 1946 e as decisões judiciais. 
No entanto, mesmo depois de os militares terem imposto sua primeira Constituição em 1967, e depois, sua segunda (em 1969, por meio de Emenda...), eles continuaram a precisar dos poderes dos atos institucionais, o que está ligado à criminalidade típica do regime, que subsistiu com ajuda não só da corrupção, mas de crimes de lesa-humanidade e genocídio, entre outros atos ilícitos. Era um regime de arbítrio, que não poderia seguir nem mesmo as próprias constituições.
O relatório da CPMI foi concluído em 18 de outubro de 2023. A divulgação de mais conteúdos golpistas em fevereiro de 2024 incluiu um relatório da Polícia Federal de 2 de junho de 2023, que incluiu texto encontrado no celular do militar Mauro Cid com uma salada teórica indigesta:

encontramos ao longo da história algumas ideias convergentes ao apelo de nosso discurso. Na Antiguidade, “Dar a cada um o que é seu” já era uma ideia defendida por Aristóteles, como definição de justiça e princípio de direito. No Iluminismo, a necessidade de “resistência às leis injustas” já era uma ideia defendida por Tomás de Aquino. Mais recentemente, após a Segunda Guerra Mundial, Otto Bachof defendeu na Alemanha a possibilidade de controle das normas constitucionais inconstitucionais, em especial ao reconhecer a existência de um direito supralegal, ou seja, um direito pressuposto natural acima da Constituição e de suas normas.

O direito natural, a depender da época e do lugar, já foi usado para legitimar a escravidão, o colonialismo, a discriminação racial, a submissão da mulher, a homofobia etc. Percebemos essa diversidade de perspectivas nos autores citados. Indicarei os anos de nascimento e morte para que se veja que os autores do "estudo" quiseram condensar mais de dois milênios em algumas linhas e fracassaram instantaneamente.
É verdade que a ideia de dar a cada um o que é seu aparece antes em Aristóteles (384-322 a.C.) como centro do problema da justiça, mas o problema é que a referência perde-se em generalidade: esse problema diz respeito à justiça distributiva, à corretiva, à justiça política, à equidade? O name-dropping apareceu aí, como é corrente, para substituir o pensamento. Aristóteles cria diversas categorias do justo a partir daquela ideia. O que seria do indigitado ex-chefe de governo: uma sanção por causa de ilícitos eleitorais cometidos pelo presidente-candidato, que acabaram lhe valendo a inelegibilidade?? Parece-me que a justiça política, no sentido aristotélico, foi realizada pelo TSE.
Depois, um salto mortal de séculos: o "Iluminismo" são vários, na verdade. Suas concepções de direito, especialmente em relação às noções de sujeito de direito e direito subjetivo, rompem de fato com as concepções antigas, inclusive a de Aristóteles, razão pela qual citar juntos o filósofo antigo com os do século XVIII, a liberdade dos antigos com a dos modernos, é, em princípio, intelectualmente suspeito. 
Mas, se Aristóteles é citado com uma generalidade que não dá conta da riqueza teórica da obra do filósofo e nada diz de concreto para o "estudo" golpista para J. Bolsonaro, o "Iluminismo", referido também de forma excessivamente genérica, também não o ajuda. 
Nesse ponto, devemos lembrar que a questão do direito à resistência, em Tomás de Aquino (1225-1274), um filósofo MEDIEVAL, é bem diferente do que os iluministas, séculos depois, fariam, especialmente porque o fundamento de Tomás de Aquino é religioso. A citação inútil ao santo e teólogo sugere que os autores do estudo sejam olavistas, que não raro mostram vocação para coroinhas tomistas. 
Saltemos cinco séculos. Anos atrás, traduzi algumas aulas de Adam Smith (1723-1790; ele é o filósofo moral que muitos conhecem por dois ou três parágrafos de A Riqueza das Nações). Nelas (Lectures on Jurisprudence), ele discutiu o direito de resistência em Locke (1632-1704), que é um autor contratualista e entendia que a resistência pode ser exercida quando o soberano viola o contrato social.
Adam Smith não era contratualista. Ele buscava pensar o direito de resistência com outras bases, a partir  dos princípios da autoridade e da utilidade: 


"Condutas absurdas e impróprias" destroem a autoridade do soberano: Nero, Calígula e Domiciano foram exemplos clássicos de Imperadores assassinados por causa de governos, digamos, problemáticos. Esses governos não se pautaram pelo "bem público", razão pela qual também não atenderam ao princípio da utilidade, o que justificava, segundo Adam Smith, a resistência.
POR QUE ACHAR QUE O DIREITO À RESISTÊNCIA, contrário às condutas ABSURDAS e IMPRÓPRIAS, bem como na grande PERVERSIDADE DO SOBERANO, poderia servir para a defesa do... PRÓPRIO chefe de governo? E DESTE ex-chefe de governo? O líder de governo das 700 MIL MORTES da pandemia??? O DAS MORTES DOS IANONÂMI, povo para QUEM FOI OFERECIDA MEDICAÇÃO INEFICAZ EM PLENA PANDEMIA???
É provável que tanto uma análise baseada em Locke quanto em Adam Smith, não obstante suas diferenças teóricas, julgasse legítimo o direito de resistência contra esse governante. Lembrar dessas questões significa produzir argumentos CONTRA o referido ex-ocupante da presidência da república.
Ainda sobre aquele curioso parágrafo do estudo golpista: a tese mencionada de Otto Bachoff (1914-2006) não tem nada que ver com a questão. No contexto do direito constitucional alemão, ele argumentava que normas constitucionais poderiam não ser válidas diante de um direito supralegal. No entanto, o "estudo" NÃO ataca normas constitucionais, muito pelo contrário: ele pretende que a Justiça Eleitoral teria violado o "princípio da moralidade institucional" do artigo 37 da Constituição da República e clama pela "necessária restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil, jogando de forma incondicional dentro das quatro linhas" (uma das imagens mais repetidas de J. Bolsonaro, aliás).
A base teórica do estudo golpista oscila, pois, entre o genérico, o contraproducente e o impertinente. Depois daquelas citações, aparece isto:

[Aqui, tratar de forma breve das decisões inconstitucionais do STF]
Afinal, diante de todo o exposto e para assegurar a necessária restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil, jogando de forma incondicional dentro das quatro linhas, com base em disposições expressas da Constituição Federal de 1988, declaro o Estado de Sítio; e, como ato contínuo, decreto Operação de Garantia da Lei e da Ordem, com

O documento está incompleto (as tais decisões do Supremo Tribunal Federal não foram analisadas), mas é seguro ver neste final um verdadeiro non sequitur: a conclusão não decorre das premissas, até porque daquelas premissas, dada sua vacuidade, nada se poderia concluir, salvo a fraqueza teórica de tudo.
Nesse aspecto, essas minutas podem ser consideradas aos atos institucionais? A fundamentação teórica desses atos veio de Francisco Campos, jurista da ditadura de Getúlio, que escreveu a introdução do primeiro AI. Ela pode ser resumida a isto: "A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte". Trata-se simplesmente do princípio da efetividade, repetido em outros atos institucionais sob a alegação da segurança nacional. O primeiro AI não era nem mesmo numerado, pois não se previa que surgiriam outros. Tampouco se previa que não haveria eleições presidenciais em 1965. Outros AI vieram, e as eleições diretas para presidência somente voltaram em 1989.
Nos consideranda do AI-5, tivemos o explícito repúdio pelo regime das próprias normas jurídicas de exceção por ele instituídas:

CONSIDERANDO, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la;

Essa foi a escalada autoritária que chegou, em 1969, aos AI de retorno das penas de banimento e capital para o Direito brasileiro. A história recente, portanto, parece mostrar a importância não só de impedir que minutas golpistas saiam do papel (elas podem abrir o portão para outras), como de PUNIR os responsáveis pela tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023.
Elio Gaspari, em A ditadura envergonhada, explicou como a denominação Ato Institucional foi trazida aos militares por Júlio de Mesquita Filho, d'O Estado de S.Paulo, com o jurista Vicente Rao: provavelmente foi a mais forte contribuição desse jornal para (e contra) o constitucionalismo no Brasil. Em 11 de fevereiro de 2024, poucos dias depois de o material golpista ter sido trazido à luz pelo Supremo Tribunal Federal, esse jornal publicou entrevista com Ives Gandra da Silva Martins, simpático a Jair Bolsonaro e, aparentemente, o jurista brasileiro mais citado nos estudos para as minutas de golpe.
Espantosamente, não se perguntou nada para ele sobre isso - o Estadão não estava lendo as notícias? Pelo contrário, o jornal deu-lhe espaço para ele voltar a criticar a atuação do STF, argumento usado nos "estudos" para justificar o golpe e a intervenção na Justiça Eleitoral. Quem sabe o jurista não teria voltado a explicar, como fez em 2023, para a Isto É, que sua interpretação do artigo 142 não inspira golpe de Estado? E que a minuta de decreto de estado de sítio era um "texto [...] absolutamente tresloucado"?

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Novo poema de Alberto Pimenta, "The'll never be the same"


They'll never be the same: poema inconcluso é a mais nova plaquete de Alberto Pimenta, lançada no fim de 2023 pela Edições do Saguão. A capa indica o cenário do poema: o mar; internamente, há uma ilustração dos argonautas, que contrasta com as situações do texto.

O autor de A magia que tira os pecados do mundo, o notável ensaio estruturado segundo os arcanos maiores do Tarô, começa este poema com a imagem da Roda da Fortuna, o arcano X: ela indica a submissão ao destino ou ao acaso, às tormentas dos ciclos, e que, com o girar da Roda, os que estão no alto podem descer; os que estão abaixo, ascender.

O poema, antes de tudo, parte da submissão à Fortuna: um barco parte no mar, porém um outro "mar", metafórico, ficou atrás:


no porto esbraceja outro mar de gente
que não desiste, um monte de gente
em roupa com rasgões, que já não se usam,
mas usou-os o tempo e ficaram.


Eles migram em meio a "sinais prévios de vida e morte" (ambas podem acontecer na Roda, sabemos). No entanto, a descrição dos passageiros não é completamente desoladora; pelo contrário, "... é geral a esperança!". A dicção do poema é lírica: "a lua marcha sobre a água/ como lá o corpo divino". A esposa do Ulisses de Homero aparece no poema com o nome Benelpe, e seu contínuo fiar e desfiar da manta é apresentado como estratégia para esperar o navegante.

Estes viajantes chegarão, porém? Irrompe uma tormenta, pássaros sobrevoam o navio, os passageiros descem: "tudo no barco resvala,/ ou há-de um dia resvalar". Crianças choram. Corpos caem e sangram. Foi dito que eles se submetem ao Capital: "e quando não servem/ caem, e vêm outros mais baratos:/ de acordo com a leis do mercado."

Submissão, aqui, aos detentores das fortunas. Não há acaso.

De fato, o capital leva ao deslocamento de populações, e a discussão sempre acesa sobre leis contra migrantes na Europa e nos Estados Unidos (o que deve ter levado à escolha da língua do Capital para o título do poema) confirma a atualidade das contradições entre as dinâmicas sociais e econômicas que levam a esse trânsito de pessoas, e as barreiras de variada natureza que buscam restringi-lo.

Na menção à rainha de Ítaca aparece um animal, o cão, que, na última página, revela-se um animal psicopompo, isto é, intermediário entre os vivos e os mortos. No entanto, lemos que ainda há uma esperança, que responde ao título:


enfim, é gente.
gente
gente à espera de o
continuar a ser.


quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

"A roupa não presta. / O golpe está nu."



I

Policial militar, ou
fotógrafo de selfie
com golpistas;
soldado, ou filador
de churrasco
de golpistas acampados;
quartel, ou a útil paisagem
das cabanas de golpistas;
agro, o negócio
de semear golpistas
e usar o agrotóxico
para a democracia
jamais contaminar
a monocultura;
o púlpito, a escola
de ordenar o massacre
em nome de deus
e aliviar os intestinos
sobre os tribunais;
a bandeira da pátria, ou
o limpa-cu de golpista,
diarreicamente a tornar-se
o sudário do golpe.

Secretário de segurança, ou
turista ianque do golpe,
governador, ou
office-boy do golpe,
enquanto mulheres de generais
mandam fazer crochê
com as linhas arrancadas 
da bandeira nacional.

A roupa não presta.
O golpe está nu.


II

quebramos os vidros porque somos ordeiros
somos contra as eleições porque nós as ganhamos
nós as perdemos mas nós ganhamos
porque esta é a ordem e nós somos ordeiros
rezamos obedientes para o pneu porque caiu da nave do ET
nós sinalizamos com telefones para a astronave
descobrimos que a nave era uma urna
e nosso presidente venceu a eleição em outra galáxia

nosso presidente mandou um vídeo
ele comia farofa com doce de leite
era uma mensagem secreta
quando destruíssemos a capital tínhamos que roubar os doces nas gavetas
para deixar o país em forma
a farofa eram os cacos
dos computadores do século XXI
do relógio do século XVII
e da democracia representativa do XVIII ou XIX
a escravidão eu sei que era dos dois

antes de quebrarmos tudo
o país não era inteiro nosso
agora que é caco
conseguimos pisar sobre ele todo


III

Recebi mensagem da médica falando que a demência na população brasileira vai duplicar em trinta anos. 
E daí? Médico é demente mesmo, quer dar até vacina em quem não é doente.
Vai duplicar... Que coisa.
O quê?
O que eu estava falando.
O que era mesmo?
Demência.
É culpa deste governo! São todos dementes!
É culpa do governo de agora, que não tem um ministério da fé, então ninguém acredita. Eu vi nas mensagens do grupo de transubstanciadoras do vinho.
O que é isso?
É um grupo de senhoras que transforma vinho em água. Dão informações muito reais. Tudo na fé. Elas revelam todos os segredos deste governo de agora, como os cultos satânicos nas catacumbas da floresta na Praça dos Três Poderes. Mas a mensagem da médica não veio delas, não sei se dá para acreditar.
Este governo não é como o nosso presidente piedoso, que dava exemplo de saúde, andava de jet-ski enquanto a imprensa dizia que morriam milhares por dia. Mas... o que a médica disse mesmo?
Vai duplicar.
Ah! E o governo de agora, vai fazer o quê?
Ela falou que a ministra da saúde vai tentar impedir.
– Não disse? Iria duplicar, mas este governo mal chegou e já quer impedir! A esquerda sempre atrapalhando o progresso!


IV

(Pelas togas encharcadas
do sangue de meia quatro,
pelas fardas respingando
do sangue de meia quatro,

das veias de todo dia
abertas pelo mercado,
serve-se a democracia,
galinha ao molho pardo;

com as mãos e com os pés
lambuzam-se deste prato;
sem o cardápio do golpe,
o que servir ao Estado?)


V

claro que se os nossos parlamentares todos de direita chamaram a gente para quebrar tudo
e se nós estamos presos e eles estão livres
é que tudo não passou de um plano da esquerda 
e só por isso o golpe fracassou
porque a direita é só sucesso
o golpe contra o governo de esquerda foi dado pela esquerda
para encenar que isto é um país
por isso meu protesto dizendo que sou de direita e homem de deus
minha fé é combater os impiedosos
se levei pênis de borracha para as gavetas do tribunal
pisei no capacete da policial com ela dentro
se arranquei da parede do senado um tapete e mijei nele
foi exercendo minha liberdade de culto
só me arrependo de um ovo quebrado no congresso eu poderia ter fritado
protesto também contra os direitos humanos só servem para os criminosos
a prova é que na prisão me servem água
mas à noite eu gosto de um licorzinho 


VI

No documentário sobre a derrota do golpe
falaram em nome da democracia
apenas homens brancos
de terno ou farda.

O golpe, se triunfante,
ganharia o nome de revolução.
Eis a tradição pedagógica
inventada pelo pau de arara.

Não foi assim. Contudo,
se o golpe tivesse vencido,
no documentário da revolução
falariam apenas homens brancos
de terno ou farda.

Eis a ciência política
inventada pelo pau de arara.


VII

(Na história militar
nunca algo assim se deu:
acampados em barraca
meses diante do quartel.

Fornecemos água e luz
para os insurrectos,
banheiro para os seus cus,
segurança para os retos.

Deles não temos receio.
Damos o mesmo à república,
nós a cobrimos dos seios
até a região púbica.

Segundo os nossos fuzis
não existe diferença
entre a barraca e o país,
salvo pela obediência.)


VIII

O ovo africano:
autor desconhecido.
Presente de outro continente
ao país por ele formado.

A destruição do patrimônio,
ou a materialidade da insurreição.
Fardas terceirizaram o golpe
e elas usam botas
para apreciar as obras.

Um ano após a horda,
os pedaços da casca reconstituídos.
Faltam alguns, contudo.
A casca não é mais inteiriça.
Os olhos atravessam o ovo.

Agora a obra é outra.

Lacunas e vãos
deixam entrever
inteiro este país.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Pequena retrospectiva de 2023 à luz (ou às trevas) do ano de 2019

Vi, na véspera do final de 2023, que alguns perfis no Twitter criticaram o deputado federal filho do ex-ocupante da presidência por ele ter desafixado um tweet com índices econômicos de 31 de dezembro de 2022  isto é, do final da gestão anterior, dia em que o próprio Jair Bolsonaro não estava mais no país, pois se evadiu para os Estados Unidos: aparentemente, nem ele mesmo suportava a própria presidência.

O governo Lula melhorou todos aqueles números, porém aquele parlamentar, que não é renomado pela capacidade de análise econômica, certamente retirou a informação não para ocultar aqueles dados de seus eleitores (o que seria, é claro, um procedimento indigno para um homem público), mas para poder meditar melhor sobre o assunto.

No entanto, creio que a direita tem suas razões para julgar que o primeiro ano de mandato do presidente Lula foi pior do que o de Jair Bolsonaro. Afinal, o país melhorou. Para entendê-las, esbocei esta breve comparação. Nem sempre as datas são paralelas; busco sugerir para cada acontecimento um choque ou até mesmo uma convergência, digamos, de espírito no intervalo de quatro anos.



1º de janeiro de 2023: Lula, por meio de decretos, reativou o Fundo Amazônia, revogou a possibilidade de segregação educacional de crianças, jovens e adultos com deficiência criada pela chamada "Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida" de Bolsonaro; estabeleceu diretrizes mais severas para o controle de armas (o registro de armas cairia 79% até o fim do ano), ampliou a composição do Conselho Deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente; extinguiu o programa de Bolsonaro que poderia levar ao estímulo do garimpo ilegal, o "Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala"; por medida provisória, criou auxílio complementar para os beneficiários do Auxílio Brasil e do Auxílio Gás, entre outras medidas, que incluíram a revogação dos processos de privatização de estatais como a Petrobras e os Correios.

1º de janeiro de 2019: O primeiro decreto de Jair Bolsonaro foi estrategicamente direcionado contra os trabalhadores: ele reduziu o valor previsto para o salário mínimo (Temer havia fixado em mil e seis reais para 2019, Bolsonaro baixou para 998 reais). Ele acabou com a política de valorização do salário mínimo, retomada apenas com a volta do presidente Lula. A medida provisória de reorganização dos ministérios jogava a competência para a demarcação das terras indígenas e dos quilombolas para uma órgão sem expertise nem simpatia pelo tema, o Ministério da Agricultura (pressionado, o governo teve de voltar atrás e devolver essas competências para o Ministério da Justiça, embora o Ministro da pasta, Sérgio Moro, dissesse que não tinha "interesse" nesses assuntos: de fato, sua gestão seria considerada "péssima" pelas lideranças indígenas), e acabava com as políticas de diversidade no recém-criado ministério heteróclito da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. 


8 de janeiro de 2023: Tentativa malograda de golpe de bolsonaristas que ficaram acampados semanas em Brasília diante do quartel sobre a amabilidade do Exército, e puderam vandalizar as sedes dos três Poderes sob a leniência das forças de segurança, cuja imagem mais emblemática é a da bunda golpista defecando no Supremo Tribunal Federal. Já há condenados pelos atos criminosos. A CPI sobre o tema concluiu pela responsabilidade de Jair Bolsonaro, mas o Judiciário não decidiu ainda sobre o ex-presidente, hoje inelegível por causa da prática de ilícitos eleitorais.

8 de janeiro de 2019: Golpe efetuado do governo bolsonarista, aliado do secular latifúndio (hoje apelidado de "agronegócio"), contra os quilombolas e os trabalhadores do campo: foi determinada a paralisação da reforma agrária e da demarcação das terras de quilombolas, em evidente descumprimento da Constituição da República: vejam os artigos 184 a 191 e o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Um exemplo de inconstitucionalidade alçada ao patamar de política de governo.


10 de janeiro de 2023: A Polícia Federal encontrou o que chamou de "minuta de golpe" na casa de Anderson Torres, ex-ministro da justiça de Jair Bolsonaro e secretário de segurança pública do Distrito Federal - segurança que falhou ostensivamente no 8 de janeiro.  A minuta previa a declaração de "estado de defesa" no Tribunal Superior Eleitoral para reverter os resultados das eleições de 2022.

10 de janeiro de 2019: Matéria do G1: "Flávio Bolsonaro não comparece ao MP-RJ para depor sobre relatório do Coaf", caso que trata da "movimentação financeira atípica de funcionários do seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj)".


14 de janeiro de 2023: Prisão do ex-ministro da justiça de Jair Bolsonaro e ex-secretário de segurança do Distrito Federal Anderson Torres, em razão das investigações da tentativa de golpe em 8 de janeiro. Ele ficaria 117 dias preso.

14 de janeiro de 2019: O governo italiano telefonou para Jair Bolsonaro para agradecer pela entrega de Cesare Battisti à Itália, onde ele passou a cumprir pena de prisão perpétua. O governo Lula havia negado sua extradição, considerando-o refugiado político.


16 de janeiro de 2023: A Ministra dos Povos Originários, Sonia Guajajara, anunciou a revogação da instrução normativa que autorizava (inconstitucionalmente, aliás) a exploração de madeira em terras indígenas, editada pelo governo de Jair Bolsonaro. A criação do Ministério dos Povos Originários, inédito no Brasil, foi uma promessa de campanha do presidente Lula.

16 de janeiro de 2019: O movimento indígena da Paraíba entregou representação ao Ministério Público Federal denunciando ações anti-indígenas do governo de Jair Bolsonaro, notadamente o esvaziamento da competência da Funai e a atribuição das demarcações indígenas à pasta da ruralista Tereza Cristina (reeleita senadora pelo Mato Grosso do Sul em 2022), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. No Maranhão, fazendeiros invadiram terras do povo Awa Guajá, desrespeitando decisão judicial contra os invasores.


24 de janeiro de 2023: 1777 dias da execução da vereadora da cidade do Rio de Janeiro Marielle Franco e do motorista Anderson Pedro Gomes.

24 de janeiro de 2019: O deputado federal reeleito Jean Wyllys (PSOL-RJ) anunciou que não tomaria posse na Câmara para seu novo mandato em razão das ameaças de morte que sua família estava sofrendo. Ele partiu para o exterior e só voltou ao país com o novo governo Lula. Cito sua carta da época, em que mencionou o silêncio da Polícia Federal mesmo depois de ele ter apelado à Organização dos Estados Americanos pedindo proteção:

mesmo diante da Medida Cautelar que me foi concedida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, reconhecendo que estou sob risco iminente de morte, o Estado brasileiro se calou; no recurso, não chegou a dizer sequer que sofro preconceito, e colocaram a palavra homofobia entre aspas, como se a homofobia que mata centenas de LGBTs no Brasil por ano fosse uma invenção minha. Da polícia federal brasileira, para os inúmeros protocolos de denúncias que fiz, recebi o silêncio.


27 de março de 2023: Começou o especial na TV Brasil sobre o golpe de 1964.

27 de março de 2019: O Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, afirmou perante a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados que não houve golpe em 1964. Era um homem sensível, a dizer coisas doces nos locais mais apropriados: como se sabe, o Congresso Nacional chegou a ser fechado durante a ditadura militar e vários parlamentares foram cassados.


30 de março de 2023: Reconstituição da Comissão de Anistia, que havia sido extinta em dezembro de 2022 pelo governo de Jair Bolsonaro.

30 de março de 2019: Ato unificado Ditadura Nunca Mais, em São Paulo, contra as políticas pró-ditadura do governo Bolsonaro e pela transformação do antigo DOI-Codi de São Paulo em local de memória. Cito Adriano Diogo, que foi presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva": “Não é admissível uma delegacia de polícia funcionar num prédio que abrigou o DOI-Codi. É como se uma usina de gás alemã funcionasse até hoje em um campo de concentração”.


31 de março de 2023: As Forças Armadas, sob a determinação do presidente Lula, não celebram mais o golpe de Estado (de 1º de abril de 1964).

31 de março de 2019: Com autorização de Jair Bolsonaro, as Forças Armadas celebraram a ditadura militar, libertando a nostalgia autoritária represada da direita brasileira

Em São Paulo, a sociedade civil realizou no Parque Ibirapuera a I Caminhada do Silêncio, em memória dos desaparecidos da ditadura e dos da democracia. Eu fiz o cartaz abaixo de Olavo Hanssen, torturado e assassinado pelo DOPS/SP em 1970. Na ligação, pode-se ler a narrativa que escrevi sobre o ato.



7 de abril de 2023:  Fechamento do espaço aéreo pela Força Aérea Brasileira sobre a terra indígena dos Yanomâmi por causa dos garimpeiros ilegais que invadiram  envenenaram com mercúrio e devastaram a região. A medida foi antecipada: ela só ocorreria em março. Meses depois, os militares deixariam a região e os garimpeiros voltariam.

7 de abril de 2019: O músico Evaldo Rosa dos Santos foi executado com 257 tiros por soldados do Exército quando passava com seu carro pela Estrada do Camboatá para ir a um chá de bebê. Seu sogro, Sérgio Araújo, foi atingido também. O catador Luciano Macedo, ao tentar ajudá-lo, foi alvejado e morreu dias depois. No mesmo dia, o Comando Militar do Leste emite nota chamando as vítimas de "assaltantes".


4 de abril de 2023: Suspensão, por meio de portaria do Ministro da Educação, Camilo Santana, do cronograma nacional de implementação do novo ensino médio.

8 de abril de 2019: Demissão, por inapetência administrativa, do ministro da educação Ricardo Vélez, colombiano naturalizado brasileiro, que havia chamado os brasileiros de "canibais" e louvado a ditadura militar. O filho vereador do então ocupante da presidência havia tentado negar o óbvio da crise da pasta, mesmo para os modestos padrões administrativos do bolsonarismo, mas os fatos desmentiram-no rapidamente:



30 de abril de 2019: O ministro da educação, Abraham Weintraub, um caso raro de professor da Unifesp sem doutorado, depois de ter arbitrariamente dito que bloquearia 30% do orçamento da UnB, da UFF e da UFBA devido a alguma "balbúrdia", determinou sem aviso às instituições o contingenciamento de 30% do orçamento de TODOS os institutos e universidades federais.


23 a 28 de abril de 2023: Realização do Acampamento Terra Livre, ocupação dos povos indígenas brasileiros em Brasília, que ocorre anualmente para que possam apresentar suas reivindicações às sedes dos Poderes. Pela primeira vez na história, um presidente da república apareceu no ATL: Lula foi ao encerramento no dia 28 e assinou a demarcação de seis Terras Indígenas.

11 de abril de 2019: Jair Bolsonaro assinou mais um decreto de ataque à democracia participativa, de número 9759, com a ementa eufêmica "Extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal.", que acabou com colegiados, inclusive o Grupo de Trabalho Araguaia e o Grupo de Trabalho de Perus, que buscou identificar ossadas de desaparecidos políticos ocultadas no Cemitério de Perus, em São Paulo. Nesses casos, ele teve que recuar.


3 de maio de 2023: Prisão do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid. Segundo a Polícia Federal, ele teria buscado suporte legal para que o então ocupante da presidência, derrotado nas eleições, desse um golpe de Estado.

3 de maio de 2019: O Ministério Público Federal propôs ação para a nulidade da Portaria do Ministério de Direitos Humanos que descaracterizou a Comissão de Anistia, nomeando membros contrários à anistia política: "vê-se que 07 membros nomeados para a nova composição do Conselho da Comissão de Anistia são agentes de carreiras ou têm histórico e postura públicos que são INCOMPATÍVEIS com a função do órgão, seja por manifesta contrariedade à política pública de reparação das vítimas de Estado ou devido à atuação judicial contrária à política de reparação, ou ainda por se posicionarem contrários à instauração da Comissão Nacional da Verdade, seja porque integram as forças coercitivas do Estado".


8 de maio de 2023: O educador Daniel Cara, em mais uma manifestação contra o Novo Ensino Médio, afirma ao Instituto Humanitas Usininos que: 

Ninguém que entende verdadeiramente de educação, que conhece a realidade escolar, defende a reforma do Ensino Médio, que estabeleceu o NEM. Portanto, professores, formadores de professores, pesquisadores, estudantes e suas entidades e movimentos querem a revogação do NEM. 

Do outro lado, há fundações e associações empresariais, secretarias estaduais de educação e, infelizmente, o Ministério da Educação do governo Lula.

Em 16 de maio, publicou-se Nota Técnica assinada por ABECS (Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais), Campanha Nacional pelo Direito à Educação, CEDES (Centro de Estudos Educação e Sociedade) e REPU (Rede Escola Pública e Universidade) sobre a consulta "homologatória" que o ministério da educação abriu sobre o NEM. Outras entidades somar-se-iam à oposição ao NEM, cuja discussão no Congresso Nacional acabou sendo postergada para 2024.

7 de maio de 2019: O ministro da educação de Bolsonaro, Abraham Weintraub teria diversas brigas com a ortografia durante o mandato ("paralização", "suspenção", "imprecionante" viraram destaques no léxico bolsonarista). Não era apenas essa a característica que o qualificava como intelectual bolsonarista, contudo. Em audiência pública no Senador, o professor da Unifesp revelou certa ignorância literária confundindo Kafka com cafta. A Livraria Leonardo da Vinci, do Rio de Janeiro, dias depois, mandou-lhe um "pedaço" da novela A metamorfose, de Kafka, para que o ministro pudesse apreciá-la. Aparentemente, em 22 de julho do mesmo ano, ele ainda não havia apreciado a iguaria, irritando-se porque, no Pará, tentaram lhe explicar a diferença entre o escritor e o prato culinário.

9 de maio de 2019: Suspensão de bolsas de pesquisa da Capes. Em ataque nunca antes visto à ciência e à educação brasileiras, até o final do mandato de Bolsonaro seriam milhares de bolsas suspensas: ainda não vi um levantamento detalhado das perdas sofridas nesse período.

Maio de 2019: O grande Alberto Pimenta lançou pelas Edições do Saguão, de Lisboa, o livro Zombo, com o gentil poema sobre o "Bolso ignaro". Ele não mencionou o ministro brasileiro da educação, porém.


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10 de junho de 2023: "Homem negro amarrado por PMs em São Paulo tem liberdade negada: Tribunal de Justiça de SP negou o pedido de habeas corpus ao homem negro que foi carregado com as mãos e pés amarrados por policiais militares paulistas".

10 de junho de 2019: Decreto presidencial de enfraquecimento do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, ligado ao ministério ocupado por Damares Alves (hoje senadora), acabando com os cargos dos peritos. Esse imenso retrocesso capitaneado por Bolsonaro e Damares levou o Ministério Público Federal a publicar a seguinte nota pública: no dia 13 seguinte, assinada pelo Subprocurador-geral da República Domingos Sávio Dresch da Silveira:

O desmonte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, por meio de alterações em sua composição e funcionamento - as quais, na prática, destroem as condições de desenvolver as atividades essenciais para a prevenção e o combate à tortura, com a exoneração dos onze peritos do Mecanismo Nacional, o remanejamento de cargos e a transformação do trabalho dos peritos em "prestação de serviço público relevante, não remunerada" -, constitui dramático retrocesso no processo de afirmação e efetivação dos direitos humanos no Brasil. A existência de um órgão autônomo com atribuição legal para realizar a fiscalização das condições de privação de liberdade, composto por peritos tecnicamente qualificados, com perfil interdisciplinar, tal qual a composição do Mecanismo, concretiza a promessa constitucional de recusa e vedação à tortura e alinha o Brasil aos países com política pública relevante de defesa e promoção dos direitos humanos.

Em 28 de março de 2022 o Supremo Tribunal Federal julgaria essas medidas inconstitucionais.


30 de junho de 2023: O Tribunal Superior Eleitoral julgou Jair Bolsonaro inelegível por 8 anos em razão de abuso de poder, em razão de ter chamado embaixadores estrangeiros no Brasil, em 2022, para proferir um insólito discurso de ataque ao sistema eleitoral brasileiro. O episódio representou não só um embaraço diplomático, mas um momento inquietante do processo eleitoral, ensombrecido pela interferência dos militares em 2018 e 2022.

30 de junho de 2019: Carlos Bolsonaro, vereador da cidade do Rio de Janeiro e filho do então presidente, criticou o general Augusto Heleno, então chefe do Grupo de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República, por causa da "prisão na Espanha do sargento Manoel Silva Rodrigues, acusado de ter traficado 39 quilos para a Europa em avião da Força Aérea Brasileira (FAB) que fazia parte da comitiva que acompanhava o presidente em viagem rumo ao Japão". Foi o episódio de tráfico de cocaína por militar em avião da comitiva do presidente Jair Bolsonaro, descoberto pelas autoridades espanholas, não por militares brasileiros: outro embaraço diplomático.


28 de julho de 2023: Divulga-se que Jair Bolsonaro recebeu mais de 17 milhões via PIX entre janeiro e julho e, depois, que aportou aproximadamente a mesma quantia para fundos de renda fixa, quando ainda era presidente da república, e os advogados do ex-presidente publicaram nota afirmando que a divulgação "consiste em insólita, inaceitável e criminosa violação de sigilo bancário, espécie, da qual é gênero, o direito à intimidade, protegido pela Constituição Federal no capítulo das garantias individuais do cidadão".

28 de julho de 2019: "Jair Bolsonaro, atacou em 29 de julho de 2019 Felipe Santa Cruz, presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Indignado porque a OAB conseguiu impedir a violação do sigilo profissional dos advogados, necessário para o direito de defesa, ele afirmou que, se Santa Cruz 'quisesse saber como é que o pai dele desapareceu durante o período militar, conto pra ele. ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele.'" O desaparecido político era Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, de quem Bolsonaro já havia dito que ele teria sumido bêbado em acidente de carnaval... 


3 de agosto de 2023. Matéria do Brasil De Fato: "Em 12 meses, desmatamento sobe 16,5% no Cerrado e cai 7,4% na Amazônia, mostra Inpe". O desmatamento no cerrado, em sua maioria, estaria ocorrendo de forma legal por causa da cumplicidade dos governos locais.

2 de agosto de 2019: Demissão do diretor do INPE: Bolsonaro, sem evidentemente nenhuma capacidade técnica para fazê-lo, queria desmentir os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) sobre desmatamento, e Ricardo Galvão negou-se a submeter os dados científicos aos interesses devastadores da extrema-direita. O ocupante da presidência acusou-o sem fundamento de estar a serviço de "alguma ONG" e exonerou-o. O ministro da ciência e tecnologia, Marcos Pontes (hoje senador por São Paulo), ficou contra o cientista e a favor da exoneração. Ricardo Galvão passou a presidir o CNPq no governo Lula.


10 de agosto de 2023: O senador Ciro Nogueira (PP-PI) declarou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, "completamente ultrapassada" por supostamente querer voltar às "cavernas" e pressionou pela saída do governo porque ela, tentando implementar medidas contra o desmatamento ilegal, paralisaria o soi-disant "agronegócio" brasileiro. Certamente o senador equivocava-se, pois um setor econômico que precisasse da ilegalidade para sobreviver deveria ser considerado uma questão de crime organizado e não deveria receber, como recebe, subsídios bilionários governamentais. A Ministra continua no governo.

10 de agosto de 2019: O tristemente inesquecível Dia do Fogo: fazendeiros fizeram queimadas em torno da BR-163, no Pará e, cito o relatório do Centro Indigenista Missionário (Cimi), "os focos de incêndio nas cidades de Novo Progresso e Altamira cresceram 300% e 743%, respectivamente, de um dia para o outro".

O relatório Violência contra os povos indígenas do Brasil - Dados de 2019 acrescentava:

Cinco dias antes, o jornal Folha do Progresso havia publicado uma conversa com um dos produtores que planejavam a ação e sentiam-se, segundo o jornal, “amparadas pelas palavras do presidente Bolsonaro”. “Precisamos mostrar para o presidente que queremos trabalhar e [o] único jeito [é] derrubando. Para formar e limpar nossas pastagens é com fogo”, explicou a liderança não identificada.

O governo Bolsonaro conseguiu intensificar suas políticas na área ambiental e superou a marca do Dia do Fogo em 22 de agosto de 2022, com 3.358 focos de incêndio em 24 horas. Não à toa, seu ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, que já havia sido secretário da mesma área para o governo do Estado de São Paulo na gestão de Geraldo Alckmin (hoje vice-presidente da República), logrou ser eleito em 2022 deputado federal por esse Estado.


11 de agosto de 2023: Operação da Polícia Federal contra a "suposta tentativa, capitaneada por militares ligados a Bolsonaro de vender ilegalmente presentes dados ao governo por delegações estrangeiras", envolvendo o advogado Frederico Wassef e os militares Mauro Cid, ex-ajudante de Ordens de Jair Bolsonaro, e o pai dele, o general Mauro Cesar Lorena Cid. Tratava-se da apuração de "venda ilegal de joias dadas de presente por delegações internacionais". O caso foi revelado por André Borges, que estava no Estado de S.Paulo e foi depois demitido do jornal. As joias presenteadas pela Arábia Saudita a Jair e Michelle Bolsonaro e não declaradas na alfândega chegavam ao valor de 16 milhões e meio.

11 de agosto de 2019: O deputado federal pelo Estado de São Paulo Carlos Bolsonaro (reeleito em 2022, hoje, como o pai, no PL) fez esta importante advertência: "As [sic] vezes tem-se a errada impressão que terrorismo é apenas quando ocorre algum ataque. Brasil tem que abrir seus olhos para grupos que lavem dinheiro aqui, que aqui tenham livre trânsito, fáceis maneiras de conseguir passaporte brasileiro e etc."



14 de agosto de 2023: Matéria do Congresso em Foco: "Abin acha ligação entre garimpo ilegal no Pará e atos golpistas de 8 de janeiro": "De acordo com o documento, os empresários Roberto Katsuda e Enric Lauriano estão diretamente associados ao garimpo ilegal no estado. Também têm vínculos com políticos e com uma rede de apoiadores da prática ilícita e do ex-presidente Jair Bolsonaro na região.".

4 de outubro de 2019Demissão de Bruno Pereira da coordenação-geral de índios isolados, depois de ter atuado com muito êxito na maior destruição de equipamentos do garimpo ilegal naquele ano. O indigenista falou na ameaça de "aniquilamento dos povos indígenas, da nossa diversidade. São mais de 200, mais de 300 povos indígenas e 400 terras indígenas que terão seus territórios disputados. Eu não vejo um cenário positivo".  A Funai, com Bolsonaro, passou a ser presidida por Marcelo Xavier, nome indicado pela bancada do latifúndio. Bruno Pereira acabaria sendo assassinado por sua atuação em prol dos indígenas, fora da Funai, em 5 de junho de 2022 com o jornalista Dom Phillips.


17 de setembro de 2023: Estreia da peça "A Casa", na Ocupação Mulheres Mirabal, em Porto Alegre. O espetáculo foi feito a partir da dramaturgia de Angélica Freitas, em parceria com a diretora Nina Picoli e a atriz Janaína Kremer. A peça discute "questões sociais e direito à moradia". É despiciendo lembrar que essas questões aparecem também na conhecida obra poética de Angélica, que é completamente incompatível com o bolsonarismo. O compositor e cantor Vitor Ramil (além de escritor), em seu espetáculo musical "Avenida Angélica", que estreou em 2019, ressaltou as questões da cidade na poesia da autora.

17 de setembro de 2019: Um dos deputados estaduais bolsonaristas de Santa Catarina, não interessado em questões sociais e direito à moradia (aparentemente já resolvidos naquele Estado que o reelegeu em 2022), mas em visões alternativas sobre racismo (alternativas em relação ao direito brasileiro), bem como sobre diversidade e violência doméstica, propôs moção de repúdio (não votada) contra a poesia de Angélica Freitas, que estaria "ferindo os valores cristãos"


18 de setembro de 2023: Primeiro réu condenado, por 17 anos, pela tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro. O Supremo Tribunal Federal julgou-o. As notícias destacam o "histórico de violência" do bolsonarista Aécio Lucio Costa Pereira.

25 de setembro de 2019: O Superior Tribunal de Justiça manteve o trancamento da ação penal do Riocentro (a tentativa de atentado terrorista do Exército em uma festividade do Primeiro de Maio durante o governo de Figueiredo, que seria atribuída à esquerda e justificaria o fim da abertura política). O relator, Ministro Rogerio Schietti Cruz, votou pela reabertura, mas sua posição, e do Ministério Público Federal, foi derrotada


21 de setembro de 2023: O Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a tese legitimadora de genocídio e de remoções forçadas contra os povos indígenas, o marco temporal. Os ministros indicados por Jair Bolsonaro, Nunes Marques e André Mendonça, foram votos felizmente vencidos: afinal, eram apenas dois, já que Lula venceu em 2022. 

21 de setembro de 2019: Raoni, a histórica liderança Caiapó, criticou Jair Bolsonaro e afirmou que ele não tinha um "coração bom" e queria "destruir os indígenas".


17 de outubro de 2023: Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Atos de 8 de Janeiro de 2023, presidida pelo deputado federal Arthur Maia e relatada pela senadora Eliziane Gama. Ela foi instaurada a partir de requerimento de certo deputado federal bolsonarista que apoiou os manifestantes contra o resultado das eleições, mas se revelou prejudicial para os golpistas. Nas conclusões, lemos:

O Oito de Janeiro foi limitado. Não eram milhares os seguidores radicalizados. A violência das invasões provocou revolta. A chama do evento cedo se apagou. Não conseguiu se propagar para além da Praça dos Três Poderes. Não durou mais do que três horas.
De pouco adiantou a omissão premeditada e deliberada da cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal.
De pouco valeram a conivência e a leniência de setores das  Forças Armadas.
Pouco acrescentou o treinamento, a preparação, a articulação dos manifestantes, de seus instigadores e financiadores.
O Oito de Janeiro não deu certo.
E o feitiço se virou contra o feiticeiro.
Em lugar de extrair, da insurreição, um salvo-conduto, Jair Bolsonaro nela evidenciou a sua culpa e o seu dolo. Suas estratégias, antes difusas, ganharam visibilidade e coerência; seus instrumentos tornaram-se evidentes; sua participação — como principal autor intelectual da longa obra, em vários capítulos urdida — saiu do silêncio e das sombras e veio para a luz esclarecedora do dia.

13 de outubro de 2019: Matéria do Fantástico: "Exclusivo: mensagens mostram a fúria de garimpeiros por fechamento de garimpo ilegal". Cito Daniel Camargos no Repórter Brasil sobre o contexto político da ascensão do garimpo ilegal: "Articulados e organizados, a pressão realizada pelos garimpeiros é ouvida pelo governo e encontra eco no discurso do presidente Jair Bolsonaro."


31 de outubro de 2023: Nova condenação de Jair Bolsonaro pelo TSE, com oito anos de inelegibilidade e multa, por, entre outros ilícitos, usar o ato cívico do 7 de setembro para sua campanha eleitoral. O candidato a vice-presidente, general Braga Neto, também foi condenado.

31 de outubro de 2019: O deputado federal Eduardo Bolsonaro defendeu, em entrevista a um canal do youtube de um dos jornalistas apoiadores do governo do pai dele, Leda Nagle, a edição de um novo AI-5 contra a esquerda, se ela agisse como a do Chile daquele momento (isto é, indo às ruas e sendo baleada e torturada).


1º de novembro de 2023: Depois de Lula ter dito que não editaria a medida, ele assinou o decreto de Garantia de Lei e Ordem nos seguintes portos e aeroportos: "Porto do Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro; Porto de Santos, Estado de São Paulo;  Porto de Itaguaí, Estado do Rio de Janeiro; Aeroporto Internacional Tom Jobim, Estado do Rio de Janeiro; e Aeroporto Internacional de São Paulo/Guarulhos, Estado de São Paulo". A medida teria a finalidade de "fortalecimento do combate ao tráfico de drogas e de armas e a outras condutas ilícitas", com duração até 3 de maio de 2024.

1º de novembro de 2019: Assassinato de Paulo Paulino Guajajara. Ele pertencia ao grupo dos Guardiões da Floresta e foi alvejado por invasores da Terra Indígena Arariboia, no sul do Maranhão. Laércio Guajajara estava com ele, foi alvejado, porém sobreviveu.


13 de novembro de 2023: Depois de Israel ter deixado os cidadãos brasileiros de fora de várias listas de repatriação, apesar da pressão do Itamaraty, finalmente os brasileiros que estavam na Faixa de Gaza conseguiram chegar ao Brasil. Lula recebeu-os com estas palavras: "se o Hamas cometeu um ato de terrorismo e fez o que fez, o estado de Israel também está cometendo vários atos de terrorismo ao não levar em conta que as crianças não estão em guerra, as mulheres não estão em guerra” (cito a matéria de Gabriel Andrade para a Carta Capital). Contando com os brasileiros em Israel e na Cisjordânia, foi a maior repatriação da história brasileira, com aproximadamente 1.400 pessoas.

13 de novembro de 2019: Jair Bolsonaro reuniu-se com o presidente da China, Xi Jinping, e, em breve discurso que acenava com a abertura do mercado e dos recursos brasileiros para os chineses (em contraste com seus discursos eleitoreiros de 2018), afirmou alucinatoriamente que "O Brasil é exemplo mundial ao conciliar preservação do meio ambiente e produção agropecuária".

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30 de novembro de 2013: O Superior Tribunal de Justiça decide, no caso de Luiz Eduardo Merlino, assassinado no DOI-Codi em 1971, que os herdeiros do coronel Brilhante Ustra (antigo comandante do centro de repressão) não devem indenizar a família do jornalista. Com isso, o STJ deixou de aplicar a própria jurisprudência, bem como feriu as obrigações internacionais do Estado brasileiro determinadas pela sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil (Guerrilha do Araguaia).

26 de novembro de 2019:Matéria de Felipe Betim em El País: "Paulo Guedes repete ameaça de AI-5 e reforça investida radical do Governo Bolsonaro: Num momento em que presidente insiste em aumentar excludente de ilicitude para proteger excessos de agentes militares, ministro da Economia traz de volta fantasma de decreto da ditadura".


12 de dezembro de 2023: Data da Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Ela foi aprovada sem debates, em acordo entre petistas e bolsonaristas. Escreveram Adilson Paes de Souza e Gabriel Feltran, a partir do projeto aprovado, que a lei está muito próxima do decreto-lei 667 de 2 de julho de 1969 e "mimetiza a organização policial do período mais pesado da repressão militar" e as torna "Livres de controle, interno ou externo" (mesmo das secretarias estaduais de segurança; as ouvidorias perderam qualquer ilusão de autonomia), permitindo-lhes criar "órgãos semelhantes ao Dops". O presidente Lula fez vários vetos, o que melhorou o monstrengo legislativo, mas não resolve a questão, pois o que deveria estar sendo discutido é a desmilitarização da polícia, como recomendou, por exemplo, a Comissão Nacional da Verdade. E os vetos: serão mantidos ou derrubados pelo Congresso? A tramitação segue. Dois dias depois, vetos de Lula à lei do marco temporal foram derrubados com auxílio (ou sabotagem, para quem considerar que o governo era realmente contrário à lei) do próprio Ministro da Agricultura, Carlos Fávaro.

16 de dezembro de 2019: O  Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura, em razão do enfraquecimento do Mecanismo Nacional feito por Bolsonaro e Damares, condenou as políticas do governo. Cito o relatório do Subcomitê (SPT):

o SPT considera que as reformas atuais são contrárias ao OPCAT [ Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura] e não fortalecem o Sistema Nacional de Prevenção do Estado-Parte, como alegado pelas autoridades nacionais; pelo contrário, enfraquecem o papel do Mecanismo Preventivo Nacional a um ponto em que se corre o risco de que o mesmo se torne praticamente inoperante, devido aos muitos obstáculos que enfrenta agora. Antes da reforma, a política de prevenção da tortura era insatisfatória no sentido de que o sistema de MNPs [Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura] não havia sido estabelecido em todas as partes do país, algo que deveria ter sido alcançado até 2008. Além disso, as mudanças atuais significam que os MNPs ainda não estabelecidos em muitos dos estados do Brasil podem seguir um modelo - o proposto pela atual reforma - que os tornaria incapazes de operar de acordo com o OPCAT, colocando o Brasil em grave violação de suas obrigações internacionais.


20 de dezembro de 2023: "CGU abre processo contra Weintraub por abandono de cargo em universidade". O ex-ministro da educação de Jair Bolsonaro e candidato não eleito à Câmara dos Deputados em 2022 não teria mais aparecido na Unifesp para exercer a docência.

11 de dezembro de 2019: "Ministro da Educação reafirma que há plantações de maconha nas universidades: Oposição acusa ministro de sensacionalismo e de falta de projeto; Weintraub disse que está promovendo uma revolução no ensino". A declaração absurda ocorreu na Câmara dos Deputados.  O então ministro colheu o ensejo para repetir a fake news bolsonarista, homofóbica e transfóbica do kit gay


21 de dezembro de 2023: Publicação da Emenda Constitucional nº 132, a da reforma tributária. Há décadas uma iniciativa dessa magnitude era discutida, mas foi este governo, com Fernando Haddad à frente do Ministério da Fazenda, que logrou fazê-la, apesar (ou por causa) de várias e severas críticas, deve-se lembrar, de economistas de esquerda. 

Dezembro de 2019: Conforme informou a Revista Piauí em matéria de Thais Bilenky e Marcella Ramos, "A offshore aberta por Guedes [Ministro da Economia de Bolsonaro] tinha em dezembro de 2019 38,5 milhões de reais – ou 50 milhões de reais em dezembro de 2020, considerando apenas a valorização cambial." O governo Bolsonaro e o presidente da Câmara, que já era Arthur Lira, acabaram desistindo, em 2021, de cobrar o imposto por lucros obtidos por donos de offshores. A matéria, "Uma economia milionária (para o ministro)" referia-se aos célebres Pandora Papers, que suscitaram um consórcio internacional de jornalismo investigativo para analisar esses documentos vazados de paraísos fiscais, que incluíam Paulo Guedes e vários outros nomes, como o presidente Macri, da Argentina.


22 de dezembro de 2023Decreto de regras para indulto natalino que exclui do benefício, entre outros casos, os condenados pela tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro. De fato, é perigoso para todo o país deixar soltos por aí pessoas que tentaram acabar com a democracia e enforcar ministros em praça pública.

24 de dezembro de 2019: Publicação do decreto presidencial de indulto de natal com previsões especiais "aos agentes públicos que compõem o sistema nacional de segurança pública" e "aos militares das Forças Armadas, em operações de Garantia da Lei e da Ordem, conforme o disposto no art. 142 da Constituição e na Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999, que tenham sido condenados por crime na hipótese de excesso culposo". Leonel Radde, policial e hoje deputado estadual pelo PT-RS, foi um dos que considerou a medida um "estímulo ao mau policial". Curiosamente, Bolsonaro havia declarado durante a campanha, marcado pelo populismo punitivista, que acabaria com o indulto.


28 de dezembro de 2023: O Congresso Nacional promulgou a lei inconstitucional e anticonvencional do marco temporal, que havia sido vetada parcialmente pelo presidente Lula, e cujo conteúdo havia sido declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. O marco temporal, como já expliquei, é uma tese de legitimação de genocídio e de remoções forçadas, que o Congresso Nacional passa a homenagear, em afronta aos padrões mais elementares de direitos humanos. 

28 de dezembro de 2019: Nenhuma terra indígena havia sido demarcada pelo governo de Jair Bolsonaro. Ele terminaria o governo da mesma forma, em frontal violação ao artigo 232 da Constituição da República.


31 de dezembro de 2023: Sobre o direito à memória e à verdade: o ano terminou sem a recriação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, extinta por Jair Bolsonaro em 15 de dezembro de 2022.