O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

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sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Maria Callas: os primeiros cem anos

O centenário de nascimento de Maria Callas, a grande intérprete de ópera e uma das maiores artistas do século XX, foi comemorado em 2 de dezembro de 2023. Escrevi, poucos anos atrás, uma nota sobre as "iluminações" que a artista trazia para os papéis que cantava, revelando detalhes que passam ou passavam em branco na leitura de outras cantoras. Depois, outra sobre o filme de Tom Wolf, Maria by Callas, valioso apesar dos problemas.

Eu não iria escrever mais nenhuma nota, porém comprei há dois dias um jornal na banca que pouco tratava de música e teatro, o que é curioso para se referir a uma intérprete de ópera. Ele continha também problemas factuais: sugeria que Callas só teria passado a colaborar com o diretor cênico Zeffirelli na época em que fez a Norma em Paris, bem depois de 1954, ano em que começou a trabalhar com Visconti. Está errado: aquela Norma foi a última produção nova de ópera em que ela cantou, em 1964 e 1965, e em 1955 Zeffirelli já tinha montado para ela O turco na Itália, de Rossini. Depois, ainda viriam La Traviata e Tosca -- duas óperas que ele quis filmar com ela. O texto também dizia que ela esmurrava o chão para chamar os deuses antes de entrar no palco na ópera Medea, de Cherubini. Na verdade, a artista grega era cristã ortodoxa; ela só adotava esses procedimentos pagãos em cena, encarnando o personagem. Minotis, o diretor cênico, havia pesquisado os procedimentos do teatro grego antigo e surpreendeu-se que ela adotasse esse gesto, que estava correto, por instinto e não por ter estudado o assunto; Callas nem mesmo havia visto representações do teatro clássico enquanto viveu na Grécia (era a época da Segunda Guerra Mundial e a atividade teatral praticamente cessou).

Se se pode errar assim na grande imprensa, por que eu não poderia escrever algo mais modesto aqui? Pensei em rascunhar algo como se estivesse a pensar alto na cantora e no seu impacto hoje. Começo a lembrar que o centenário inspirou homenagens. A Ópera Garnier, de Paris, montou uma noite de gala, "Vissi d'arte" (título de uma ária da ópera Tosca, de Puccini) com direção de Robert Carsen, que contava com a própria Callas em vídeo, artistas interpretando-a e números musicais, com regência de Eun Sun Kim. Sondra Radvanovsky cantou árias das óperas Norma, Macbeth, Manon Lescaut e Tosca. Pretty Yende, de La Traviata e La Sonnambula. Elas são sopranos. A meio-soprano Ève-Maud Hubeaux interpretou árias de Carmen e Don Carlo. Bellini, Verdi, Puccini, Bizet. Aqui está um descrição da noite por Louis-Julien Nicolaou: https://www.telerama.fr/musique/vissi-d-arte-le-bel-hommage-de-l-opera-garnier-a-la-callas-7018347.php

O Teatro Municipal de São Paulo também chamou três cantoras para homenageá-la em 8 e 9 de dezembro: as sopranos Camila Provenzale, Eiko Senda e Rosana Lamosa, regidas por Roberto Minczuk, para cantarem árias de Norma, La Traviata, La Gioconda, Andrea Chénier, La Sonnambula, Anna Bolena, Adriana Lecouvreur, Macbeth, Tosca e La Vestale. Bellini, Verdi, Ponchielli, Giordano, Donizetti, Cilea, Spontini.

Poderia citar outros exemplos, mas esses bastam. Todas essas peças estiveram no repertório de Callas, senão nos papéis que interpretou em cena, ao menos no que cantou em recital ou em disco. O importante é notar que não seria possível escolher uma só cantora para cantar esses números. Em Paris, os papéis mais agudos de soprano ficaram para Yende; os mais pesados, para Radvanovsky; os de meio-soprano, com Hubeaux. Em São Paulo, certamente haverá uma divisão desse tipo, já os papéis são vocalmente muito contrastantes, do dramático (Macbeth) ao ligeiro (Sonnambula).

Trata-se da diversidade vocal e dramática de Callas: já nos recitais que ela fez na Grécia na primeira metade da década de 1940, ela unia árias de soprano ligeiro (Lakmé, de Delibes, que ela cantava em italiano), dramático (Tristão e Isolda, de Wagner, que ela então cantava em grego; na Itália, ela interpretaria a obra completa em italiano), lírico (Fausto, de Gounod) e de meio-soprano (La Favorita, de Donizetti). Dez anos depois, ela continuava a fazer esse tipo de tour-de-force vocal. Ela tinha extensão, agilidade e potência: essa combinação se revelaria milagrosa quando passou a se dedicar às óperas do bel canto, o que só ocorreu quando encontrou trabalho na Itália: primeiro a Norma, em 1948, depois Os puritanos, em 1949, ambas de Bellini. Com Puritani, aconteceu o que ela mesma chamou de "milagre": ela cantava o repertório de soprano dramático: Wagner, o Verdi mais pesado, Turandot de Puccini e a Gioconda de Ponchielli. Alguns sopranos dramáticos da época cantavam a Norma, mas nenhuma Os Puritanos, papel de vozes ligeiras. Margherita Carosio iria cantar, mas ficou doente, e Callas substituiu-a, aprendendo o papel enquanto se apresentava como Brünnhilde em A Valquíria, de Wagner, em italiano, que é como se executava esse compositor na Itália nessa época. Dia 16 de janeiro foi a última apresentação na Valquíria, dia 18 ela entrou em cena como Elvira de I Puritani. Ela havia cantado a ária "Qui la voce" para o maestro Serafin e o diretor do teatro La Fenice, em Veneza, que chegaram à conclusão de que ela teria êxito. Foi um sucesso, o que levou ao convite para gravar o primeiro disco, em que cantou Bellini e Wagner.

Para quem não conhece esse repertório, Callas passou deste papel dramático: https://youtu.be/EwuyKZbm_H4?si=TTcbKV-NboKV1OPz&t=3552 para este outro polo da voz de soprano: https://youtu.be/UBTnjr-Rp0U?si=HwjDIWXWvtwH_6l5; tarefa aparentemente impossível, porém realizada. Nessas gravações, ouvimos Kirsten Flagstad e Margherita Carosio.

Irineu Franco Perpetuo publicou no 2 de dezembro, o dia do centenário, um interessante texto, "Maria Callas e o museu do imaginário da humanidade", em que devidamente lembrou que, embora a artista tivesse se dedicado ao resgate das óperas do bel canto, as escolhas estéticas de sua época hoje soam datadas. Ele não detalha a razão, mas se trata principalmente de cortes que se faziam ainda nos anos 1950 e 1960, às vezes de cenas inteiras (por exemplo, nenhuma das gravações preservadas com Callas de Lucia di Lammermoor, de Donizetti, contém o dueto de Lucia com Raimondo, tampouco o de Edgardo com o de Enrico), de árias completas dentro das óperas, de repetições dentro de árias (aparentemente, Callas nunca cantou as segundas estrofes de "Ah, fors'è lui" e de "Addio del passato" na Traviata, de Verdi), ou, muito comum, de cadências. Trinados não escritos e appoggiature também eram, em geral, omitidos pelas práticas então correntes de interpretação. 

Tratava-se de algo da cultura musical da época, que ela aprendeu com maestros como Tullio Serafin. Essas práticas variavam e atingiam também as óperas do período clássico: Vittorio Gui regeu a estreia dela em Medea, de Cherubini, e é a gravação mais integral que temos com ela da ópera: também ao vivo, Leonard Bernstein cortou até finais das árias da protagonista, Nicola Rescigno restaurou os finais mas fez outros cortes, bem como Thomas Schippers (em uma regência pouco inspirada, aliás); o disco de estúdio, com Tullio Serafin, mutilou severamente a obra.

No entanto... Como Robert E. Seletsky escreveu no artigo "The performance practice of Maria Callas" (publicado em The Opera Quarterly do outono de 2004), "Callas foi extraordinária em ser completamente convincente enquanto dava ao ouvinte uma informação incompleta". A força de sua interpretação é tal que a escutamos apesar dos cortes e das falhas das edições de parte do repertório que ela interpretava. Cabe em dois cds sua gravação de Os Puritanos de Bellini, com Tullio Serafin; Callas foi a primeira a gravar a integral da obra, mas, para ouvir uma execução completa da partitura, devemos recorrer a outros discos: por exemplo, a gravação regida por Bonynge e cantada por Joan Sutherland precisa de três cds para incluir toda a música... Essas gravações de Callas ficaram, contudo, por causa da excepcional interpretação da soprano, que constrói um personagem inteiro apesar dos cortes, tal era o seu poder de artista.

Dessa forma, precisamos de outra gravação, mais recente, que não de Galliera com Callas, para ouvir integralmente O Barbeiro de Sevilha; mas provavelmente nenhuma terá uma interpretação do dueto entre o Figaro e Rosina mais engraçada e mais sutil do que a de Tito Gobbi e Callas, desde o recitativo. 

A variedade expressiva de Callas é um dos elementos do seu poder de intérprete. Na ópera Norma, a obra que mais cantou, ela é uma sacerdotisa druida que secretamente mantém uma relação amorosa com um inimigo romano, Pollione, com quem já teve filhos (como ninguém notou, a ópera não explica). Os gauleses estão sob ocupação do Império Romano e querem se livrar do opressor. Ela não só está traindo seus votos de castidade, como seu próprio povo, a quem convence a não lutar contra os inimigos "profetizando" que Roma cairá "por seus próprios vícios". Mas Pollione se apaixona por uma sacerdotisa mais jovem, Adalgisa, e quer levá-la com ele para Roma. Adalgisa pede a Norma que a libere de seus votos de castidade e conta como conheceu o amado; o dueto é lindo, e tem algo de irônico: Norma observa para si mesma que a paixão aconteceu da mesma forma com ela -- mas, é claro, era o mesmo homem. 

Norma, curiosa, pergunta sobre o jovem; Adalgisa responde que ele é de Roma; a resposta deixa a sacerdotisa mais velha surpresa, e não é que ele está vindo encontrar sua amada? Quando Norma vê Pollione, exclama indignada o nome dele e passa a acusá-lo: "O non tremare, o perfido!".

A variedade de expressão é impressionante; a gravação de 1954 já a consuma, porém sugiro esta interpretação ao vivo na Rádio Italiana de Roma, com a regência de Serafin, e os cantores Ebe Stignani e Mario del Monaco: https://www.youtube.com/watch?v=zM0nKipuTv8

Quando Callas/Norma canta "l'amato giovane" (aos 9 segundos), ela é toda doçura: vê-se que ela gosta de Adalgisa; aos 25'', a palavra "Roma" é cantada com outra cor vocal, sugerindo surpresa. Aos 40'', "Ei! Pollion!", a ira é manifesta. Em 1'11'', a cor escura da voz em "Tremi tu" constrói o clima para o solo "O non tremare", com seus dois saltos para o dó agudo e a genial inflexão de Callas em "pei figli tuoi" (2'06''): quando ela menciona os filhos, ela ataca a frase mais suavemente. Logo depois, ela pensará em matá-los, pois seriam sacrificados pelos gauleses e, caso fossem levados a Roma, seriam escravizados. Não é capaz de fazê-lo, porém. No final da ópera, ela consegue salvá-los; Callas, naquela frase, revela esse traço essencial do caráter da personagem. 

Aqui, extraída da Biblioteca do Congresso dos EUA, esta parte do libreto da ópera com a versão em inglês:



Adalgisa a interrompe: ela não sabia de nada e fica perplexa. Norma começa um solo, "Oh! di qual sei tu vittima", seguido por um trio que contrasta as reações dos personagens. Terminando esta bela parte, Norma volta a acusar Pollione ("Perfido!", 6'54''); ele dá de ombros e chama Adalgisa para fugirem juntos, mas ela não quer; quando Norma diz para ela partir com ele, a jovem recusa mais fortemente: preferiria morrer a ficar com quem ela chamou de "esposo infiel". Norma tem novo solo, mandando o "indigno" ir embora, que também conduz para um trio. Os guerreiros druidas aproximam-se (o coro canta nos bastidores), o que faz o procônsul romano fugir sozinho. Callas aproveita e termina na oitava superior, em um belo ré agudo.

Tudo isso é sublime, embora haja alguns poucos cortes. Para ouvir a música com todas as cadências, temos a edição crítica, que Cecilia Bartoli gravou faz alguns anos com a regência de Giovanni Antonini: https://youtu.be/eKRW2b_WY6w?si=eZGdmoXs91prlwk7, disco de estúdio lançado em 2013.

No recitativo, não há realmente diferença, salvo na menor variedade de cores vocais da protagonista, bem como sua menor potência vocal. As três vozes combinam, porém, porque são todas leves: Sumi Jo, soprano ligeiro (categoria vocal que está mais próxima, provavelmente, do original de Bellini do que o meio-soprano) e o tenor John Osborn. Infelizmente, alguns trechos soam como uma canção de ninar, em vez do confronto aberto da gravação dos anos 1950, impressão que se fortalece com a cadência com que termina a primeira parte do trio. 

A segunda parte me parece confirmar essa impressão de uma expressão mais branda, apesar de o tema rápido aparecer mais vezes do que na edição usada nos anos 1950: https://youtu.be/_u8RC87iURU?si=Z_qKrg3HsnJiEjY9. Não sei se, ao vivo, uma orquestra de dimensões mais reduzidas como La Scintilla também pareceria ameaçar superar em volume essas vozes, inegavelmente menores do que as de Callas, Stignani e del Monaco.

Falei de volume, mas não é essa a questão de Callas que interessa aqui, mas a diversidade dramática e musical (em ópera, quando tudo dá certo, os dois elementos são um só). Hoje, meu momento preferido de Callas está na gravação ao vivo da Lucia di Lammermoor, de Donizetti, em Nápoles. Callas não gostou do maestro Molinari-Pradelli (estava acostumada a Karajan nessa ópera...), mas até John Ardoin, em seu livro The Callas Legacy, o elogia nessa ocasião. Lucia é uma jovem traumatizada que é salva da morte por um jovem que pertence a um clã rival, Edgardo. Ele é o único sobrevivente da família. É claro que eles se apaixonam e é mais evidente ainda que o irmão de Lucia, Enrico, está arruinado e quer casá-la com um nobre rico, Arturo, para resolver suas finanças. Edgardo viaja, Enrico aproveita para forjar uma carta a Lucia para que ela ache que foi abandonada pelo amado e aceite casar com Arturo. É o que ocorre, mas Edgardo volta e irrompe na igreja justamente depois de ela ter assinado o contrato nupcial... Escândalo. O irmão e o amado irão duelar mais tarde, enquanto isso os convidados de alguma forma se divertem. Mas vem a notícia: Lucia enlouqueceu e matou o noivo. Ela aparece no salão, com o vestido sujo de sangue, imaginando que está a casar com Edgardo... É claro que ela morre depois de uma cena de loucura de vinte minutos. No último ato, Edgardo já está no cemitério para o duelo; lá, é avisado de que Lucia morreu e o corpo dela chegará. Desolado, mata-se e acaba a ópera. 

A história vem de um romance que nunca li de Walter Scott. A força de Callas nessa ópera, além da voz inesperada para o papel, com mais potência do que os sopranos ligeiros que geralmente o cantam, está em dar verossimilhança ao personagem: a relação de Lucia com a realidade é frágil desde o começo. Infelizmente, a irresponsabilidade das instituições italianas de cultura na época fizeram com que a filmagem daquela apresentação fosse apagada. Ficou o registro de áudio, de qualidade muito inferior ao que os alemães fizeram em Berlim em 1955, quando Callas lá cantou sob a regência de Karajan. Por sinal, essa Lucia na Alemanha é o registro sonoro preferido de Ardoin da arte da cantora.

Mas destaco a interpretação de Nápoles por causa da questão do volume. Callas alternava na cena momentos de grandes dramaticidade com outros muito tranquilos. Nestes, a loucura é praticamente palpável: é evidente que uma calma como esta, "del ciel clemente un riso", não pode ser deste mundo: https://youtu.be/vubgJhit8SU?si=qXglZoGKApm4mXdR&t=591

O portamento que ela fez em "clemente" a 10'09'', em pianíssimo, sempre me corta o coração. A 10'56'', começa a cadência com flauta: Lucia perde a expressão verbal articulada e dialoga com o instrumento. Uma sequência de dós agudos em staccato gera murmúrios de admiração. Callas não canta o mi bemol no fim da cadência (ela o reserva para o fim da cena), mas o si agudo, com uma escala descendente repentina que gera um efeito bem dramático. O público enlouquece, claro; ouve-se algo parecido com vaia, mas são os diversos gritos de bis. O maestro tem que forçar a continuação da cena.

No primeiro ato, ela havia sido vaiada, não por ter errado alguma coisa, mas porque Nápoles era algo como um reduto de Renata Tebaldi (que jamais pôde cantar essa ópera, pois não tinha nem a extensão nem a agilidade necessárias). A força artística de Callas, contudo, conquistou o público hostil, façanha que podemos ouvir nessa gravação e que a grande Birgit Nilsson, outra das maiores cantoras do século XX, testemunhou na plateia, e contou em sua autobiografia, qualificando a cena de loucura como fenomenal.

Ela continuava a ser capaz de uma forte variedade de expressão mesmo quando, na década seguinte, sua voz perdeu boa parte da potência e da extensão. Prova-o esta produção de Tosca, em Londres, em 1964, no penúltimo ano de sua carreira nos palcos de ópera. Não se trata mais de bel canto, como em Bellini, autor da primeira metade do século XIX; a música é de Puccini e o estilo é mais moderno.

A produção é de Zeffirelli e a regência é de Cillario. Floria Tosca é uma cantora que namora um pintor republicano, Mario Cavaradossi, e revolucionário em Roma na era napoleônica. O chefe de polícia corrupto, Scarpia, quer prender o líder dos revolucionários, Angelotti, que fugiu, e cobiça sexualmente Tosca. Para saber onde ele está, tortura Cavaradossi. Scarpia, interpretado por Tito Gobbi, manda abrirem a porta para ela ouvir os gritos do namorado; surte efeito, ela se desespera: https://youtu.be/xnFlg1z1hPc?si=5ISvT0sQr5kUhO3O&t=990.

Ela repete "eu não posso mais" (17'16''), a segunda vez quase como um eco: a personagem mal consegue se expressar. Em 17'30'', quando pede a Mario para que a deixe falar, assume outra expressão: está próxima do choro. Em seguida, o uso da voz de peito quando fala da alma torturada é bem tocante. Em 18'42'', depois do grito do tenor, ela revela o esconderijo falando: mesmo sem cantar, Callas é completamente convincente. Depois, grita "Assassino!"; diante da fúria do torturador, ela suplica para ver seu namorado. O fato de ela não exagerar (algo raro em apresentações dessa ópera) torna tudo ainda mais real. Nesses três minutos, há mais expressão (de Callas e de Gobbi, também genial) do que em certas representações completas...

Essa riqueza é possível porque eles são grandes músicos e grandes atores: em ópera, essas duas veias artísticas têm que vir juntas, por isso o gênero é tão difícil e tão fascinante quando tudo, ou muita coisa, dá certo. Um dos papéis mais fortes de Callas foi a protagonista de Alceste de Gluck, uma obra do século XVIII, com regência de Carlo Maria Giulini, que foi miseravelmente preservada pelas instituições culturais italianas em um som péssimo. Infelizmente ela só a interpretou daquela vez, em 1954. 

A rainha Alceste, como se sabe, oferece sua vida aos deuses para salvar o rei Admeto. No final, é claro que os deuses, comovidos, restituem-lhe a vida e tudo termina bem: o lieto fine era uma tradição desse momento da história da ópera.



O segundo ato termina com esta aceitação do sacrifício, "A' vostri lai" (nas versões em francês, "Ah, malgré moi"). O trecho é lento, com frases em legato. Subitamente, a música muda e ganha urgência a partir de "O Ciel!". Alceste canta até "Este supremo pranto/ parte no peito meu coração."

Callas, com Giulini, canta com muita calma, até "O Ciel!": https://youtu.be/3k-RdBsggy8?si=ZY95-QyChqooufHx&t=5212; daí, ela faz um longo crescendo até repetir a última frase com grande ênfase: o público aplaude, embora a música não tenha acabado e o coro tenha começado a cantar.

O drama clássico está lá. Se comparamos com uma interpretação mais recente, a de Anne Sofie von Otter na regência de John Eliot Gardiner em 2009, temos outra coisa: ela também canta com suavidade a primeira parte da ária, mas o contraste na passagem "O Ciel!" é bem menor em dinâmica; com isso, a personagem não só parece sofrer menos como, paradoxalmente, soa menos resoluta. Com Gardiner, a repetição do trecho é mantida, porém von Otter não oferece realmente muito mais do que na primeira vez. Tampouco o maestro.

Em concerto, Callas podia escolher árias contrastantes em termos de exigência vocal e de afetos. Uma apresentação em 1958 em Los Angeles preserva o repertório de uma turnê nos Estados Unidos. Nas notas do cd, John Ardoin afirmou que ela estava em grande forma nessa ocasião. O repertório consistiu em La Vestale, Macbeth, O Barbeiro de Sevilha, Mefistofele, La Bohème e Hamlet: óperas de Spontini, Verdi, Rossini, Boito, Puccini e Thomas, o único francês. Os títulos são todos de ópera e do século XIX: de 1807 (Vestale) a 1896 (Bohème). Callas jamais cantaria música contemporânea: paradoxalmente, ela foi uma artista revolucionária que se especializou em cantar música do século anterior ao que viveu. 

No entanto, os estilos envolvidos no concerto são diferentes e as exigências vocais, também. A necessidade atual de chamar três cantoras no mesmo concerto para homenagear Callas se repetiria, se alguém tentasse repetir esse programa.

A voz dramática de Lady Macbeth contrasta com a leveza da Ofélia francesa: duas transcrições operísticas de peças de Shakespeare, com dois personagens que, mesmo no teatro falado, não devem ter a mesma voz. São duas peças sérias; já "Una voce poco fa", da personagem Rosina do Barbeiro de Sevilha, é cômica. Ouvem-se até algumas risadas no meio da ária quando ela canta a palavra "ma" ("mas", que introduz uma virada no discurso da personagem sobre si mesma).

Nenhuma dessas três árias estava no repertório de, para lembrar outra grande cantora, Renata Tebaldi, ao contrário de "L'altra notte in fondo al mare", do Mefistofele, de Boito, uma outra ária de loucura. No entanto, nunca ouvi de Tebaldi nada parecido com a coloratura, o surpreendente diminuendo no si agudo e os trinados que Callas realiza nesta apresentação.

Sobre as duas outras árias do programa, Callas é provavelmente a intérprete mais convincente da grande ária da Vestale; ela não se destaca, contudo, como Musetta de La Bohème: o personagem submerge na interpretação bombástica. Por sinal, ela nunca chegou a gravar esta ária de Puccini, tampouco interpretou Musetta no palco - ela apenas gravou em estúdio a ópera completa, mas no personagem de Mimi. Mas apenas essa seleção não convence. Anja Silya, por exemplo, cantou o papel título da Elektra, de Richard Strauss, e a Rainha da Noite de A flauta mágica, de Mozart. Trata-se de dois extremos vocais, mas ninguém diria que ela foi a melhor nesses papéis, nem mesmo muito boa... 

O que distinguia Callas era a profundidade com que ela estudava o personagem, tanto em termos dramáticos quanto musicais, para que pudesse apresentá-lo com uma convicção forte de intérprete. Pode-se até não gostar dela em um ou outro papel, mas não negar que ela havia preparado e apresentava uma concepção do personagem. Callas não era uma artista de rotina, ao contrário, por exemplo, das fracas produções do Metropolitan Opera House da época, conforme ela declarou em 1958, quando teve seu contrato com aquele teatro cancelado por Bing. A seriedade no trabalho, creio, faz parte do legado de Callas, que fez o público exigir, por exemplo, que os cantores de ópera fossem capazes de atuar.

Em suma, o recital é uma prova da variedade vocal e expressiva da intérprete: o registro apenas sonoro comprova não só as possibilidades da voz (e não o seu "uso do microfone", como escreveu certo comentarista: trata-se de uma gravação ao vivo e pirata), como sua força de grande atriz.

Por isso sua carreira foi mais curta do que a de outras colegas? É uma das teorias sobre o declínio vocal de Callas. mas ela mesma lembrava que o que fazia não seria nada estranho no século XIX. Seria raro, mas não único; um exemplo foi Lili Lehmann, que cantou na estreia de O anel do Nibelungo, de Wagner, em 1876, mas chegou a fazer algumas gravações antes de completar 60 anos, no início do século XX, onde ouvimos tanto Konstanze do Rapto do serralho de Mozart, como Leonore, do Fidelio de Beethoven, e La Traviata, de Verdi, ou seja, como soprano ligeiro, dramático e lírico. Creio que não encontraríamos hoje uma cantora que ousasse apresentar em concerto os três papéis. Com essas possibilidades, ela também cantou ao vivo e gravou trechos da Norma...

Callas sofreu mais, provavelmente, em razão de outra variedade: a de doenças e problemas de saúde, como lipodema, enxaqueca, dermatomiosite, hérnias, pressão baixa, vertigens, hérnias, sinusite, miopia e glaucoma, problemas de audição, problemas ginecológicos, insônia, dor nossos ossos, fadiga, inflamação nos maxilares, deficiência crônica de vitamina B12, depressão, alergias, hipermobilidade etc. A soprano Ziazan, que mantém o canal Ghosts of Opera, criou um vídeo, "Diagnosing Callas - What REALLY happened to her voice?", em que ela interpreta (bem) o fantasma da grande cantora e lê a longuíssima lista de sintomas conhecidos, apresentando a hipótese de que Callas teria sofrido da síndrome de Ehlers-Danlos: uma deficiente produção de colágeno, que pode afetar tudo no corpo. O vídeo apoia-se extensamente na biografia que Lindsy Spence escreveu, "Cast a Diva" (um trocadilho), que é realmente informativa. Lemos nela que em 1953, quando Callas estava tentando perder peso (acabou conseguindo), foi procurar um médico chamado Coppa por causa de seus problemas hormonais e de metabolismo: teve de ouvir que os artistas eram meio malucos e que tudo estava "na cabeça dela"... 

Era o tipo de resposta que costumava receber para suas queixas. Outro exemplo dessa incompreensão, registrado em áudio, está nos comentários de Alfred Hubay sobre a estreia da soprano no Metropolitan: ela não estava bem de saúde, mas esse funcionário do Met preferiu achar que suas dificuldades ou eram psicológicas e/ou efeitos do declínio vocal. É curioso ouvir também que Callas (vários diziam isso) não teria conseguido emagrecer nas pernas; na verdade, ela tinha problemas linfáticos, que levavam ao inchaço dos membros inferiores.

Ainda sobre questões de "cabeça", um possível sintoma que Ziazan não lê, mas que encontramos na autobiografia de Zeffirelli, era o de que cabelo de Callas parecia "morto" no final da vida. O colágeno é importante também para o cabelo.

Ela parecia estar quase sempre doente, sem encontrar realmente ajuda dos médicos, e sua vida encontrou outras dificuldades: ela estava na Grécia durante a Segunda Guerra e enfrentou a escassez de comida, ameaças de morte tanto dos italianos fascistas quanto dos comunistas que lutavam tanto contra os fascistas quanto contra os ingleses, para quem ela trabalhava; a péssima relação com a família, e não só com a mãe, que a chantageou e difamou; a tentativa de estupro no conservatório de Atenas; a incompreensão dos críticos e dirigentes de ópera de sua voz e de seu estilo; o escândalo que a imprensa criou por ela ter cancelado por doença uma récita de Norma em Roma, que gerou a ameaças de morte e a necessidade de deixar a Itália; para não falar do que ocorreu após ter-se apaixonado por aquele armador grego: depois disso, a vida pessoal comprometeu seriamente a carreira artística. Ademais, a saúde piorou bastante, e os vídeos da década de 1960 mostram-na muitas vezes com o fôlego curto, lutando contra o apoio, a voz instável.

Mesmo que não possamos saber com exatidão por que ela sofreu com tantos problemas médicos, evidentemente a saúde frágil comprometeu a carreira da cantora, que morreu subitamente do coração aos 53 anos. Dito isso, o legado artístico que ela deixou foi tão intenso que continua a irradiar-se sobre o mundo da ópera. Nesse sentido, sua carreira ainda não terminou: estamos apenas nos primeiros cem anos de Maria Callas. Nós passaremos, mas outros verão, caso o Antropoceno não destrua tudo, o segundo século d.C.


P.S. de 17 de dezembro: Não é só a imprensa paulista que pública textos superficiais é com erros sobre Callas: a Gramophone também. A revista até encurtou a carreira da artista numa linha de tempo errônea e mal pensada.

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

13 discos vermelhos em busca de companhia



Comecei a participar dos #13DiscosVermelhos no twitter, mas interrompi quando começou o último debate dos candidatos à presidência da república. Nele, Jair Bolsonaro, embora reforçado por um auxiliar contrário à lei de cotas e favorável a fechar hospitais, e pelo auxiliar aparentemente vestido para festa junina, pareceu mais fraco do que nunca e fugiu do confronto com Lula.
Assisti ao pobre espetáculo, que acabou de madrugada. Cheguei a escrever, antes disso, que tinha escolhido a Floresta do Amazonas, odiada pelos bolsonaristas (refiro-me ao objeto da inspiração, claro, mas é possível que a música também não seja apreciada), para ficar em cima da pilha de discos por motivos óbvios. A permanência da floresta (embora alguns sustentem que se trata de um bioma já irremediavelmente condenado) é uma das questões que será decidida dia 2 de outubro, uma vez que o governo do candidato à reeleição foi e continua a ser, por motivos que me escapam, uma época alvissareira para o crime ambiental.
Começo, porém, da base: o disco dedicado a Alberto Ginastera, lá embaixo, foi escolhido não só por causa do gênio deste compositor (só escolhi música boa para a pilha, claro; por sinal, o time musical que apoia Lula é muito superior ao grupo que faz arminha), mas também porque foi censurado por uma das ditaduras militares da Argentina por causa da ópera Bomarzo. O disco que tenho da ópera não é vermelho, mas como o compositor vetou a execução de toda sua obra nessa época em reação à censura, achei que poderia começar deste da Orquestra de Lancy-Genève regida por Roberto Sawicki, que ainda toca o violino solo. Ditadura, censura, essas palavras me evocaram algo do presente brasileiro.
Por causa da Argentina, lembrei de Maria Callas, que odiou Buenos Aires quando lá cantou (1949) porque, segundo contou em carta ao marido, a cidade estava cheia de fascistas. De fato, ela não voltou mais àquele país de cujo clima ela também não gostou. O disco (selo Divina) com o que restou gravado da presença da artista na Argentina não é vermelho, por isso peguei este com gravações ao vivo no México, da mesma fase da carreira, com uma voz realmente incomparável. Fica bem na pilha porque é Callas e porque, de fato, não se deve gostar do fascismo.
Como não devemos gostar desses peculiares regimes políticos europeus do século XX, resolvi incluir compositores proibidos pelos nazistas, e um deles morto em campo de concentração (Schulhoff), por marxismo e/ou modernismo e/ou em razão do antissemitismo. Entram Kurt Weill e Ernst Toch (que se exilaram) e o Berg, que morreu de doença antes de ter toda sua obra banida. Em Lulu, por sinal, a ópera que escolhi para a pilha (completada por Friedrich Cerha décadas depois, pois Alban Berg morreu antes de terminar a orquestração do último ato), a crise do capitalismo e a quebra da bolsa de Nova Iorque estão bem no centro da história. Esta gravação, regida por Jeffrey Tate, parece-me muito bem cantada, a começar por Patricia Wise no difícil papel-título, passando por Peter Straka que logra atender à tessitura do Alwa, pela encarnação que Brigitte Fassbaender nos oferece com a lésbica Condessa Geschwitz e pelo veterano Hans Hotter como Schigolch. O disco da Ebony Band,regida por Werner Herbers, inclui o "oratório-jazz" de Schulhoff, "H.M.S. Royal Oak", com texto de Otto Rombach, que conta um episódio real: uma revolta de marinheiros por causa das más condições de trabalho e da proibição de ouvir jazz, um ritmo negro (que também seria proibido pelos nazistas). A revolta vence. Os fãs do atual ocupante da presidência também têm problemas com a negritude. A revolta vencerá.
O disco das trovadoras (trobairitz), na voz de Montserrat Figueras e o grupo Hespèrion XX (quando acabou o milênio passado, Jordi Savall atualizou o nome para Hespèrion XXI), entrou para lembrar das mulheres autoras, contra a misoginia que continua no poder: Condesa de Provenza Garsenda e grande Condesa de Dia. Quase toda essa música foi perdida, mas alguns poemas ficaram e foram cantados com melodia de outros músicos. Parece-me que os fãs do atual ocupante da presidência, fiéis ao ídolo, incomodam-se com esses assuntos e o protagonismo feminino.
Escolhi este disco do grupo da Quixabeira de Lagoa da Camisa, além da vibrante cultura dos trabalhadores rurais, por causa do canto no verso "Essa terra é minha" em "Eu não sou daqui". Por algum motivo, podemos desconfiar que os partidários do atual ocupante da presidência não gostam muito desses trabalhadores, e a escassa simpatia diminui ainda mais quando veem que eles se organizam. No entanto, por alguma razão, esses partidários não veem problemas nas reivindicações de terra se feitas por grileiros.
Taiguara, que era comunista, entrou por causa da censura que sofreu (creio que foi o compositor brasileiro mais censurado da época) e o obrigou a deixar o país. Este era o único disco com lombada vermelha dele que tenho e cobre as músicas anteriores a seus embates mais sérios com a censura, a época em que era conhecido principalmente como cantor romântico. Já está lá, porém, a emblemática "Hoje"
Esta apresentação ao vivo de Elis Regina em 1977 foi lançada originalmente pela gravadora Velas, anos depois da morte da grande cantora. Lembro que eu o ouvi pela primeira vez em um supermercado (esse tipo de estabelecimento vendia discos no século passado) e fiquei paralisado pela voz em "Travessia", de Milton Nascimento. O disco começa e termina com canções contra a ditadura: "Como nossos pais", de Belchior, e "Cartomante", de Ivan Lins (que era o dono da Velas, aliás) e Vitor Martins. Esta, na intepretação de Elis, foi muito relembrada neste fim de mandato de J. Bolsonaro: "Cai o rei de espadas, cai o rei de ouros, cai o rei de paus, cai, não fica nada!"
O show "Direitos humanos no Banquete dos Mendigos" reuniu grandes nomes no MAM, Rio de Janeiro, em 1973. Tratava-se da comemoração dos 25 anos da Declaração Universal em um tempo, no Brasil, hostil à dignidade humana. Neste terceiro disco, o único vermelho, temos Milton Nascimento, Jards Macalé, Pedro dos Santos, Dominguinhos e Gal Costa. O poeta Ivan Junqueira fez uma leitura no fim dos artigos desta Declaração das Nações Unidas, texto não amado pelos partidários do atual ocupante da presidência. Tampouco esta organização internacional costuma despertar elogios dessas pessoas.
Da GaL, que foi fotografada fazendo o L várias vezes em 2022 e sempre foi de esquerda, escolhi ainda o "Estratosférica ao vivo", disco duplo recente que combina repertório novo e canções mais antigas, como esta pérola da época da ditadura, "Como 2 e 2", de Caetano Veloso (um ex-cirista que agora faz o L). Estes baianos não são nada apreciados pelos bolsominions, que ficaram muito irritados quando Gal alegremente dançou enquanto seu público demonstrava espontaneamente afetos em relação a J. Bolsonaro.
Em "Munduê", Diogo Nogueira (que honra em vários sentidos o nome do pai, o grande João Nogueira, e também faz o L) acentuou as raízes negras de sua música com os jongueiros do Quilombo de São José da Serra. Bolsonaristas também não gostam desse tipo de repertório (mesmo no belo timbre deste cantor) e até mostram-se capazes de votar em políticos que pesam gente em arrobas.
Esta gravação de "Floresta do Amazonas" foi o último disco gravado de Bidu Sayão, que estava aposentada, mas aceitou retornar aos estúdios a pedido do compositor, Villa-Lobos, que morreria pouco depois e fez nesse momento sua última gravação. É claro que os bolsonaristas não gostam desse tema, e provavelmente também não desta música. Há até gente da música clássica que votou 17 em 2018, mas foi por muita falta, além de consciência política, de consciência de classe.
A maioria do que selecionei foi música vocal. Deixo, então, para comentar por último um item puramente instrumental destes músicos brasileiros. O flautista Francisco Luz e o violonista Fabrício Ribeiro gravaram este disco de música de câmara, "Na solidão em busca de companhia", com música de Villa-Lobos, Radamés Gnattali, Edino Krieger e outros. Escolhi-o por causa da faixa título, de Harry Crowl (um de meus compositores favoritos de hoje), que remete a um poema de Auden. Sei que muita gente não gosta dos poemas de inspiração religiosa desse autor, mas creio que é possível apreciar a simplicidade deste exemplo lírico, e este verso, presente em dois tercetos, é essencialmente antibolsonarista: "Men of their neighbours become sensible".

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Ópera e assassinato: "Tosca", de Puccini (30 dias de ópera: Dia 18)

Sem o assassinato, boa parte do universo operístico se desvaneceria. Imagine um Nero que não ordenasse a morte de oponentes e da esposa? Nem pareceria imperador... Se Don Giovanni não matasse o Comendador, quem lhe daria a mão para ele descer ao inferno depois? Como subsistiria a tragédia se Medeia não matasse os filhos e a noiva do marido? Se ela matasse Jasão, a ópera não seria a mesma coisa, poderia até fazer par com Os Palhaços, de Leoncavallo... Aliás, nesta ópera, como se poderia ter certeza de que a comédia acabou se Canio não a tivesse matado junto com a esposa e Silvio?
No século XVIII a tradição do lieto fine, forte no estilo da chamada opera seria, que deveria acabar de forma feliz ou, pelo menos, moralmente exemplar, restringiu as possibilidades de assassinato, embora não as tenha eliminado. Às vezes, isso exigia mudar o final de histórias bem conhecidas. Rossini mudou o final de seu Otello, que estreara em 1816, para as plateias de Roma em 1820. Não em razão de um suposto feminismo avant la lettre, mas porque o público não suportaria um final infeliz. Desdêmona sobreviveu também nas cidades de Veneza (1825) e Ancona (1830). Nunca vi essa ópera ao vivo, e só a tenho em disco com o final trágico, mas leio no Rossini, de Fernando Fraga (um dos Guías Scherzo de compositores), que Otelo acredita na jura de inocência de sua esposa, ambos cantam um dueto que ele reciclou de outra ópera sua, Armida, e vem a notícia de que Iago confessou seus crimes antes de morrer castigado pelo céu!! Os solistas se unem cantando o amor...
Nada de parecido aconteceu com o Otello de Verdi.
Inúmeros exemplos, apesar das limitações do público. Quase escolhi o feminicídio em Wozzeck, seja o de Alban Berg, mais famoso, seja o de Gurlitt, mas preferi outra ópera, talvez mais indicada, porque nela ocorrem torturas, tentativa de estupro, execução (extrajudicial) e suicídio, e o ponto mais forte talvez seja a cena do apunhalamento.
Isto é, a Tosca, de Puccini, que estreou em 1900. A origem é uma peça de Sardou que nunca vi ou li, e que parece ter realmente ficado esquecida. A história se passa em roma durante as Guerras Napoleônicas. Os revolucionários republicanos querem se aproveitar do momento político favorável. Angelotti, um deles, foge da polícia, entra na igreja, pede refúgio a seu colega, o pintor Mario Cavaradossi. Ele tem que se esconder logo, pois sua namorada, a cantora Floria Tosca, que é muito ciumenta, conta tudo para o padre na confissão.
O chefe da polícia, o Scarpia, chega lá com seus agentes, que descobrem as pistas de que Angelotti (que não tomava boas precauções de segurança) esteve lá e decide interrogar Cavaradossi e usar o ciúme de Tosca em seu favor. Ele quer levar o pintor ao cabresto, a cantora, que ele deseja, a seus próprios braços. No segundo ato, ele manda interrogar Cavaradossi com tortura e faz Tosca escutar os gritos (vídeo com Montserrat Caballé, José Carreras como Cavaradossi e Ingmar Wixell interpretando Scarpia, coma  regência de Colin Davis). Ela não aguenta a tortura psicológica e revela onde Angelotti se esconde. O supliciado é liberado um momento, Scarpia, sempre cruel, revela que Tosca delatou, mas não há tempo para uma crise do casal: com a notícia repentina (é Puccini, tudo muda muito rápido) de que as tropas napoleônicas venceram, o doido do tenor canta "vitória" (nesta produção, o público aplaude Giacomo Aragall neste ponto; Eva Marton interpreta Tosca, e Scarpia continua com Wixell) e desafia Scarpia, que manda seus capangas o encaminharem para execução. Agora, a vida dele é o preço que ele cobrará de Tosca; dizem que ele é corrupto, mas de mulheres belas ele quer outro preço. Mas não lhe fará violência, quer que ela se oferte a ele... Não adianta sair e recorrer à Rainha, ele já estará morto quando chegar o perdão... Ela reza, dizendo que viveu da arte, viveu do amor, por que Deus a recompensa assim? Ela acaba cedendo, ele dá ordens de que façam uma execução "simulada" como no caso de Palmieri. Ficam a sós, ela exige um salvo-conduto antes para deixar a cidade, vê uma faca na mesa, ela o apunhala e mata: "Este é o beijo de Tosca!"; "Morto por uma mulher!"; "Morreu; agora, o perdoo."; "E diante dele tremia toda Roma" são algumas das frases que ela grita, canta, murmura, fala, de acordo com o talante das intérpretes.
Puccini faz realmente o público torcer pela heroína, que consegue matar seu algoz. Eva Marton, na Arena de Verona, chama Scarpia para si antes de apunhalá-lo, é divertido. Ela é maior do que ele (no tamanho e na voz, deve-se notar), o assassinato é bem verossímil; depois, fica horrorizada com o que fez. Maria Callas, em Paris, no concerto de 1958, tem uma sacada genial, que Sérgio Britto gostava de destacar: ela debocha de Scarpia, depois de tirar o salvo-conduto das mãos do corpo na última frase. Roma tremia diante dele, mas agora ela o matou...
Pena que, no final, não dá certo: a execução acaba acontecendo de verdade (Scarpia a tinha enganado), descobrem que ela o matou e ela acaba se suicidando para não ser presa, não sem antes convocar o policial para o julgamento divino!
Joseph Kerman, em A ópera como drama, escreveu um ensaio maldoso sobre essa ópera, comparando-a com um filme de serra elétrica. Ele mesmo reconhece que deixou de lado a grande metalinguagem desta obra; outro ponto de que ele não se dá conta é o de que a violência que ocorre não é gratuita, ou não tem o fim de apenas chocar: ela encena determinado regime político com exatidão. A ópera já se inicia com o motivo musical de Scarpia, isto é, do Estado.
Scarpia reúne em si diferentes autoridades: a que prende, a que acusa, a que condena, a que executa. No Brasil, quem sabe chegaria a ministro da justiça? Uma situação bem Antigo Regime, com toda essa concentração de poderes, incompatível com o Estado de direito, que é incompatível também com a atuação do juiz como chefe da acusação, conforme as reportagens da Vaza Jato. Vejam aqui o sumário que The Intercept fez, uma novela sobre o fim da democracia no país: https://theintercept.com/2020/01/20/linha-do-tempo-vaza-jato/
Um dos elementos interessantes de Tosca é mostrar como esse poder tirânico está imbrincado com a religião. O primeiro ato se passa na Igreja, a ária de Tosca, uma personagem católica, é uma oração, no começo do interrogatório de Cavaradossi ela está a executar uma cantata religiosa. No fim do primeiro ato, Scarpia combina sua ode à tortura e à lascívia com um Te Deum. A destruição teocrática dos direitos dos povos indígenas e das políticas para as mulheres pela ministra Damares Alves, ou a indicação do presidente criacionista da Capes, resultado da aliança entre os empresários do ensino privado com as igrejas cristãs não são simples diversionismos, mas elementos fulcrais deste novo velho autoritarismo.
Que tenhamos algo do gênio musical e dramático de Maria Callas para lidar com isso: https://www.youtube.com/watch?v=D7akvJ5_Kyg


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito (Moisés e Arão, de Schönberg)
Dia 16: Ópera e natureza (Lohengrin de Sciarrino)
Dia 17: Ópera e desastre (Idomeneo, de Mozart; Peter Grimes, de Britten)
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Uma ária favorita: "Casta diva", da "Norma", de Bellini (30 dias de ópera: Dia 9)

O tópico é muito difícil. Há diversas árias geniais, como escolher? Tantas preciosidades, trata-se de um verdadeiro embarras de richesses.
Adotarei a definição do Dicionário Grove da ária como uma canção que pode ser destacada de seu contexto. Tradicionalmente, trata-se de um momento em que o público se concentra para ouvir com mais atenção, seja para aplaudir, seja para vaiar, e o cantor está só, podendo contar (ou não) com o apoio do(a) regente, da orquestra ou, às vezes, do coro.
Ela pode adotar a forma de uma breve serenata, como a de Don Giovanni, "Deh vieni alla finestra", mais uma tentativa de sedução na ópera de Mozart: https://youtu.be/i7Teu60nNYc?t=6063
A ária pode corresponder a uma longa cena, como "Scherza infida", do personagem título da ópera Ariodante, de Haendel; o príncipe julga-se traído por sua amada Ginevra (mas tudo não passa de   uma conspiração, ela é fiel) e lamenta o amor aparentemente perdido: https://www.youtube.com/watch?v=ihuqZmfOA1M
Algumas delas se tornaram tão célebres que foram transportadas para outros contextos; cinema, televisão, propaganda. Muitos já ouviram o Barbeiro de Sevilha anunciando que é o "faz-tudo" da cidade de Sevilha na ópera homônima de Rossini: https://www.youtube.com/watch?v=WxFOQVsE2Oo; ou o libertino Duque de Mântua acusando as mulheres do que ele realmente é, volúvel (mobile), no Rigoletto de Verdi: https://www.youtube.com/watch?v=SKmpFupDtZ0. Muito conhecido é o grito de guerra da Valquíria na ópera de Wagner: https://youtu.be/YC6f8FbnVMQ?t=27. Quem não ouviu uma cigana na Espanha explicando, em um ritmo de dança, a Habanera, sua própria visão do amor, na Carmen de Bizet: https://www.youtube.com/watch?v=oGqRADwPDHA; ou a Rainha da Noite exigindo da filha que assassine Sarastro em A flauta mágica, de Mozart: https://youtu.be/JzFi-7H9TKs?t=119?
O deslocamento pode ser tão radical que a saudação de um rei persa para uma bela árvore (o "Ombra mai fu" do Serse, ou Xerxes, de Haendel), pode, em mais um abuso teocrático, ser tocada como se fosse uma oração cristã; nesta apresentação pode-se ver o original: https://www.youtube.com/watch?v=PbfGLpDdXPY
Com a influência de Wagner e a tentativa da melodia infinita, muitos compositores passaram a evitar a forma da ópera de números isolados, e a forma da ária declinou. Apesar disso, ela não desapareceu, compositores contemporâneos continuam a investir nesses momentos em que as habilidades do cantor são realçadas.
Certa ópera barroca, pelo contrário, tornou-se o reino da ária e do cantor (como em Vivaldi), que aparecia em cena, fazia seu solo e ia embora. Os cantores interpretavam certas árias que lhe caíam bem em qualquer ópera, pois eram seus sucessos pessoais. Nesse contexto, em que a unidade da obra não era realmente o objetivo da apresentação, a diferenciação entre os solos obedecia, em princípio, mais à lógica dos afetos expressos do que a uma caracterização específica dos personagens.
Em Mozart, no Classicismo, não é assim: as árias do Fígaro, o servo, não se confundem com a do Conde, embora eles possam ser cantados pelo mesmo intérprete. No entanto, ainda em compositores que vieram depois, pode-se ouvir o mesmo tema empregado em óperas de caráter diferente (cômico e sério) e para personagens bem diversos: por exemplo, uma jovem apaixonada em Sevilha e uma rainha inglesa, segundo a música de Rossini. Nesses casos, a diferenciação entre os personagens e os afetos deve ser obra dos intérpretes.
O compositor pode indicar muito pelo caráter das árias; basta a audição para descobrirmos que a jovem Marzelline, filha do carcereiro, não tem chance alguma com Fidelio, ajudante de seu pai, porque lhe é dada uma ária estrófica bonita, mas simples (https://youtu.be/G8haA-lpBoo?t=701), enquanto Fidelio (que é, na verdade, uma mulher, Leonore) tem um recitativo heroico que antecede uma ária composta, com a primeira parte mais lenta, e a segunda, mais rápida, que se eleva perigosamente a um si agudo.
Leonore travestiu-se para salvar o marido injustamente preso. Quando ele, Florestan, aparece na solitária em que foi confinado, ele também canta uma ária composta e com agudos difíceis na segunda seção, mais rápida. Sabemos, então, que ficarão juntos, pois já tinham sido unidos pela música de Beethoven!
A ária para esta nota, além de ser uma das minhas favoritas, escolhi-a por ter sido descrita brevemente pelo personagem principal de meu romance Gravata lavada (Patuá, 2019), Mariano, no segundo parágrafo:


Nesse capítulo, um grupo monta uma peça que corresponde a uma adaptação do poema Indulgência plenária, de Alberto Pimenta, sobre a vida e o assassinato de Gisberta Salce, transexual brasileira que vivia na cidade do Porto.
Na peça, os atores interrompem a ação para que a diretora peça um depoimento da plateia. Rosa, que estava a assistir, toma a palavra, a página começa com o meio de sua fala. Depois do depoimento, os atores retomam a ação, e uma cantora interpreta a "Casta diva" (ária que quase deu título ao livro de Pimenta). Mariano Miro, o protagonista, descreve resumidamente a ária, que, de fato, começa e termina em quietude. O que ele não diz é que ela é muito difícil de cantar...
A ária ocorre no primeiro ato da ópera Norma, de Vincenzo Bellini e do libretista Felice Romani. Os gauleses querem fazer guerra contra os invasores, os romanos. Norma, a grande sacerdotisa, opõe-se; em transe profético, revela que Roma não será derrotada por eles, e sim cairá por causa de seus vícios, cairá consumida. Depois desse recitativo dramático e impressionante, ela ordena a paz e ora para a Lua, a casta deusa, para que ela derrame a paz e tempere os corações ardentes.
Depois de terminada a ária, sabemos que ela está preocupada com a ausência de Pollione, o militar romano por quem ela se apaixonou, de quem teve duas crianças, e que é a razão para que ela não queira a guerra contra Roma... Como Pollione aparece antes dela na ópera, já sabemos que ele está de olho em uma sacerdotisa mais jovem, Adalgisa, e quer levá-la para Roma. Teme, porém, a reação de Norma.
Aqui, pode-se ver Montserrat Caballé, a grande cantora espanhola, falecida em 2019, interpretando a ária em Orange, em noite de ventania que deixa tudo mais poético (as roupas parecem flutuar) e no seu inigualável auge vocal: https://www.youtube.com/watch?v=tqUi1T7hYQw. O solo da flauta expõe a melodia antes de o soprano começar a cantar, procedimento comum na ópera italiana do início do século XIX (a ópera estreou em 1831).
O coro entra na seção intermediária, aos 3'27", e participa da segunda estrofe, sempre dessa forma "esfumaçada", em contraste com os coros de guerra dessa ópera. Em 6'19", Caballé mostra seu fôlego na frase da cadência, que inclui uma escala cromática descendente. Depois de 7'10'', o público urra de satisfação, o que é completamente justo. Com um breve recitativo, Norma termina o rito. Ela ainda canta uma ária mais rápida (a caballetta "Ah bello a me ritorna") em que suspira, privadamente, pelo amor de Pollione. Os gauleses se dispersam.
Muito foi escrito sobre esta melodia tão nobre que Bellini criou para essa oração. Ela é típica desse compositor, inclusive na grande ornamentação da linha de canto (vejam quantas semicolcheias foram escritas só para cantar as duas primeiras palavras da ária!), e influenciou, entre outros, seu amigo Chopin.
Aqui, eu só desejava lembrar que esta música consegue falar mesmo para quem não conhece o contexto desta ópera, ou mesmo o próprio gênero operístico. Neste documentário com povos originários da Amazônia, mostram-se-lhes imagens da cultura dos brancos e, entre elas, Maria Callas cantando a "Casta diva" em Paris, em 1958 (para quem quiser ver esta apresentação: https://www.youtube.com/watch?v=KOfdIM6gD-U; é muito interessante, embora o coro da Ópera de Paris, que está com a partitura na mão, não saiba a música - o soprano chega a olhar para trás com o que talvez seja alguma irritação, mas ela não se perde).
Um dos indígenas observa que seu povo respeita muito quem tem coragem de cantar sozinho diante dos outros, e o público escuta essa solidão do cantor. Um jovem diz que não entende o que está sendo dito, esta música não é de sua cultura, mas ela emociona. Um senhor comenta que ela tem algo de sagrado.
De fato, ouviram-na bem, o que não se pode dizer sempre do público tradicional de ópera.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

sábado, 14 de dezembro de 2019

O primeiro disco de ópera: "La Traviata", de Verdi (30 dias de ópera: Dia 5)

O primeiro disco de ópera completa que tive foi uma gravação ao vivo de La Traviata, de Giuseppe Verdi e o libretista Francesco Maria Piave. Foi um presente de aniversário, eu mesmo escolhi. Já tinha visto o filme de Zeffirelli com uma cantora inadequada para o papel e vários cortes na partitura.
Eram dois long plays, discos de vinil, de uma coleção de óperas com Maria Callas, da EMI, que era vendida exclusivamente nas antigas lojas Breno Rossi. Agora, podem ser achados por quase quatrocentos reais em sítios de compra na internet.
Tratava-se de gravação ao vivo feita em Lisboa, em 1958, com Franco Ghione regente a Orquestra e o Coro do Teatro Nacional de São Carlos. O então jovem Alfredo Kraus era o tenor e Mario Sereni, o barítono.
A EMI lançou esses discos porque não tinha uma Traviata de estúdio com Callas, embora tenha sido o segundo papel que a grande artista mais cantou. Ela havia gravado a ópera para a Cetra, sua primeira gravadora, em um disco não muito inspirado, e teria que esperar, segundo contrato, para fazê-lo novamente. A nova gravadora, no entanto, resolveu não esperar o soprano estar disponível e gravou em 1956 a ópera com Antonietta Stella e o time de artistas com quem Callas mais trabalhou em estúdio: o regente Tullio Serafin, o barítono Tito Gobbi e o tenor Giuseppe di Stefano.
Felizmente, restaram algumas gravações ao vivo, todas superiores à de estúdio de 1953, que foi vendida nas bancas na coleção dos 400 anos da ópera que a Folha de S.Paulo vendeu no Brasil. Na Cidade do México, em 1951 (com um som mais precário) e 1952; em Milão, 1955 e 1956 (com um som precário); Lisboa (1958) e Londres (1958). Ela cantaria o papel pela última vez em Dallas, naquele mesmo ano, em montagem do Zeffirelli que deixava a Violetta no palco desde a abertura, deitada; toda a ação ficava em retrospectiva antes do morte no terceiro ato; é provável que tenha sido parecida em espírito com o filme feito nos anos 1980.
Em Londres, ela estava doente e isso se ouve especialmente no fim do primeiro ato. Dito isso, ela ainda continuava vocalmente mais firme do que, por exemplo, a Stella ou a Renata Tebaldi, e a interpretação é de chorar.
La Traviata, obra de 1853, é uma das óperas mais populares, e com razão. O Brinde do primeiro ato é conhecidíssimo (nesta ligação, a partir de 9'37"). A história vem de A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. Violetta Valéry, a "transviada", é uma cortesã; o jovem Alfredo Germont, em uma festa na casa dela, em que tem um momento de fraqueza (está com tuberculose), declara-lhe seu amor. Ela parece não levá-lo muito a sério, mas fica perturbada; ela tenta se livrar dessa nova emoção com várias subidas até o ré bemol (e, nesta gravação, também um mi bemol não escrito pelo compositor) na difícil ária "Sempre libera", em que, toque genial de Verdi, ouve-se a voz do tenor, nos bastidores, repetindo a declaração de amor. Nesta gravação, Kraus acrescenta um dó agudo também não previsto. No segundo ato, Violetta vive com Alfredo numa casa dela afastada da cidade. Ele vive do dinheiro dela, que está a acabar. ela resolve vender todos seus bens. O tenor canta sua paixão, até que descobre, pela criada, Annina, da transação que sua amada resolve fazer. Ele tem mais um solo em que canta seu remorso, cortado nesta apresentação (nesta ligação, pode-se ouvir toda a cena com Nicolai Gedda: https://www.youtube.com/watch?v=lYajIejuCgw). Violetta aparece e estranha a ausência de Alfredo. Chega um senhor; ela pensa que se trata dos negócios, mas é o pai de Alfredo, Giorgio Germont. Ele quer que ela deixe o filho e julga que ela o está explorando. Quando ela mostra que é o contrário, ele fica muito surpreso e acaba por se convencer de que ela o ama. No entanto, ele continua a querer a separação por causa dos... dois filhos. Ela não sabia da irmã de Alfredo; o escândalo do amor dele com Violetta impediria que a jovem se casasse; ademais, Giorgio acrescenta cruamente, Alfredo iria se cansar desta ligação, que não havia sido abençoada pelo casamento... Ela cede, então. Mas pede que ele conte o sacrifício a Alfredo depois de ela morrer. Esta longa cena entre soprano e barítono está entre as melhores de Verdi, que escreveu tantos diálogos como este, que fazem o drama tomar nova direção. Giorgio vai embora, ela escreve uma carta para Alfredo; ele chega, ela assusta-se, não lhe mostra o que escreveu, e suplica para que ele a ame, cantando um tema já ouvido na abertura, agora em um tempo mais largo que o deixa mais intenso. Ela vai embora - vai para a festa de Flora e o deixa; ele o descobre porque lhe entregam a carta depois que ela já se pôs a caminho. Subitamente (como sempre em Verdi) o pai aparece e pede para que ele retorne para a Provence. O filho, porém, decide ir à festa e recobrar Violetta. O pai canta uma caballetta mais fraca ainda do que o canto de remorso do tenor, cortada nesta récita (nesta ligação, pode-se ver esse trecho a partir de 5'17", com Cornell MacNeil). Na festa, depois de uns coros de divertimento, Violetta está com o novo namorado, o Barão Douphol. Chega Alfredo. Depois de um desentendimento, ele a humilha publicamente, jogando-lhe todo o dinheiro que ele acabou de ganhar no jogo para pagar o que ela gastou com ele; o pai de novo chega subitamente e passa um pito no filho. Violetta recobra os sentidos e canta um lamento, que o coro acompanha; o Barão e Alfredo duelarão. No último ato, ela está em casa, porém arruinada e em estado terminal da tuberculose. O médico diz a Annina que ela só tem mais algumas horas. Violetta decide dar o pouco que lhe resta aos pobres. Lê uma carta do Giorgio, que diz ter revelado tudo a Alfredo; no duelo, o Barão ficou ferido, "porém melhor". Ela exclama que é tarde, que eles não chegam nunca, e dá adeus ao passado. Alfredo chega e eles cantam que deixarão Paris para a saúde dela restaurar-se. Ela tenta por as luvas para sair, mas vê que não consegue mais. Percebe, enfim, que morrerá jovem. Chega Giorgio, e até o velho senhor percebe que ela está morrendo. Violetta fica feliz por falecer cercada de seus únicos entes queridos e despede-se. Subitamente, sente-se melhor; cessam os espasmos de dor; ela cai inerte após a declaração de que retorna a viver.
A denúncia da hipocrisia social e a glorificação da "transviada" só poderiam realmente inspirar Verdi. Ele mesmo, em sua vida pessoal, não era uma homem convencional, como o atesta sua vida com Giuseppina Streponi. Ambos acabaram casando depois de muitos anos juntos. Em Londres, o London Spetactor, em 1856, deplorou a escolha de uma história de um romance infame francês, cuja heroína é uma prostituta, e criticou Verdi nestes termos: "Verdi's music, which generally descends below his subjects, can in this case claim the ambiguous merit of being quite worth the subject"! Sobravam também impropérios para as damas da aristocracia que lotavam a Ópera sem aparentemente perceber que a obra era um ultraje... Esta crítica está reunida na divertida coleção de comentários ferinos ou absurdos ou apenas imbecis Lexicon of Musical Invective: Critical Assault on Composers since Beethoven's Time, de Nicolas Slonimsky.
Este tópico, porém, diz respeito à gravação. Esta apresentação de 1958 apresenta alguns cortes que se costumavam fazer de números inteiros, os menos interessantes da partitura, que assinalei, e também de repetições na cavatina do primeiro ato do soprano e na ária do terceiro ato. Eu não vejo perda musical nisso, mas corte de redundância, especialmente da melodia que o tenor já havia exposto e que não precisamos ver o soprano reiterar duas vezes (neste vídeo, com Natalie Dessay, pode-se ver a repetição a partir de 3'40''). Quanto à ária do terceiro ato, a repetição torna-a, além de repetitiva, menos adequada ao estado terminal da personagem. Vejam Renée Fleming cantar esta segunda estrofe a partir de 4'00''; a segunda vez enfraquece os gestos da primeira.
Entendo, contudo, que se deseje ouvir toda a música, com seus pontos mais fracos e suas redundâncias. Para isso, esta gravação de 1958 não servirá. O que ela traz é a maior intérprete do papel em uma boa regência de Franco Ghione e cantores de qualidade, como Alfredo Kraus, que gravaria a ópera algumas vezes, sempre muito bem (mesmo em 1993, com Kiri te Kanawa, 35 anos depois desta apresentação!), e Mario Sereni.
A enorme carga emocional da música de Verdi recai sobre a heroína; o espetáculo depende principalmente da cantora que interpreta Violetta, que deve enfrentar significativos desafios musicais e dramáticos. Verdi faz as exigências vocais mudarem de acordo com as transformações do caráter da personagem: no primeiro ato, a cortesã com suas cascatas de agudos e escalas pode ser cantada por um soprano ligeiro. O papel fica bem mais pesado no segundo e no terceiro ato, no entanto. Callas foi uma das poucas que soava firme no "Sempre libera" do primeiro ato, no si fortíssimo do "Amami Alfredo" do segundo, e na sua voz de peito na declamação de "a niuno in terra salvarmi è dato" do terceiro.
Os discos que comprei na década de 1980 tinham um som precário, que fazia a orquestra parecer uma bandinha. Lembro que Antonio Hernández, no Globo, criticou a gravação, que vinha de fitas de Alfredo Kraus, por essa razão. Depois, foram encontradas no Teatro as fitas da gravação original da récita, e a orquestra soa muito melhor nelas. A Myto lançou-as, é melhor do que o disco da EMI ou da Warner.
Pena que foi a única vez que Maria Callas cantou em Lisboa; além da gravação que ficou mítica e gerou uma peça (de Terrence McNally, The Lisbon Traviata; nunca a vi nem li), o Teatro registrou em vídeo alguns minutos da apresentação, os únicos momentos filmados de Callas cantando esta ópera: https://www.youtube.com/watch?v=pM11aNfOW7Y
Uma anedota para terminar este pequeno texto: tive um amigo na adolescência que considerava ópera um mero passatempo da burguesia europeia decadente que deveria ser desprezado. Uma vez, ele chegou à casa de meus pais e eu tocava essa Traviata, e a voz de Callas soava perturbadora na ária "Sempre libera", encarnando o conflito interior da personagem de uma forma totalmente original. Ele parou para ouvir, muito atento; quando terminou o lado do LP, quis saber o que era.
Acabou estudando canto lírico, o que nunca fiz.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera
Dia 6: Uma despedida presenciada
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

sábado, 7 de dezembro de 2019

A ópera de hoje: "La Bohème" de Puccini (30 dias de ópera: Primeiro dia)

Escrevi "La Bohème" de Puccini e não "La Bohème", de Puccini, com vírgula, porque existe outra ópera com o mesmo título, de Leoncavallo, escritas na mesma época.
Leoncavallo ofereceu o libreto que havia escrito a Puccini, que não se interessou pelo texto, mas certamente pelo tema, pois decidiu escrever a ópera com outros libretistas, Luigi Illica e Giuseppe Giacosa. Leoncavallo sentiu-se traído e musicou o próprio libreto. A obra de Puccini estreou um ano antes, em 1896, e sempre foi mais popular do que a do autor de I Pagliacci. Eu mesmo nunca vi a ópera de Leoncavallo montada. Acabo de pesquisar no portal OperaBase e não há nenhuma montagem dessa ópera desde agosto de 2016 (que foi até onde pude retroceder), e nenhuma programada para a temporada 2019-2020. Da outra Bohème, 105 só para esta nova temporada.
Para ouvir a partitura de Leoncavallo, que acho que só foi gravada integralmente duas vezes, sugiro esta ligação com o disco regido por Heinz Wallberg, com cantores excelentes. Algumas árias são ocasionalmente gravadas; vejam Caruso e "Io non ho che una povera stanzetta", ou, nos dias de hoje, no disco de verismo de Jonas Kaufmann, "Testa adorata".
É certo que nenhum desses trechos tem a riqueza da orquestração da ária do tenor na ópera de Puccini, tampouco sua inspiração melódica; vejam Roberto Alagna, bem jovem, gravando "Che gelida manina" e pedindo para o maestro Richard Armstrong esperar que ele termine o dó agudo... E depois ataca a frase seguinte em pianíssimo, o que é muito difícil depois daquele fortíssimo.
Veja-se que se trata bem do espírito de certa ópera italiana, a mais popular, com suas notas agudas (o que excita a audição daquele público que, musicalmente, só se interessa por halterofilismo vocal, no que Adorno chama de "fruição culinária" da música) e sua história que demanda as lágrimas.
Quando jovem, eu não gostava muito da Bohème por causa disso, embora apreciasse bastante algumas das árias. O sucesso impressionante da ópera de Puccini, no entanto, justifica-se pela música, que é muito bem construída, e por causa do libreto, que parte da comédia romântica do primeiro e do segundo atos para a seriedade do terceiro ato, ainda moderada com a briga cômica entre Musetta e Marcello, até o quarto, em que a tristeza reina até o fim, a morte de Mimì. A construção não soa artificial porque a doença desta personagem apresenta-se desde a sua entrada, ouve-se no seu tema característico. Suas primeiras frases, tanto no texto quando na melodia, representam a falta de fôlego causada pela subida da escada.
O libreto, no qual Puccini interveio, é muito bem estruturado. No fim, a felicidade amorosa revelou-se um intervalo entre a pobreza e a morte. Todos os protagonistas, os boêmios, são pobres e, se isso gera boa parte das piadas do primeiro e do segundo ato (com o calote no senhorio e a saída sem pagar a conta no Café Momus), também acarreta a necessidade de separação no terceiro e, no fim, a impossibilidade de tratamento e a morte no quarto. Nesta parte final, destaca-se uma rara ária de Puccini para a voz de baixo, "Vecchia zimarra", momento em que o personagem, o filósofo Colline, despede-se do casaco (que servia, além de proteger do frio, de estante, pois ele guardava seus livros nos bolsos) para vendê-lo a fim de conseguir dinheiro para os remédios de Mimì.
Por que a escolhi como "ópera de hoje", se é de do fim do século XIX? Estou a cantando agora na Associação Coral da Cidade de São Paulo. A produção estreou no dia 30 de novembro de 2019 e tem suas últimas apresentações nos dias 7 e 8 de dezembro.


Como ainda há um ou outro ingresso para comprar, e esta montagem do diretor Rodolfo García Márquez e do maestro Luciano Camargo ficou muito interessante (testemunharam-na uma crítica da estreia, por Danae Stephan, e da récita seguinte, quando os problemas da primeira noite foram resolvidos, por Carlos Eduardo Cianflone), indico ainda aqui a ligação para a compra: https://uhuu.com/evento/sp/sao-paulo/opera-la-boheme-8489
Por causa da produção, fui finalmente ler o livro de Henry Murger, Scènes de la vie de bohème, fonte das duas óperas. Um livro muito interessante que não se apresenta como romance, e sim como "estudos de costumes" da classe dos boêmios. A falta de linearidade deveria tornar a categoria romance estranha para este livro no século XIX, mas não para os leitores do século XX e de hoje. Os boêmios são artistas e intelectuais, ou aspirantes a tal, que... não jantam dois dias seguidos. No fim do capítulo VII, por exemplo, Rodolphe indaga a Marcel onde jantarão naquele dia; o amigo responde: "Saberemos amanhã".
No livro, claro, é tudo mais complexo. A personagem da Musette tem uma trajetória invejável e casa em excelentes condições financeiras. Antes do casamento, para se despedir do amado Marcel (com quem ela não contraiu matrimônio porque ele não tem dinheiro), ela passa algumas noites com os boêmios, no frio e na fome. Nada disso está na obra de Puccini. É na ópera, contudo, que podemos sentir o impacto da personagem quando cantava em restaurantes; o ponto alto do segundo ato é a antológica Valsa da Musetta (aqui, cantada por Anna Rita Taliento, numa produção com Luciano Pavarotti e Mirella Freni, que continuavam muito bem e haviam gravado a ópera décadas antes com Herbert von Karajan), uma versão pré-Frenéticas de "Eu sei que eu sou bonita e gostosa".
Nos anos 1950, três sopranos de muito destaque na época gravaram a ópera completa: Renata Tebaldi, com a regência de Tullio Serafin; Maria Callas, com o maestro Antonino Votto; Victoria de los Angeles na gravação de Thomas Beecham (esta última foi incluída na coleção recente "400 anos da Ópera", vendida nas bancas de jornais do Brasil, Argentina, Portugal e outros países). A revista inglesa Opera fez, naquela época, uma comparação entre as três interpretações; embora o periódico preferisse aquela regida pelo maestro inglês, comentava que a Mimì na voz de Callas (que nunca interpretou o personagem em cena) seria a única que poderia ter traído Rodolfo.
A traição fica no ar no terceiro ato; no fundo, a observação era um grande cumprimento à genial cantora grega, pois Mimì, de fato, traiu várias vezes o Rodolphe no livro. Puccini, na idealização da personagem operística, preferiu não deixar claras as aventuras amorosas da jovem florista. Como numa sociedade patriarcal as possibilidades profissionais e de ascensão social das mulheres são sempre limitadas, é compreensível que as mulheres pobres, como são as namoradas dos boêmios, procurassem parceiros que pudessem melhorar suas condições materiais. E esse não era o caso do poeta Rodolphe, tampouco do Rodolfo da ópera.
Henry Murger era também poeta, e no livro podemos ler os poemas de Rodolphe, um autorretrato, a Mimì. Na ópera o que há de mais parecido com isso é a declaração de amor do primeiro ato, que, no livro, bem como aquele episódio da mãozinha gelada, ocorre com outros personagens. Há muito mais poesia, pintura e música no livro. A morte de Mimì também é mais impressionante no romance: Rodolphe recebe a notícia de seu falecimento pelo estudante de medicina que dela cuidava; na semana seguinte, o estudante o encontra e lhe conta que ele se enganou, Mimì havia sido transferida de quarto, por isso ele estava vazio. No dia da visita, Rodolphe não apareceu, pois a julgava morta, e ela se preocupou com ele: se não havia aparecido, certamente deveria estar doente! Ao saber da feliz notícia, resolve tentar vê-la imediatamente, mas... Ela acabara de falecer, desta vez verdadeiramente, no dia anterior, sem que eles tivessem se encontrado mais uma vez.
Também Rodolphe era frágil em termos de saúde, e nisso também ele servia de autorretrato de Murger, que morreu repentinamente, no auge do sucesso, antes dos 40 anos (ele viveu de 1822 a 1861). No belo necrológio que Théodore de Banville escreveu ("Des souvenirs et des larmes"), que conheceu tanto o autor quanto a Mimì da realidade, e que era realmente encantadora, o escritor conta (eu traduzo) que "A primeira vez que vi Murger, há vinte anos, foi sobre um leito de hospital onde ele já expiava o crime de rimar não possuindo nem espírito de intriga, nem patrimônio, nem espírito de intriga, nem paixões políticas."
Depois ele o reencontrou "curado de sua doença, mas não da poesia". Os desvios que a ópera de Puccini opera em relação ao livro (e os desvios são sempre necessários nesse tipo de transplante, tendo em vista a mudança de gênero artístico) mantém este núcleo essencial: a poesia é um assunto mortal. Quando ouvimos os tão líricos temas de amor de Puccini retornarem na cena final de Mimì (que se torna, com estas reminiscências no leito de morte, mais poeta do que Rodolfo), sabemos que a poesia está neles, e que a personagem por eles está condenada. Banville diz algo parecido sobre o livro, ao esclarecer que a "cena do hospital, tão poderosa, era completamente verdadeira" e que Mimì, tendo misturado sua vida à dos poetas, acabou tendo a morte deles.
Ao personagem do poeta, resta apenas repetir, sem imaginação verbal nenhuma, o nome daquela que, tornando-se poesia ao incorporar os temas do lirismo pucciniano, não tinha mais condições de viver: "La storia mia è breve".


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida
Dia 3: Uma estreia assistida
Dia 4: A primeira ópera assistida
Dia 5: O primeiro disco de ópera
Dia 6: Uma despedida presenciada
Dia 7: Uma vaia dada
Dia 8: Um aplauso dado
Dia 9: Uma ária favorita
Dia 10: Uma abertura favorita
Dia 11: Um balé favorito
Dia 12: Um recitativo favorito
Dia 13: Uma risada favorita
Dia 14: Um coro favorito
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã