O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Um silêncio favorito: "Moisés e Arão", de Schönberg (30 dias de ópera: Dia 15)

A pausa é um dos elementos constitutivos da música. Alguns escreveram peças somente com pausas, como Schulhoff, mas se trata de casos extremos em que a arte se transforma em outra coisa. Uma ópera cuja música só tivesse pausas seria outra forma de teatro, e não ópera.
No entanto, as pausas podem ter um papel cênico muito importante na ópera. Em La Traviata, de Verdi, depois de um longo dueto com o pai de seu amado, Violetta resolve deixar Alfredo e aceitar o convite para a festa de Flora. A música se acalma. Violetta chama sua criada, Annina, para que leve a resposta para Flora; ela não entende o que está ocorrendo, e a patroa lhe diz, "Silenzio!", e que parta. Pausa. Violetta resolve então fazer o mais difícil, escrever para o próprio Alfredo. Ela será flagrada nessa operação por ele.
Eu vi em São Paulo esta produção com o mesmo soprano, a argentina Jaquelina Livieri, cantando Violetta; ela faz uma boa pausa (o maestro tem que esperar a cantora nessa parte) antes de ter a coragem de escrever o bilhete. Com apenas o áudio, pode-se apreciar como Callas, em Londres, faz sua voz vir do silêncio: https://youtu.be/94bAH4Pdm10?t=844
Em Wagner, esse tipo de pausa dramática pode representar o suspense. O falecido escritor Victor Giudice, em um curso que deu sobre o compositor e a que eu assisti, chamou a atenção para o uso do silêncio nesta passagem. No Lohengrin, há pouco enxovalhado pelo vídeo com plágio de Goebbels feito pela secretaria especial  de cultura do governo Bolsonaro, o silêncio antecede a chegada do protagonista. A nobre e herdeira Elsa é falsamente acusada por um nobre que deseja ficar com suas terras, Telramund, de ter matado o próprio irmão. Ele a acusa publicamente e ela pede um combatente para lutar por ela no "julgamento divino", ou seja, um duelo. O arauto chama: https://youtu.be/iTdQEszNrvY?t=1598
Ninguém responde. Elsa pondera que o cavaleiro pode estar longe e não ter ouvido, ele é chamado novamente: https://youtu.be/iTdQEszNrvY?t=1856
O coro comenta que Deus julga com o silêncio. No entanto, Elsa, com o coro feminino, faz um apelo a seu Deus. O cavaleiro finalmente vem, com um cisne. Daí segue a história de vitória do cristianismo sobre o paganismo.

Outra coisa é criar uma ópera sobre a incomunicabilidade e que se encaminha em direção ao silêncio. Esse é o caso, penso, de Moisés e Arão (Moses und Aron), de Arnold Schönberg, que nunca tive a felicidade de ver ao vivo, ao contrário da Traviata e do Lohengrin.
O judeu e modernista Schönberg, que teve de deixar a Europa para fugir da barbárie nazista, que proibiu suas obras, compôs a ópera entre 1930 e 1932, já em sua fase dodecafônica, antes do exílio nos Estados Unidos, em reação ao antissemitismo na Alemanha. Ela somente estreou depois de sua morte, em 1954.
Moisés, uma voz grave masculina, se expressa em Sprechgesang; ele fala, porém tem algumas notas com a altura determinada. Arão, papel de tenor, canta - é a mensagem deste, portanto, que é entendida, não a de Moisés. O Coro tem que fazer ambas as coisas.
A necessidade de uma imagem do Deus - que culmina no episódio do bezerro de ouro - é apresentada já no modo de produção vocal, e o canto, como forma de representação, é assim criticado. Porém, de que forma poderia se fazer teatro, ópera, dessa forma, rejeitando a possibilidade de representar? Apenas por um fracasso que, neste caso, traduz-se no silêncio final após a exclamação, "Palavra, tu, palavra, que me faltas".
Esta montagem genial de Willi Decker, de 2009, com o barítono Dale Duesing e o tenor Andreas Conrad e o regente Michael Boder, faz Moisés descer da plateia, dividida em dois lados, um de frente para o outro, espelhada: https://www.youtube.com/watch?v=t0HPN8830Ls&t=5116s. As plataformas sob a plateia se movem, abrindo o palco. Os cantores estão com microfones, provavelmente para a gravação do DVD. Moisés diz que Deus é irrepresentável, mas Arão desenha a estrela de Davi no chão com o bastão de Moisés: https://youtu.be/t0HPN8830Ls?t=653
O povo recebe folhas em branco e se revolta: https://youtu.be/t0HPN8830Ls?t=1505 Moisés se queixa de que suas forças estão no fim. Arão discursa e o povo entende.
O coro canta que finalmente eles serão livres: https://youtu.be/t0HPN8830Ls?t=2722. Partirão para a Terra Prometida. Mas, no começo do segundo ato, uma vez que Moisés ainda não voltou com as Tábuas da Lei, o povo pergunta "Onde está Moisés? Onde está o líder?": https://www.youtube.com/watch?v=t0HPN8830Ls&t=1020s
É interessante a solução que encontram para a aparição do Bezerro; primeiro, projetado: https://youtu.be/t0HPN8830Ls?t=3657; depois, em três dimensões: https://youtu.be/t0HPN8830Ls?t=3788
Arão escreve "Deus" (Gott) no Bezerro: https://youtu.be/t0HPN8830Ls?t=4603. O povo passa a escrever na estátua palavras como Macht (poder), Liebe (amor), Mut (coragem), Gnade (piedade) e no chão. Depois do sono, as virgens se desnudam, começam a orgia e os sacrifícios humanos. Schönberg cria frases líricas no meio da orgia. Por sinal, que artistas, os do ChorWerk Ruhr! A música é dificílima e eles ainda atuam muito bem!
Moisés chega carregando as tábuas da lei. Vendo o que ocorreu, pergunta a Arão: "O que você fez?". Segue a discussão final entre os irmãos, que termina com a frase de Moisés: "O Wort, du Wort, das mir fehlt". É lindo demais.
Adorno, em Quasi una fantasia (cito a tradução de Eduardo Rocha publicada pela Unesp), comenta sobre esta passagem:
A contradição insolúvel que Schoenberg tomou como mote de seu projeto e é confirmada por toda a tradição do trágico é também a contradição da própria obra. Schoenberg sentiu-se como corajoso e e elaborou o personagem de Moisés a partir de si mesmo, chegando ao limiar da autoconsciência de sua própria audácia, da impossibilidade de construir o todo estético, cuja existência depende de um teor metafísico absoluto, sem que pudesse, ao mesmo tempo, se satisfazer com menos. De modo geral,as obras de arte significativas são aquelas que ambicionam um extremo: as que se destroem no caminho e cujas fraturas permanecem como cifras da verdade suprema que não conseguiram nomear.
Essa destruição corresponde ao silêncio e ele é a meta a que se destina essa obra, e não um simples momento dramático. Schönberg escreveu um terceiro ato com o julgamento e a morte de Arão, mas nunca o musicou. Creio que isso foi feliz, pois a ópera parece realmente não poder passar daquele ponto em que o verbo falta. Penso também que, por mais que o compositor pudesse se identificar com Moisés em alguns pontos, como a difícil recepção de sua música, ou da nova "lei" que trouxe com o método dodecafônico, ou no desabafo de Moisés de ter fracassado, de só ter logrado realizar mais uma representação, penso que esta ópera, esta magistral imagem, está do lado do Arão.


30 dias de ópera: um desafio político
Primeiro dia: A ópera de hoje (La Bohème de Puccini)
Dia 2: Uma montagem inesperada assistida (Tannhäuser, de Wagner, segundo Werner Herzog)
Dia 3: Uma estreia assistida (Erwartung, de Schönberg)
Dia 4: A primeira ópera assistida (Aida, de Verdi)
Dia 5: O primeiro disco de ópera (La Traviata, de Verdi, com Callas)
Dia 6: Uma despedida presenciada (Leonie Rysanek na Elektra, de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal)
Dia 7: Uma vaia dada (restos de Don Giovanni, de Mozart)
Dia 8: Um aplauso dado (Davi e Jônatas, de Charpentier, O Anão, de Zemlinsky)
Dia 9: Uma ária favorita ("Casta diva", da Norma, de Bellini)
Dia 10: Uma abertura favorita (de Tristão e Isolda, de Wagner)
Dia 11: Um balé favorito (de Castor et Pollux, de Rameau)
Dia 12: Um recitativo favorito (de O retorno de Ulisses à pátria, de Monteverdi)
Dia 13: Uma risada favorita  (de Platée, de Rameau)
Dia 14: Um coro favorito ("Danças Polovitsianas" de Príncipe Igor, de Borodin)
Dia 15: Um silêncio favorito
Dia 16: Ópera e natureza
Dia 17: Ópera e desastre
Dia 18: Ópera e assassinato
Dia 19: Ópera e orgasmo
Dia 20: Ópera e gênero
Dia 21: Ópera e negacionismo
Dia 22: Ópera e coragem
Dia 23: Uma ópera que se tornou poema
Dia 24: Uma ópera que se tornou livro
Dia 25: Uma ópera que se tornou filme
Dia 26: Uma ópera que se tornou música
Dia 27: Uma ópera que se tornou ópera
Dia 28: Uma ópera que se tornou protesto
Dia 29: Uma ópera que se tornou revolução
Dia 30: Uma ópera de amanhã

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