O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

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segunda-feira, 1 de abril de 2013

Desarquivando o Brasil LV: Entrevista e livro de Renan Quinalha sobre justiça de transição

Para a VII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR (http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/03/24/vii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/), publico agora esta entrevista com Renan Quinalha, mestre em Direito pela USP e doutorando em Relações Internacionais pela mesma instituição.
Ele lança nesta semana sua dissertação de mestrado, na área de concentração em Filosofia e Teoria Geral do Direito, Justiça de transição: contornos do conceito (São Paulo: Dobra Editorial; Expressão Popular, 2013). Quinalha continua a trabalhar com o tema, e não só no doutorado: além de integrar o IDEJUST (Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição), assessora a Comissão da Verdade "Rubens Paiva", da ALESP.
Ele pesquisou tema recente, pouco frequentado pelos juristas no Brasil, com uma visão crítica sobre o próprio conceito, a academia, o Judiciário e o Poder Executivo.
Seu livro será lançado no próximo dia 4 de abril, no primeiro andar da Faculdade de Direito da USP, sala Visconde de São Leopoldo, das 19 às 21 horas. Com ele, sairá nova edição de obra jurídica de Tarso de Melo, Direito e ideologia - estudo a partir da função social da propriedade rural, pelas mesmas editoras, na coleção Direitos e Lutas Sociais.




Seu livro Justiça de Transição: contornos do conceito foi baseado em sua dissertação de mestrado em Direito. Gostaria de perguntar se, no Brasil, as abordagens do tema na academia jurídica são muito diversas das que encontramos na ciência política.

No Brasil, ainda é bastante incipiente a reflexão sobre a justiça de transição. Não faz mais do que cinco anos que este tema começou a ser discutido de forma mais sistematizada e para além dos movimentos de familiares de desaparecidos políticos e vítimas da ditadura, que eram os únicos setores que levantavam a bandeira da memória, da verdade e da justiça em relação aos crimes do passado. Também os meios acadêmicos só mais recentemente têm incorporado essa temática de maneira mais constante. No entanto, nas Faculdades de Direito, ainda prevalecem um dogmatismo normativista e um apego aos temas jurídicos tradicionais, o que coloca em segundo plano algumas questões complexas que envolvem os direitos humanos, como a justiça de transição. Por sua vez, nas Faculdades de Ciências Sociais, os cientistas políticos, por terem uma marcada preocupação analítica com os problemas do tempo presente, estão voltando a se interessar por esse assunto, depois de terem se dedicado profundamente ao tema das transições durante as décadas de 1980 e 1990. Por se tratar tanto de um programa normativo que orienta políticas públicas (nacionais e internacionais) como um conceito transdisciplinar, surgido nas fronteiras entre o direito internacional e a ciência política, a justiça de transição demanda uma reflexão em diversos planos e searas. É preciso considerar saberes construídos tanto a partir de teorias e de normas internacionais como a partir da prática local dos movimentos sociais que reivindicam justiça e reparação em relação a violações de direitos humanos. No geral, as formulações em torno desse tema ainda são marcadas pelo privilégio do legalismo, pela centralidade do Estado e de suas instituições (desprezando uma visão “de baixo para cima”), por uma insuficiência analítica sobre o conceito de transição e seus limites, por um minimalismo conservador que considera apenas direitos civis e políticos (ocultando sofrimentos econômicos e sociais), dentre outros problemas. A despeito de ter colaborado para o processo de acerto de contas com o passado nesses anos recentes em nosso país, ainda é preciso maior refinamento dessa reflexão tanto da perspectiva do Direito quanto das Ciências Sociais para avançarmos mais rapidamente e com eficácia para a realização da justiça.


Por que o conceito de justiça de transição está ligado a uma ameaça tácita de regresso autoritário?

Um paradoxo comumente referido para tratar da justiça de transição é o de que nos momentos em que a justiça é mais necessária, parece tornar-se mais difícil de atingi-la. Quanto mais indispensável, ela pareceria também mais inalcançável. Isso significa dizer que a justiça de transição é, sem dúvidas, uma justiça do possível, imposta por normas internacionais na maior parte das vezes vinculantes aos Estados, mas efetivamente viabilizada por determinadas correlações de forças que orientam a política doméstica das diferentes nações. A despeito da importância que o direito passa a ter, fato é que a natureza contingente da política permanece presente, ainda que com esse balizamento jurídico. Com efeito, os momentos transicionais reconfiguram os traços e o funcionamento ordinários da política. Esta, na falta de regras e instituições bem definidas e estabilizadas, é tomada pelos atores políticos, que passam a ditar os rumos da comunidade política a partir de suas expectativas, cálculos e negociações. No entanto, essa liberdade não é ilimitada: sofre um constrangimento fundamental, característico e inevitável nesses momentos, que é a ameaça de uma regressão autoritária caso os interesses fundamentais residuais dos membros do governo autoritário sejam afetados. Nessa direção, a exemplo das limitações postas à política nessas conjunturas críticas, um de seus pontos mais complexos, a justiça, também é posta em perspectiva, pois pode provocar um novo golpe a e “morte rápida” da democratização do regime. Assim, a justiça, durante a transição, muitas vezes pode ser definida por sua negação: a concessão de anistia e outros métodos de limitar a prestação da justiça. Além disso, diversas são as limitações concretas e de ordem prática existentes para que sejam implementados programas de justiça durante os momentos excepcionais: recursos materiais, técnicos, humanos etc. Então, passados 30 anos da transição democrática brasileira, sem risco de regressão autoritária no horizonte, por que adotar uma terminologia como justiça de transição na fase da consolidação? O que justifica esse uso? Não seria mais pertinente e adequado, mesmo do ponto de vista normativo de construção e aprofundamento de uma democracia de melhor qualidade, falar-se em “justiça de consolidação”? Ou apenas de justiça? Essa é a provocação central deste trabalho.


Dos eixos da justiça de transição (verdade, memória, reparação, justiça e reforma das instituições), em qual deles julga o Brasil ter mais avançado no governo de Dilma Rousseff? Em qual o atraso é mais notável?

Tivemos avanços importantes nos últimos anos, produto não apenas de ações governamentais e políticas públicas, mas também da mobilização crescente na luta por memória, verdade e justiça. Setores da juventude brasileira estão se empenhando para que os crimes sejam esclarecidos e os responsáveis sejam julgados. Está ficando claro que certos limites da democracia e do Estado de Direito atualmente existentes no Brasil têm relação com o autoritarismo recente da ditadura. Sem dúvidas, as políticas de reparação pecuniária e simbólica estão avançaram significativamente no último período, com exemplos interessantes de políticas públicas como o projeto Marcas da Memória e as Caravanas da Anistia, da Comissão de Anistia de Ministério da Justiça. A instituição da Comissão Nacional da Verdade e a dispersão de comissões dessa natureza em entes federativos, universidades, sindicatos etc são também promissores, apesar das limitações ainda existentes, em relação à reconstrução da verdade sobre esse período. Mas é certo que a dimensão em que nosso atraso é maior, tanto em relação às normas internacionais como em relação aos países do Cone Sul, é o processamento penal dos responsáveis pelas graves violações de direitos humanos que foram cometidas pelos agentes da ditadura civil-militar brasileira. A despeito do notório esforço do Ministério Público Federal de mover ações penais com a finalidade de responsabilizar os autores desses crimes, ainda não existe, em nosso país, uma única condenação criminal dessa natureza. É nesse campo em que o Estado brasileiro ainda está em débito.

Tendo em vista as decisões contrastantes, em 2010, do Supremo Tribunal Federal sobre a lei de anistia, e da Corte Interamericana de Direitos Humanos no chamado caso Araguaia, que concepção de democracia fundamentaria as decisões do Judiciário brasileiro que ignoram a jurisprudência internacional sobre a matéria?

A concepção de democracia que pode ser extraída do acórdão do STF sobre o julgamento da ADPF 153 é bastante limitada e formalista. Os Ministros da nossa Suprema Corte fizeram uma leitura passadista de um problema do presente: consagraram a legalidade da ditadura e contrariaram a longa afirmação histórica dos direitos humanos na ordem internacional e no processo constituinte de 1988. Ao validar a interpretação de que a Lei de Anistia também beneficiou os agentes do Estado que torturaram, sequestraram, assassinaram, estupraram, desaparecem com corpos, dentre outras atrocidades, o STF foi na contramão da história. Alegando ter havido, no passado, um pacto político amplo que fundou a nova democracia, além de uma Emenda Constitucional que teria limitado o Poder Constituinte originário de 1988, a cúpula do Judiciário brasileiro distorceu a história fatual da transição ao ignorar que o projeto de anistia da ditadura foi imposto às demais forças políticas e também contrariou as lições mais elementares de direito constitucional. Além disso, assumiu um argumento da “especificidade” brasileira para afastar as normas internacionais e as experiências comparadas, sobretudo as regionais, apontando para uma concepção provinciana de soberania e para uma timidez institucional que não se verificou nas diversas matérias importantes da vida política nacional que têm sido apreciadas pela Corte.

No jogo entre resistências e apoios aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, em que medida pesa o passado autoritário do país?

A despeito da reivindicação persistente dos grupos de direitos humanos, a ideia de uma comissão da verdade, orientada a esclarecer as graves violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos na ditadura, era negligenciada a um papel inteiramente marginal no espaço público. A maior parte das forças políticas organizadas em movimentos sociais ou partidos, inclusive de esquerda, priorizaram outras agendas durante a reconstrução da democracia, desprezando esse assunto como se fosse apenas uma preocupação restrita aos familiares de desaparecidos. A questão adquiriu maior visibilidade na vida política brasileira somente quando do lançamento do terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Dentre os diversos temas tratados nesse documento, o que causou maior polêmica na ocasião de seu lançamento oficial (seguido pelo controle social da mídia, pela defesa do aborto e da união civil homoafetiva com direito à adoção) foi, certamente, aquele relativo ao direito à memória e à verdade, previsto no eixo orientador VI e detalhada nas diretrizes 23, 24 e 25 do PNDH-3. No primeiro momento, a proposta original era de criação de uma Comissão da Verdade que também pudesse realizar - ou ao menos incentivar - a justiça em relação aos crimes apurados. Com efeito, ainda que havendo uma restrição constitucional para que qualquer tipo de comissão administrativa usurpasse funções estritamente jurisdicionais, havia uma legítima expectativa dos grupos militantes dos direitos humanos no sentido de que algum tipo de justiça, ainda que em sentido mais amplo e não apenas criminal, fosse finalmente levada a cabo, por um órgão de Estado, contra aqueles que cometerem crimes contra a humanidade e que permaneceram impunes.   

Diante da resistência de diversos setores especialmente a essas medidas, alguns inclusive internos ao próprio governo, como os Ministérios da Defesa e das Relações Exteriores, houve a edição, por parte do Presidente Lula, do Decreto n. 7177 de 12 de maio de 2010, alterando o PNDH-3. Tratou-se, com clareza, de um recuo programático justamente nos temas de direitos humanos mais politizados e que provocaram maior tensionamento.

Uma breve análise comparativa entre o texto original e o atual, no que se refere às medidas mais polêmicas acima apontadas, permite concluir que houve uma supressão de referências como "repressão ditatorial", "regime de 1964-1985", "resistência popular à repressão", "pessoas que praticaram crimes de lesa humanidade" e "responsabilização criminal sobre casos que envolvam atos relativos ao regime de 1964 - 1985".

Essas supressões de certos termos e expressões, que até então estavam interditados no vocabulário político brasileiro, foram acompanhadas de certos acréscimos, tais como: "prática de violações de direitos humanos, suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade",  "período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988" e "pessoas identificadas reconhecidamente como torturadores".

O breve cotejo terminológico revela que o recuo e o abrandamento discursivos operados pelo governo depois da revolta de setores ligados ao regime autoritário estão orientados, essencialmente, por três preocupações. A primeira é a de que as medidas de verdade, memória e justiça sejam diluídas em um período histórico mais largo, sem identificação expressa com a ditadura civil-militar de 1964 - 1985; a segunda preocupação é que as violações aos direitos humanos não sejam responsabilizadas penalmente e tampouco caracterizadas como crimes de lesa humanidade, por serem estes insuscetíveis de graça, anistia e prescrição, conforme consolidado no campo do direito internacional dos direitos humanos; por fim, uma terceira preocupação é deslocar as medidas do campo da ação mais imediata para o do debate público, com uma terminologia mais vaga e menos vinculante. Não por outra razão, a menção a ações de responsabilização criminal na primeira versão do texto foi substituída apenas pela responsabilização civil.

É verdade que a Comissão foi constituída e negociada em um processo marcado por uma série de tensões e ambiguidades, típicas da transição pactuada brasileira, mas, sem dúvidas, ela foi produto de uma conjuntura internacional favorável e de uma intensa mobilização de setores cada vez mais amplos da sociedade interessados em passar a história desse período a limpo. E essa mobilização transcende o trabalho e os limites da própria Comissão.

É preciso registrar que nem todas as limitações existentes ou, ao menos, a parte mais significativa delas, não podem ser atribuídas como de responsabilidade exclusiva da própria Comissão. Os maiores bloqueios ao avanço do trabalho de verdade e justiça em nosso país ainda estão postos no campo da lógica da governabilidade e das regras institucionais ainda pouco democráticas da política brasileira. Tampouco os inegáveis avanços dessa pauta no período recente em nosso país também podem ser creditados ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade, dado que tem sido determinante a mobilização acima referida para pautar essa discussão dentro e fora da Comissão da Verdade.

Pode-se dizer que a Comissão Nacional da Verdade chega atrasada, em torno de 30 anos após o final da ditadura. Isso acarreta algumas peculiaridades devido a esse contexto histórico e institucional diferenciado. A primeira delas é a dificuldade de acessar fontes documentais e acervos de informações novos sobre as violações de direitos humanos, dado o largo período de tempo já transcorrido. Assim, ao contrário de suas congêneres em outros locais do mundo que buscavam apurar apenas violações a direitos humanos (geralmente direitos civis e políticos), a Comissão da Verdade brasileira promete menos novidades e impactos de ineditismo, sobretudo porque os familiares e algumas iniciativas oficiais de busca da verdade já conseguiram produzir uma quantidade razoável de informações sobre o passado. Mas algumas questões fundamentais, como o paradeiro dos desaparecidos políticos, ainda precisam ser respondidas.

Assim, sem deixar de fazer o embate político com as pastas militares para ter acesso pleno aos arquivos da ditadura e avançar na apuração das violências, uma das maiores tarefas da Comissão Nacional da Verdade será romper com a tentação da "teoria dos dois demônios" e suas variações, assumindo claramente seu papel de dar voz às vítimas, registrar o trabalho já feito pelos familiares e, sobretudo, oficializar a versão desses setores diretamente atingidos. Para isso, deve também trabalhar do modo mais aberto, transparente, participativo e público possível, evitando cair na concepção equivocada de que o grande trabalho da Comissão se resume a um relatório final, perdendo de vista que o processo da busca da verdade já é reparador por si mesmo se feito de modo inclusivo e cuidadoso com as vítimas.

Outra função fundamental que a Comissão tem cumprido, mas que precisa aprofundar, é a de catalisar as iniciativas locais, regionais e setoriais de busca da verdade. Com efeito, a baixa densidade institucional da Comissão Nacional da Verdade, com um trabalho enorme a realizar e o período curto do mandato, impõe a necessidade de articular iniciativas nos diversos planos, o que demanda criação de canais institucionais de participação e de colaboração.
           

domingo, 8 de janeiro de 2012

Espaço público, letra e imagem: Entrevista com Carlos Leone

A entrevista abaixo foi publicada no K Jornal de Crítica n. 16, de 2007. Como não está mais disponível, pensei que seria oportuno reproduzi-la aqui.
De 2007 para cá, a crise em Portugal aprofundou-se, a revista Prelo fechou as portas, e a INCM, que a editava, decidiu fechar também a Livraria Camões no Rio de Janeiro.
Portugal chegou ao ponto de escolher um primeiro-ministro, Passos Coelho (continua no cargo, para vergonha daquele país) que aconselhou aos professores portugueses a emigração. Uma forma pouco sutil de dizer que o país não tem mais futuro.
Nesta ligação, podem-se ler os sumários e as introduções dos volumes de Portugal Extemporâneo, ainda a principal obra de Carlos Leone.
Na foto, ele é o segundo a partir da esquerda em mesa com, na ordem, Eduardo Meinberg, Daniel Aarão Reis Filho e Sedi Hirano, no Seminário Exílio e Migrações Forçadas no século XX: América Latina e Europa, que ocorreu na ECA/USP em maio de 2010, organizado pela professora Maria Luiza Tucci Carneiro, com minha ajuda.


ESPAÇO PÚBLICO, LETRA E IMAGEM: ENTREVISTA COM CARLOS LEONE

Carlos Leone é historiador, professor e crítico literário. Escreveu, entre outras obras, Dez críticas (Lisboa: Edições Colibri, 1999), Portugal Extemporâneo (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2 vol., 2005) e O Essencial sobre Estrangeirados no Século XX (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005). Pesquisador sobre o espaço público e sobre os chamados "estrangeirados" portugueses, tem realizado parte de seu trabalho de campo em instituições dos Estados Unidos. Foi professor visitante da Universidade de Rutgers (Nova Jersey). Foi editor da Revista Metacrítica, de Filosofia, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Atualmente, edita a revista Prelo da Imprensa Nacional-Casa da Moeda portuguesa, que foi retomada em 2006 após 18 anos sem ser publicada.
A entrevista foi concedida a Pádua Fernandes na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.


Uma pré-modernidade persistente

Estive recentemente nos Estados Unidos a dar aulas sobre Portugal no século XX. Comecei com uma introdução, porque as referências dos alunos eram da história inglesa. As referências que eles têm em termos da expansão européia são da expansão inglesa, século XVI em diante. A expansão portuguesa, tal como a espanhola, ocorre nos séculos XV e XVI. Portanto, nesse período, que na língua inglesa se chama Early Modernity e que é uma espécie de pré-história da modernidade para eles, nesse período Portugal e Espanha eram realmente modernos. O problema é que, quando na história européia em geral, se observa a expansão de holandeses, ingleses, franceses, Portugal e Espanha já estão em retrocesso, já estão a iniciar aquilo que é na história de ambos países a decadência, o afastamento da Europa e por aí afora. O meu problema, digamos assim, com a questão da modernidade portuguesa é o facto de ela ter tido uma vida muito breve, não se ter desenvolvido, ter-se alçado e acabado num período histórico ligeiramente defasado do resto da Europa. Temos essa sensação de pré-modernidade persistente porque nossa modernidade não é a do Iluminismo. Então, quando chegamos ao século XX, ao fim do século XX e, por via revolucionária, ao 25 de Abril, há uma mudança das instituições sociais: passa a haver o voto, a liberdade de imprensa, uma separação séria entre Igreja e Estado. Quando chegamos aí, as sociedades européias em seu conjunto já estão no que é vulgarmente chamado de pós-modernidade. Então, a nossa procura da modernidade tende a pensar em coisas que são, na verdade, pós-modernas: a terceira geração de direitos sociais, os direitos ecológicos. E esse salto, como diz o Boaventura de Sousa Santos, como diz o Manuel Villaverde Cabral, esse salto da pré para a pós-modernidade ficou lá atrás, com este enigma de nossa modernidade ter existido, ter sido importante, mas sem ser pensada pelo resto da Europa.

Obstáculos à modernização

As instituições como a Imprensa Nacional, a Biblioteca Nacional estão em contato com o estrangeiro e são levadas a atualizar-se. Se formos para o setor privado em Portugal, um dos setores mais ativos e mais dinâmicos é o bancário. Os bancos estão sempre em contacto com o estrangeiro e têm que se modernizar. Esse contato com o estrangeiro, sobretudo a comunidade européia, foi sem dúvida, nos últimos vinte anos, após o fim das situações de exílio, fator de modernização. Essa europeização contudo ficou aquém do esperado, produzindo ainda assim algo do isolamento lusitano anterior. O maior historiador português vivo, Vitorino Magalhães Godinho, já comparou publicamente em entrevistas os fundos europeus para a modernização da economia portuguesa (recebidos abundantemente nos últimos vinte anos) ao ouro do Brasil. Ou, antes do ouro do Brasil, às especiarias da Índia. Ou seja: com uma fonte externa de riqueza, da ordem quase do milagre, que promove alterações positivas, mas que acaba por ser sentida como uma facilidade, uma espécie de maná, e portanto, não leva a um movimento próprio interno de modernização. Hoje, os fundos europeus estão a decrescer em volume. E começam a fazer falta, pois se vê coisa que deveria ter sido feita. Muita coisa ficou por fazer.
Há vários outros problemas, sobretudo em nível de justiça e de educação. Os sistemas de educação são praticamente autônomos, não têm grande controle exterior, resistem às tentativas de modernização porque alteram o status quo. O que está a passar com o chamado processo de Bolonha, com a modernização da forma do ensino superior em Portugal, é que está a se resistir institucionalmente. [...] Não sei se é verdade o que se diz de Bolonha: que se trata de processo europeu para americanizar as universidades européias. Acho isso impossível, porque não há uma sociedade européia como a americana. Mas ainda que fosse esse o objetivo, receio que não consigam atingi-lo. A sociedade americana funciona de maneira excepcional. No caso de Brown, onde investiguei, o ambiente de trabalho é favorável, o material, a racionalidade das coisas, a disponibilidade dos alunos e professores são constantes. É impossível estar lá e não trabalhar. O aluno vai para a universidade fazer o seu trabalho. Ele quer escrever o próprio paper e traz dúvidas para aula. Há uma atitude de trabalho que é magnífica. E que corresponde ao tal ambiente de investigação sensacional dos americanos. Isso, que eu conheço pouco (não sou especialista no sistema universitário americano) era ótimo que existisse em Portugal. E existe em outros países da Europa, como a Inglaterra. Mas, nos EUA, temos uma versão melhor, mais rica, mais dinâmica do que qualquer universidade européia pode ser.

Descontinuidade do discurso crítico

Quando propus a Manuel Felipe Canaveira, orientador da minha tese de doutorado, estudar o discurso crítico em Portugal, ele logo me objetou que não havia discurso crítico em Portugal. Segundo ele, que é historiador, eu estava a falar de algum caso isolado, e por isso não haveria continuidade desse discurso, ou seja, um objeto definido a investigar; [...] Acabei por concluir que existe uma certa continuidade, mas não se pode pensá-la em termos disciplinares. Essas tradições específicas disciplinares não se formaram devido ao facto de, na história portuguesa, as instituições mais fundamentais da sociedade (o Estado, a Igreja, a Universidade) terem resistido à modernidade.

O aquário kafkiano

Um dos indicadores de uma sociedade moderna é o grau de alfabetização, ou de literacia. [...] A classe média alta (que tem esse indicador, que geralmente é alfabetizada) é a classe dirigente. Em países onde a alfabetização é muito melhor e mais antiga, os do norte da Europa, não é preciso o primeiro ministro ser doutor de coisa nenhuma. A obsessão com o título acadêmico é típica de uma sociedade muito pequena, onde essas glorificações são restritas. [...] Quem detém o poder é quem detém o saber. É tudo a mesma gente. E há a pequenez que faz com que tudo e todos tenham um tio, um primo, um irmão, uma influência, um conhecimento... O fato de a sociedade ser pequena faz o ambiente ser claustrofóbico. No tempo do Salazar, isto era o aquário kafkiano (palavras de Eduardo Lourenço). O pesadelo calafetado, tudo bem fechadinho. Um ambiente em que ninguém diz abertamente o que pensa e com o tempo até deixa de pensar para não ter o risco de dizer por acidente.

O valor do exílio

A experiência do exílio durante o período salazarista vem romper um pouco com esse quadro. A partir de que momento se verifica a influência do Eduardo Lourenço nas letras portuguesas, por exemplo? A partir do momento em que ele passa a residir no estrangeiro. Antes disso ele esteve em Portugal, teve papel importante na Vértice, lecionou por pouco tempo na Faculdade de Letras de Coimbra, passou um breve período no Brasil e foi para a França. Ele começa a publicar mais regularmente já vivendo e trabalhando em França. É um caso, mas há muitos outros. O afastamento gerou ou permitiu o desenvolvimento de uma visão crítica da sociedade. E também permitiu que a sociedade absorvesse essa crítica, porque vinha de longe. De modo que a experiência do exílio, a experiência de imigração foi uma das maiores, senão a maior influência para mudar Portugal no século XX: possibilitou essa passagem de pré-modernidade, em muitos aspectos, para a modernidade / pós-modernidade.

Espaço público e mundo virtual

No passado, havia pouca gente alfabetizada. Hoje os níveis de alfabetização já são muito maiores, mas a cultura, no seu todo, está a transferir a comunicação para os meios de imagem, tevê, internet. De modo que os problemas do passado (não havia quem escrevesse, não havia público) mantêm-se hoje por outras causas. O público foi transferido para as mídias digitais, e esse foi, digamos assim, o problema de todas as revistas de idéias. A Prelo, que está a agora ser publicada, também sofre um pouco por isso: é complicado arranjar colaboradores. O alcance de difusão da revista é muito limitado: cada vez mais não se lê, não se lêem mais revistas culturais, jornais, não se lê, pura e simplesmente. E o sucesso de muita coisa na internet como blogues, vem justamente porque não é preciso perder muito tempo a ler aquilo, é simples e rápido [...] Em publicações portuguesas virtuais, acontece a mesma coisa que ocorre as edições em papel: é difícil manter a periodicidade, é difícil arranjar novos colaboradores, é difícil manter o título. E, ao fim de certo tempo, as coisas tendem a desagregar-se.
Vértice é uma revista que ainda está hoje em publicação. Uma revista de idéias, de literatura. Está muito associada à esquerda e ao partido comunista. Eduardo Lourenço foi fundamental no seu surgimento, na década de 1940. Depois da ida de Lourenço para a França a Vértice perdeu sua influência, em parte pela associação com a esquerda, mas também pela falta de interesse pela palavra escrita, que é um dos problemas da pós-modernidade. Seara Nova, outra revista muito importante, ligada ao António Sérgio, também está em publicação, mas ninguém sabe, ninguém lê. Há uma defesa do romance moderno em Portugal, nos anos 1930, feita pelo António Ferro – figura importante na propaganda do regime de Salazar, mas que começou muito jovem, ligado à revista Orpheu e ao Fernando Pessoa. Trata-se de uma defesa associada justamente à velocidade: não mais o romance em três volumes, como se fazia no século XIX, mas o romance breve, em 200 páginas, para ser lido rapidamente. Apesar de um meio como internet permitir o armazenamento de mais texto, põem-se lá coisas cada vez mais curtas, e isso faz com que as revistas de cultura tenham um papel extemporâneo.
Mas o novo formato, eletrônico, digital no caso, não resolveu o problema cultural de base, isto é, não resolveu a escassez do espaço público. Os projetos que têm viabilidade se mantêm à custa de reproduzir o que já existe. Aí está a tal agenda tradicional, que é cada vez mais a televisão, a entrar também naquilo que era supostamente alternativo, os blogues. Isso é um problema geral.

sábado, 2 de abril de 2011

Desarquivando o Brasil IV: o exemplo da Argentina: entrevista com Julián Axat


Já entrevistei o poeta, jurista e editor argentino Julián Axat quando ele esteve no Brasil para falar no Seminário sobre Exílio e Migrações Forçadas em 2010; o vídeo pode ser visto aqui. Falo com ele novamente em razão da Campanha Desarquivando o Brasil: a Argentina continua tendo um papel relevante e inovador no tocante à justiça de transição.
Axat atua como escritor e jurista nesse campo. Na entrevista, ele trata da HIJOS, organização que congrega os descendentes dos desaparecidos (como Axat, muitos seguiram o caminho militante já aberto pelas Madres e pelas Abuelas da Praça de Maio), da coleção Los detectives salvajes, que recupera escritos das vítimas do terror de Estado, e dos julgamentos dos agentes da repressão e do genocídio.

Pádua Fernandes - Como você é membro da organização HIJOS, pergunto-lhe como ela atua e atuou em favor do direito à memória e à verdade na Argentina.

Julián Axat - Hijos nasce em 1994 como organização. Participamos junto com os órgãos históricos de direito humanos no lema triplo: “memória, verdade e justiça”. Porém nossa forma particular de expressar-nos era “se não há justiça, há escracho”. O indulto aos militares viabilizava essa forma de protesto (ou forma de justiça popular) sobre o corpo e o contexto daquele que o Estado havia deixado impune.
Porém o Estado em 2003 faz seus os lemas de “Memória, verdade e justiça”. Eles passam a ser uma verdadeira Política de Estado com continuidade: o julgamento de repressores e seu encarceramento; a atribuição de lugares da memória; a reconstrução documental de cada desaparecido; a reescritura do prólogo do Informe Nunca Más que modifica a versão sobre “os dois demônios” que desde 1983 se pretendeu contar à sociedade; a educação sobre o tema às gerações mais jovens.
Hoje os Hijos tratamos de ir mais além e sustentamos (nos julgamentos) que, desde março de 1976, na Argentina houve um fato com as características de um Genocídio. Isto é, um plano sistemático para eliminar a dissidência política pelo método da tortura-desaparição-extermínio de grupos humanos em campos de concentração, com efeitos difusos no restante da sociedade civil e nas novas gerações. E, para isso, já não basta a palavra Terror de Estado e o conceito de Crime contra a Humanidade. É necessário analisar os Instrumentos Internacionais sobre o Genocídio pensados pela comunidade internacional depois do Nazismo.
Até aqui se pode falar da reconstrução de um relato compartilhado com elementos certamente objetivos. Mas também estamos trabalhando no nivel da subjetivação e transferência individual da memória. Hijos não é somente uma organização, mas um fato social que irrompe de muitas maneiras: H.I.J.O.S, hijos, hij@S. Nem tudo é consenso e compromisso coletivo. Memória individual e grupal são uma dialética permanente; uma ida e volta. Pluralidade necessária, válida. Cada lugar, cada filho, escolhe sua forma (ou dispositivo) para mostrar-se ou aderir, comprometer-se com o mundo e a história. No final, todos os rostos de Hijos formam um puzzle identitário cuja coincidência geracional alivia na door ou alegria de reconstruir a memória de nossos pais. A necesidade de contar politicamente a história (a luta) que nos deu à luz.

PF -Peço para que explique como a coleção "Los detectives salvajes" age no tocante à memória das vítimas do terrorismo de Estado.

JA- Los detectives salvajes é uma coleção de poesia que nasce como um projeto de dois filhos de desaparecidos em busca de toda uma geração silenciada e exterminada a resgatar. Esse é o trabalho de armar o puzzle que te dizia na tua pergunta anterior. O trabalho de grande Frankenstein da memória feita de andrajos, a que sempre falta uma peça para completar o rosto do monstro. Somos expertos profanadores de tumbas buscando cadáveres literários escondidos pelo terror (temos uma equipe forense poética). Com os cacos desses materiais linguísticos encontrados no nervo da noite tratamos de sustentar algumas certezas daquilo que não se sabe ou resulta inominável.
E, a partir do lugar que ocupa o registro da poesia, mergulhamos na trama de uma língua onde as palavras do perpetrador (ou cúmplice civil) também constituíram o veículo do terror e o engano. As palavras (insisto, civil e literariamente cúmplices) foram forçadas a dizer o que nenhuma boca humana deveria ter dito, nunca, palavras com que nenhum papel fabricado pelo homem deveria ter-se manchado jamais: como nomear a desaparição?
Recompor uma tradição da voz implica recuperar essa língua anterior amputada para fabricar nosso testemunho vicário. Recuperar a voz de nossos padres a partir da voz poética nossa, como filhos, é uma forma de nos reencontrarmos com o que fica de sua vida, ou, como diz Walter Benjamin: nos apossarmos da recordação tal e qual reluz em um instante de perigo.
Os versos que falam da ausência fantasiam a possibilidade de um resgate fantástico ao mesmo tempo em que criam um espaço real de encontro impossível. São versos que põem na boca do testemunho duas gerações fraturadas pelo mal radical que pressente o indizível, o silêncio no dizer de Paul Celan, mas que –apesar de tudo- tenta comunicar-se com novas vibrações e experiências.
Este trabalho da voz implica sair de uma vez por todas do lugar de filho-vítima-vitimizado-ofendido; para assumir o papel de filho fazedor da história, filho sujeito político-ofensivo.

PF- Como você avalia os avanços da Argentina nos julgamentos dos responsáveis pelo terrorismo de Estado?

JA- Avalio-os muito bem. O único problema é que as leis de impunidade que impediram julgar militares, policiais e civis fazem que hoje, depois de 29 anos, muitos estejam mortos, ou com incapacidade senil, ou enfermos. De todo modo, os julgamentos são um grande avanço e uma marca profunda no tecido social, e, simultaneamente, uma mensagem às novas gerações que não os veem como um fato distante, e sim presente em suas vidas.
No princípio, tivemos o julgamento de pessoas célebres, de forma individual; hoje estão sendo julgados grupos de pessoas em razão de centros clandestinos de detenção. Também são julgados civis cúmplices, eclesiásticos, médicos etc. Toda a estrutura do terror é submetida a julgamento. Todavia, ficam pendentes julgamentos de membros do Poder Judiciário com fortes vínculos com a ditadura. O problema é que muitos desses funcionários ainda se encontram ativos, ocupando cargos importantes, e têm muito poder. Também fica pendente o julgamento de civis ou pessoas jurídicas que cumpriram funções indiretas, por exemplo en meios de comunicação famosos, empresas, bancos, ou então vizinhos que fizeram o papel de delatores etc.
Volto à ideia que te mencionei no princípio, a necessidade de que se introduza o julgamento dos fatos no marco de um “Genocídio”, tal como o entendeu o Tribunal Federal Nº 1 de La Plata, na condenação do repressor Etchecolatz em 2006 (http://www.derechos.org/nizkor/arg/ley/etche.html) Nesse sentido, a obra do antropólogo Daniel Feierstein talvez seja a mais importante que se escreveu para abordar o caso argentino, me refiro ao texto El Genocidio Como Practica Social.
Muitos de nós, Hijos, somos querelantes nas causas criminais e acompanhamos dando impulso e ferramentas de análise, para que os julgamentos sejam históricos, que a sociedade os sinta como um antes e depois com efeitos concretos para solidificar a democracia e que, tendo noção do horror, ele não volte a se repetir.
Para isso, é muito importante que os genocidas possuam garantias constitucionais, que possam defender-se, que possam falar e dar seus pontos de vista. Os julgamentos são justos no marco de um Estado de Direito, e não são um teatro de castigo como os repressores objectam nas audiências.
Os repressores têm uma oportunidade inédita de defesa e humanidade no trato, que é o que eles não deram às pessoas que executaram e fizeram desaparecer. As vítimas não queremos vingança, tampouco reconciliação como quer a igreja e os setores da direita. Só queremos uma instância de justiça que é a que eles não deram. Só a justiça fecha parte da ferida (do luto), só a justiça tira nossos pais de um lugar difuso, de um purgatório, da instância fantasmática.