O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

Mostrando postagens com marcador Música contemporânea. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Música contemporânea. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

13 discos vermelhos em busca de companhia



Comecei a participar dos #13DiscosVermelhos no twitter, mas interrompi quando começou o último debate dos candidatos à presidência da república. Nele, Jair Bolsonaro, embora reforçado por um auxiliar contrário à lei de cotas e favorável a fechar hospitais, e pelo auxiliar aparentemente vestido para festa junina, pareceu mais fraco do que nunca e fugiu do confronto com Lula.
Assisti ao pobre espetáculo, que acabou de madrugada. Cheguei a escrever, antes disso, que tinha escolhido a Floresta do Amazonas, odiada pelos bolsonaristas (refiro-me ao objeto da inspiração, claro, mas é possível que a música também não seja apreciada), para ficar em cima da pilha de discos por motivos óbvios. A permanência da floresta (embora alguns sustentem que se trata de um bioma já irremediavelmente condenado) é uma das questões que será decidida dia 2 de outubro, uma vez que o governo do candidato à reeleição foi e continua a ser, por motivos que me escapam, uma época alvissareira para o crime ambiental.
Começo, porém, da base: o disco dedicado a Alberto Ginastera, lá embaixo, foi escolhido não só por causa do gênio deste compositor (só escolhi música boa para a pilha, claro; por sinal, o time musical que apoia Lula é muito superior ao grupo que faz arminha), mas também porque foi censurado por uma das ditaduras militares da Argentina por causa da ópera Bomarzo. O disco que tenho da ópera não é vermelho, mas como o compositor vetou a execução de toda sua obra nessa época em reação à censura, achei que poderia começar deste da Orquestra de Lancy-Genève regida por Roberto Sawicki, que ainda toca o violino solo. Ditadura, censura, essas palavras me evocaram algo do presente brasileiro.
Por causa da Argentina, lembrei de Maria Callas, que odiou Buenos Aires quando lá cantou (1949) porque, segundo contou em carta ao marido, a cidade estava cheia de fascistas. De fato, ela não voltou mais àquele país de cujo clima ela também não gostou. O disco (selo Divina) com o que restou gravado da presença da artista na Argentina não é vermelho, por isso peguei este com gravações ao vivo no México, da mesma fase da carreira, com uma voz realmente incomparável. Fica bem na pilha porque é Callas e porque, de fato, não se deve gostar do fascismo.
Como não devemos gostar desses peculiares regimes políticos europeus do século XX, resolvi incluir compositores proibidos pelos nazistas, e um deles morto em campo de concentração (Schulhoff), por marxismo e/ou modernismo e/ou em razão do antissemitismo. Entram Kurt Weill e Ernst Toch (que se exilaram) e o Berg, que morreu de doença antes de ter toda sua obra banida. Em Lulu, por sinal, a ópera que escolhi para a pilha (completada por Friedrich Cerha décadas depois, pois Alban Berg morreu antes de terminar a orquestração do último ato), a crise do capitalismo e a quebra da bolsa de Nova Iorque estão bem no centro da história. Esta gravação, regida por Jeffrey Tate, parece-me muito bem cantada, a começar por Patricia Wise no difícil papel-título, passando por Peter Straka que logra atender à tessitura do Alwa, pela encarnação que Brigitte Fassbaender nos oferece com a lésbica Condessa Geschwitz e pelo veterano Hans Hotter como Schigolch. O disco da Ebony Band,regida por Werner Herbers, inclui o "oratório-jazz" de Schulhoff, "H.M.S. Royal Oak", com texto de Otto Rombach, que conta um episódio real: uma revolta de marinheiros por causa das más condições de trabalho e da proibição de ouvir jazz, um ritmo negro (que também seria proibido pelos nazistas). A revolta vence. Os fãs do atual ocupante da presidência também têm problemas com a negritude. A revolta vencerá.
O disco das trovadoras (trobairitz), na voz de Montserrat Figueras e o grupo Hespèrion XX (quando acabou o milênio passado, Jordi Savall atualizou o nome para Hespèrion XXI), entrou para lembrar das mulheres autoras, contra a misoginia que continua no poder: Condesa de Provenza Garsenda e grande Condesa de Dia. Quase toda essa música foi perdida, mas alguns poemas ficaram e foram cantados com melodia de outros músicos. Parece-me que os fãs do atual ocupante da presidência, fiéis ao ídolo, incomodam-se com esses assuntos e o protagonismo feminino.
Escolhi este disco do grupo da Quixabeira de Lagoa da Camisa, além da vibrante cultura dos trabalhadores rurais, por causa do canto no verso "Essa terra é minha" em "Eu não sou daqui". Por algum motivo, podemos desconfiar que os partidários do atual ocupante da presidência não gostam muito desses trabalhadores, e a escassa simpatia diminui ainda mais quando veem que eles se organizam. No entanto, por alguma razão, esses partidários não veem problemas nas reivindicações de terra se feitas por grileiros.
Taiguara, que era comunista, entrou por causa da censura que sofreu (creio que foi o compositor brasileiro mais censurado da época) e o obrigou a deixar o país. Este era o único disco com lombada vermelha dele que tenho e cobre as músicas anteriores a seus embates mais sérios com a censura, a época em que era conhecido principalmente como cantor romântico. Já está lá, porém, a emblemática "Hoje"
Esta apresentação ao vivo de Elis Regina em 1977 foi lançada originalmente pela gravadora Velas, anos depois da morte da grande cantora. Lembro que eu o ouvi pela primeira vez em um supermercado (esse tipo de estabelecimento vendia discos no século passado) e fiquei paralisado pela voz em "Travessia", de Milton Nascimento. O disco começa e termina com canções contra a ditadura: "Como nossos pais", de Belchior, e "Cartomante", de Ivan Lins (que era o dono da Velas, aliás) e Vitor Martins. Esta, na intepretação de Elis, foi muito relembrada neste fim de mandato de J. Bolsonaro: "Cai o rei de espadas, cai o rei de ouros, cai o rei de paus, cai, não fica nada!"
O show "Direitos humanos no Banquete dos Mendigos" reuniu grandes nomes no MAM, Rio de Janeiro, em 1973. Tratava-se da comemoração dos 25 anos da Declaração Universal em um tempo, no Brasil, hostil à dignidade humana. Neste terceiro disco, o único vermelho, temos Milton Nascimento, Jards Macalé, Pedro dos Santos, Dominguinhos e Gal Costa. O poeta Ivan Junqueira fez uma leitura no fim dos artigos desta Declaração das Nações Unidas, texto não amado pelos partidários do atual ocupante da presidência. Tampouco esta organização internacional costuma despertar elogios dessas pessoas.
Da GaL, que foi fotografada fazendo o L várias vezes em 2022 e sempre foi de esquerda, escolhi ainda o "Estratosférica ao vivo", disco duplo recente que combina repertório novo e canções mais antigas, como esta pérola da época da ditadura, "Como 2 e 2", de Caetano Veloso (um ex-cirista que agora faz o L). Estes baianos não são nada apreciados pelos bolsominions, que ficaram muito irritados quando Gal alegremente dançou enquanto seu público demonstrava espontaneamente afetos em relação a J. Bolsonaro.
Em "Munduê", Diogo Nogueira (que honra em vários sentidos o nome do pai, o grande João Nogueira, e também faz o L) acentuou as raízes negras de sua música com os jongueiros do Quilombo de São José da Serra. Bolsonaristas também não gostam desse tipo de repertório (mesmo no belo timbre deste cantor) e até mostram-se capazes de votar em políticos que pesam gente em arrobas.
Esta gravação de "Floresta do Amazonas" foi o último disco gravado de Bidu Sayão, que estava aposentada, mas aceitou retornar aos estúdios a pedido do compositor, Villa-Lobos, que morreria pouco depois e fez nesse momento sua última gravação. É claro que os bolsonaristas não gostam desse tema, e provavelmente também não desta música. Há até gente da música clássica que votou 17 em 2018, mas foi por muita falta, além de consciência política, de consciência de classe.
A maioria do que selecionei foi música vocal. Deixo, então, para comentar por último um item puramente instrumental destes músicos brasileiros. O flautista Francisco Luz e o violonista Fabrício Ribeiro gravaram este disco de música de câmara, "Na solidão em busca de companhia", com música de Villa-Lobos, Radamés Gnattali, Edino Krieger e outros. Escolhi-o por causa da faixa título, de Harry Crowl (um de meus compositores favoritos de hoje), que remete a um poema de Auden. Sei que muita gente não gosta dos poemas de inspiração religiosa desse autor, mas creio que é possível apreciar a simplicidade deste exemplo lírico, e este verso, presente em dois tercetos, é essencialmente antibolsonarista: "Men of their neighbours become sensible".

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Pierre Boulez, Gilberto Mendes: formas de engajamento

Morreu Gilberto Mendes no primeiro de janeiro, com 93 anos, e faleceu Pierre Boulez, com 90, no dia 5. Não vou comparar os dois, mas é claro que se trata, nos dois casos, de uma geração para a qual a proposta e a postura da vanguarda faziam sentido, o que não parece ser mais o caso para os compositores jovens de hoje.
Quando Schönberg morreu, estava lá o então enfant terrible francês para dizer que Schönberg realmente estava morto (texto publicado em 1952, recolhido nos Apontamentos de aprendiz, publicados no Brasil pela Perspectiva)... E também propor a superação tanto desse compositor (para ele, pouco avançado no elemento rítmico) quanto de Stravinsky (que seria conservador no plano da harmonia), bem como de Messiaen, de quem foi aluno, no caminho do serialismo integral.

Ele ficará como compositor? Creio que sim, porém não com a dimensão de Schönberg e de Stravinsky... Sugiro, para quem o estiver descobrindo, que ouça, em homenagem a Boulez, a que ele fez para Bruno Maderna, um impressionante Ritual fúnebre: https://www.youtube.com/watch?v=-k7EXNZqIUg
Vi, em jornal de São Paulo, Gilberto Mendes ser contestado em seu domínio da técnica musical, crítica que jamais se faria a Boulez. E também sobre a permanência de sua obra, que tinha uma dimensão performática que a torna mais aparentada, por exemplo, à imaginação artística de Cage, que chega à "negação da necessidade de compor" (cito Paul Griffiths em Modern Music: A concise history) do que com o supertécnico Boulez, que pode incorporar o acaso e a abertura da estrutura musical (como em Pli selon Pli e na terceira Sonata para piano), mas não a ponto de questionar radicalmente o papel de compositor. Há um maître por trás do marteau.
Ademais, só um brasileiro ousaria a Santos Football Music: https://www.youtube.com/watch?v=a_P_USxgGFM ; vejam que a matéria é brasileira, mas, por causa da forma, os compositores nacionalistas de que os nomes da Música Nova divergiram jamais criaram coisas assim. Compreendo perfeitamente que esse happening choque as pessoas mais presas a demarcações de gênero.

Em uma entrevista no sítio da Cité de la Musique/ Philharmonie (vejam na ligação a linha biográfica de Boulez) Boulez trata, na primeira parte, de Messiaen, de quem foi aluno, e de sua própria experiência como professor. Ele afirma que não é possível ensinar a compor (salvo a si mesmo); o que se pode ensinar é a análise musical:
[...] há certos limites para o professor de composição. Eu comparo com um choque, em geral; o professor de composição é um tipo de detonador; mas, se não há matéria, gente que possa detonar, o choque não existe. Mas, do outro lado, se não há detonador, você não sabe no que vai se tornar, o que você é, e nesse caso é bem mais difícil, bem mais longo, e, em alguns casos, bem mais incerto. Portanto, para mim a composição é um choque, em todo caso. 

Os escritos de Boulez ainda jovem são um exemplo clássico de como a vanguarda constrói um tribunal da história para entronizar-se e, desse cimo, escolher o caminho do futuro. Por vezes, o trono é muito baixo, não permite avaliar bem o espaço, e o futuro acaba escolhendo outros sentidos. Para Boulez, esse futuro viria principalmente a partir de Webern, cuja obra completa ele gravou, como maestro, pelo menos duas vezes.
Boulez, como maestro, acabou regendo parte da música que criticou, às vezes duramente, quando mais jovem. No entanto, do meu estreito ponto de vista de mero ouvinte, creio que não há tanta divergência entre Boulez como teórico, como compositor, como administrador e como regente: em todas essas atividades, seu compromisso era com a música do século XX. Ele regeu bastante Wagner, sim, mas sem esse compositor o século teria sido outro; e poucas coisas são tão permanentemente atuais quanto a montagem e a interpretação do Anel do Nibelungo que ele e Patrice Chéreau fizeram em Bayreuth no centenário da obra, em 1976. Foi um dos marcos de montagem operística do século XX, e com uma obra do XIX.
Os teatros de ópera são, em geral, espaço de conservadorismo militante, o que gerou a frase famosa, uma célebre brincadeira, de que eles deveriam ser queimados. Nesse gênero, para que ele nunca compôs, o maestro Boulez teve outro grande triunfo que marcou o século XX: a montagem integral de Lulu, obra póstuma de Alban Berg, que Friedrich Cerha completou (antes disso, era apresentada sem o terceiro e último ato). A montagem de 1979 na Ópera de Paris foi outra parceria com Chéreau.
Mozart e Beethoven foram exceções muito pontuais na regência de Boulez. Lembro de Otto Klemperer, um grande maestro que tinha ambições como compositor, pasmo porque Boulez não tinha interesse nem pelo Requiem de Verdi! A propósito, fiquei muito surpreso com a declaração de Pedro Amaral, em matéria do jornal O Público, de que Boulez passou a ter interesse pelas últimas obras de Verdi, mas já estava velho demais para regê-las.
Ao contrário de Klemperer, suas escolhas como regente eram geralmente ditadas por um compromisso com o que ele julgava que era a atualidade musical. Como administrador de instituições musicais, suas escolhas foram guiadas pelos mesmo princípios, o que levou a compositores tão diferentes quanto Dutilleux (já falecido) e Michel Legrand a criticá-lo por sectário, o que ele certamente era. No artigo que citei, ele assimila a vanguarda ao bom senso, o que não é exatamente uma postura vanguardista, nem faz muito sentido: "Ao declarar que, depois da descoberta dos vienenses, todo compositor que se situa fora das pesquisas seriais é inútil, não pretendemos manifestar um demonismo eufórico; antes, sim, demonstrar o mais banal bom senso".
No ano passado, Legrand o chamou de fascista, mas Boulez já estava doente demais para responder. Com o tempo, algumas dessas rivalidades se dissolvem. Dusapin, em matéria do Libération, aproximou Dutilleux e Boulez...

Alguns jornalistas, vejo, o chamam nas notícias necrológicas de "músico clássico". Talvez não gostasse da alcunha. Em um texto de Foucault, "Pierre Boulez, l'écran traversé", publicado em 1982 e incluído na coletânea Dits et Écrits, temos uma importante análise da relação de Boulez com a história da música:
Boulez detestava a atitude que escolhe no passado um módulo fixo e o procura variar por meio da música atual: "atitude classicizante", como ele dizia; ele igualmente detestava a "atitude arcaizante" que toma a música atual como referência e trata de nela incorporar a juventude artificial de elementos passados. Creio que seu objetivo, nessa atenção à história, era fazer de forma que nada ficasse fixo, nem o passado nem o presente. Eles os queria todos os dois em perpétuo movimento um em relação ao outro [...]
Obras como Dérive 2, uma de suas últimas composições, tentam partir desse perpétuo movimento e oferecê-lo ao ouvinte - e por isso são inacessíveis para as plateias distraídas, que buscam descansar encontrando sempre a reiteração auditiva, ou seja, que buscam não ouvir. Vejam esta interpretação regida por Daniel Barenboim, com integrantes da Orquestra West-Eastern Divan.
Boulez musicou Mallarmé, Gilberto Mendes musicou os poetas do movimento concretista. Ele via como uma retrocesso em sua escrita musical o Moteto em Ré Menor, "Beba Coca-Cola", escrito a partir do célebre poema de Décio Pignatari, e assim explicava seu sucesso. Não há problema algum em gostar dele, porém; vejam a interpretação do Coro da Osesp, regido por Naomi Munakata, no filme A odisseia musical de Gilberto Mendes: https://www.youtube.com/watch?v=6DKRtGjIaD4
A "popularidade" é um problema? Mais de uma vez, Gilberto Mendes disse que não. Por exemplo, nesta entrevista que concedeu aos 91 anos à Revista Brasileira de Música da UFRJ, fez esta autocrítica, extensiva a quase todo o grupo da Música Nova:
O grande Beethoven (1770-1827), Brahms (1833-1897), Bach (1685-1750) sempre foram admirados por todos. Essa “nossa” música não chegou às pessoas, temos que aceitar isso, apenas um compositor ou outro; ela ficou afastada e esse foi o pecado básico: se afastar totalmente da comunicação e, mais ainda, eliminar totalmente a emoção musical. Não vou dizer que não tem nada de emoção, mas é uma emoção extremamente particularizada, apenas para quem está intimamente dentro, não tem aquela emoção que vem do geral, ela não se conecta em ponto algum com o popular e a música do passado sempre se conectou com o popular, mesmo porque a música popular e a música erudita, segundo Bartók (1881-1945) são uma só.
Em Boulez também há essa, digamos, desconexão. Em uma conversação com Foucault, publicada em 1983, "La musique contemporaine et le public", Boulez escreveu que "a evolução correu no sentido de uma renovação sempre mais radical tanto na forma das obras quanto em sua linguagem. As obras tinham a tendência de se tornar eventos singulares que, realmente, têm seus antecedentes, mas são irredutíveis a qualquer esquema condutor admitido, a priori, por todos, o que cria, certamente, uma desvantagem para a compreensão imediata".
Se se tratava de um desafio recompensador para o público, a exigência era maior ainda para o criador, e quase esterilizadora. Boulez passou a compor cada vez menos e a dedicar mais tempo à revisão de suas obras (a notável reportagem do New York Times sobre a morte do compositor, assinada por Paul Griffiths, não deixa de lembrar disso).
Boulez foi um regente excepcional, porém o "homem de gelo", como foi chamado nos EUA, não era muito compatível com partituras que exigiam mais engajamento emocional do que frieza analítica: por exemplo, acho fraca sua gravação de Das Lied von der Erde, de Mahler, com Violeta Urmana, por causa da gélida direção. Com Webern, era outra coisa e ele podia ser bom em compositores distantes de seu estilo: por exemplo, no Concerto de câmara para cravo e outros instrumentos de Manuel de Falla.
O caráter de homem de gelo combinava, talvez, com a reserva sobre sua vida pessoal, necessária em um meio ainda ostensivamente dominado por homens brancos e heterossexuais. Lembro do ambíguo comentário no Diário de Robert Craft, um rival: "A natureza sexual de Boulez ou é neutra, ou muito bem escondida". Mais recentemente, recordo de uma ridícula conta falsa homofóbica no twitter.
Isso não impediu que acumulasse poder na condição de maestro, e sua impressionante carreira, especialmente nos EUA, habilitou-o a voltar para a França em uma posição de força: o IRCAM (Instituto de Pesquisa e Coordenação Acústica/Música), o Ensemble Intercontemporain (hoje dirigido por Matthias Pintscher), a Philharmonie, por exemplo, devem-se a ele. Se ele tivesse trabalhado apenas como compositor, certamente não teria atingido toda essa influência sobre as instituições francesas.
Gilberto Mendes não fez esse tipo de carreira e nunca teve essa influência no Brasil. Foi professor, o que é motivo de opróbrio no país. No entanto, o Festival Música Nova conseguiu resistir, buscando criar novas plateias. Pois a ensurdecedora reiteração da música industrializada cria não-ouvintes ativos. Numa entrevista de 1998, perguntam-lhe sobre "É o Tchan". Ela foi recolhida no livro Gilberto Mendes da série Encontros da editora Azougue, organizado por Marcelo Ariel no ano passado:
É uma avacalhação, uma baixaria, não tem qualidade nenhuma, a música popular não tem como se salvar. Outro dia vi no canal alemão da TV a cabo um programa com a Emsemble Moderne, que já esteve aqui no Festival. Estava lá na Deustch Veller, aqui ninguém sabe o que é, muito menos o Beto Mansur e essa turma que está aí no poder. Não sabem do que se trata e nem se preocupam em saber. Eles gostam de Chitãozinho e Xororó, que não é música caipira. É uma música inventada pela indústria cultural, com um pouco do estilo de Roberto Carlos, aquela frescurada toda. A [sic] gravadoras estão interessadas em lixo que venda. O Caetano pegou uma época boa, se fosse hoje, ele não conseguia gravar. ["Ensemble" e "Deutsche Welle"; o livro não teve revisão]

É interessante a afirmação de que, se Caetano Veloso tivesse surgido no fim do século passado, não teria encontrado espaço na indústria fonográfica. Essa indústria, porém, está em crise, e os músicos de hoje lutam em outros espaços de veiculação de música, o que também é difícil.
Eu acrescentaria que boa parte dessa música de que ele não gostava (embora apreciasse bastante música popular; no lançamento paulista do livro da Azougue, ele cantou jazz dos EUA; e peças como Rastro harmônico não negam o diálogo com essa outra música) não apresentava o engajamento na linguagem musical, sendo programaticamente repetitiva, tampouco o engajamento na política, pois lucrativa para o poder.
Os dois engajamentos foram decisivos na obra de Gilberto Mendes, que é lembrado por seu compromisso socialista; nesse campo, o que dizer de Boulez, além de sua relação com a história da música, como bem delimitou Foucault? Como ele se relacionava com a história tout court?
Se ele não escreveu obras engajadas da forma que o compositor brasileiro ousou, tinha também posições políticas. A França não tem de fato uma grande tradição democrática, e imperialismo não combina com democracia em parte alguma. Durante a guerra colonialista para manter o domínio sobre a Argélia, Boulez foi signatário de um dos manifestos contra essa política francesa e, por isso, foi impedido de retornar a seu próprio país.
O Brasil também teve medidas de banimento, mas durante a ditadura militar...
Termino com esta observação, em homenagem a esse aspecto não muito conhecido do músico. Vejam que jornal foi destacar a política no necrológio de Boulez (não foi Le Monde): http://www.elmoudjahid.com/fr/actualites/88905

domingo, 26 de julho de 2015

O fechamento da Camerata Aberta e a devastação como teoria da gestão

Em algumas áreas da administração pública brasileira, parece que os titulares de algumas pastas são escolhidos ou elogiados publicamente pelos rastros de destruição que deixaram, ou seja, pelo que não deixaram, mas extinguiram e desfizeram. Esse tipo de obra parece credenciá-los para carreiras mais altas no Estado, nesta época de desmanche.
Se certamente esse é o caso da Fazenda, pode-se observar o mesmo na Educação e na Cultura. Lembrem, por exemplo, da extinção da Sinfonia Cultura.
[Acréscimo em 12 de agosto de 2015: o desmantelamento dos sistema de Rádio e de Tevê Cultura também deve ser mencionado; assinei há pouco uma petição avaaz "Eu quero a RTV Cultura viva".]

No último 22 de julho, ocorreu um dos últimos concertos do projeto Camerata Aberta, grupo musical que foi criado como o conjunto de câmara da Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP Tom Jobim), ligado à Secretaria Estadual de Cultura e à organização social (OS) Santa Marcelina Cultura.
No seu disco "Espelho d'água", publicado pelo SESC/SP, lemos que a inspiração para a criação do grupo veio nada menos do que de uma sociedade musical criada por Schönberg para promover a música contemporânea: Wiener Verein für musikalische Privataufführungen (vejam a impressionante lista das obras e compositores apresentados pelo conjunto vienense, sem paralelo com nenhum grupo brasileiro) que não durou muito, mas foi fundamental como modelo para outras sociedades musicais e para a experimentação artística.
O texto do disco, escrito por Flo Menezes, pede apoio ao grupo, o único do gênero, na época, estável no Brasil.
A chamada estabilidade dos conjuntos artísticos bancados pelo Estado é, em geral, precária, porque esses projetos não são vistos como projetos de Estado, mas de um governo, ou de um partido, ou menos do que isso: no Estado de São Paulo não há alternância política há muito tempo, o que não impede o abandono de iniciativas, estruturas, órgãos.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Retrospectiva 2014: Do incêndio nas ruas ao choro marginal, música que ouvi

No fim de 2013, fiz uma retrospectiva com frases de décadas anteriores que foram ouvidas novamente naquele ano, frases da ordem que tinham voltado à ordem do dia (se é que algum dia saíram de todo) em razão do anacronismo político que tomou conta dos poderes instituídos após as manifestações populares.
Resolvi, desta vez, fazer uma de caráter bem pessoal,  a música que vi, e que foi um consolo e um estímulo. Vi outras apresentações, mas foram estas que mais me marcaram. Curiosamente, a maior parte ocorreu no segundo semestre, que foi a época mais difícil e mais gratificante do ano para mim.
Todas as apresentações se deram em São Paulo, com exceção da Butterfly no fim do ano.

16 de janeiro: Ney Matogrosso e banda no SESC. Queria ver "Atento aos sinais"; fui à bilheteria no dia em que começariam a vender os ingressos quatro horas e meia antes da abertura das vendas. Dessa forma, consegui comprar dos últimos lugares... Esse show era abertamente político no início, com imagens da cidade, de revolta (especialmente da Primavera Árabe) e canções sobre o "incêndio nas ruas" ("Incêndio", de Pedro Luís). Ele o iniciou no começo de 2013, antes da ocupação dos Congresso Nacional pelos índios e as manifestações iniciadas pelo Movimento Passe Livre. Ney estava, de fato, atento. Como antes. Desde os Secos e Molhados, ele mostrou, em plena ditadura militar, inquietação política, e pela via das políticas de gênero, o que era muito ousado nos anos 1970. E ainda pode ser ousado, tendo em vista o encaretamento do Brasil neste século. Pela quarta música, o show perdia a abordagem política e as músicas abordavam, em geral, relacionamentos amorosos (entrevista que deu a este ano à televisão portuguesa, com bobagens sobre o bolsa-família, mostrou certa distração). Apesar disso, também nas canções de amor, embora algumas não tivessem muita qualidade musical, via-se a inquietação do cantor: além dos compositores que ele gravou mais de uma vez, como o falecido Itamar Assumpção ("Noite torta", "Isso não vai ficar assim"), Vitor Ramil ("A ilusão da casa"; no bis, "O astronauta lírico"), Cazuza (no bis, "Poema"), ele cantava pela primeira vez Paulinho da Viola (vejam a dança em "Roendo as unhas") e compositores novos como Criolo (o interessante retrato erótico urbano de "Freguês da meia-noite"). Com outro compositor jovem, Vitor Pirralho, que participou de Índio é Nós, e sua "Tupi fusão", o dado político voltava explícito, e era o momento mais interessante de dança da apresentação. A movimentação cênica de Ney Matogrosso continua surpreendente, e tanto ela quanto a condição de sua voz parecem desmentir o fato de que ele é septuagenário. Ele está incomparavelmente melhor do que os seus companheiros de geração (apesar de não ter levado uma vida exatamente saudável até os cinquenta anos), que ou perderam a maior parte dos recursos vocais, ou simplesmente se resumem a cantar o já cantado, enquanto ele continua procurando novo repertório. Lembro de uma meio soprano falando, nos idos de 1992, aproximadamente, que Ney Matogrosso logo iria perder a voz, pois não se poderia cantar agudo assim por mais de dez anos. Ora, ela há muito não se apresenta mais e ele, dez anos mais velho, continua na ativa... O último bis (deu quatro) foi o samba "Ex-amor", de Martinho da Vila.

19 de abril: Caminhada Índio é Nós. Copio o "Índio é Nós": "A Caminhada partiu do MASP, sempre com música capitaneada pelos integrantes do Oficina (especialmente pela voz de Letícia Coura; ao lado, a única foto que consegui mais ou menos tirar dela, de óculos escuros) para o  Cemitério da Consolação, onde se fez um ritual para Mário de Andrade e Oswald de Andrade; seguiu pelo Parque Augusta, que foi abraçado pelos participantes; terminou no Teatro Oficina". Eu estava lá. Letícia Coura puxou, durante horas, os cantos antropofágicos e a "Tupi or not Tupi" de Surubim Feliciano da Paixão, que recebeu estrofe extra de Fabio Weintraub e concluía a peça Walmor y Cacilda 64 - O RoboGolpe, de José Celso Martinez Corrêa. Esse uso político da música prosseguiu no Teatro Oficina, onde, no 19 de abril, se fez uma performance a partir do Choros 10 de Villa-lobos (o final pode ser visto neste vídeo) e de cantos indígenas. Não foi uma "execução" de Villa-Lobos, o que seria careta nesse contexto, e sim uma celebração, uma revolução onde se dança.

3 de agosto: O maestro Rinaldo Alessandrini no Teatro Municipal de São Paulo. Ele é o maior maestro para certo repertório do barroco italiano, mas veio reger o coro e a orquestra do teatro em um repertório completamente diferente: Mendelssohn (a abertura Mar calmo e viagem próspera, a ária "Infelice! Già dal mio sguardo" - a solista foi Monica Bacelli - e o Salmo 42) e um autor contemporâneo, Lauridsen, cuja peça, de linguagem conformista, ele interpretava pela primeira vez, "Lux Aeterna". O coral do Teatro cantou bem. Valeu pelo Mendelssohn.

4 de agosto: A soprano Natalie Dessay e o barítono Laurent Naouri, com o pianista Maciej Pikulski. Era um belo programa de canção francesa (Poulenc, Fauré, Duparc...) com duos e solos. Dessay não tem a mesma voz dos anos 1990, mas isso não importa nada para esse repertório, em que ela pôde ser mais expressiva do que em muitos papéis da ópera romântica francesa. Acho que ela está muito certa em buscar um repertório novo, agora que suas possibilidades vocais mudaram, em vez de simplesmente encerrar a carreira, como fez Callas. E é de fato, muito careta e um tanto sádico este público de ópera que exige que as sopranos aos 50 cantem os mesmos papéis de jovens que faziam aos 20. Não sei se a celebridade dela atraiu um público que queria mais aparecer do que ouvir (coisa comum na Sala São Paulo), mas a plateia causou problemas. No pior momento, um desvairado na quarta fila da plateia gritou "maravilhosa" quando uma das canções terminava. Ela se assustou, provavelmente sem compreender o que havia sido dito. Na peça seguinte, errou e teve que recomeçar, pedindo pardon. Sabe-se que houve tempos em que os compositores gostavam de aplausos até no meio da música, e é o que, por exemplo, Mozart esperava e contou em uma de suas cartas. Em boa parte do repertório, no entanto, esse procedimento pode tirar a concentração do artista, especialmente se os acordes não são nada óbvios. Mas que poesia a da cantora - como em "L'invitation au voyage", que Duparc compôs a partir do poema de Baudelaire. A batida "Après un rêve", de Fauré, ficou muito interessante nos gestos dela. Com Naouri, tão bom no repertório barroco francês, eu já tinha as canções de Ravel, e ele reafirmou sua adequação completa ao estilo. Pikulski não estava nada abaixo dos famosos recitalistas. Naouri, no seu disco de jazz "Round about Bill", havia gravado "Minha", de Francis Hime, e, desde então, segundo ele mesmo, melhorou seu português, língua em que ele falou com a plateia. Um bis foi a ária das Bachianas Brasileiras n. 5 (sem o Martelo). Naouri cantou a parte central, com letra, e Dessay fez o vocalize, que ela havia gravado recentemente no infeliz disco de música brasileira, "Rio-Paris", cometido por Liat Cohen, que acompanhou Dessay (que está muito bem; ela, apenas, justifica a gravação) e duas cantoras sem voz e sem um bom português. No final da ária, que acabou sendo o último número da noite, o agudo quebrou, como podem ver no vídeo, mas nada grave. Depois do concerto, uma fila quilométrica para pegar autógrafos. Na minha frente, um casal em que o marido disse não apreciar muito a soprano, e sim o barítono. Gosto de ambos, mas disse que achava que ela era melhor intérprete. Nessa noite, ela mostrou que, de fato, chegou a um nível em que tornou até o silêncio expressivo, o que é raríssimo em um cantor. E o uso do silêncio é talvez o que a música tenha de mais alto e necessário a ensinar à literatura, segundo Beckett, para a dissolução da "verdadeiramente arbitrária materialidade da palavra", dando o curiosíssimo exemplo da Sétima Sinfonia de Beethoven, obra que significava, para Beckett, sons conectando abismos de silêncio.

6 de agosto: Hamilton de Holanda Trio na Praça das Artes. O genial bandolinista e compositor tocou várias peças, inclusive alguns de seus Caprichos (o disco foi lançado neste ano; eles também podem ser baixados com a partitura nesta ligação). No contrabaixo, André Vasconcelos e, na percussão, Thiago da Serrinha, que tiveram seus momentos de solista. A apresentação trouxe uma execução notável de "Sinhá", de João Bosco e Chico Buarque. Hamilton de Holanda disse já essa canção considerar um clássico da música brasileira. Surpreendeu-me "Trocando em miúdos", de Francis Hime Chico Buarque, que eu nunca tinha ouvido com ele. "O que será (à flor da pele)", de Chico Buarque, também ficou impressionante; vejam aqui o que ele faz no registro agudo do bandolim a partir de 5'36''; é certo que, sem a letra enigmática,a música pode ser e se torna outra coisa, mais afirmativa do que na gravação célebre com a voz do compositor e a de Milton Nascimento. Não acho isso um problema, porém. O intérprete, especialmente em gêneros em que ele tem mais liberdade, e é a esmagadora maioria dos casos na música popular, pode mudar o caráter da música, se o resultado for convincente em termos musicais e dramáticos. E isso ocorre também na "música clássica" (na Vida de Rossini, Stendhal escreve "Quando Madame Pasta canta Rossini, ela empresta ao compositor as qualidades que a ele faltam"). Além disso, pensando em comparações entre versões cantadas e instrumentais, dificilmente um cantor poderia emular a variedade de ataque e de dinâmica (o recente disco com Diogo Nogueira - o cantor é bem menos criativo musicalmente e variado em termos interpretativos do que o instrumentista - ressente-se disso) que Hamilton de Holanda logrou nessa música e no "Canto de Ossanha", de Baden Powell e Vinicius; o solo do percussionista, por sinal, é mesmo de fazer a plateia aplaudir no meio da música, o que aconteceu e é bem-vindo neste caso. No final, aparece o tema de "Berimbau", outro grande afrossamba dos mesmos autores.  

25 de agosto: A meio soprano Joyce DiDonato acompanhada pelo pianista David Zobel na Sala São Paulo. A apresentação começou com uma nota de tensão: a meio soprano estava resfriada e contou que, de manhã, não conseguia vocalizar; ela nunca havia cancelado por motivo de saúde, mas chegou a pensar nisso. No entanto, disse que foi muito bem tratada (simpática, disse que se tivesse que ficar doente de novo, teria que ser no Brasil) e conseguiu sentir-se apta para cantar. Por causa da doença, trocou a última peça, que seria o acrobático final da Cenerentola, de Rossini, pela ária "Riedi al soglio", do mesmo compositor, também muito difícil, que está em seu último disco, o fantástico "Stella di Napoli". Um crítico de certo jornal de São Paulo duvidou que ela estivesse doente, pois não ouviu nenhum sinal do resfriado. Ele não prestou atenção. No final da primeira parte do recital, no entanto, DiDonato fungou entre as pausas da virtuosística ária "Dopo notte", do Ariodante de Händel (que ela gravou com Alan Curtis na regência) e, no começo da segunda parte, sua voz ficou instável em um agudo sustentado na cadência da ária de Bellini, "Dopo l'oscuro nembo", de Adelson e Salvini. Tudo muito discreto, porém, e, tão bem sucedida quanto no recital que deu na mesma sala no ano passado, ela confirmou que é uma das maiores cantoras vivas, e está em seu auge vocal. Especialmente interessantes foram as canções de Santoliquido, compositor italiano do século XX que eu - na minha ignorância do repertório da música de câmara italiana - nem sabia que existia; ouçam esta "Tristezza creposcolare". Além disso, ela, muito simpática, detém uma grande capacidade de comunicação com o público, não só ao cantar, mas também ao falar e explicar as peças em inglês. Depois do concerto, outra fila quilométrica para pegar autógrafos.

31 de agosto: A soprano Mariella Devia e o regente Giuseppe Sabbatini no Teatro São Pedro, com a orquestra do Teatro. Eu não sabia que Sabbatini, que era um tenor, havia se tornado regente. E não tinha ideia de como Devia estava cantando depois de décadas de carreira. O repertório era muito exigente: a ária de Julieta em Os Capuletos e os Montéquios, de Bellini, a "Casta diva" da Norma, do mesmo autor, a primeira ária do papel título de Lucia di Lammermoor, de Donizetti; de Puccini, a ária de La rondine, a ária do suicídio de Liù, em Turandot; de Manon, de Massenet, "Adieu notre petite table" (com o si bemol agudo do recitativo) e a valsa da Julieta no Romeu e Julieta de Gounod. Ela tem 41 anos de carreira, mas a voz dá poucos sinais da idade (algumas notas altas ficaram um pouco mais estridentes); fiquei impressionado especialmente com a cadência da "Casta diva", ela simplesmente emenda as frases num só fôlego, de 6'01 a 6'16". Nessa respiração, nesse apoio, está um dos fatores de sua longevidade, além da escolha de repertório. Mais adiante, vejam como ela cantou o segundo verso da cabaletta, ornamentando-o; a partir de 8'20'', quase levantei da cadeira. Seu impacto é vocal, antes de tudo - ela nunca foi uma grande atriz. É basicamente o contrário de Dessay, que ousou cantar coisas não muito apropriadas para sua voz (especialmente La Traviata, que acho que foi a ópera que acelerou seu declínio vocal) e teve que abandonar (ao menos provisoriamente) os palcos de ópera. São duas éticas artísticas diferentes, e respeito os dois tipos de cantores: os que se queimam para atravessar possibilidades novas (como Callas, que cantou profissionalmente em ópera por 22 anos), e os cautelosos, prudentes (para ficar entre as sopranos, um exemplo é Mirella Freni, que aos 70 ainda se apresentava em ópera). No bis, Devia cantou "Addio del passato", da Traviata de Verdi (só uma estrofe, o que aprovo) e a Valsa da Musetta, de La Bohème, de Puccini.

20 de setembro: Salomé, de Richard Strauss, no Teatro Municipal de São Paulo. Já tinha visto John Neschling reger essa ópera em concerto com a Osesp. Não foi uma ocasião feliz, pois o maestro só parecia conhecer as dinâmicas forte e fortíssimo, o que me fez temer pela saúde da soprano. Desta vez não foi o mesmo, e a regência tendeu a soar desvitalizada como das outras vezes que o vi no Municipal (especialmente na Aida, que foi muito bem cantada, inclusive por Gregory Kunde, que se metamorfoseou vocalmente de Arturo para Radamés). Annemarie Kremer cantou bem o exigente papel - ela até emitiu audivelmente as notas graves do "mistério da morte" ("Geheimnis des Todes", a partir de 12'30'' neste vídeo), numa região difícil para qualquer soprano. O tenor de caráter que cantou Herodes, Peter Bronder, é um veterano e, muito inteligente, mostrou habilidade em evitar as notas mais altas do papel sem dar na vista. Na récita do dia 16, ele tentou cantar a frase "Es wird Schreckliches geschehn",  "algo terrível vai acontecer" e, de fato, ocorreu. Kremer, no dia em que vi, estava com o agudo mais seguro do que nesse aúdio. Mark Steven Doss foi vocalmente soberbo como João Batista. Eu queria muito ver Iris Vermillion, que cantou Herodíade, meio soprano de repertório muito interessante. Ela teve seu auge nos anos 1990, e continua com presença cênica - e as notas para cantar esse papel.

21 de setembro: Quarteto de Cordas de Leipzig no SESC. Outro concerto baratíssimo no SESC, e com meu quarteto de cordas preferido. Na primeira vez que o vi, no século passado, foi numa apresentação gratuita na Sala dos Arcos no Paço Imperial, no Rio de Janeiro. Era um programa só de expressionismo alemão. Ficou lotadíssimo, claro, e acabei sentando no chão, perto do violoncelista, Matthias Moosdorf. O Quarteto veio a São Paulo há poucos anos para um brilhante concerto infeliz na Hebraica, em que o público reduzido fazia tanto barulho que parecia maior (o concerto começou com um soco que um homem sentado na primeira fila deu na cadeira; não fazia parte da execução, a peça inicial era de Haydn, se bem me lembro, não de John Cage). Desta vez, o repertório foi russo: Lourié, Stravinsky, Chostakovich e Borodin. Uma lembrança de como o Quarteto de Leipzig é eclético e não se limita ao repertório germânico. Nunca gravaram, porém, Villa-Lobos. Eu não gosto, normalmente, do famoso Oitavo Quarteto de Chostakovich: em geral, os intérpretes perfumam a flor, tornam mais melancólico aquilo que já é depressivo, e ele soa simplesmente exagerado. O Quarteto de Leipzig me surpreendeu completamente, pois interpretaram-no de maneira mais seca, sem ceder ao sentimentalismo fronteiriço dessa partitura. Para mim, foi uma revelação completa de possibilidades de uma peça que já conhecia. A outra revelação foi o o Segundo do Borodin, um grande momento do romantismo russo, que eu desconhecia e o Quarteto já havia gravado. Acabei comprando o disco. Depois do concerto, deram autógrafos (são muito simpáticos, além de tudo) e mencionei o que achei do Chostakovich - a melhor interpretação que já tinha visto dessa peça (não que eu conheça muitas...), superando o Emerson Quartet, que vi nesta cidade.

15 de outubro: Les Arts Florissants no MASP. O grupo, de formação flexível, veio bem reduzido: além do maestro William Christie, o maior intérprete de tantas páginas do barroco francês, que regeu e tocou cravo, vieram a soprano Élodie Fonnard, o barítono Marc Mauillon, as violinistas Florence Malgoire e Catherine Girard, Myriam Rignol na viola da gamba e Thomas Dunford no alaúde. Era um repertório de câmara, com árias e trechos de cantatas, de Campra, Couperin, Bernier, Campra... Com alguns números instrumentais. As violinistas começaram mal, mas depois da primeira peça concordaram em tocar na mesma tonalidade. Embora fosse um recital de câmara, havia movimentação cênica dos cantores, e muito bem lograda. Destacou-se, porém, Mauillon, que eu já tinha visto ao vivo num dia infeliz para ele (era inverno, ele estava resfriado, praticamente se refugiou atrás dos outros cantores na Selva Moral e Espiritual de Monteverdi). Ele é um artista até a ponta dos pés; quando cantou, reclinado perto da plateia, o trecho de Les femmes de Campra, "Fils de la nuit et du silence", a noite e o silêncio fizeram-se ouvir. Sua voz é pequena, mas, neste repertório, isso é uma vantagem. No entanto, quem mais me impressionou foi Thomas Dunford, jovem estrela do alaúde que eu nunca tinha ouvido, e que gerou tantas sonoridades diferentes em "Les voix humaines", de Marin Marais, que, de seus dedos, uma comunidade parecia nascer. Até William Christie pareceu comovido.

13 de novembro: O contratenor Phillipe Jaroussky e o Ensemble Artaserse na Sala São Paulo. A voz de Jaroussky é uma das maiores fontes de beleza vocal de hoje, especialmente no piano e no pianíssimo. O repertório foi todo dedicado a Vivaldi, o que ocorre também no seu último disco, "Pietá", o terceiro de seus discos solo em que somente interpretou esse "grande compositor", como lembrou o músico. Marcou-me o moteto "Longe, mala, umbrae terrores"; essa peça exige a agilidade que esse contratenor possui, e um tipo de veemência que ele encontra mais nos acentos do que na força. Vejam como ele interpretou de forma inteligente esta ária de Vivaldi; ele impressiona porque não precisa de muita potência para expressar afetos mais intensos. Seria interessante fazer um estudo de retórica da interpretação desse cantor, que é do raro tipo que faz da delicadeza seu argumento mais irrefutável. Ele sabe espanhol (ouçam esta entrevista que concedeu pouco antes na Argentina) e ousou dizer algumas frases em português. Depois do concerto, mais uma fila quilométrica para pegar autógrafos.

21 de novembro: André Mehmari e Gabriel Mirabassi no SESC. Mehmari no piano e Mirabassi no clarinete, tocaram principalmente músicas do brasileiro. Os dois haviam se conhecido por meio de Guinga e já haviam gravado juntos o disco Miramari. Lançavam nessa ocasião o DVD. Neste ano, vi Mehmari tanto sozinho quanto com  Hamilton de Holanda, mas quero escrever um pouco aqui somente sobre esta apresentação, um tanto atípica. Além da excelência dos dois, havia a nota curiosa de Mirabassi, um dos maiores clarinetistas do mundo, volta e meia sublinhar que Mehmari não era normal, de tão prodigioso. Ele está certo, claro. Vejo esse prodígio na beleza de certas canções (o lirismo de "Quando em Gubbio", por exemplo) e no pensamento musical (o uso da citação e da memória no cruzamento de linguagens musicais). Mehmari, de fato, é genial, e a forma como ele faz o que chama de mestiçagem, uma fusão de diferentes linguagens musicais, vai muito além do crossover e deixa bem longe tentativas semelhantes de certos músicos do jazz. Eu o vi, neste ano, acho que no Itaú, falar que foi desafiado em 2013, na plateia, a improvisar como se fosse Chiquinha Gonzaga a tocar uma ária de Mozart. Ele fez algo fenomenal com "Voi che sapete", uma das árias do personagem Cherubino, da ópera As bodas de Fígaro, de Mozart. Pois bem: essa criação entrou no recente disco "Ouro sobre azul", dedicado a Ernesto Nazareth, logo na primeira faixa. Nesse disco, apenas a tentativa de enxertar Tristão e Isolda não me parece funcionar - Wagner soa como um invasor na casa musical de Nazareth, que não era exatamente Bayreuth. No entanto, exceto isso, o disco é esplêndido, e vê-se que é um compositor revisitando outro - a execução é uma conversa entre criadores. Entendo que essa facilidade de atravessar fronteiras gere ressentimentos, especialmente dos "compositores clássicos" contemporâneos brasileiros (uma espécie humana que, em geral, adora fronteiras e fiscais de imigração entre gêneros). Vi que alguns o veem como um invasor que vem de outra área (a música popular), por mais que seu estúdio se chame Monteverdi, e, pior ainda, um invasor que recebe encomendas da Osesp e de músicos estrangeiros, como Andrea Lucchesini, que trabalhou com Berio e agora interpreta com Mirabassi as Scarlattianas de Mehmari. Ele se incomoda com as críticas dos fiscais de imigração, mas acho que elas são um sinal de sucesso. Callas dizia que, quando parassem de assobiar para ela (assobio, em ópera, equivale a vaia), saberia que estava acabada.

30 de novembro: Madame Butterfly, de Puccini, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Eu somente tinha visto essa ópera nos anos 1990, nesse mesmo palco, com Leila Guimarães no papel título. A atual montagem era de Carla Camurati (que deixa em 2015 este Teatro para se ocupar das atrações culturais das Olimpíadas) e havia sido originalmente encenada em 1999 no Alfa Real. Era muito delicada na ênfase de elementos de papel, como borboletas de origami, até o final, quando o pressuposto político tornava-se evidente: era uma ópera de denúncia contra o imperialismo dos EUA: a esposa de Pinkerton simplesmente rouba a criança. No final, Camurati foi vaiada por uma pequena claque e aplaudida por quase todo o público. Talvez a claque fosse composta por pessoas simpáticas a outro(s) encenador(es) que queira(m) dirigir o Teatro. O maestro Isaac Karabtchevsky não estava exatamente na praia dele; as oportunidades de lirismo dessa ópera passaram meio em branco na orquestra. Mahler, certamente, o inspira mais. Os cantores, felizmente, estavam mais afinados com esse repertório, como Hiromi Omura, que dominava cada gesto, vocal e cênico, do exigente papel, que mantém a cantora em cena praticamente todo o tempo, desde sua entrada. É uma ópera tão sopranocêntrica quanto a Traviata. Os tenores estavam muito bem: o Pinkerton era Fernando Portari. Assisti à estreia desse tenor no Teatro Municipal em um papel comprimário da ópera Manon Lescaut, também de Puccini. Ao longo desses anos de carreira, ele ganhou em volume vocal sem perder o agudo e a mezza di voce. Sua segurança musical continua inatacável. Sérgio Weintraub confirmou sua desenvoltura cênica nesses papéis cínicos; vocalmente, ele foi um Goro que poderia, sem problema algum, ter cantado o Pinkerton. Seu filho, David Weintraub, interpretou o filho de Butterfly (e poderia ter confirmado as suspeitas de Sharpless - bem cantado por Rodolfo Giugliani - sobre a infidelidade da japonesa...) Quando as borboletas de origami desceram e oscilaram sobre o palco, ele brincou com elas com naturalidade.

Em dezembro, vi no cinema uma apresentação do Metropolitan Opera House da ópera Os mestres cantores de Nurembergue, de Wagner, regida por James Levine. Acho que chorei meia hora, no fim do segundo ato, e do quinteto até Sachs abrir o prêmio no terceiro ato. É muito comovente como Wagner, que ficaria tão reacionário, inclui o povo na história, e como é o povo que acaba por decidir o prêmio, função que era reservada aos Mestres. Creio, porém, que não devo incluir mais nenhuma consideração aqui sobre os Meistersinger, já que assisti à apresentação via cinema...


Agora, quatro entradas para um evento excepcional, que teve sua primeira edição em 2014. Queria ter visto várias coisas do primeiro (espero que continue!) Festival SESC de Música de Câmara. Uma iniciativa do SESC-SP, cuja programação cultural é a melhor do país - e a preços muito acessíveis (doze reais). Queria ter visto vários músicos (inclusive o Brasil Guitar Duo), mas o trabalho e os ensaios não me permitiram. Consegui, porém, ver estes:

27 de novembro: Anonymous 4 no Festival SESC de Música de Câmara. Esse conjunto vocal feminino é simplesmente o melhor do mundo no seu repertório. No concerto, as cantoras privilegiaram o repertório medieval, com obras de autores anônimos, Hildegard von Bingen ("O quam mirabilis est" e "O rubor sanguinis", talvez o ponto mais alto do concerto), com algumas contemporâneas. Cada uma das cantoras teve um solo, exceto a contralto, e se ouvia o porquê: ela cantou com pouquíssima voz; às vezes, parecia ausentar-se completamente e, quando tinha que cantar mais forte, o vibrato soava sem controle. Contudo, o grupo continuava excepcional em termos de homogeneidade de som e de prática de conjunto. Provavelmente foi a última chance de ouvi-las no Brasil, pois encerrarão a carreira em 2015.

28 de novembro: Quarteto Lutoslawski no Festival SESC de Música de Câmara. Esse quarteto de cordas é um grupo novo, fundado em 2007, que eu não conhecia. No entanto, logo me chamou a atenção, quando vi a programação do Festival, em razão do repertório: além do compositor que lhe dá nome, interpretariam Schulhoff! E Penderecki (o primeiro quarteto, ainda da fase interessante desse compositor) e Marcin Markowicz, que é o segundo violino do grupo. O programa foi alterado, deixaram as Cinco Peças para Quarteto de Cordas de Schulhoff, que tem tanta vivacidade rítmica, para o fim. Antes dele, a peça de Markowicz, seu terceiro quarteto, que começava com uma frase - uma oitava descendente - que sofria diversas variações. Uma revelação. Achei que esse jovem compositor tinha pleno direito de ser tocado com os outros nomes do programa; no bis, tocaram uma breve peça que ele escreveu em homenagem a Chostakovich. O mais difícil, em termos de conjunto, era o Lutoslawski, que eles tocaram em primeiro lugar. Um desafio em termos de entrada e de variedades de ataques que a peça exige dos músicos. Mas o grupo, que estreava no Brasil, estava à altura das dificuldades. A lamentar apenas o público que não veio (o teatro estava meio vazio) e o apresentador do SESC que achou que o Quarteto era um grupo de Direito em inglês.

5 de dezembro: Kronos Quartet no Festival SESC de Música de Câmara. Trata-se de um quarteto de cordas que se distingue por seu repertório exclusivamente contemporâneo; mas, ao contrário de um grupo como o Arditti, tem um queda para o pop - talvez por isso o concerto estivesse mais cheio do que os outros que vi do Festival. Ao contrário do Arditti, ele não tem uma técnica lá muito espetacular - já a primeira peça, de Terry Rilley, "G Song", revelou dificuldades do segundo violino. No concerto, que incluiu peças que soavam como má música de filme (apenas ilustrativas ou revoltantemente açucaradas), a que talvez me tenha convencido mais foi a mais nova, de Mary Kouyoumdjian, escrita para o Kronos: "Bombas de Beirute", com música pré-gravada que evocava sons de guerra.

7 de dezembro: Os Músicos de Capella e Luis Otávio Santos no Festival SESC de Música de Câmara. O programa era integralmente dedicado a Bach - lembro que a gravação das sonatas para violino na integral Bach da Brilliant Classics são justamente a desse importante violinista (e maestro) brasileiro. As Ouvertures BWV 1067 e 1068, tão famosas, ganham muito em serem ouvidas em formações de câmara - pena que nem tudo estava perfeito em termos instrumentais (o oboé não estava em um bom dia). Foi linda a ornamentação da famosa Ária; pena que não achei nenhum vídeo com ele interpretando essa peça para indicar aqui. Na Cantata de Casamento a solista foi a soprano brasileira (também com carreira internacional) Marília Vargas, e provavelmente o Brasil não tem nenhuma outra cantora que possa fazer tão bem esse repertório. O público ficou aplaudindo entre os movimentos, mas isso não parece ter atrapalhado muito os músicos. Vejam um trecho de outra cantata, Ich habe genug, com ela, Luís Otávio Santos, e outros músicos (há um errinho a 5'54'', mas benigno).

Estou lendo agora a coletânea de ensaios de Virginia Woolf, O valor do riso, organizada e traduzida por Leonardo Fróes, que a CosacNaify lançou há pouco. O primeiro deles, "Músicos de rua", traz um elogio do ritmo e dos músicos que, nas ruas, não obstante imperfeições artísticas, revelam verdadeira devoção à música: "não é disparatado supor que os homens e mulheres que arranham harmonias que jamais vêm, enquanto o trânsito vai estrondando ao lado, sejam tão fortemente possuídos, embora fadados a nunca transmitir isso, quanto os mestres cuja eloquência fácil encanta milhares a ouvi-los." Pode haver beleza em uma execução imperfeita, quando a intenção é forte o suficiente.
Contudo, é sempre possível ouvir boas interpretações nas ruas, e uma das que pude presenciar (em outubro, mais de uma vez) foi diante de uma estação de metrô, Santa Cecília, com a flauta de Ivan Melillo e o cavaquinho de Jefferson Dias Rocha. Vendiam seu disco independente (em que tocam também Bruno Vinci, Tigará Macedo, Bruno Bertolino e o próprio Melillo), "Choro marginal", composto na maioria de clássicos, como "Atraente", de Chiquinha Gonzaga, e "Tico-tico no fubá", de Zequinha de Abreu.
De um lado, é terrível que esse repertório possa hoje ser chamado de "choro marginal". Por outro, é político que ele se faça a partir das margens. Ouvir as margens é uma função política, além de estética.

sábado, 19 de maio de 2012

Dietrich Fischer-Dieskau, música e poesia

Escrevo como um ouvinte órfão. Descobri Dietrich Fischer-Dieskau, que morreu ontem, aos 86 anos, somente na minha graduação, quando conheci um colega mais novo que admirava intensamente o cantor. Comprando discos usados nos vários sebos de lp que existiam no Rio de Janeiro no início dos anos 1990, e depois discos compactos, fui conhecendo seu repertório. Ouvi Schubert primeiro com Ely Ameling (em uma ótima coleção para bancas de jornais), mas o texto para ela não tinha tanta importância quanto para Dieskau, e o Lied, a canção alemã, não é nada sem o texto.
Não que o texto seja sempre bom nesse gênero; Schubert escreveu alguns de seus melhores Lieder sobre uns poemas sentimentais que não seriam lembrados sem a música. O compositor (e o intérprete) podem transfigurar eventuais fraquezas do poeta, e quando Schubert descobriu Heine, por exemplo, no Canto do Cisne, os resultados foram incomparáveis; ouçam a canção do duplo, "Der Doppelgänger".
Dieskau gravou todos os Lieder de Schubert para voz masculina, e interpretou o ciclo Winterreise (Viagem de inverno), uma das maiores obras da música de todos os tempos, diversas vezes (com oito gravações de estúdio dessa obra segundo The Guardian) ao longo das décadas de sua carreira, que durou do final dos anos 1940 até o início da década de 1990.
No entanto, é muito redutor caracterizá-lo como essencialmente um intérprete de Schubert: cantor de vocação intelectual (ele é autor de diversos livros, autobiográficos e sobre música) e enciclopédica, conferiu-se a missão de gravar as canções para voz masculina de Brahms, Liszt, Schumann, Hugo Wolf... Hermann Prey, o outro grande barítono alemão de seu tempo, também teve uma ambição de cobrir o vasto campo da canção clássica, porém não pôde deixar uma discografia tão imensa.
Dieskau era um grande músico (o que o levou a dedicar-se à regência, campo em que não logrou destacar-se), o que nem todas as grandes vozes são. Luciano Pavarotti, por exemplo, destacava-se mais pelo esplêndido instrumento vocal do que pela inteligência musical. Com Dieskau podia ser o contrário, e a maestria do músico em geral impressiona ainda mais do que a beleza da voz. No obituário escrito por Christophe Huss, é contada a conhecida história da audição do então jovem cantor com Furtwängler, já em seus últimos anos de vida. Dieskau levou para a audição os Quatro cantos sérios, de Brahms, obra que exige enorme maturidade interpretativa, e o maestro, a princípio reticente com a ousadia, maravilhou-se com a interpretação. Depois, gravaram Wagner (o Kurwenal de Tristão e Isolda, ópera que voltou a gravar décadas depois - ele atravessou gerações de regentes, de Klemperer a Barenboim - com Carlos Kleiber) e Mahler (Lieder eines fahrenden Gesellen) - este último compositor, por instigação do barítono, pois o grande regente alemão, bastante conservador no repertório (e na composição), não se interessava por ele.
Dieskau tinha sua grande inteligência musical, uma grande compreensão do texto literário (não por acaso, era também escritor) e isso certamente contribuiu para que continuasse na música como regente, depois de aposentar-se como barítono em 1992. Nunca o ouvi nesse tipo de atuação, mas sei que não logrou destacar-se nessa atividade como conseguiu na de cantor (ao contrário de um René Jacobs).
A voz, que não era grande, era decerto inconfundível e formada por uma grande técnica vocal. Neste Mahler, "Der Tamboug'sell", que cantou décadas depois sob a regência de Hans Zender, pode-se ouvir o grande controle dinâmico que mantinha sobre sua voz, sua mezza voce não como simples ornamento ou gratuito exibicionismo vocal, mas como recurso comandado por uma inteligência interpretativa ímpar. Alguém imagina, por exemplo, o Tita Ruffo cantando suavemente (em regra, é muito mais fácil gritar uma nota aguda do que cantá-la na nuance piano) dessa forma?
Sua posição na EMI e, depois, na Deutsche Grammophon, não deixou de causar animosidades com outros cantores: assim, Christa Ludwig, uma das maiores cantoras do século XX, queixou-se de que desejava gravar mais Schubert, porém a gravadora queria fazer a milésima gravação de Dieskau (de fato, algumas canções podem ser ouvidas em mais de dez versões com esse cantor).
No entanto, às interpretações cada vez mais requintadas de Dieskau, pode-se muitas vezes preferir as de Hermann Prey, e um desses casos é Die schöne Müllerin (A bela moleira), primeiro grande ciclo de Schubert.
Fischer-Dieskau, em seu livro de memórias, escreveu que "Callas tinha a Tebaldi; Karajan tinha Bernstein" e ele tinha Prey, que morreu em 1998, ainda atuante como cantor. Os dois barítonos "rivais" são muito diferentes: Dieskau se orienta mais evidentemente pelo texto (e o seu canto tem muito de parlato (leiam o obituário do Euterpe) e sua voz é mais tenoril; Prey, por sua vez, com um instrumento mais robusto, parece mais espontâneo. Ouçam Prey neste momento tranquilo da Viagem de inverno, "Der Lindenbaum", e Dieskau, com Brendel no piano.
Os dois cantores gravaram juntos, e é instrutivo ouvi-los assim. Lembro agora de três óperas de Mozart, As Bodas de Fígaro, com Karl Böhm na regência: Prey cantou Fígaro e Dieskau, o Conde; A flauta mágica, com o maestro Solti, em que Prey interpretou Papageno e  Dieskau, o Orador; Così fan tutte, por Jochum, em que o Don Alfonso de Dieskau provoca o Guglielmo de Prey.
São duas formas diferentes de pensar a música. A de Dieskau parece-me torná-lo no intérprete ideal de Hugo Wolf e sua combinação tão sofisticada de música e texto. Lembro como foi uma revelação para mim ter ouvido a caixa de Dieskau com oito discos dos Lieder desse compositor. O pianista foi um de seus parceiros preferidos dos anos 1970, o também regente Daniel Baremboim.
Aqui, pode-se ver a classe infinita de Dieskau em três Lieder de Hugo Wolf  que concedeu como bis neste concerto com o pianista Hartmut Höll, frequente acompanhante do final de sua carreira como cantor. É admirável a forma como diz "Da scheint der Mond" em "Der Tambour", bem como todo o melodioso "Gesang Weylas", com a solenidade de "Uralte Wasser" e, no verso final, o sábio contraste, desejado pelo compositor e difícil de ser atingido sem exageros pelo intérprete, entre "Könige" (reis) e "Wärter" (servos) na frase final.
No campo da música de câmara, Dietrich Fischer-Dieskau destacou-se sobretudo no repertório alemão. Sua curiosidade intelectual o fez gravar até as canções de Nietzsche, disco que eu gostaria de ter e está fora de catálogo. Em geral, ele não é interessante cantando a canção francesa.
Também no campo da ópera, ele é melhor no repertório germânico. Mesmo aí, há alguns senões. Ele decidiu que, por meio da técnica, conseguiria interpetar com a voz de barítono lírico que ele possuía papéis para vozes mais amplas e mais pesadas. Nisso, conseguiu alguns resultados interessantes, e outros que não chegam a ser curiosidades. Ele por vezes tentava compensar a eventual inadequação vocal enfatizando excessivamente certos detalhes, abusando de Sprechgesang (até em Verdi, o que é, no mínimo, exótico), pegando notas por baixo (o que podia comprometer a afinação)...
Neste vídeo, podem-se ver várias fotos dos papéis operísticos do cantor, enquanto o ouvimos cantando uma de suas especialidades (e uma de minhas árias favoritas), o Conde de Almaviva de As bodas de Fígaro.
Lembro aqui do que eu gosto, e isso inclui três óperas de Verdi, a que vou dar mais destaque tendo em vista os preconceitos etnocêntricos que entram em cena quando alemães cantam repertório italiano e vice-versa. Há quem torça o nariz para o Rigoletto que gravou para Kubelik com os grandes cantores italianos Renata Scotto e Carlo Bergonzi; eu gosto muito, por causa dos mil detalhes de sua interpretação. Se a voz não se pode comparar, por exemplo, a de Robert Merril nesse repertório, a inteligência do cantor também é incomparável. Rigoletto, na voz de Dieskau (como também na de Gobbi), não é só um bufão, mas também um pai, que é ultrajado, mas também consolador.
Digo o mesmo de Falstaff, na iconoclástica gravação que fez com Bernstein - é sutilmente hilariante ao exclamar (iludido) "Alice è mia!", é simultaneamente delicadíssimo e profundo seu "Quando ero paggio"...
Ainda melhor acho que foi seu Marquês de Posa no Don Carlo, composto a partir da célebre peça de Schiller. O papel foi sua estreia em ópera, e ele a cantou tanto em alemão quanto em italiano. Não sei se o fez em francês (que é o original, Don Carlos foi escrito para a ópera de Paris). Vejam o dueto de amizade (um tanto cortado neste vídeo, mas o incluo para que vejam o barítono ainda jovem), em alemão, com o grande tenor James King como Don Carlo.
Dieskau gravou em estúdio o Posa para a que talvez seja a melhor versão em italiano dessa ópera, a de Solti. Os outros cantores também são estrelas: Renata Tebaldi, Grace Bumbry, Carlo Bergonzi, Nicolai Ghiaurov, Martti Talvela. Mas, quando volto a essa gravação, é principalmente por causa do barítono. Esse papel pode ser cantado perfeitamente por uma voz como a dele, e Dieskau, além de adotar posturas diversas para o personagem (um grande ator, sem dúvida) nas cenas na corte, mais formais, com o amigo Carlo e com o rei, faz uma das mais convincentes cenas de morte em todas as óperas, depois que Posa é baleado ao visitar Carlo na prisão: "O Carlo, ascolta". Não achei essa ária, mas a anterior, "Per me giunto è il dì supremo".
No repertório germânico, acho-o incomparável ao menos como o trovador Wolfram da ópera Tannhäuser, de Wagner. Ao contrário do que curiosamente diz o obituário em Le Monde, ele não tinha voz para um papel de baixo-barítono como Wotan (pôde fazê-lo, no entanto, em O ouro do Reno, com Karajan, que escolheu, em geral, cantores com vozes mais leves do que o esperado). Mas o que torna o barítono um cantor de Lieder magistral permitia que fizesse um Wolfram - um personagem cantor e poeta - excepcional.
O extenso obituário publicado em The New York Times conta como Dieskau foi obrigado a integrar-se a Wehrmacht, e teve seu irmão morto pelo Estado nazista. É curioso ler que seus imensos dotes musicais fizeram com que os americanos não o quisessem repatriar para a Alemanha...
No tocante aos períodos musicais, creio que Dieskau era bem mais feliz na música contemporânea (os textos que indiquei lembram dos compositores que escreveram para ele, como Britten e Aribert Reimann e mais uma série de estreias de obras novas, que mostram o impacto do grande barítono no meio musical) do que no barroco. Em Bach ele não soa nada autêntico, tampouco em Händel: sua coloratura é laboriosa demais, a interpretação raramente soa natural. Hans Hotter, que tinha uma voz bem maior do que a de Dieskau, mostrava-se muito mais ágil na parte final de Ich habe genung, cantata de Bach - e cantava Wotan e o Holandês de Wagner, o que Dieskau nunca pôde fazer muito bem. Pode-se também gostar mais do Winterreise com Hotter...
A propósito, uma anedota que é contada por Robert Craft. Na gravação da Paixão segundo São Mateus com Otto Klemperer (que está bem longe das pesquisas musicológicas de hoje...), o barítono queixou-se da lentidão dos andamentos do maestro. Klemperer, que o chamava de "Fieskau", disse que iria pensar. No dia seguinte, Fischer-Dieskau disse que sonhou com ninguém menos do que Bach, que teria concordado que estava lento demais. Klemperer deu o troco na sessão seguinte, revelando que também havia sonhado com Bach - e que o compositor havia dito que nunca tinha ouvido falar desse cantor! Tal era a mordacidade de Klemperer.
Uma das obras contemporâneas que interpretou, Preghiere, foi composta por Dallapiccola sobre textos de Murilo Mendes (traduzidos por Ruggero Jacobbi) - com quem o compositor italiano teve uma empatia instantânea. Creio que esse foi o único poeta brasileiro que Fischer-Dieskau cantou, peço para que me corrijam se estiver errado. Os poemas musicados, de Poesia liberdade, foram "Voto", "Desejo" e "A tentação". Os três manifestam o cristianismo visionário ("Ao sopro da transfiguração noturna/ Distingo os fantasmas de homens/ Em busca da liberdade perdida:") e provocador de Murilo:

"Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz".


Ouçam a intensidade de Fischer-Dieskau. Ele está à altura dessa poesia.
Quem quiser aproveitar duas horas com o cantor e ainda não têm seus discos e vídeos, pode vê-lo interpretando Mandryka na ópera Arabella, de Richard Strauss, com a melhor intérprete do papel-título, Lisa della Casa. O maestro é Keilberth. Depois, ele ainda gravaria essa ópera com sua segunda esposa, e hoje viúva, a grande soprano Julia Varady.
Escolhi, porém, "O adeus", última parte de A canção da terra, de Mahler, para despedir-me hoje do cantor. Depois, escolherei outro repertório para reencontrá-lo - tarefa para toda a vida.
Nesta ligação, temos essa obra inteira de Mahler, ao vivo, também com Keilberth na regência e ninguém menos do que Fritz Wunderlich cantando os solos do tenor. Ewig, ewig...

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Desenhar um lugar: Trópico das repetições, de Silvio Ferraz

No mesmo antigo número do K Jornal de Crítica (n. 21, de jan.-fev. 2008) em que saiu minha resenha de livro de Alex Ross, publiquei outra, sobre o primeiro disco totalmente voltado para a música de Silvio Ferraz, compositor que aprecio e conheço pessoalmente há poucos anos - mas cuja música me alcançou no início do anos 1990. O disco foi gravado com apoio do SESC.


Desenhar um lugar: Trópico das repetições, de Silvio Ferraz


A música de câmara, por definição, destina-se à execução em âmbitos mais privados. A comemoração pública da queda do muro de Berlim não foi realizada com uma execução, digamos, do último quarteto de cordas de Beethoven, o opus 135, e sim com esta grande declaração pública iluminista que é a Sinfonia n.o 9.
Daí não se segue, porém, que toda música de câmara construa um universo equivalente ao da esfera privada, tampouco que toda música sinfônica elabore algo que possa ser comparado à esfera pública (pense-se no subjetivismo programático deste exemplo da música romântica, a Sinfonia fantástica, de Berlioz). O caráter elusivo, próprio da música, torna problemática essa diferenciação em várias obras.
Caixas, casas vazias, casas tomadas, quartos. A construção sonora de um universo privado é explicitamente reivindicada, porém, em Trópico das repetições, primeiro disco totalmente dedicado à obra do compositor paulista Silvio Ferraz. Com os músicos Lídia Bazarian (piano), Cássia Carrascoza (flauta), Luís Afonso Montanha (clarinete), Fábio Presgrave (violoncelo) e o próprio compositor na eletrônica, o disco inclui obras terminadas entre 1990 (Trópico das repetições) e 2007 (Tríptico das linhas).
Há anos, um lirismo intenso percorre esse universo privado; pode-se ainda reconhecer o compositor de ...enquanto corre o rio das onças... (peça de 1985, gravada por Graham Griffiths, então regente do grupo Novo Horizonte, em disco de 1993, brasil!
new music!) no Tríptico das casas.
Paulo Zuben, no texto de encarte do disco, destaca as interrupções na melodia de Cortázar (quarto com caixa vazia), “um pouco ofegantes”, e no solo de violoncelo Lamento quase mudo; creio que a interrupção pode ser considerada um princípio construtivo em mais de uma obra de Silvio Ferraz, como Les silences d’un étrange jardin, em que o uso expressivo da respiração, cortando o discurso da flauta, corrobora esse efeito.
Se boa parte das composições do autor de Linha torta e Linha solta (não incluídas neste disco) podem ser comparadas a uma linha interrompida, as referências a outros compositores (como Bach, Beethoven, Vivaldi) também são submetidas a esse processo: elas são interrompidas e reconstruídas para se transformar em outro desenho.
A ária da ópera Farnace, de Vivaldi, "Gelido in ogni vena", mal pode ser reconhecida em Tríptico das casas. O drama de Farnace, rei do Ponto, que usa o tema do Inverno das Quatro estações, é submetido ao universo privado da memória, e refeito noutra configuração, mais íntima.
Zuben destaca a importância dos carros de boi nessa peça e em Lamento quase mudo. Nesses dois casos, pode-se repetir o
que o próprio compositor escreveu sobre Ao encalço do boi, peça gravada em Duos e trios contemporâneos por Luís Eugênio Montanha e Carlos Tarcha: não se trata de peças nacionalistas, mas de lembranças afetivas reconstruídas.1
No disco, pode-se confirmar que o compositor, embora esteja ligado há muito à música eletrônica, não trata a tecnologia como fetiche: Poucas linhas de Ana Cristina e Cortázar ou quarto com caixa vazia podem ou não ser interpretadas em versões eletroacústicas. O disco oferece as duas versões de Cortázar (as duas sustentam-se musicalmente, sem se anular) e a eletroacústica de Poucas linhas, peça para clarinete, de notável intensidade.
É interessante notar que essa música parece ser uma referência a Ana Cristina Cesar, poeta que se notabilizou pela reconstrução ficcional da intimidade, característica presente também na poética de Silvio Ferraz.
Tanto na peça relativa a Ana Cristina Cesar quanto na que evoca Cortázar, não há ilustração a textos desses autores, nem biografismos: a obra constrói sua própria realidade. Senão, seria música funcional e o compositor estaria a ganhar milhões no cinema. Outra é a vocação desta música:

Desenhar um lugar e ter a música como sendo a pequena história deste lugar, ora se desenhando, ora se desfazendo, ora invadido por outro, ora contracenando com outro. Nada mais.2


Notas
1 Por sinal, não estamos mais na época em que o valor de uma obra era julgado por seu nacionalismo, o que levou a Mario de Andrade, por exemplo, a ratificar o repúdio da União Soviética às obras de Stravinsky e Kandinsky (como lembra Paulo César do Amorim Chagas em Luciano Gallet via Mário de Andrade, Rio de Janeiro: Funarte, 1979, p. 81).
Silvio Ferraz, felizmente, surgiu após as querelas dos nacionalistas. Veja-se que o próprio caráter brasileiro da música de Villa-Lobos, por exemplo, foi criado com influência estrangeira, como Stravinsky.
2 FERRAZ, Silvio. Tatuagens. In: FERRAZ, S.(org.) Notas, Atos, Gestos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 116.

Senseless ears: a música do século XX segundo Alex Ross

Em antigo número do K Jornal de Crítica (n. 21, de jan.-fev. 2008), não mais disponível, publiquei a resenha abaixo do livrinho etnocêntrico e equivocado de Alex Ross, que depois foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras como O resto é silêncio. O incauto crítico foi para a FLIP e foi obrigado a desdizer-se pelo público, segundo li na imprensa.
Lançaram mais um livro dele, também no Brasil, mas não tive curiosidade para ler. Hoje, acrescentaria à resenha que Villa-Lobos disse anos antes de John Cage que Beethoven estava errado.


Senseless ears: a música do século XX segundo Alex Ross

Pádua Fernandes
The rest is noise: Listening to the twentieth century (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2007), primeiro livro de Alex Ross, crítico de música da revista The New Yorker, apresenta no prefácio uma larga ambição: “My subtitle is meant literally: this is the twentieth century heard through its music.” (p. XIII). Não se trataria, pois, de uma simples história
da música (clássica) do século XX, porém do século que essa música criou.
Para tanto, o autor afirma rejeitar narrativas teleológicas que favorecem as vanguardas e combatem a burguesia filistina. Elas seriam comuns nas histórias da música escritas no século XX. Fiel a esse propósito, as referências no livro a Adorno (pensador com evidente parti pris pela Segunda Escola de Viena e explícita condenação de Stravinsky e do neoclassicismo) são, em geral, ácidas. O retrato de Pierre Boulez tampouco é favorável.
A escrita do livro é muito fluente, com algumas alusões literárias1 como “If The Turn of Screw is the most comprehensively disturbing of Britten’s operas, A Midsummer Night’s Dream makes amends.” (p. 433), em que a fala final de Puck em Sonho de uma Noite de Verão de Shakespeare (o título deste livro, deve-se lembrar, alude a uma célebre fala de Hamlet, “The rest is silence.”) é ecoada na referência à ópera que Benjamin Britten escreveu a partir dessa comédia.
O livro divide-se em três partes: 1900-1933, 1933-1945 e 1945-2000. Os capítulos são temáticos, como “Doctor Faust: Schoenberg, Debussy and Atonality”, “Death Fugue: Music in Hitler’s Germany”, “Beethoven Was Wrong: Bop, Rock and the Minimalists”. Há dois capítulos, porém, dedicados a um só compositor; Sibelius e Britten são os galardoados. A estrutura, cuja lógica é quebrada por esses dois capítulos, faz-nos recordar que partes do livro foram publicadas anteriormente em The New Yorker.
Estranha-se, porém que logo Sibelius e Britten, que estão longe de ser os compositores centrais no século XX, seja pela influência, seja pela posteridade de suas obras, recebam tal destaque no livro. Como figura nacional, afirma Ross, Britten era um pouco como Sibelius (p. 411), que recebe o maior destaque: ele teria sido, entre os compositores, o único, ao lado de Morton Feldman (cuja música é tão diferente...), que se separou de forma imperturbável de sua época (p. 488) – e que o seu tempo enfim teria chegado (p. 526). Além disso, segundo Feldman, Sibelius seria um radical, não um conservador (p. 177)!
O estranhamento pouco dura: a opção pela tonalidade, o paroquialismo (Ross aprecia o nacionalismo) e o uso das formas clássicas (p. 413) são os fatores que o levam a advogar por esses compositores.
No capítulo “Doctor Faust: Schoenberg, Debussy and Atonality”, o parti pris contra Schönberg e a música que Ross considera complicada leva-o a aproximar o compositor austríaco dos nazistas (p. 322) e a adotar uma visão simplista que assimila Schönberg a Adrian Leverkühn, o personagem do compositor sifilítico que fez um pacto com o Diabo no romance de Thomas Mann. A vanguarda musical seria efeito de pactos demoníacos que acabaram por distanciar a música do povo. Esse viés moralista transparece também na crítica de que A sagração da primavera não conteria “piedade”, endossada por Ross (p. 93). Em uma das imprecisões do livro, Otto Klemperer, quando jovem, é caracterizado apenas por ter-se especializado em “subversive productions of classic repertory” (p. 181). Dessa forma, negligencia-se a relação intensa que o maestro manteve com os compositores do seu tempo, inclusive Schönberg.2
Repete-se, em um dos erros factuais do livro, a lenda de que John Cage teria sido o primeiro a escrever uma peça musical feita só de pausas (p. 369). Ervin Schulhoff foi um dos que antecedeu, em 1919, durante sua fase dadaísta na peça In futurum das 5 Pittoresken.3 Contudo, esse compositor judeu e marxista, assassinado pelos nazistas no campo de concentração de Wülzburg, não conta com um serviço de relações públicas comparável ao do compositor estadunidense.
Esse erro, por sinal, é apenas parte da hipertrófica sobrevalorização da música clássica dos Estados Unidos, que acaba por confinar o livro a um lamentável provincianismo.
Decerto o livro lembra das grandes limitações que a música clássica sofria nesse país, com a limitação do repertório a tão-só 50 obras-primas cuja vendagem era mais fácil (p. 265), bem como a invisibilidade dos compositores americanos (p. 123-124). Porém, é flagrante o triunfalismo na marcha do livro até a música de Morton Feldman, Steve Reich (que é comparado a Wagner, p. 511) e John Adams, compositores que merecem largo espaço no livro.
Villa-Lobos, compositor que deixa à sombra os tão incensados, neste livro, músicos estadunidenses Barber e Copland, ganha quase nove linhas por conta de um trecho sobre Milhaud (p.101 e 103). A América Latina, por sinal, afora o México (NAFTA oblige), soa no livro como uma invenção desse compositor francês. Entre os argentinos, o livro destaca Osvaldo Golijov (eis que se encaixa na tese do livro da aproximação entre música clássica e popular no fim do século XX) e ignora Ginastera.
O autor trai, portanto, as duas premissas anunciadas no prefácio: o século XX que lemos neste livro está extremamente mutilado devido ao etnocentrismo, e há uma teleologia presente: a da predestinação dos EUA, a de que o século XX teria que ser dominado por esse país. Pobres tempos, que, para não fugir das alusões a Hamlet, talvez dissessem deste livro “The ears are senseless that should give us hearing”.

Notas

1 O autor, porém, erra a história da ópera Daphne de Richard Strauss (p. 330), talvez por desconhecimento do mito grego que a inspirou.
2 Se é verdade que Klemperer não se sentia próximo da música dodecafônica de Schönberg (embora tivesse estreado Música para acompanhamento de um filme – ver HEYWORTH, Peter, Otto Klemperer: His life and times, Cambridge: University Press, vol. I, p. 328) e teria evitado obras que julgava difíceis, isso ocorreu soment em parte com o repertório de Stravinsky, de quem nunca regeu, por exemplo, A sagração da primavera. Ross, mais adiante, lembra que Klemperer regeu obras do compositor russo e de Hindemith (p. 327).
3 Alex Ross poderia ter pesquisado a respeito na própria revista The New Yorker, edição de 24 de maio de 2004.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Após 400 anos, ópera e sussurros

Ópera é um gênero teatral muito divertido. Se a montagem é bem-sucedida, o que é especialmente difícil em certos casos (lembro de O Anel do Nibelungo - Der Ring des Nibelungen, de Richard Wagner, que exige cantores e orquestra de exceção, além de durar 14 horas), acho que nada é mais comovente.
Antes de tudo, deve-se lembrar que ópera não é um tipo de música. Pode-se compor uma com qualquer tipo - do canto medieval da proto-ópera O Auto de Daniel (Le Jeu de Daniel, do século XIII, composta por clérigos anônimos da Catedral de Beauvais) até o uso de música popular (jazz, rock). A música não precisa ser complicada: é necessário que seja dramática, isto é, que possa exprimir a variedade de emoções e de situações presentes no libreto.
Esse gênero teatral nasceu de um mal-entendido: a tentativa, no Renascimento italiano, de reviver o teatro grego, que era cantado, mas não todo cantado. Como tantas vezes ocorre em arte, iniciativas de recuperar o passado acabam instaurando novo presente.
Isso ocorreu no final do século XVI. No entanto, como a primeira obra-prima da ópera é Orfeu de Monteverdi, de 1607, foi em 2007 que foi lançada uma coleção para comemorar os 400 anos do gênero. Eu estava em Portugal quando ela começou a sair pela Prisa Innova, vendida nas bancas de jornais.
Eu tinha achado feliz a escolha dos títulos, que partiam do Barroco (Monteverdi, por exemplo) até a primeira metade do século XX (Alban Berg), incluíam obras muito conhecidas (La Traviata, de Verdi) e outras, mais obscuras, que merecem atenção (Proserpine de Lully). A escolha das gravações era, em geral, também feliz, com predominância de discos que já caíram no domínio público, como a gravação de Tristão e Isolda, de Richard Wagner, regida por Furtwängler. Mas também havia discos recentes, como a ópera de Lully e o Tito Manlio, de Vivaldi, em que Federico Maria Sardelli rege o Modo Antiquo.
Em 2008, essa coleção foi lançada no Brasil, porém com apenas 25 títulos e sem a seção de discografia e videografia recomendadas, que todos os números europeus tinham. A caixa de proteção dos discos foi também descartada.
Mesmo nessa versão reduzida e simplificada, era uma coleção a se fazer para quem não tinha aquelas gravações. Um dado importante é que todos os libretos apareciam no original e em tradução para o português, e foi mantida a seção de história da ópera.
Agora, em 2011, a Folha de S. Paulo ressuscita a coleção com um projeto gráfico parecido, porém diferente (pelo que se pode ver na propaganda), com uma escolha de gravações que largamente coincide com a de 2008, incluindo alguns que não tinham saído no Brasil, mas na Europa. Ignoro se as seções antigas serão mantidas.
As duas primeiras gravações são exatamente as mesmas que já saíram no Brasil, uma Carmen (a conhecida ópera de Bizet) regida ao vivo por Karajan com Nicolai Gedda como Don José, e Fidelio, de Beethoven, em gravação ao vivo do grande maestro Otto Klemperer, com a comovente Sena Jurinac conseguindo cantar quase todas as notas do papel-título.
Quem fez a coleção de 2008 irá provavelmente comprar somente as gravações que não saíram daquela vez, e que não são tantas. O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, é uma delas: antes tínhamos Juan Diego Flórez (o maior tenor ligeiro em atividade) e o virtuosismo vocal de Edita Gruberova nos papeis dos jovens enamorados; agora, uma gravação mais antiga, com a voz modesta de Nicola Monti e o belo timbre de Victoria de los Ángeles.
De diferente, também sairão O Guarani, de Carlos Gomes, em gravação interpretada por Placido Domingo; A Valquíria, de Richard Wagner, regida por Furtwängler, com Martha Mödl no papel-título; Tosca, de Puccini, com Eva Marton e José Carreras, com o tenor em decadência vocal; As Bodas de Fígaro, de Mozart, numa gravação que nunca ouvi de Zubin Mehta com Karita Matilla e Lucio Gallo; Aida, de Verdi, com Aprile Millo (eu a vi cantar muito bem o papel no Rio de Janeiro, nos tempos de Fernando Bicudo) e Domingo; O elixir do amor, de Donizetti, com Ileana Cotrubas e Domingo (de novo! os fãs desse tenor notarão que a única gravação de Pavarotti incluída, uma Lucia di Lammermoor ao vivo, registrou alguns erros do tenor italiano); Fausto, de Gounod, com o grande tenor espanhol Alfredo Kraus e a versátil soprano italiana Renata Scotto.
Os outros títulos são iguais. Esta reedição alterada possui também 25 números. Não acho que a escolha foi tão interessante e representativa desta vez quanto a da encarnação de 2008. O século XIX, desta vez, foi hipertrofiado, e o século XX e o Barroco, reduzidos (Proserpine foi de vez para o Hades). A ópera italiana foi também hipertrofiada, e os autores eslavos, quase todos ignorados (incluiu-se, porém, um brasileiro, Carlos Gomes). A seleção acabou ficando bem careta.
No entanto, todas as gravações que conheço dessa nova série são no mínimo boas, e há algumas interpretações essenciais dessas grandes óperas, como Maria Callas em La Traviata (pena que em sua gravação de estúdio, em que está menos inspirada do que nas versões ao vivo, e foi acompanhada de parceiros medianos) e La Gioconda de Ponchielli, Furtwängler regendo as duas óperas de Wagner incluídas, a Mélisande na voz de Victoria de los Angeles, o Florestan de Fidelio por Jon Vickers, Galina Vishnevskaya cantando a Tatiana em sua primeira gravação de Eugen Oneguin de Tchaikovsky, e a interpretação de Marilyn Horne, que permanecia soberana nos anos 1980, do papel-título da ópera Rinaldo, de Händel, entre outras.
Esta coleção trata a ópera dando-lhe um cenotáfio. Essa abordagem é adequada, ou o gênero continua vivo? Acho que sim, porém desprovido da vitalidade que teve no passado, quando cumpria a função social das telenovelas de hoje e era muito popular.
Mas não está vivo no Brasil, exceto na forma de sussurros. Creio que a vida de um gênero está principalmente na composição. E a ópera brasileira, que efetivamente existia na primeira metade do século passado, foi progressivamente sabotada. No centenário de morte de Carlos Gomes, por exemplo, as criaturas encarregadas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro decidiram não programar nenhuma ópera dele.
Não basta, porém, sepultar os mortos com isolamento acústico: é necessário condenar os vivos ao silêncio. Quantas vezes é montado no Brasil um autor contemporâneo? Por que não temos mais montagens de títulos como Olga de Jorge Antunes?
O silenciamento tem sido sistematicamente cumprido pela maior parte dos detentores da agenda cultural. Não fazem e não deixam fazer.