O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 28 de maio de 2023

O Grupo ANIMA: Valeria Bittar sobre música antiga, música brasileira e a necessidade de hierofanias

Em 18 de maio último, assisti a uma atividade do barítono Hugo Pieri, do grupo ANIMA, no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP. Em quinze de junho, Gisela Nogueira, do mesmo grupo, estará lá com sua viola de arame, também de forma gratuita.

O ANIMA, claro, é uma das maiores referências da música (todos os gêneros combinados) no Brasil. No início deste milênio, entrevistei por telefone Valeria Bittar para a extinta revista eletrônica portuguesa Ciberkiosk. Bittar estava lá no 18 de maio, mas não tive coragem de dizer que eu já a tinha entrevistado há mais de duas décadas, até porque os textos da revista já cumpriram o destino das coisas digitais e evaporaram.

Eu não tinha encontrado, ademais, o arquivo da  entrevista no computador; há alguns minutos descobri-lhe o esconderijo. Como o grupo está a lançar o disco Mar Anterior pelo selo SESC-SP, acho oportuno republicá-lo.

O ANIMA tem hoje outra página na internet: http://www.animamusica.art/; e este canal no YouTube: https://www.youtube.com/@GrupoAnimaOficial/videos.


 Grupo ANIMA


 

«A Musicologia tem que ficar atrás do palco. No palco, a Musicologia não serve para quase nada.»


A música antiga já possui uma história no Brasil, mas ainda não uma tradição; para uma tradição configurar-se, é necessário desenvolver um perfil próprio, o que não se pode fazer com a simples cópia dos modelos europeus, propósito deliberado de vários músicos, nesse campo em que a "interpretação autêntica" é vista com especial prioridade.

Em sentido contrário dos demais conjuntos especializados no Brasil, o conjunto ANIMA claramente destaca-se por sua proposta de conjugar o repertório europeu, principalmente o ibérico, com a tradição oral brasileira e compositores brasileiros contemporâneos afinados com essa tradição.

Dessa forma, interpretam simultaneamente Machaut e as composições de José Eduardo Gramani (um dos fundadores do grupo, falecido em 1998), como no primeiro disco, Espiral do Tempo, de 1997. Ou, então, no segundo disco, Especiarias, combinam na mesma faixa a música italiana do século XIV (La Rotta, uma das mais belas melodias medievais) com Ó mana (também conhecida como Caicó, da tradição oral brasileira, empregada por Villa-Lobos na sua quarta Bachianas e gravada por músicos populares como Milton Nascimento e Ney Matogrosso).

Afora esses dois discos, de produção independente, Anima participou de Trilhas, de 1994, com os grupos Oficina de Cordas, Trem de Corda, Duo Bem Temperado, e de Teatro do Descobrimento, disco da meio-soprano Anna Maria Kieffer lançado em 1999.

Certos conjuntos de música antiga brasileiros demonstram uma dependência demasiadamente pronunciada dos modelos europeus. Anima possui um perfil próprio, que se reflete no repertório e nos instrumentos, combinação harmônica do europeu (cravo, flautas doces segundo modelos do século XVI) com o árabe (zarb - percussão iraniana, bendir – percussão turca, mejuez – instrumento sírio) e o brasileiro (viola brasileira, rabecas brasileiras, triângulo, pandeiro, kulutas – instrumentos de origem indígena).

Anima está na internet no endereço http://www.animamusica.art.br . Composto por Dalga Larrondo (percussão), Isa Taube (voz), Luiz Fiaminghi (rabecas brasileiras), Patricia Gatti (cravo), Paulo Freire (viola brasileira) e Valeria Bittar (flautas doces, kulutas e mejuez), foi com Valeria Bittar, em nome do grupo, que tive uma longa conversa telefônica.

 

MUSICOLOGIA E MÚSICA: CADA MACACO NO SEU GALHO

Uma das virtudes do conjunto é a de não serem acadêmicos na abordagem da música antiga. Essa ousadia pode soar estranha para expectativas já condicionadas do que deve ser a música antiga (1), razão pela qual perguntei a Valeria Bittar sobre a questão do rigor musicológico e da interpretação autêntica:

- Pelo que entendi, vocês não querem ser museológicos, nem arqueológicos, nem acadêmicos!

VB - É. A Musicologia tem que ficar atrás do palco. No palco, a Musicologia não serve para quase nada. [...] a memória auditiva, toda memória, seja tátil, visual, é uma coisa em constante transformação. Saramago fala exatamente isso [...] E essa questão de que eu estou tocando originalmente, isso é um problema do século XIX [...] a ideia de que tem que tocar a música antiga como se tocava naquela época é uma grande ilusão e é uma posição romântica.

- Na verdade, é anacrônico?

VB - É totalmente anacrônico. É uma contradição ao próprio propósito, você entende? É que essa estética de tocar [.....] é uma concepção do século XIX. Ela não resiste, acabou. Com a possibilidade da reprodução mecânica, o intérprete vai ficar muito para trás. Porque, se você tem o computador, você tem o gravador, você tem o CD, tem todas essas possibilidades tecnológicas de edição agora, então o intérprete não tem função nenhuma. Então existe hoje uma reação a essa concepção romântica. A memória musical é uma coisa muito permeável, maleável.

- O Harnoncourt foi um dos pioneiros da interpretação autêntica desse repertório. Mas hoje ele toca música barroca com instrumentos modernos, mistura os instrumentos, para ele o que importa é soar bem.

VB - Eu acho que o Harnoncourt é a pessoa ideal para a gente confiar. Ele tem uma experiência musical muito grande e ele fala isso baseado na experiência. Ele é um grande mestre. O Harnoncourt fez tudo. Fez tudo do Bach [.....]

 

A FORMAÇÃO EM MÚSICA ANTIGA E O BRASIL

Todos os integrantes de Anima estudaram na Europa, com exceção da cantora Isa Taube, que estudou jazz nos Estados Unidos. As diferenças na formação musical dos integrantes, segundo Valéria Bittar, eram uma "virtude do grupo".

Conversamos da dificuldade de o músico ter uma formação em música antiga no Brasil; de fato, no mundo acadêmico, ela não existe, pois "as instituições de ensino baseiam-se na música do século dezenove" e que "o músico brasileiro só era preparado para ser solista ou funcionário público".

Valéria Bittar, no entanto, entrou em contato com a música antiga no Conservatório, e sua prática com o choro muito a ajudou. Disse-lhe achar que hoje o choro é música de câmera e concordou, ressaltando como esse estilo "tem alma própria".

- Desde a sua formação, você estava em contato com a música brasileira. Isso é um dado diferencial de vocês. Porque vocês combinam a música renascentista, medieval, com a tradição oral brasileira, mas também com compositores contemporâneos brasileiros.

VB - Compositores contemporâneos que são inspirados nessa tradição brasileira.

- Dos outros grupos brasileiros, o que distingue vocês é uma proposta brasileira. Vocês até se permitem juntar a música do Caicó, "Ó mana", com "La Rotta".

VB - [........] a literatura medieval e a música medieval andam muito juntas e estão vivas, ainda hoje, em diversas manifestações da tradição oral. Principalmente aqui no Brasil.

- Se eu for comparar o trabalho de vocês, por exemplo, com o do Movimento Armorial, do Quinteto Armorial, eles tinham um trabalho muito bom, mas acho o de vocês mais livre. Vocês não são dogmáticos.

VB – É porque queremos através da música brasileira, sair do regionalismo.

 

MÚSICA ANTIGA E MERCADO FONOGRÁFICO:

 

Valeria Bittar lembra que a música antiga tornou-se "mercantil", "era um movimento" e "chegou nas grandes gravadoras, chegou no mercado". A própria proliferação de gravações, como "a mais nova gravação da Missa em Si Menor de Bach", refletiria esse quadro, o que não seria nada mais do que uma decorrência ainda do Romantismo, ao se querer sempre uma "coisa nova".

Além do rótulo "música antiga", lembramos deste, bastante infame, que é world music, nome cunhado pela ignorância geográfica e musical de estadunidenses.

- Esse próprio nome, world music, ele propriamente não é nada, é só uma marca.

VB - É, é um rótulo, que engloba tudo e não engloba nada.

- É, não quer dizer nada. No disco de vocês vem "world music", mas...

VB - Isso aí é a distribuidora.

- Explique-me: eles são gravados pela Sony, ou a Sony distribui?

VB - A Sony não distribui e não grava. Ela faz a prensagem dos discos. Mas a gente é obrigado a colocar o nome, além de pagar a conta.

- Vocês não são artistas da Sony.

VB - Não, de jeito nenhum.

- Dá para sentir. Também, se fossem, não estariam fazendo esse trabalho!

VB - Nem com aquele encarte maravilhoso.

- Seriam aqueles encartes sem informação alguma que a Sony faz no Brasil (2).

VB - Informação é o que menos interessa.

É o que menos interessa para esse sistema, é claro, em que a música é desprovida de todo valor especificamente cultural.

 

ANIMA E O MUNDO:

Perguntei sobre as apresentações do grupo, que já fez recitais na França e nos Estados Unidos; no início do ano, tocou no festival Rock’n Rio na Tenda Raízes. Em agosto de 2001, realizou uma turnê pelo Mercosul: apresentou-se na Argentina, no Uruguai e no Paraguai. Sobre este último país, que tem uma grande herança cultural indígena, Valeria Bittar afirmou que "dava um banho no Brasil em matéria de cultura e memória".

Em 2002, o grupo fará apresentações nos EUA e, depois, na Europa. Ainda no ano que vem:

VB - O Anima promove workshops em alguns festivais. A gente irá fazer de quatro a cinco workshops na Carolina do Norte. E nos apresentaremos na Universidade do Missouri, em Kansas City. De lá a gente vai para a Filadélfia e para Los Angeles. A gente vai fazer a música de peregrinos. Música de peregrinação até a luz. Música de natal, música do natal rural brasileiro, da Idade Média portuguesa e espanhola, o Cancioneiro de Upsala, as Cantigas de Santa Maria, o Llibre Vermeil.

 

A MÚSICA E O SÍMBOLO:

 

Anima distingue-se também de grupos como o Quinteto Armorial porque se propõe a, segundo Valeria Bittar, por meio da "música brasileira, sair do regionalismo". Como fazê-lo? Nesse momento, entra em cena a questão do símbolo.

Pois, se o grupo pode combinar o Ay Luna do Cancioneiro de Upsala (3) com A Lua Girou, da tradição oral brasileira (gravada também por músicos populares como Ney Matogrosso), no disco Especiarias, o faz menos por uma questão musicológica do que pela permanência do símbolo lunar na música.

VB - A gente faz uma fusão com o natal rural brasileiro, que é pouco conhecido: Bumba-meu-boi, Reisados, vamos terminar o ciclo de natal na Festa de Reis.

- É o repertório do próximo disco?

VB - Em parte, sim. Mas para o próximo disco a gente está fazendo outro trabalho.

- Mais ibérico?

VB - Sim. E com mais pé no Brasil rural, menos industrializado.

- Você acha que é um repertório que está se perdendo?

VB - Acho que sim. Principalmente com essa pós-globalização, essa tecnologia da rapidez. da informação, acho que ele está se fechando em pequenos nichos. Mas não acho que esse tipo de repertório um dia venha a se perder. Porque ele é muito intrínseco ao ser humano. Ele transcende o cultural, ele permanece instalado no homem.

- Por isso vocês se chamam Anima?

VB - Acho que sim... Então não é uma coisa somente cultural. Persiste uma necessidade do homem de ritual, de hierofanias, os mitologemas desses rituais. Mário de Andrade que sabia bem disso. Ele tinha uma visão profunda, ele ultrapassava a musicologia, ia até a psicologia. E há outros pensadores que nos inspiram: Carl Gustav Jung. Você encontra, além do Jung, o Mircea Eliade, que fala das necessidades anímicas, o Jordi Savall, Erich Neumann [........]

 

Contudo, é possível que o símbolo fale por intermédio da música? O símbolo pode falar em música, isto é, ela expressaria o que dele não podemos dizer e o faz permanente? Diante de certos trabalhos musicais, como o de Anima, respondemos sim.

Setembro, 2001.
Pádua Fernandes

 

NOTAS:

(1) Como exemplo, o interessante livro de Kristina Augustin, Um olhar sobre a música antiga: 50 anos de história no Brasil, editado no Rio de Janeiro pela autora em 1999, apresenta o grupo de forma confusa, dizendo, de forma surpreendente, que as "atividades" do grupo "ainda estão muito relacionadas com as da Música Antiga" (p. 84), o que demonstra uma clara incompreensão da proposta artística do Anima.

(2) Prática feita com a música brasileira, é claro, trata-se de uma multinacional, e também (é de pasmar) com a música estadunidense; como exemplo, foi lançada uma série "Best price gold" (embora no Brasil o idioma oficial seja o português) em que os títulos simplesmente não possuem atribuição de autoria, mesmo clássicos da canção popular dos Estados Unidos, como Just in time, Alfie...

(3) Cancioneiro ibérico do século XVI que teve a sua primeira gravação mundial completa em 1997, pela Camerata Antiqua de Curitiba, regida pelo pioneiro da música antiga no Brasil, Roberto de Regina.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Quando o cantor se interrompe


Quando o cantor se interrompe,

a voz ainda continua?

(por quem? por quanto tempo?)

Se o cantor fecha os lábios,

abre-se ainda a boca da voz?


Abre-se para o mundo,

e o mundo se fecha:

o cantor é interrompido

seja pelo decreto, seja pelo câncer,

(o poder e a metástase

imitam-se mutuamente)

seja pelo mercado, seja pela bomba,

(igualam-se em estrondo

os produtos e a devastação)

e pouco resta à palavra

senão automatismos à venda.


O cantor foi interrompido,

cessaram os mecanismos do fôlego;

toda a atmosfera

ressoa como o deserto.


(contracústica, infra-

-diafragmática, a voz conspira

multicostal sobre o risco)

(não a voz sob o risco,

porém a música,

que entrou sem ingresso

no espetáculo do mundo)


A voz, que mande notícias,

ela suspendeu os informes

que garantiam o fluxo

entre o cantor e o mundo.


(um coro só de objetos não sonoros,

que cantores poderiam igualá-los

na solidez e na pontaria?)

(ou um coro só de ausências,

todo feito à imagem do público?)


O cantor sob interrupção 

não pode entregar a vida,

deixa que a voz o faça.


(explodida a voz, ouvimos

enfim o cantor, ou os estrondos

vêm de outra fonte: a música, talvez?)

(o mundo não se organiza em coro

e decreta que a ousadia de somar vozes

pagará um preço muito caro)


Somente não interrompe o cantor

o silêncio,

que o ouve agora.


segunda-feira, 22 de maio de 2023

Os Guaranis e O Guarani: Carlos Gomes revisitado no Teatro Municipal de São Paulo

Sobre Il Guarany, ou O Guarani, ópera de Carlos Gomes inspirada no romance de José de Alencar, li e ouvi diversas manifestações sobre o sucesso incrível de público da última montagem no Teatro Municipal de São Paulo. Ela contou com o time de Roberto Minczuk (regente), Ailton Krenak ("concepção geral"), Cibele Forjaz (direção cênica), Denilson Baniwa (codireção artística e dramaturgia) e Simone Mina (figurino, além de codireção artística e cenografia). Havia, portanto, indígenas na concepção e na direção artística da ópera que leva personagens indígenas para o palco, além de dois atores indígenas, Zahy Tentehar Guajajara e David Vera Popygua Ju, e a Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá KYRE'Y KUERY, que apresentaram a música de sua própria cultura, como uma espécie de interlúdio na composição de Carlos Gomes. Creio que isso jamais foi tentado na história dessa ópera, estreada em 1870.

A audácia artística foi recompensada com o sucesso de público que levou a uma récita extra, o que deve ter sido difícil por causa das conhecidas dificuldades das agendas dos artistas que trabalham em ópera. Em geral, eles têm compromissos marcados com antecedência de dois anos.

Gosto muito de ópera e já cantei (no Coro da Cidade de São Paulo) em três produções (até agora; espero participar de La Traviata em agosto). Também escrevi vários textos sobre direitos dos povos indígenas e participei em eventos, atos e manifestações desses povos ou com eles. Em geral, as pessoas que encontro no meio da ópera não conhecem as do ativismo indígena e vice-versa. Gostei imensamente de ver esses dois mundos por que tenho tanto interesse cruzando-se.

Talvez por esse cruzamento não ser tão frequente, imagino que a direção tenha caído na tentação do didatismo em relação às lutas indígenas. O soprano que cantava Ceci, na sua segunda ária, tinha que competir com várias projeções de filmes e textos (por sinal, o Teatro poderia investir mais em revisão de português: "ali" com acento, entre outros erros, não dá!). Nesse ponto, a direção cênica sabotou Carlos Gomes, pois era difícil prestar atenção na cantora.

E não deveria fazê-lo? Tentar algo como uma partida Guaranis vs. Guarany? Não se deveria sabotar uma história da colonização? Creio que não, pois O Guarani é mesmo uma grande ópera; o que deve ser feito é torná-la nova, o que é outra coisa, que acabou sendo realizada por esta nova concepção cênica. Lendo os textos incluídos no belo libreto vendido no Teatro, inclusive a nota feita muito por alto por Ailton Krenak, creio que Ligiana Costa, responsável pelo dramaturgismo, escreveu o mais esclarecedor das tensões entre a obra do século XIX e nosso tempo (nota: entre eles, está o texto de um dos grandes ficcionistas brasileiros, Pedro Cesarino, que acho que não é mais reconhecido como escritor por ser também um importante antropólogo).

A dramaturgia funcionou desde antes do começo esperado da ação: a coreografia durante a Protofonia, combinada com a arte de Denilson Baniwa, gerou uma cena comovente: a luta, os massacres e o renascimento dos povos indígenas foram ali encenadas durante aquela peça sinfônica tão significativa (e muito bem regida por Minczuk), que acabou assumindo o papel de um dos retratos musicais do Brasil. Esta música deixou de parecer "batida", acusação que alguns críticos lhe fazem, talvez por causa do programa A Voz do Brasil...

A montagem foi um grande sucesso artístico, razão pela qual poderíamos imaginar detratores completamente ignorantes em ópera e sem muita inteligência para entender as coisas do teatro reclamando de que "a ópera foi cortada" porque o balé não foi encenado ou de que a música não foi respeitada, pois a música Guarani foi ouvida, funcionando como interlúdio. Imagino que um grau de idiotia mais extremo pudesse invocar o direito do consumidor contra a montagem, já que estamos no país dos bacharéis -- mas seria extrapolar as deficiências diplomadas da inteligência nacional aos píncaros do absurdo. Ora, como se sabe, é extremamente comum cortar música de balé em representações de ópera (quantas vezes você que me lê assistiu a uma récita do Otello de Verdi com o balé?), inclusive em gravações. Ligiana Costa, em seu texto, tem o cuidado de lembrar que muitas das montagens do Guarany ignoram o balé. Ademais, o método do enxerto (como se fez com a música Guarani duas vezes durante a ópera) não é infrequente nas encenações contemporâneas, inclusive com a introdução de personagens novos, em geral mudos.

Houve um tempo, bem anterior a Carlos Gomes, o da ópera barroca, em que o enxerto era quase o modo de produção do espetáculo. Os cantores cantavam suas árias preferidas não importa em que ópera e de que autor e em que idioma. Trata-se, contudo, de outro assunto.

Não aconteceu nada, em termos cênicos ou musicais, naquele Guarani que não ocorra normalmente nos palcos de ópera de hoje: duplos, projeções, textos de outras proveniências. Creio até que virou moda, nos últimos anos, os personagens terem duplos não cantados - vi no cinema, por exemplo, uma produção francesa Così fan tutte em que os cantores tinham como duplos bailarinos, que não cantavam, mas encenavam com sua coreografia a comédia. A diferença é que indígenas estavam na direção e no palco.

Desta vez, os cantores que interpretavam Peri e Ceci tinham duplos indígenas: David Vera Popygua Ju (como Peri; já o mencionei neste blogue algumas vezes em sua atividade de liderança Guarani) e Zahy Tentehar Guajajara (ela me pareceu o devir-indígena de Ceci). O procedimento não era inédito, claro, mas não devemos diminuí-lo por isso: devemos julgá-lo por sua eficácia. Creio que ele funcionou muito bem, especialmente na cena do batizado de Peri (por amor a Ceci, ele se cristianiza), provavelmente a mais violenta para a sensibilidade de hoje. No fundo do palco, os músicos e atores indígenas encenaram uma consagração do duplo de Peri, que ganhou cocar, arco e flecha. O batizado etnocida foi contrabalançado por aquela outra cerimônia, que indicou a permanência e a resistência daquele povo e suas crenças, apesar da violência cristã da colonização.

Muitas vezes os conquistadores espanhóis apareceram sob pedestais e assumiram poses de estátuas. Li um crítico que não gostou da ideia, mas a achei genial: era evidente que os encenadores queriam criticar as estátuas e outras homenagens aos colonizadores, assassinos e traficantes de indígenas, tão comuns, por sinal, em São Paulo. Imagine a violência de um Estado que resolve nomear uma estação de metrô com o escravizador Fernão Dias de indígenas em vez de Paulo Freire. O genocídio recebe as homenagens oficiais monumentalizadoras... Essa política oficial de ódio aos povos indígenas foi na ópera eficazmente ridicularizada.

Em revanche, a ideia de fazer o cacique Aymoré um antropólogo branco que lê Davi Kopenawa e Bruce Albert (havia mais bibliografia, mas, de onde estava, foi o único livro que identifiquei, A queda do céu), embora provavelmente corresponda às fantasias de maus cientistas, era mais engraçada que interessante.

A regência de Roberto Minczuk foi muito vigorosa, exemplar de um maestro de ópera; não lembrava em nada o sonífero musical daquele disco com Plácido Domingo (o grande tenor merecia um regente à sua altura, mas não obteve). O Coro Lírico, ao contrário da Orquestra do Teatro, estava meio desencontrado no dia em que assisti à produção, desde a aparição dos caçadores. Vi o segundo elenco. Vocalmente, destacaram-se os baixos e os barítonos. Lício Bruno estava ótimo como Cacique, David Marcondes impressionou como Gonzales. Em um papel mais curto, Don Alvaro, ouviu-se a bonita voz do tenor Guilherme Moreira. Os interpretes do casal protagonista, Débora Faustino e Enrique Bravo, foram valentes ao enfrentar tessituras não tão adequadas às suas vozes. O soprano lírico de Faustino não tinha toda a agilidade nem todo o agudo exigidos (a conclusão da ária "Gentil di cuore" teve que ser assumida pelo coro, por exemplo - um soprano ligeiro teria sido mais feliz); o tenor estava mais à vontade, porém soava como um lírico tendo que assumir um papel que foi de Mario del Monaco.

Este tenor italiano, na autobiografia Minha vida, meus sucessos, incluiu uma foto com o torso nu, caracterizado como Peri (segundo ele, mais despido do que vestido), e escreveu que agradou muito nesse papel no Rio de Janeiro em 1947, onde foi muito bem recebido e interpretou também Il Trovatore, de Verdi, e o Fausto no Mefistofele, de Boito. Estamos agora em outros tempos: a solução da montagem de 2023 foi evitar caracterizar os brancos como indígenas - o coro, quando interpretava os Aymorés, vestia redes (visualmente, o efeito era muito bonito). Enrique Bravo vestia algo parecido e não houve nenhuma tentativa de maquiá-lo como indígena, solução que ficou hoje antiquada e é considerada até racista. A estratégia de usar como duplo um ator Guarani dispensava-a, por sinal.

Dito isso, em ópera o que determina a escalação de um papel é a voz; uma cantora japonesa não pode ser escolhida para cantar a Madama Butterfly se é, por exemplo, um contralto ou um soprano ligeiro... O contralto não alcançaria as notas nem da entrada da personagem e o soprano ligeiro ou destroçaria a música do segundo ato ou destruiria a própria voz tentando fazer justiça à partitura. A falecida Jessye Norman, negra nascida nos Estados Unidos, estreou em Berlim cantando um papel para o qual muitos esperam louras alemãs: Elisabeth, do Tannhäuser, de Wagner. Ela cantou diversos papéis concebidos para cantoras brancas, assim como Leontyne Price, Martina Arroyo, Grace Bumbry (que morreu recentemente e foi o primeiro artista negro a ser protagonista em Bayreuth, no Teatro construído para as óperas de Wagner) e, hoje, Pretty Yende, entre outras, porque é a voz que comanda. Quando o brilhante Lawrence Brownlee canta, por exemplo, Rossini (neste vídeo, na Ópera de Paris), o que resta aos racistas senão envergonhar-se? Poderiam até regenerar-se e tornar-se pessoas decentes, mas alguns deles reclamam ridiculamente de "genocídio branco" (como fizeram quando a sul-africana Pretty Yende e o mexicano Javier Camarena protagonizaram com grande sucesso La Fille du Régiment, de Donizetti, no Metropoltian Opera House) vendo tantos artistas de outras raças ocupando os palcos de ópera... 

Voltando a São Paulo: outro elemento interessante foi fazer o espetáculo continuar depois que a música de Carlos Gomes acabou, outro procedimento típico dos encenadores contemporâneos de ópera. Neste Guarani, a atriz Zahy Tentehar Guajajara, que também é cantora (com uma voz de tamanho mais modesto, porém: ao contrário do Coro Guarani, ela precisou de microfone, mesmo sem ter que competir com a orquestra do Teatro), cantou uma canção indígena e os Guarani levaram um cartaz exigindo demarcação de sua terra. Dessa forma, os povos originários é que deram a palavra final. Foi muito lindo.

No entanto, o espetáculo NÃO tinha acabado ainda! Todo o elenco, indígena e não indígena, e o maestro (não vi se Cibele Forjaz estava lá também; provavelmente sim, pois tinha acabado de receber aplausos com os outros artistas) foram para a escada: os músicos Guarani voltaram a fazer sua música e mostravam um cartaz exigindo demarcação das terras: 



Relembremos que a Terra Indígena Jaraguá é a menor no país, tem menos de 2 hectares. O então governador Geraldo Alckmin foi ao Judiciário para impedir a ampliação da demarcação.

Depois, David puxou o lema "Não ao marco temporal" e a música Guarani voltou a ser ouvida. Para quem não sabe o que é essa tese pró-genocídio contra a qual os povos originários lutam, escrevi um resumo neste blogue.





Já vi algo análogo no Teatro Municipal de São Paulo em 2022: depois da apresentação de Café, ópera que Felipe Senna escreveu a partir do conhecido libreto de Mário de Andrade, membros do MST, que tinham participado da récita (o ponto alto da apresentação, aliás), foram para as escadarias e lá, depois do término da obra operística, continuaram sua performance reivindicando a reforma agrária. Foi também um encontro imprevisto de mundos: o do movimento social dos Sem-Terra e o da ópera. Outro sucesso de público.

É por isto que amo a ópera: além da generosidade do gênero, que consegue acolher outras artes e outros mundos, ele pode fazer tudo parecer possível: o acesso à terra aos camponeses, a derrota do latifúndio, a efetividade dos direitos dos povos originários, a queda dos colonizadores. 

Tudo isso deve ser possível, no palco e fora dele. O espetáculo tem que continuar.


P.S.: Falando nas tradições operísticas: o espetáculo foi dedicado a Niza de Castro Tank, grande soprano ligeiro, um dos protagonistas da primeira gravação da ópera, em 1959, regida por Armando Belardi, e que foi uma das maiores intérpretes do compositor. Ela morreu no ano passado, aos 91 anos, depois de uma longa e importante carreira.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Desarquivando o Brasil CXCIV: Marcelo Zelic, a pesquisa e o engajamento com os povos indígenas

Foi um baque saber da morte de Marcelo Zelic na segunda-feira, dia 8 de maio de 2023, com apenas 59 anos, por causa de acidente vascular cerebral. Seu trabalho foi importantíssimo para a memória, verdade e justiça no Brasil, especialmente para os povos indígenas

O Centro Indigenista Missionário (Cimi) inventariou sua contribuição para os povos indígenas no Brasil ("Marcelo Zelic, militante da memória, nos deixa um legado pela verdade e pela justiça"). O Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi) publicou uma nota de pesar. O Centro de Trabalho Indigenista (CTI) fez o mesmo, assim como o MST.

O texto de Cristiano Navarro, Fábio Bispo e Renato Santana para o Infoamazonia ("A luta por memória dos crimes da ditadura e Justiça de Transição perde um de seus principais defensores: Marcelo Zelic") rememora sua participação do Grupo tortura Nunca Mais - São Paulo e a na Comissão de Justiça e Paz, bem como de sua participação no Acampamento Terra Livre (ATL) no mês passado, seu apoio à criação de uma Comissão da Verdade Indígena e sua recente coordenação de um projeto de memória interétnica.

Ismael Machado (li-o no Brasil de Fato) focou no relatório da Comissão da Verdade do Estado do Pará, de que Zelic e ele mesmo foram organizadores com Angelina Anjos e Marco Apolo Santana Leão. 

O Grupo Tortura Nunca Mais - São Paulo também relembrou sua trajetória. 

A antropóloga Artionka Capiberibe teceu um fio no twitter com uma foto recente lembrando da articulação no ATL para a criação de uma comissão da verdade indígena. O jornalista Rubens Valente, que também esteve com ele recentemente, publicou outra foto, em que Zelic posou apontando para um cartaz com a estimativa da CNV de 8.350 indígenas mortos (no mínimo) durante a ditadura. Para a Agência Pública, escreveu um texto mais longo ("O último sonho de Marcelo Zelic"), de que cito esta passagem que sintetiza algumas das principais façanhas do pesquisador: a recuperação do Relatório Figueiredo e do filme Arara e a criação e coordenação do portal Armazém Memória.


Zelic já era reconhecido como um grande pesquisador da temática, tendo sido o autor da descoberta, ou redescoberta, do processo administrativo produzido na segunda metade dos anos 1960 que ficou conhecido como Relatório Figueiredo, cuja divulgação levaria à extinção do SPI (Serviço de Proteção ao Índio). O processo estava arquivado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, mas indexado apenas com um número, sem explicações sobre o conteúdo. Zelic reconheceu sua importância e o resgatou do limbo em que permaneceu mais de 40 anos. Foi também Zelic o responsável por localizar um filme produzido pelo governo nos anos 70 que mostrava um indígena simulando a prática de tortura num pau-de-arara, um singelo “ensinamento” dos torturadores aos membros de uma “guarda indígena” que funcionou em Minas Gerais durante a ditadura.
Na condição de coordenador do Armazém Memória e membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo, Zelic e sua equipe de colaboradores coletaram, escanearam, organizaram e disponibilizaram uma impressionante coleção de documentos e outros dados relativos aos direitos humanos https://armazemmemoria.com.br/. Apenas sobre os povos indígenas são 18 bibliotecas com 2,2 milhões de páginas.


A deputada Célia Xakriabá, a única indígena exercendo mandato atualmente no Congresso Nacional, lamentou a morte. Como voltamos a ter um governo democrático, a Funai também publicou sua nota. No governo passado, isso certamente não aconteceria.

Creio que o Ministério dos Povos Indígenas não se manifestou, tampouco a Ministra Sônia Guajajara e o presidente Lula, que, no entanto, lamentaram a morte, também recente, do ex-deputado federal David Miranda.

Por curiosidade, fui ver o que a Agência Brasil havia publicado sobre a morte de Marcelo Zelic; ela a noticiou em três idiomas: além do português, o espanhol e o inglês. Percebi que, entre três de novembro de 2014 e 29 de março de 2023, não há notícia alguma sobre ele nessa agência governamental de notícias. Certamente não por falta de trabalho do pesquisador e militante (que só suspendeu por um tempo suas atividades por causa do primeiro AVC), mas talvez por falta de interesse de governos decididos a ocultar as pautas de luta dos povos indígenas.

Para o caso de alguém se interessar, deixo aqui meu breve testemunho. Eu conheci pessoalmente Marcelo Zelic em 2014, no lançamento da campanha "Índio é Nós", em 19 de abril; ele falou em mesa com uma liderança da Terra Indígena Jaraguá, (David) Karai Popygua. As falas de ambos foram filmadas: https://www.youtube.com/watch?v=z-bjwrBR8RM (no final do vídeo, pode-se ver a apresentação de Marlui Miranda). O editor Sérgio Cohn participou também para trazer o número da Poesia Sempre sobre poesia indígena, que teria sofrido censura na Biblioteca Nacional. 

Naquela ocasião, Zelic falou do conteúdo das milhares de páginas do Relatório Figueiredo, de 1967, que ele havia encontrado. Elas apresentavam um amplo levantamento dos crimes contra os povos indígenas cometidos pelos agentes do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), que acabou sendo substituído pela Funai.

Ele denunciou as medidas anti-indígenas do governo federal de então, do PT ("a ministra Gleisi Hoffmann entrou aí com uma jogada para suspender as demarcações de terras indígenas no Paraná", criticou) e os assassinatos das lideranças indígenas. Ademais, cobrou a Comissão Nacional da Verdade, então em funcionamento, para que ela investisse no trabalho com estes povos:


E os centros de tortura contra indígenas, vão entrar nesse relatório? [...] A Comissão vai incluir esses estudos, vai aprofundar esses estudos, no sentido de incorporar a esse relatório, ou só vai valer o que é centro de detenção para militantes de esquerda urbanos e alguns rurais? [...] Então nós temos uma situação que é um embate para que a Comissão Nacional da Verdade, ela efetivamente faça investimentos no grupo da Maria Rita Kehl. Faça investimentos no sentido de contratar uma equipe grande para pesquisar porque há violações em todos os Estados do Brasil, quase todos nesse período. E não são violações pequenas. Para que haja investimentos no sentido de digitalizar e se colocar numa ferramenta de pesquisa essas seiscentas mil páginas.


Maria Rita Kehl é que estava a coordenar as pesquisas sobre os povos indígenas. Depois, voltei a cruzar com ele no segundo semestre de 2014, quando eu havia passado a fazer pesquisa para a Comissão Nacional da Verdade e para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva". Ele, com Manuela Carneiro da Cunha (que também participou, na mesma mesa de Kehl e Marta Azevedo, do lançamento de "Índio é Nós") e outros pesquisadores estavam a ajudar a CNV para o capítulo sobre as violações de direitos dos povos indígenas, que sofria oposição dentro da Comissão.

Na Comissão "Rubens Paiva", que era presidida por Adriano Diogo, não havia oposição alguma. Lá, ajudei a organizar três audiências sobre o tema; nós o chamamos para falar. No relatório, no capítulo sobre as violações de direitos dos povos indígenas, ele é referido algumas vezes. Cita-se sua fala na 149ª audiência pública da Comissão:


No momento em que uma Comissão da Verdade, como a Comissão Estadual de São Paulo que se dedica a apurar o tema indígena. Uma das poucas Comissões estaduais que se debruçou sobre a temática indígena, nós temos São Paulo, nós temos Amazonas, nós temos Mato Grosso do Sul algum trabalho e a Comissão Nacional.
Quando o relatório da Comissão Nacional apresenta inúmeras, inúmeras violências praticadas para o roubo de terras indígenas no país, o Supremo Tribunal Federal, Adriano, a sua 2ª Turma, vota, através do caso dos GuaraniKaiowá, do Mato Grosso do Sul, um entendimento de que existe um marco temporal para se definir se uma terra deve ou não ser demarcada como terra indígena [...]
Rasga o STF a Constituição com uma nova interpretação, feita pela 2ª Turma, que se for confirmada pelo Plenário, ela joga um manto escuro em cima de toda essa violência que estava embaixo do tapete e que vem à tona, agora de forma mais sistematizada, pelos trabalhos das Comissões estaduais e Nacional da Verdade.
É uma situação que eu gostaria primeiro de solicitar, nós fizemos uma denúncia, através de um artigo que chama “Povos indígenas: ainda uma vez o esbulho.”, que eu queria sugerir à Comissão Estadual da Verdade que pudesse tirar uma moção, para enviar a todos os Ministros do STF, repudiando a decisão, repudiando a decisão da 2ª Turma e solicitando que essa posição seja revista, para que a gente possa incluir os povos indígenas no processo de Justiça de Transição em que vive o Brasil.

Aqui ele se referia à tese anti-indígena, anticonstitucional e ilícita perante o Direito Internacional do "marco temporal", que ganhava terreno no Supremo Tribunal Federal com ajuda de Ministros como Gilmar Mendes. Essa questão também ainda não foi resolvida.

Ele já organizava o que viria a ser o formidável Armazém Memória; ele me pediu, na época, os documentos da Comissão para colocar no futuro portal.

Depois disso, cruzei com Zelic no evento "Resistência Indígena contra o Genocídio", realizado no Campus São Paulo do Instituto Federal de São Paulo em 29 de novembro de 2018. Também falaram, além de nós, (David) Karai Popygua e Benedito Prezia, que o rodeiam nesta foto que tirei na ocasião:




A fala dele foi filmada (e a dos outros). Ele explicou, entre outros temas, a importância dos documentos para as reivindicações dos povos indígenas, inclusive as de caráter judicial:


Eu, quando peguei o relatório Figueiredo e vi ali aquele documento, que só existiam três cópias impressas [...] fiz questão de visitar o povo Terena, sentar no chão com o povo Terena, passar o micro e dizer "vocês sabem mexer com o computador?", e aí levanta um Terena e fala, "oh, Zelic, sou advogado", "pô, desculpa aí", sentar e discutir com eles o que podia ter dentro desses documentos.


Depois, estive com ele em 13 de março de 2020 no Seminário de 5 anos do relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" (na semana seguinte, começariam as medidas de isolamento social da pandemia). 


Não o vi mais pessoalmente. A última vez em que trocamos mensagens, faz pouco tempo, perguntei do relatório da Comissão Estadual da Verdade e Memória do Pará, que havia sido anunciado para 2021, depois para março de 2022 e só veio à luz no ano seguinte. Felizmente, ele saiu ainda a tempo de Zelic, que foi um dos organizadores do trabalho, vê-lo disponível para todos. Os povos indígenas são abordados no tomo II.

As recomendações da Comissão aparecem no final do tomo III. Para dois temas, contudo, ela decidiu repetir as recomendações do relatório da CNV, de 2014:


Frente à situação atual do país e os retrocessos em direitos humanos que vivemos, atingindo em especial os povos indígenas e a comunidade LGBTQI+ num claro ciclo de repetição das violências vividas no passado, a CEV-PA reafirma ao Estado brasileiro a necessidade de dar seguimento às recomendações temáticas do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, apresentadas em 2014, incorporando-as na lista abaixo a este relatório, como pontos também fundamentais para o desenvolvimento, respeito e aprofundamento dos conceitos de democracia, pluralidade étnica, liberdade sexual e justiça social em nossa sociedade.


É como se o tempo tivesse parado para aquelas reivindicações dos povos indígenas, que incluem a demarcação e a desintrusão de suas terras. Na verdade, pode-se até mesmo dizer que o relógio andou violentamente para trás. O caso contra Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional por genocídio parece-me forte exatamente em relação aos povos indígenas.

Faço notar, porém, que as recomendações que são reiteradas pela Comissão do Pará são as que aparecem no tomo II do relatório da CNV. Elas, por algum motivo, são amplamente ignoradas por vários pesquisadores e instituições, que costumam tratar apenas das que estão listadas no tomo I. Aquelas foram escritas pelos pesquisadores e militantes e ofertadas à CNV. No caso dos povos indígenas, são as mesmas que foram entregues também à Comissão "Rubens Paiva" no fim de 2014 por Timóteo Popygua, que o fez em nome da Comissão Guarani Yvyrupa.

Quase nove anos depois, quem sabe elas serão efetivamente implantadas, agora que temos indígenas a frente de um Ministério inédito, o dos Povos Indígenas, e da Funai? Parece possível, e Zelic viveu o suficiente para ser parte desta mudança e ver-lhe o começo.