O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

sábado, 25 de março de 2017

30 dias de canções: "A fossa, a fome, a flor, o fim do mundo": Hoje, Taiguara

30 dias de canções

Dia 30: Uma canção que faz lembrar o mundo

"Hoje", de Taiguara. O compositor gravou-a pela primeira vez em 1969 no disco que levou o mesmo título. Como escrevi no comentário sobre o filme "Aquarius", de Kleber Mendonça Filho, "Em seu último disco, Brasil Afri (infelizmente, não está mais em catálogo) que prova que ele não havia declinado como compositor, Taiguara regravou uma canção antiga, justamente "Hoje", em novo arranjo. Era 1994, ele morreria dois anos depois.
Estamos em 2016, e o ontem governa. Precisamos ouvir".
Taiguara a continuou cantando até o fim da vida. Aqui, pode-se vê-lo se acompanhando ao piano no Rio de Janeiro, não sei em que data, mas depois de voltar do exílio. Ele anuncia a canção: "Naquele mesmo momento, essa filhinha nascia da angústia. Composição": https://www.youtube.com/watch?v=Bk_4PPyDxaM.
Para ouvi-la em voz feminina, aconselho Fernanda Porto, também acompanhando a si mesma e, no final, comentando a sofisticação da música de Taiguara: https://www.youtube.com/watch?v=dc8-4tRxopY.
1969 foi um ano filho do AI-5, e nele o Brasil acabaria sendo governado, durante alguns meses, entre a incapacidade de Costa e Silva e escolha de Médici, por um triunvirato militar que deu um golpe dentro do golpe, afastando o vide Costa e Silva. Dotado de toda ilegitimidade e com o Congresso fechado, lançou uma série de decretos-leis, incluindo de banimento e pena de morte, e mudou a Constituição (os parlamentares foram convocados a dizer amém para essa mudança).
Como HOJE, os governos mais ilegítimos são os que trazem os maiores retrocessos legislativos e sociais (como a destruição do Funai por Temer), e enlameiam a imagem internacional do país (por exemplo, Temer contra o Conselho de Direitos Humanos da ONU).
A letra de Taiguara é interessante: a primeira estrofe traz um verso meio drummondiano, "a fossa, a fome, a flor, o fim do mundo". 
Estive num almoço no fim de 2016 e vi uma pessoa ligada à docência de Letras, que não conhecia bem a letra, dizer que não havia negatividade nessa canção. No entanto, os primeiros versos já a deixam clara: "Hoje/ trago em meu corpo as marcas de meu tempo/ meu desespero, a vida num momento". Apesar da repetição da primeira pessoa, esse tempo é social, como vemos na referência à "juventude assim perdida".
Creio que a impressão daquela pessoa, provavelmente compartilhada por outros ouvintes distraídos, decorria de uma estratégia do compositor, que teve tantos sucessos com canções de amor (como "Universo no teu corpo", que viria pouco depois, em que não está ausente a dimensão social). 
"Hoje" tem referências de música de amor, mas creio (um palpite bem pessoal) que Taiguara escreveu assim para que a censura não a proibisse, o que faria se a letra fosse abertamente política. Taiguara, por fim, foi impedido de continuar a carreira no Brasil; ele teve 83 canções proibidas, segundo Os outubros de Taiguara, de Janes Rocha, publicado pela Kuarup em 2014.
"Sorte", nessa canção, é um vocativo, é a ela a que se refere em "como eu te amei". Porém, com o "Hoje", com o tempo presente desses frios "homens de aço", é um amor desesperado: "eu desespero e abraço a tua ausência/ que é o que me resta vivo em minha sorte".
Trata-se de um tempo de "fim de mundo", mas também da flor. O movimento da melodia, até os agudos sustentados no final (na última gravação, apesar do estado de saúde, ele mantém a nota por mais tempo), parecem indicar, no entanto, que ele não vai se entregar à morte em vida e que pode encontrar a sorte novamente.
Fecho os 30 dias de canção com outra canção brasileira e espero que sua mensagem de resistência esteja hoje presente contra o desastre que tomou o país.


Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
Dia 13: Baudelaire, Duparc e volúpia
Dia 14: Bornelh, o amor e a alba
Dia 15: Rodgers e Hart e o desejo de arte
Dia 16: Piazzolla, Trejo e o irrecuperável
Dia 17: Janequin, ir à cidade que grita
Dia 18: Amin, Garfunkel e outros pássaros
Dia 19: Wolf e Mörike imaginando a ilha
Dia 20: A loucura, Schumann e Andersen
Dia 21: Tiganá Santana e a memória negra
Dia 22: A boca seca da revolução: Miguel Poveda e Narcís Comadira
Dia 23: Encontrar o dia novo, Villa-Lobos e Ferreira Gullar
Dia 24: Bosco e Blanc vs. racismo e censura
Dia 25: Sarah Vaughan e os palhaços
Dia 26: Mahler, o marginal

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