O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

sábado, 13 de outubro de 2012

Dançando diante do terror: 70 anos da morte de Schulhoff

Em agosto de 2012, fez setenta anos que o compositor tcheco Erwin Schulhoff (1894-1942) morreu, provavelmente de tuberculose, como prisioneiro dos alemães, no campo de concentração de Wülzburg. Uma das formas de assassinato nos campos de concentração era a carência ou a ausência de cuidados médicos. Ele ainda escrevia música no campo, e sua oitava sinfonia ficou inacabada.
Schulhoff nasceu em Praga; filho de família de comerciantes, revelou um talento precoce para a música, tendo sido logo elogiado por ninguém menos do que Dvorák. Mais tarde, chegou a estudar com Max Reger e Debussy (com quem não teve boas relações, por sinal).
A I Guerra Mundial, em que lutou, trouxe-lhe a consciência política e levou-o para a vanguarda e para a esquerda. De compositor tributário de um romantismo tardio, foi influenciado pela Segunda Escola de Viena (embora criticasse o elemento rítmico na música de Schönberg - o que Boulez, por exemplo, também faria poucas décadas depois), pelo dadaísmo, o jazz e o neoclassicisimo. Ele encarnou muitos aspectos dessa década. Mais tarde, no início dos anos 1930, converter-se-ia ao comunismo, o que também mudou sua linguagem musical, que ficou mais próxima do realismo socialista.
Chegou a naturalizar-se cidadão soviético, o que o salvou quando a Tchecoslováquia foi invadida pela Alemanha - era cidadão de Estado que havia pactuado com os alemães. A invasão alemã na URSS, no entanto, selou seu destino: ele não tinha conseguido emigrar para o seu novo país: tivera a invasão acontecido meses depois, ou a burocracia soviética tivesse sido menos lenta, a história teria sido outra: ele já havia mandado suas partituras por mala diplomática. Preso em 1941, foi mandado para um campo de concentração de Wülzburg,e não para o de Terezín, campo para que foram conduzidos outros músicos judeus (como Viktor Ullmann, Ilse Weber, Gideon Klein), pois aquele era o destino dos cidadãos soviéticos aprisionados. Sobreviveu pouco tempo ao terror nazista.
Nesta ligação, pode-se ler uma biografia do músico: http://orelfoundation.org/index.php/composers/article/erwin_schulhoff/ Nesta outra, uma lista das obras e uma discografia: http://claude.torres1.perso.sfr.fr/Schulhoff/index.html
No portal Musicologie, além de uma biografia com excertos de críticas da época, bibliografia ativa e passiva, e a lista das obras, há seis exemplos sonoros no fim da página: http://www.musicologie.org/Biographies/s/schulhoff_erwin.html
Este trabalho universitário da violinista e professora Eka Gogichashvili, embora se concentre na Sonata para Violino e Piano n. 2 (importante peça da música de câmara do século XX, que recebeu bela gravação no discoImpressões de infância", de Gidon Kremer e Oleg Maisenberg), fornece uma panorama musical e biográfico de Schulhoff bastante útil, e boa parte das fontes citadas não está mais em catálogo: http://etd.lsu.edu/docs/available/etd-1111103-195959/unrestricted/Gogichashvili_thesis.pdf
Nunca poderá ser devidamente avaliado o que se perdeu com o horror nazista,com as possibilidades de vidas e de mundos novos destruídas irremediavelmente. A música foi um só um dos campos dessas perdas. Penso em Gideon Klein, morto aos 26 anos. Em Hans Krása. Em Pavel Haas. Viktor Ullmann e sua obra-prima, escrita no campo de concentração de Terezín, O imperador de Atlantis, que satirizava o ditador alemão. E penso em Schulhoff.
Não me lembro mais como o conheci - mas foi no século XXI. Eu tinha poucos discos da série Entartete Musik, que a Decca criou na década de 1990 para lançar ou relançar música banida pelo nazi-fascismo. Os nazistas haviam feito uma exposição de arte "degenerada" ("entartete", daí o nome da coleção) para incluir tudo que tivesse influência de arte não europeia (como o jazz), autores esquerdistas, judeus etc. A Decca gravou obras de Schulhoff, mas eu não as vi na época. Creio que foi um disco de Gidon Kremer e sua Kremerata, para a antiga Teldec, que me chamou a atenção para o compositor.
Diversas faces adotou sua música: um romantismo tardio, que, após a I Guerra, cedeu espaço para o dadaísmo e para o jazz. A conversão ao comunismo fez com que o realismo socialista adentrasse sua música, nem sempre com bons resultados. Ele chegou a musicar o Manifesto Comunista - infelizmente, nunca ouvi esse oratório, de que há pelo menos uma gravação. A revista Grammophone julgou-o desigual, com marchas militares "desagradáveis", "fascistas", e um final "chato", que não estaria à altura das palavras do Manifesto. É possível que a crítica seja correta e ele tenha pisado a garganta de seu canto, como fez Maiakóvsky; nunca ouvi nada de bom que seguisse o oficialismo soviético.
[Nota: o disco não está mais disponível, mas a gravação do oratório está no YouTube; vocês podem julgar por si mesmos, apesar de a execução não ser exemplar: http://www.youtube.com/watch?v=dAujsDBZByA]
Como vários desses compositores que tiveram suas trajetórias interrompidas pelo nazismo, suas obras sofreram certo esquecimento - e as vanguardas que vieram após a II Guerra não tiveram interesse nesses compositores. No entanto, temos hoje em disco grande parte da sua obra. Alguns grandes nomes de hoje, como os violinistas Gidon Kremer, Daniel Hope e também Renaud Capuçon, o violoncelista Gautier Capuçon, a meio-soprano Magdalena Kozená, entre outros, gravaram-no.

Aconselho ouvi-lo. No trabalho de Gogichashvili, a autora ressalta como o jazz é usado para criar harmonias estranhas à música clássica ocidental, como o Dada está presente no elemento rítmico, mas também o barroco e o romantismo. No entanto, a escrita é tão segura que a música não perde coerência, testemunha-o esta gravação da exultante partitura:
https://www.youtube.com/watch?v=qwSw11HjmNw&feature=related
https://www.youtube.com/watch?v=SH7XJC8_1Vg&feature=relmfu

É possível ouvi-lo até mesmo sem som. Uma de suas peças dadaístas, 5 Pittoresken, de 1919, dedicada ao pintor dadaísta e antiburguês Georg Grosz, inclui um movimento todo feito de pausas, escrito décadas antes de uma tentativa semelhante de John Cage. Diferentemente deste último compositor, o ritmo de Schulhoff, como geralmente ocorre, é complicadíssimo; vejam este início da música:

Além das pausas, há notações não musicais, como sinais de exclamação, o que torna esta peça, de fato, um evento, apesar da falta de som. Esta interpretação é muito interessante:
 https://www.youtube.com/watch?v=3c5lRRaW4Jw

Ela sugere a mudez e o espanto da civilização diante desse futuro, imaginado como catástrofe. Grosz havia sido preso logo depois da I Guerra Mundial por sua participação na marxista Liga Espartaquista. Diferentemente de Cage, este silêncio é político, bem como o uso do ragtime e do maxixe nos outros movimentos das Pittoresken. Segundo Gottfried Eberle, nas notas do disco duplo que Margarete Babinsky gravou em 2008 do piano solo de Schulhoff, ele foi o primeiro compositor alemão (mas, na verdade, ele era tcheco!) a adotar uma forma de dança dos EUA.

Um exemplo marcante de seu estilo jazzístico é o oratório H.M.S. Royal Oak, de 1930, com libreto de Otto Rombach. Ele conta a história verídica de uma revolta ocorrida no navio britânico que fornece o título da peça. A rebelião foi causada por uma proibição de jazz a bordo! A Jazzrevolte der Matrosen (revolta-jazz dos marinheiros) é vitoriosa no fim, que explicitamente ataca o racismo. A luta por essa linguagem musical, considerada perniciosa pela direita por sua origem africana, era uma bandeira política contra a crescente onda do fascismo na Europa.
O navio foi o primeiro da marinha britânica a ser afundado pelos nazistas, já em outubro de 1939. 
A Ebony Band gravou a obra com a Cappella Amsterdam em um disco muito interessante que inclui peças de Weill e Toch. Não encontro na internet o oratório-jazz, mas temos a sonata que escreveu para saxofone e piano, a Hot-Sonate: http://www.youtube.com/watch?v=xEINXjjcsNw&feature=related 
Um dos trabalhos mais populares de Schulhoff, a Hot-Sonate é encontrada também como concerto para saxofone e orquestra, numa orquestração feita por Detlef Bensmann.
Bach estilizou as danças de seu tempo, Schulhoff fez o mesmo com as de sua época, incluindo o tango. Também a música brasileira recebeu esta leitura no Orinoco, de 1934. A gravação é da Ebony Band Amsterdam, regida por Werner Herbers, do segundo disco, desse grupo, dedicado apenas a Schulhoff:
 http://www.youtube.com/watch?v=H5uPJ5-ri1w&feature=related

As peças que mais gosto de Shulhoff são as de câmara, pois encontro nelas, em geral, mais ironia e surpresa. No entanto, aprecio muito sua única ópera, Flammen, ou "chamas", que pode ser ouvida integralmente nestas ligações:
Trata-se da gravação, feita em 1993 e 1994, da série Entartete Musik; como a maior parte dos discos dessa coleção, ela não foi relançada. John Mauceri é o maestro, com a orquestra Deutsches-Sinbfonie de Berlim e o RIAS-Kammerchor Berlin.
O tema da ópera foi-lhe sugerido por ninguém menos do que Max Brod, que lhe mostrou a peça em verso Don Juan do escritor tcheco Karel Josef Benes, que foi o próprio autor do libreto, traduzido por Brod para o alemão.
O libreto tem antes o caráter de um poema do que de um drama teatral tradicional, em razão de caráter estático e simbólico. Em comparação, o libreto de Pelléas et Mélisande é realista demais... A música de Schulhoff é capaz de criar os estranhos climas de cada cena, que oscilam entre o delírio, o sonho e o sexo, as ruas, os salões e o mundo das sombras.
Em Flammen, temos a encenação do amor impossível de La Morte por Don Juan. La Morte é capaz de matar mulheres seduzidas por ele, mas não o consegue matar, apesar de ele também desejá-la. Como em Don Giovanni de Mozart, na penúltima cena da ópera aparece a estátua do Comendador (que também em Schulhoff foi assassinado por Don Juan), mas ela o condena a viver eternamente. Deseperado, ele tenta suicidar-se, mas o tiro tem outro efeito, rejuvenesce-o. Antes, Dona Anna (que, nesta ópera, é esposa e não filha do Comendador), havia se suicidado, após o assassinato do marido, dizendo ao sedutor que ele era a própria imagem da morte.
A música de Schulhoff conserva toda sua variedade nesta ópera. Na terceira cena, por exemplo, enquanto uma freira e Don Juan fazem sexo, La Morte vai para o órgão e toca um Gloria, que se transforma num foxtrote
No final, indaga La Morte, sem resposta, "Chamas do amor e da morte, quando finalmente se unirão?" No disco, ela é muito bem interpretada pela meio-soprano Iris Vermillion; os outros personagens femininos (La Morte e as mulheres que Don Juan seduz têm a mesma voz) foram enregues a Jane Eaglen, aqui bem dentro dos seus limites vocais, antes de cantar Brünnhilde e Isolde no Metropolitan Opera House e em outros teatros. O protagonista é o tenor Kurt Westi, que soa adequado.

Antes de terminar esta breve nota, lembro que Schulhoff foi descrito como um pianista excepcional, atento aos compositores contemporâneos como Berg, Schönberg e Webern. No entanto, ele escreveu com fluência para outros instrumentos, como a flauta (um caso é o Concerto Doppio para flauta e piano, de estilo neoclássico), para violino e para quartetos de cordas. Mais do que os quartetos, no entanto, indico o Sexteto de Cordas, de 1924, dedicado a Poulenc, mas que lembra (devido aos momentos sem tonalidade definida) que ele foi contemporâneo, embora não seguidor, da Segunda Escola de Viena. Há um disco duplo da Kremerata dedicado a Chostakovich e a Schulhoff com esse intenso Sexteto, bem como o Duo para violino e violoncelo e os Estudos de Jazz para piano.
Kremer não gravou, pelo que eu saiba, a Sonata para violino solo, no entanto Daniel Hope o fez duas vezes: no disco "Forbidden Music", com peças de Gideon Klein e Hans Krása (e um Kaddish) interpretadas Philip Dukes e Paul Watkins, e no disco "Terezín", da meio-soprano Anne Sofie von Otter, que canta com o barítono Christian Gerhaher canções compostas nesse campo de concentração.
A gravação de Ivan Ženatý é mais difícil de achar em disco, porém está na internet: https://www.youtube.com/watch?v=IZO7rjJJH-8&feature=relmfu

Nessa peça, sente-se a imensa vitalidade da música de Schulhoff.  Benjamin Ivry ressalta essa qualidade, sustentando que não é adequado lembrar de um compositor pela forma como ele morreu - e é o que se faz geralmente com nomes como Ullmann, classificados como músicos do Holocausto: http://forward.com/articles/14601/defined-by-quality-/
No entanto, não se pode reduzir a obra desse músico à alegria. Sua vocação para a derrisão era notável. Um exemplo foi a Symphonia Germanica, de 1919, mas estreada postumamente pela Ebony Band Amsterdam; ela satiriza crualmente o hino alemão e o heroísmo germânico revela-se o delírio de um bêbado: "und wir alle, Deutsche Männer/ sterben so gerne, ach, den Heldentod".
E Schulhoff era perfeitamente capaz de expressar a revolta, a loucura e a morte, como se vê no Sexteto e em Flammen. É notável que ele o tenha feito sem perder o sentido da dança.

Para terminar dentro desse sentido, ouço o próprio compositor tocando seu Shimmy-Jazz, de 1928:

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