O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

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quarta-feira, 10 de maio de 2023

Desarquivando o Brasil CXCIV: Marcelo Zelic, a pesquisa e o engajamento com os povos indígenas

Foi um baque saber da morte de Marcelo Zelic na segunda-feira, dia 8 de maio de 2023, com apenas 59 anos, por causa de acidente vascular cerebral. Seu trabalho foi importantíssimo para a memória, verdade e justiça no Brasil, especialmente para os povos indígenas

O Centro Indigenista Missionário (Cimi) inventariou sua contribuição para os povos indígenas no Brasil ("Marcelo Zelic, militante da memória, nos deixa um legado pela verdade e pela justiça"). O Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi) publicou uma nota de pesar. O Centro de Trabalho Indigenista (CTI) fez o mesmo, assim como o MST.

O texto de Cristiano Navarro, Fábio Bispo e Renato Santana para o Infoamazonia ("A luta por memória dos crimes da ditadura e Justiça de Transição perde um de seus principais defensores: Marcelo Zelic") rememora sua participação do Grupo tortura Nunca Mais - São Paulo e a na Comissão de Justiça e Paz, bem como de sua participação no Acampamento Terra Livre (ATL) no mês passado, seu apoio à criação de uma Comissão da Verdade Indígena e sua recente coordenação de um projeto de memória interétnica.

Ismael Machado (li-o no Brasil de Fato) focou no relatório da Comissão da Verdade do Estado do Pará, de que Zelic e ele mesmo foram organizadores com Angelina Anjos e Marco Apolo Santana Leão. 

O Grupo Tortura Nunca Mais - São Paulo também relembrou sua trajetória. 

A antropóloga Artionka Capiberibe teceu um fio no twitter com uma foto recente lembrando da articulação no ATL para a criação de uma comissão da verdade indígena. O jornalista Rubens Valente, que também esteve com ele recentemente, publicou outra foto, em que Zelic posou apontando para um cartaz com a estimativa da CNV de 8.350 indígenas mortos (no mínimo) durante a ditadura. Para a Agência Pública, escreveu um texto mais longo ("O último sonho de Marcelo Zelic"), de que cito esta passagem que sintetiza algumas das principais façanhas do pesquisador: a recuperação do Relatório Figueiredo e do filme Arara e a criação e coordenação do portal Armazém Memória.


Zelic já era reconhecido como um grande pesquisador da temática, tendo sido o autor da descoberta, ou redescoberta, do processo administrativo produzido na segunda metade dos anos 1960 que ficou conhecido como Relatório Figueiredo, cuja divulgação levaria à extinção do SPI (Serviço de Proteção ao Índio). O processo estava arquivado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, mas indexado apenas com um número, sem explicações sobre o conteúdo. Zelic reconheceu sua importância e o resgatou do limbo em que permaneceu mais de 40 anos. Foi também Zelic o responsável por localizar um filme produzido pelo governo nos anos 70 que mostrava um indígena simulando a prática de tortura num pau-de-arara, um singelo “ensinamento” dos torturadores aos membros de uma “guarda indígena” que funcionou em Minas Gerais durante a ditadura.
Na condição de coordenador do Armazém Memória e membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo, Zelic e sua equipe de colaboradores coletaram, escanearam, organizaram e disponibilizaram uma impressionante coleção de documentos e outros dados relativos aos direitos humanos https://armazemmemoria.com.br/. Apenas sobre os povos indígenas são 18 bibliotecas com 2,2 milhões de páginas.


A deputada Célia Xakriabá, a única indígena exercendo mandato atualmente no Congresso Nacional, lamentou a morte. Como voltamos a ter um governo democrático, a Funai também publicou sua nota. No governo passado, isso certamente não aconteceria.

Creio que o Ministério dos Povos Indígenas não se manifestou, tampouco a Ministra Sônia Guajajara e o presidente Lula, que, no entanto, lamentaram a morte, também recente, do ex-deputado federal David Miranda.

Por curiosidade, fui ver o que a Agência Brasil havia publicado sobre a morte de Marcelo Zelic; ela a noticiou em três idiomas: além do português, o espanhol e o inglês. Percebi que, entre três de novembro de 2014 e 29 de março de 2023, não há notícia alguma sobre ele nessa agência governamental de notícias. Certamente não por falta de trabalho do pesquisador e militante (que só suspendeu por um tempo suas atividades por causa do primeiro AVC), mas talvez por falta de interesse de governos decididos a ocultar as pautas de luta dos povos indígenas.

Para o caso de alguém se interessar, deixo aqui meu breve testemunho. Eu conheci pessoalmente Marcelo Zelic em 2014, no lançamento da campanha "Índio é Nós", em 19 de abril; ele falou em mesa com uma liderança da Terra Indígena Jaraguá, (David) Karai Popygua. As falas de ambos foram filmadas: https://www.youtube.com/watch?v=z-bjwrBR8RM (no final do vídeo, pode-se ver a apresentação de Marlui Miranda). O editor Sérgio Cohn participou também para trazer o número da Poesia Sempre sobre poesia indígena, que teria sofrido censura na Biblioteca Nacional. 

Naquela ocasião, Zelic falou do conteúdo das milhares de páginas do Relatório Figueiredo, de 1967, que ele havia encontrado. Elas apresentavam um amplo levantamento dos crimes contra os povos indígenas cometidos pelos agentes do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), que acabou sendo substituído pela Funai.

Ele denunciou as medidas anti-indígenas do governo federal de então, do PT ("a ministra Gleisi Hoffmann entrou aí com uma jogada para suspender as demarcações de terras indígenas no Paraná", criticou) e os assassinatos das lideranças indígenas. Ademais, cobrou a Comissão Nacional da Verdade, então em funcionamento, para que ela investisse no trabalho com estes povos:


E os centros de tortura contra indígenas, vão entrar nesse relatório? [...] A Comissão vai incluir esses estudos, vai aprofundar esses estudos, no sentido de incorporar a esse relatório, ou só vai valer o que é centro de detenção para militantes de esquerda urbanos e alguns rurais? [...] Então nós temos uma situação que é um embate para que a Comissão Nacional da Verdade, ela efetivamente faça investimentos no grupo da Maria Rita Kehl. Faça investimentos no sentido de contratar uma equipe grande para pesquisar porque há violações em todos os Estados do Brasil, quase todos nesse período. E não são violações pequenas. Para que haja investimentos no sentido de digitalizar e se colocar numa ferramenta de pesquisa essas seiscentas mil páginas.


Maria Rita Kehl é que estava a coordenar as pesquisas sobre os povos indígenas. Depois, voltei a cruzar com ele no segundo semestre de 2014, quando eu havia passado a fazer pesquisa para a Comissão Nacional da Verdade e para a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva". Ele, com Manuela Carneiro da Cunha (que também participou, na mesma mesa de Kehl e Marta Azevedo, do lançamento de "Índio é Nós") e outros pesquisadores estavam a ajudar a CNV para o capítulo sobre as violações de direitos dos povos indígenas, que sofria oposição dentro da Comissão.

Na Comissão "Rubens Paiva", que era presidida por Adriano Diogo, não havia oposição alguma. Lá, ajudei a organizar três audiências sobre o tema; nós o chamamos para falar. No relatório, no capítulo sobre as violações de direitos dos povos indígenas, ele é referido algumas vezes. Cita-se sua fala na 149ª audiência pública da Comissão:


No momento em que uma Comissão da Verdade, como a Comissão Estadual de São Paulo que se dedica a apurar o tema indígena. Uma das poucas Comissões estaduais que se debruçou sobre a temática indígena, nós temos São Paulo, nós temos Amazonas, nós temos Mato Grosso do Sul algum trabalho e a Comissão Nacional.
Quando o relatório da Comissão Nacional apresenta inúmeras, inúmeras violências praticadas para o roubo de terras indígenas no país, o Supremo Tribunal Federal, Adriano, a sua 2ª Turma, vota, através do caso dos GuaraniKaiowá, do Mato Grosso do Sul, um entendimento de que existe um marco temporal para se definir se uma terra deve ou não ser demarcada como terra indígena [...]
Rasga o STF a Constituição com uma nova interpretação, feita pela 2ª Turma, que se for confirmada pelo Plenário, ela joga um manto escuro em cima de toda essa violência que estava embaixo do tapete e que vem à tona, agora de forma mais sistematizada, pelos trabalhos das Comissões estaduais e Nacional da Verdade.
É uma situação que eu gostaria primeiro de solicitar, nós fizemos uma denúncia, através de um artigo que chama “Povos indígenas: ainda uma vez o esbulho.”, que eu queria sugerir à Comissão Estadual da Verdade que pudesse tirar uma moção, para enviar a todos os Ministros do STF, repudiando a decisão, repudiando a decisão da 2ª Turma e solicitando que essa posição seja revista, para que a gente possa incluir os povos indígenas no processo de Justiça de Transição em que vive o Brasil.

Aqui ele se referia à tese anti-indígena, anticonstitucional e ilícita perante o Direito Internacional do "marco temporal", que ganhava terreno no Supremo Tribunal Federal com ajuda de Ministros como Gilmar Mendes. Essa questão também ainda não foi resolvida.

Ele já organizava o que viria a ser o formidável Armazém Memória; ele me pediu, na época, os documentos da Comissão para colocar no futuro portal.

Depois disso, cruzei com Zelic no evento "Resistência Indígena contra o Genocídio", realizado no Campus São Paulo do Instituto Federal de São Paulo em 29 de novembro de 2018. Também falaram, além de nós, (David) Karai Popygua e Benedito Prezia, que o rodeiam nesta foto que tirei na ocasião:




A fala dele foi filmada (e a dos outros). Ele explicou, entre outros temas, a importância dos documentos para as reivindicações dos povos indígenas, inclusive as de caráter judicial:


Eu, quando peguei o relatório Figueiredo e vi ali aquele documento, que só existiam três cópias impressas [...] fiz questão de visitar o povo Terena, sentar no chão com o povo Terena, passar o micro e dizer "vocês sabem mexer com o computador?", e aí levanta um Terena e fala, "oh, Zelic, sou advogado", "pô, desculpa aí", sentar e discutir com eles o que podia ter dentro desses documentos.


Depois, estive com ele em 13 de março de 2020 no Seminário de 5 anos do relatório da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" (na semana seguinte, começariam as medidas de isolamento social da pandemia). 


Não o vi mais pessoalmente. A última vez em que trocamos mensagens, faz pouco tempo, perguntei do relatório da Comissão Estadual da Verdade e Memória do Pará, que havia sido anunciado para 2021, depois para março de 2022 e só veio à luz no ano seguinte. Felizmente, ele saiu ainda a tempo de Zelic, que foi um dos organizadores do trabalho, vê-lo disponível para todos. Os povos indígenas são abordados no tomo II.

As recomendações da Comissão aparecem no final do tomo III. Para dois temas, contudo, ela decidiu repetir as recomendações do relatório da CNV, de 2014:


Frente à situação atual do país e os retrocessos em direitos humanos que vivemos, atingindo em especial os povos indígenas e a comunidade LGBTQI+ num claro ciclo de repetição das violências vividas no passado, a CEV-PA reafirma ao Estado brasileiro a necessidade de dar seguimento às recomendações temáticas do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, apresentadas em 2014, incorporando-as na lista abaixo a este relatório, como pontos também fundamentais para o desenvolvimento, respeito e aprofundamento dos conceitos de democracia, pluralidade étnica, liberdade sexual e justiça social em nossa sociedade.


É como se o tempo tivesse parado para aquelas reivindicações dos povos indígenas, que incluem a demarcação e a desintrusão de suas terras. Na verdade, pode-se até mesmo dizer que o relógio andou violentamente para trás. O caso contra Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional por genocídio parece-me forte exatamente em relação aos povos indígenas.

Faço notar, porém, que as recomendações que são reiteradas pela Comissão do Pará são as que aparecem no tomo II do relatório da CNV. Elas, por algum motivo, são amplamente ignoradas por vários pesquisadores e instituições, que costumam tratar apenas das que estão listadas no tomo I. Aquelas foram escritas pelos pesquisadores e militantes e ofertadas à CNV. No caso dos povos indígenas, são as mesmas que foram entregues também à Comissão "Rubens Paiva" no fim de 2014 por Timóteo Popygua, que o fez em nome da Comissão Guarani Yvyrupa.

Quase nove anos depois, quem sabe elas serão efetivamente implantadas, agora que temos indígenas a frente de um Ministério inédito, o dos Povos Indígenas, e da Funai? Parece possível, e Zelic viveu o suficiente para ser parte desta mudança e ver-lhe o começo.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Fazer o L com Livros

A cadeia do livro envolve diversos trabalhadores. A ascensão da extrema-direita ao poder no Brasil prejudicou-a bastante, seja diminuindo as compras governamentais, seja arrasando os investimentos em cultura e educação, seja perseguindo os profissionais envolvidos.

Lembrem-se, por exemplo, dos ataques sofridos por Julián Fuks neste ano, que incluíram ameaça de morte (que faz parte do repertório de ação usual da direita no poder), por conta de uma de suas poéticas crônicas no Uol. Elogio o Uol, por sinal, por não ter abandonado o escritor, ao contrário da Deutsche Welle, que, em episódio semelhante sofrido por João Paulo Cuenca em 2020, cedeu às pressões bolsonaristas e rompeu o vínculo com o ficcionista, que depois sofreu assédio judicial.

Livros, já os carreguei, escrevi, revisei, traduzi, organizei, vendi. Um certo tipo de escória começou a falar mal dos trabalhadores de livro por conta de autores que resolveram "fazer o L" com suas obras, ou seja, anunciar o voto em Lula. Faz sentido que se declare voto no Partido dos Trabalhadores com seus instrumentos e/ou produtos de trabalho.

O próprio presidente Lula tem reforçado esta pauta na campanha:

Lembremos também que a extrema-direita brasileira, em seus esforços cognitivos, só tem conseguido identificar a cor da capa dos livros de seus autores preferidos, mas sem lograr decifrar ou lembrar dos títulos das obras. É verdade que nunca defenderam o direito à literatura.

Por essa razão, é interessante que as pessoas envolvidas com a produção de livros posicionem-se. No sábado, 22 de outubro de 2022, estive com Fabio Weintraub para ver uma feira de livros na Biblioteca Mário de Andrade; Cida Moreira apresentou-se no âmbito do evento com um repertório de mais de um século de música brasileira, incluindo modinhas imperiais. Fomos lá também porque a Editora Nós havia chamado para um ato de apoio a Lula do lado de fora da Biblioteca.


Não havia muita gente, de fato; falei com Fuks e Maria Rita Kehl. Fora de lá, no centro de São Paulo, no entanto, vi muito mais gente com adesivos ou bonés ou camisetas do PT do que em qualquer outro dia, afora os atos de campanha. Achei muito bom, pois continua bem vivo o medo de ser agredido ou morto por apoiar a oposição no Brasil. Trata-se do efeito da estratégia Sturmabteilung (a milícia nazi) que a extrema-direita brasileira copiou, na descentralização das funções de assédio e censura, que não precisam necessariamente ser assumidas pelas instituições do Estado pois os militantes do "líder" (traduzo do alemão) assumem-nas, seja com seus telefones celulares, seja com seus fuzis.

Todos os livros que escrevi e publiquei "fazem o L", gesto que significa não exatamente um compromisso com um partido específico ou com o presidente Lula, mas o necessário apoio à democracia no Brasil. Digo isso também das obras que não consegui publicar neste país, como este ensaio de 2009, "Para que servem os direitos humanos?". Gostaria de lembrar deste trecho:

Como sempre, cliquem na imagem para ampliá-la. Trata-se de uma das poucas referências no livro ao Brasil; eu a fiz como exemplo de uma cultura jurídica isolacionista (que me deu uma rasteira na semana passada, aliás) e contrária à dignidade humana que se fecha ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, seja o ignorando, seja distorcendo sua aplicação. No caso, mencionei o papel do Poder Judiciário e do Ministério Público na violação da Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes. 

As duas instituições colaboraram ativamente na geração da atual crise no país. Esse tipo de provincianismo jurídico em prol dos crimes de lesa-humanidade foi eleito em 2018, logrou conferir mandatos políticos em 2022, porém deve perder no segundo turno das eleições de 2022.

O meu próximo livro, "Assassinato e ascensão do grande escritor (seguidos de antologia completa)" (nos dois últimos dias de campanha de financiamento coletivo), também "faz o L":


sexta-feira, 4 de abril de 2014

Desarquivando o Brasil LXXXII: O lançamento de "Índio é nós" e os milhares de mortos pela ditadura

Escrevo mais uma nota para a IX Blogagem Coletiva DesarquivandoBR, que durará até 6 de abril.

É necessário dizer novamente: as maiores vítimas da ditadura militar foram os índios. Milhares de mortos na Amazônia, muitas outras vítimas pelo Brasil, a implantação de campos de trabalho forçado (vejam a matéria da Agência Pública), usurpação de terras, estupro, tortura, a militarização da Funai... No campo e na floresta, a violência do Estado brasileiro foi muito maior. E não começou em 1964, claro - o genocídio indígena iniciou-se nos tempos coloniais. No tocante ao campo, a recente pesquisa sobre os quase mil e duzentos camponeses mortos, publicada em 2013 pela Secretaria de Direitos Humanos aponta vítimas da repressão política desde 1961, que estão dentro do alcance legal para indenizações. Ela pode ser lida nesta ligação.
É impressionante que ainda se repita que a ditadura brasileira matou aproximadamente quinhentas pessoas. E ouvimos esse número brutalmente subestimado mesmo de pessoas que trabalham com a justiça de transição, o que mostra como estamos atrasados em relação ao direito à memória e à verdade. Em relação à floresta, estima-se o montante de oito mil índios mortos somente em razão dos projetos desenvolvimentistas na Amazônia, como bem lembra o jornalista Leão Serva.
Também impressiona que se repita que as Comissões da Verdade não estão trazendo nada de novo. Alguns historiadores do passado recente, que deveriam estar acompanhando mais de perto a questão, não perceberam que terão que rever seus livros. Na Comissão Nacional da Verdade, Maria Rita Kehl é responsável pela investigação dos crimes cometidos contra esses povos. Ela voltou recentemente do Paraná, onde também houve genocídio. Leiam esta matéria de Tadeu Breda para a Rede Brasil Atual, "Nos 50 anos do golpe, CNV ouve relatos sobre 'êxodo guarani' no Paraná". Um dos testemunhos é do índio Casemiro Pereira:
Casemiro contou à CNV que se deu de maneira violenta a expulsão dos guarani que viviam nas áreas prestes a serem tomadas pelas águas da barragem, nos anos 1980. "Tinha muito guarani, mas queimaram casa. Incra fez isso. Trouxe militar e expulsou e matou gente lá", relatou, explicando que, antes de a represa tomar conta de tudo, a aldeia se chamava Jakutinga e tomava um amplo pedaço de terra à beira rio. "Não sei quanta gente morreu, mas foi mais da metade. Alguns fugiram para o Paraguai."
Por conta da necessidade de desarquivar esse passado, ainda tão presente na opressão aos índios, a campanha Índio é nós, (a mobilização nacional, neste abril de 2014, em prol dos direitos e terras indígenas no Brasil) preocupou-se com a questão da justiça de transição. Em seu lançamento paulista, neste dia cinco de abril, na Casa do Povo, trará Maria Rita Kehl e Marcelo Zelic, pesquisador que encontrou o Relatório Figueiredo. Esse relatório documentou os crimes contra os povos indígenas no Brasil cometidos na época e pelo SPI, o Serviço de Proteção ao Índio.
David Martim, índio Guarani da Terra Indígena Jaraguá, falará do problema de demarcação dessa TI e também da Tenondé Porã, na Grande São Paulo, que dependem apenas da assinatura do Ministro da Justiça. Índio é nós está apoiando a petição dos Guarani, que eu também assinei, para que o Ministro não tarde mais ainda em cumprir seus deveres constitucionais.

Ademais, o lançamento contará com as antropólogas Manuela Carneiro da Cunha e Artionka Capiberibe, a demógrafa e ex-presidente da Funai Marta Azevedo, com as apresentações artísticas de Marlui Miranda e da Cia Oito Nova de Dança. Também ocorrerá o lançamento nacional do novo número da Revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional, editada por Afonso Henriques Neto, que apresenta um especial, organizado por Sergio Cohn (que estará no evento), sobre poesia ameríndia.
No lançamento, se divulgará também a petição Índio é nós (já aberta para assinaturas nesta ligação) pela demarcação das terras dos índios (atrasadíssima, deveria ter sido concluída em 1993, segundo a Constituição da República) e respeito ao direito de consulta previsto na Convenção 169 da OIT, sistematicamente desrespeitado nos empreendimentos que se pretendem realizar em áreas que afetam os povos indígenas.
Escrevi um pequeno texto para a revista Baderna sobre a campanha:
A campanha trata dos genocídios de ontem e de hoje, que estão relacionados, como se pode perceber nos projetos de intervenção na Amazônia (Belo Monte é um exemplo) concebidos pela ditadura militar que estão sendo implementados hoje. Por conseguinte, ela envolve também a justiça de transição, isto é, a democratização da sociedade e a punição dos perpetradores de abusos contra os direitos humanos após o fim de um regime autoritário. A falta dessa justiça no Brasil evidencia-se tanto na impunidade escandalosa dos assassinos e torturadores da ditadura militar, bem como de seus financiadores, quanto na continuidade dos abusos cometidos contra os povos indígenas, à revelia dos direitos duramente conquistados, mas que permanecem em plano formal, e com o apoio de forças semelhantes às que promoveram o golpe de 1964, mas agora com a ajuda da esquerda que chegou ao poder. Como bem sintetizou Eduardo Viveiros de Castro, foi preciso a esquerda chegar ao poder “para realizar o projeto da direita”, o que certamente mostra os limites políticos e ideológicos dessa esquerda em particular.
Portanto, mesmo levando em consideração que a opressão data da colonização, é como se o golpe de 1964, para os povos indígenas, não tivesse terminado ainda.
Também por essa razão, esta campanha visa contribuir para a democratização do Estado brasileiro e, por isso, a todos interessa: índio é nós.
Nele, recordo que outra das continuidades da ditadura empregada contra os povos indígenas é o instituto processual da suspensão de segurança, que permite que razões inspiradas na segurança nacional. O Estado brasileiro foi recentemente denunciado na OEA, por índios e organizações não governamentais (como a Terra de Direitos e a Justiça Global) em razão dessa conduta autoritária.
Tanto pior para os que acham que não se deve falar no que "resta da ditadura", questão que abordei em outra nota. O silêncio sobre esses assuntos também é algo que resta da ditadura...






sábado, 7 de setembro de 2013

Desarquivando o Brasil LXVIII: Novamente, os desaparecidos ontem e hoje




É sete de setembro e, nesta data cívica, estou vestindo a camiseta das Mães de Maio (http://maesdemaio.blogspot.com.br/). 
Neste dia, muito apropriadamente, o jornal O Globo publicou, no caderno Prosa (antes também verso), longa matéria sobre "Os desaparecidos da ditadura e os democracia no Brasil" (http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/09/07/os-desaparecidos-da-ditadura-da-democracia-no-brasil-509472.asp). 
O jornalista Leonardo Cazes falou com pessoas muito relevantes para a questão, como Maria Rita Kehl, Bernardo Kucinski, Janaína Teles e Fábio Araújo. Além disso, entrevistou Pilar Calveiro, que finalmente teve lançado no Brasil seu importante livro Poder e desaparecimento (São Paulo: Boitempo, 2013): http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/09/07/o-poder-desaparecedor-da-ditadura-argentina-509469.asp
A primeira matéria aludiu à recente campanha da OAB do Rio de Janeiro, a partir de pesquisa coordenada por Michel Misse, sobre os "Desaparecidos da democracia" (http://www.youtube.com/watch?v=QKxlYT0Q5cs), que incluem o pedreiro Amarildo no regime de exceção instalado pelo sistema da UPP no Rio de Janeiro. 
Se a polícia pôde matar ao menos dez mil entre 2001 e 2011, segundo aponta Misse, de fato a democracia que temos é precária o suficiente para que, aos grupos contrários aos direitos humanos, a ditadura não seja mais necessária...
A campanha foi lançada em 27 de agosto deste ano. Nesse mesmo dia, curiosamente, o Senado aprovou projeto de lei tipificando o crime de desaparecimento forçado, o que é uma obrigação que o Estado brasileiro assumiu tornando-se parte da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado. O projeto segue para a apreciação da Câmara dos Deputados: http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/08/27/plenario-aprova-tipificacao-do-crime-de-desaparecimento-forcado-de-pessoa
Veja-se na matéria que foi destacado o caso do Estado do Rio de Janeiro, onde o número desses desaparecimentos já superaria o dos homicídios. 
As repercussões desse tipo de crime são várias e refletem-se na arte. No Museu de Arte do Rio, pode-se ver atualmente, na Coleção Boghici, uma obra de Rubens Gerchman, "Desaparecidos", pintada em 1965, bem representativa da questão na época. Dois personagens são apresentados, ambos chamados de João da Silva, que não foram mais encontrados: um trocador de ônibus e um líder sindical.
No térreo do Museu, uma obra do Projeto Morrinho, "Morrinho 2012", que representa uma favela coberta de frases e discursos, foi atualizada com duas perguntas sobre o destino do pedreiro Amarildo, a quem escrevi isto: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/07/algo-como-um-poema-os-direitos-humanos.html
O Estado brasileiro, na sua falta de renovação política, tem sido reincidente nos casos de desaparecimento. Leonardo Cazes havia me procurado para a matéria que foi hoje publicada hoje e me enviou algumas perguntas. Algumas das declarações puderam ser úteis e foram incluídas. Mas, caso alguém queira ler todas as respostas que dei, copio-as abaixo.


- O relato de algumas famílias com quem conversei apontam para uma espécie de violência que não acaba. A falta do corpo, do ritual da morte, do luto transforma essa experiência em uma dor que não termina nunca. Do ponto de vista jurídico, qual é o status do desaparecido? O desaparecimento forçado é tipificado como crime no Brasil? O desaparecimento é um crime contínuo, que não termina enquanto durar o desaparecimento?



Muitas dessas famílias descrevem algo como um luto em suspenso, e tal suspensão é mantida pela impunidade dos agentes da repressão política: a presença da dor é reforçada pela ausência de justiça. Algo semelhante foi dito pelo jurista e poeta argentino Julián Axat, membro da associação de filhos de desaparecidos HIJOS (seus dois pais foram sequestrados logo após o golpe de 1976 e nunca foram encontrados). Axat, ao comentar os julgamentos na Argentina em razão do terror de Estado durante o golpe militar, afirmou que "só a justiça tira nossos pais de um lugar difuso, de um purgatório, da instância fantasmática" (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/04/desarquivando-o-brasil-iv-o-exemplo-da.html).

Quero fazer notar que se trata, também no Brasil, de reivindicações judiciais dos parentes das vítimas, e não de vingança: isto é, tais famílias não pedem que a sorte de seus parentes desaparecidos se repita com os algozes. Elas desejam a justiça justamente para que os processos, com suas garantias formais, deem o recado aos agentes da repressão (de ontem e de hoje) de que tais abusos não devem mais acontecer.

Já em 1992 a ONU havia aprovado uma Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, considerando a prática um crime contra a humanidade, o que foi confirmado no Estatuto de Roma, de 1998, que criou a Corte Penal Internacional. O tratado específico somente foi celebrado, em Paris, no ano de 2007, e o Brasil ratificou-o no final de 2010: trata-se da “Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado” da ONU. Ainda não fez o mesmo com a Convenção Interamericana, no entanto mais antiga (1994) e celebrada neste país, em Belém do Pará. Lembro também que o artigo terceiro da Lei da Comissão Nacional da Verdade inclui esse crime entre os abusos contra os direitos humanos que estão sendo investigados pelos conselheiros.

Embora, tecnicamente, ainda falte lei nacional que tipifique o crime com sua pena, a prática já pode ser processada no Brasil como crime de sequestro. O próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu-o, ao julgar pedidos de extradição da Argentina em 2009 e em 2011, em razão de indivíduos acusados de abusos contra os direitos humanos durante a última ditadura daquele país. O STF ainda afastou a presunção de morte por ausência do corpo, o que mostra que, juridicamente, o crime não terminou. Essa qualificação jurídica corresponde fielmente a um dado psicológico: esse crime, ao suspender o luto, de fato permanece a causar sofrimento entre os familiares.


 

- A Lei de Anistia no Brasil teve um caráter de reciprocidade, estariam anistiados tanto militantes políticos quanto os agentes do Estado que cometeram crimes. Quais os impactos dessa interpretação (avalizada pelo STF em decisão recente) para a luta dos familiares de desaparecidos na ditadura militar?


O suposto caráter recíproco da lei de anistia foi um dos falseamentos da história brasileira realizados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ação proposta pelo Conselho Federal da OAB, a ADPF 153. De um lado, a lei excluiu os crimes de sangue para os opositores do regime; por outro, a oposição queria responsabilizar os agentes do regime, o que era expressamente previsto pelos substitutivos apresentados pelo PMDB, entre eles pelo então deputado federal Ulisses Guimarães, e isso também era uma das reivindicações do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA). Certos Ministros do STF chegaram a imaginar que a sociedade falou de forma soberana nessa lei, enquanto os documentos históricos provam que se tratou de projeto do Executivo, imposto por sua maioria no Congresso, e que militantes chegaram a ser presos simplesmente pela posse de panfletos pela anistia. Na minha pesquisa, encontrei vários documentos secretos que mostram a vigilância e o controle dos agentes da repressão sobre a campanha pela anistia (este é um dos textos que escrevi sobre o assunto: http://hal.inria.fr/docs/00/53/12/73/PDF/AT12_Fernandes.pdf)

Deve-se lembrar ainda que, na decisão tomada na ADPF 153, o STF considerou que a Lei de Anistia estava acima da Constituição de 1988 (reconhecendo indiretamente que a anistia dos assassinos e torturadores da ditadura é mesmo incompatível com a atual Constituição), por força de emenda constitucional feita à Constituição de 1967! Ou seja, a Constituição da democracia estaria abaixo de uma emenda da Constituição da ditadura, que já está revogada... O absurdo jurídico salta aos olhos e representa, politicamente, uma anulação da transição do país para a democracia.

Como o caso ainda não entrou em julgado (falta a apreciação dos embargos declaratórios propostos pelo Conselho Federal da OAB), a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu em sentido oposto no fim de 2010, como vários grupos, de juristas e de militantes, protestaram contra a decisão, e a composição do tribunal mudou, creio ser possível que o STF consiga se reabilitar disto que chamei, no Brasil e no exterior, de golpe judicial contra a democratização do país.


 

- A Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, já condenou o Brasil por casos como o da Guerrilha do Araguaia. No entanto, pouco ou quase nada foi feito a partir disso no Brasil. Qual o poder dessas decisões internacionais?


De fato, pouco foi realizado pelo Estado brasileiro. As condenações de tribunais internacionais têm efeitos muito diversos, variando de acordo com o que prevê o estatuto da corte envolvida. No caso da Corte Interamericana de Direitos Humanos, prevê-se a obrigatoriedade de suas sentenças, porém, internacionalmente, elas só geram o efeito, de repercussão política, de considerar um Estado fora-da-lei no tocante aos direitos humanos. Esse lamentável status do Brasil foi confirmado em 2012 pela reação da Presidenta da República e do Congresso Nacional contra a medida suspensiva aprovada (e logo depois revogada) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (que é outro órgão da OEA integrante do sistema de proteção aos direitos humanos) no caso da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, que viola diversas previsões de direito ambiental e de direitos humanos, tanto no plano nacional quanto no internacional. Tais atitudes da atual administração federal cada vez mais se assemelham, na sua reação contra o direito internacional dos direitos humanos (que reflete, por sinal, a problemática eficácia desses direitos dentro do Brasil), a táticas dos generais que presidiram o país durante a ditadura militar, o que é tristemente irônico, se lembramos do passado da Presidenta.





- É possível estabelecer alguma conexão/relação/paralelo entre os desaparecimentos da ditadura militar e os desaparecimentos contemporâneos, simbolizados pelo caso do pedreiro Amarildo, da Rocinha?


Entendo que sim. A militarização da polícia, que faz parte do triste legado da ditadura militar, conduz a um sistema que leva necessariamente a abusos, pouco importando se policiais, individualmente, são corretos. A correção e, mais do que isso, a própria legalidade não combina com tal sistema, razão pela qual a ONU já recomendou sua extinção. A militarização significa que os policiais são treinados para combater um inimigo, e não proteger os cidadãos. E quem é o inimigo para tal polícia? O ex-comandante da PM do Rio de Janeiro, ao tentar justificar a feroz investida do governo do Estado contra as centenas de milhares de pessoas na rua, candidamente revelou-o: é a própria população... Qualquer sistema que considere o povo como inimigo é incompatível com a soberania popular e, por essa razão, é irreconciliável com a democracia.

A incompatibilidade da polícia militar com um regime democrático tem nos desaparecimentos forçados, que cresceram nas áreas ocupadas por UPPs, apenas um de seus exemplos, que revelam como as práticas autoritárias permanecem para os pobres e as minorias. Contra estes, é imposto um punitivismo demagógico e criminoso, exercido tantas vezes contra inocentes e além dos limites da lei, que não autoriza a tortura, os desaparecimentos e as execuções sumárias. Mesmo na época da ditadura militar, tais práticas não eram lícitas. O regime autoritário, porém, deixou-nos esta herança da impunidade dos abusos contra os direitos humanos. Ela deve ser combatida, tanto em relação aos casos de ontem (o genocídio dos índios, a perseguição a militantes políticos vítimas da ditadura), quanto aos de hoje, como Amarildo no Rio de Janeiro, os filhos das Mães de Maio em São Paulo e, novamente, os índios, que continuam a sofrer com a cobiça sobre o que restou de suas terras.


domingo, 24 de março de 2013

Desarquivando o Brasil LIII: Blogagem coletiva e Dia Internacional do Direito à Verdade

Hoje, Dia Internacional do Direito à Verdade, ocorreram várias manifestações. Em Buenos Aires, marcha contra a "impunidad de ayer y de hoy" (http://seminariogargarella.blogspot.com.br/2013/03/marcha.html).
O Brasil começou neste ano a oficialmente festejar a data, criada pela ONU em 2010, em homenagem ao arcebispo de El Salvar Óscar Romero, assassinado em 1980. No Rio de Janeiro e em São Paulo, artistas organizaram eventos para a comemoração. Nos dois lugares, a escritora e psicanalista Maria Rita Kehl, que é um dos membros da Comissão Nacional da Verdade, apresentou os trabalhos.
O dia também foi aproveitado para o lançamento da VII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR. A jornalista Niara de Oliveira escreveu a chamada, esperando que outros blogueiros, como este, juntem-se à campanha: http://pimentacomlimao.wordpress.com/2013/03/24/vii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/
Quem não tiver um blogue próprio, poderá enviar um texto, que ele será publicado aqui: http://desarquivandobr.wordpress.com/
Pude apenas comparecer ao evento de São Paulo, que ocorreu na frente do Centro Universitário Maria Antônia, da USP, onde ficava a faculdade de filosofia dessa Universidade, e palco da conhecida batalha, em 1968, entre os seus estudantes, majoritariamente de esquerda, e os da Universidade Mackenzie, do outro lado da rua Maria Antônia. Nesta instituição, a direita dava as cartas; entre seus estudantes incluíam-se membros do Comando de Caça aos Comunistas, responsáveis pela morte do estudante secundarista José Carlos Guimarães (http://www.torturanuncamais-rj.org.br/MDDetalhes.asp?CodMortosDesaparecidos=23).

Maria Rita Kehl abriu os trabalhos e chamou José Miguel Wisnik e Celso Sim, cuja participação havia sido anunciada na coluna de Monica Bergamo (o sítio da CNV não os mencionava).
Wisnik (o músico, ensaísta, professor aposentado e ex-aluno da FFLCH) fez o discurso mais interessante do evento, contando suas memórias da antiga Faculdade de Filosofia da Maria Antônia. Explicou que ela dialogava com o mundo e preparava para ele, ao contrário de instituições de hoje que só preparam para o mercado. Tinha saudades do nome Maria Antônia, uma "potência feminina", tão diferente da sigla FFLCH, que lembrava FHC...

Ele relembrou nomes da USP que se engajaram na luta armada e morreram: Iara Iavelberg, Helenira Rezende e Suely Yumiko Kanayama. As duas últimas foram ao Araguaia e continuam desaparecidas, pois o Estado brasileiro segue descumprindo a sentença da OEA no caso Gomes Lund (http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2011/12/cumpra-se-ato-pelo-cumprimento-da.html).
 
Wisnik relembrou a despedida de Kanayama, que não chegou a lhe revelar abertamente que iria para a clandestinidade. Mas ele disse ter sentido o que aconteceria. Apesar de ele ter destacado o caso dela, na matéria da Rede Brasil Atual sobre o evento a militante e desaparecida não foi mencionada: http://www.redebrasilatual.com.br/temas/cidadania/2013/03/dia-internacional-pelo-direito-a-verdade-reune-ativistas-e-artistas-em-sao-paulo
Ele fez ainda uma afirmação muito curiosa: os torturadores seriam um tipo de "desaparecido político", o "desaparecido covarde", pois não quer aparecer... Nessa categoria, incluir-se-iam os empresários que financiaram a repressão política.

Em seguida, ele e Celso Sim declamaram, a capella, composição de Wisnik e Jorge Mautner: "A liberdade é bonita/ Mas não é infinita/ Eu quero que você me acredite/ A liberdade é consciência do limite".

A Companhia do Latão, importante grupo, dirigido por Sérgio de Carvalho, assumiu então a frente do evento. Nesta página na internet, temos a ficha técnica da apresentação: https://www.facebook.com/Companhiadolatao. Ela se estruturou a partir do texto "As cinco dificuldades de dizer a verdade", de Brecht, escrito em 1934 contra os nazistas. Elas eram coragem, inteligência, arte (de manejá-la), discernimento (de escolher nas mãos de quem ela pode ser proveitosa), astúcia.
Tratava-se  de como instrumentalizar a verdade em favor da revolução. Poetas, só os engajados: os lamentosos não eram nem aliados nem inimigos.
Enfim, temos assim, novamente, a expulsão dos poetas de uma república, não agora a de Platão, mas desta outra república comunista, a de Brecht.

Não admira que o Latão tenha escolhido Brecht, muito pelo contrário. Trechos da Ópera dos Vivos e de Augusto Boal foram também cantados, com os mesmos problemas da interessante Ópera (ao lado, Adriana Mendonça, que cantou): um elogio sem nuances da luta armada (esse espetáculo é, teoricamente, uma aplicação cênica do questionável texto de Roberto Schwarz "Cultura e política, 1964-1969") e um didatismo marxista.
Dessa forma, ouvimos canções sobre a forma universal da mercadoria e sobre o conceito de valor de troca (cantada com sensibilidade por Ana Luiza). Foram também problemáticos a falta de humor e o tom panfletário do texto do Brecht, em mais um de seus momentos autoritários de pregação ao mundo e aos poetas.
Enfim, havia muita habilidade e experiência cênicas em conseguir apresentar aquele texto, que, em mãos menos talentosas, serviria apenas a uma leitura enfadonha. A direção musical e o piano de Martin Eikmeier contaram para o sucesso da ocasião.










Musicalmente, porém, o melhor foi a seção de canções latinoamericanas de protesto, com destaque a Violeta Parra. Não sei o nome da cantora, que foi esplêndida. Se alguém puder informar... Agradeço.




Juçara Marçal cantou, acompanhada do violão de Walter Garcia, e também foi muito aplaudida.






Outro momento forte foi a apresentação da rapper Roberta Estrela d'Alva, que eu não conhecia; ela iniciou com as  estatísticas de mortos e torturados na ditadura militar (incluindo uma referência aos processos do Ustra) e nos dias de hoje. Foram exemplos as vítimas da violência policial em São Paulo, no mês de maio de 2006, e a entrega de três jovens pelo Exército ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro.
Nesse momento, no nível das escadarias, havia sido desfraldada a reprodução da imagem de várias mulheres que foram assassinadas pela ditadura militar.



Como na comemoração argentina, que era contra a impunidade de ontem e de hoje, Maria Rita Kehl chamou para falar Débora Maria, do Movimento Mães de Maio, que congrega os familiares das vítimas da violência policial em São Paulo (http://maesdemaio.blogspot.com.br/).




Essa  fala não estava programada, mas foi breve e eficaz, numa espécie de resumo do que ela discursou no lançamento do Periferia grita: Mães de Maio Mães do Cárcere (nesta nota, tratei do evento: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2012/12/desarquivando-o-brasil-xlv-perseguidos.html). A bandeira das Mães foi exposta: "Justiça e liberdade/ Memória e verdade/ Contra o terrorismo do Estado".

O bloco do Ilú Obá De Min, com muita energia, encerrou o evento, que durou aproximadamente duas horas. Ao lado, vê-se um manifestante que, desde o início, segurava o cartaz contra o senador Renan Calheiros e o deputado-pastor Marco Feliciano. 




O deputado estadual Adriano Diogo (PT/SP), presidente da Comissão da Verdade "Rubens Paiva", assistiu a todo evento, bem como Ivan Seixas, presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) e diretor do Núcleo de Preservação da Memória Política (ele pode ser visto à direita, na penúltima foto). O público não era numeroso, mas nele pude identificar o estudioso de justiça de transição Renan Quinalha, que colabora com a Comissão "Rubens Paiva", participou da campanha para a aprovação da Comissão da USP e integra o IDEJUST.

Vi escritores e amigos presentes: além de Fabio Weintraub, estavam lá Donizete Galvão, Mario Rui Feliciani, Priscila Figueiredo, Renan Nuernberger e Ruy Proença.
O pesquisador da justiça de transição, Renan Quinalha, lá também estava.
Para terminar, relembro a chamada para a VII Blogagem Coletiva #DesarquivandoBR, que durará até 3 de abril, com tuitaços nos dias 31 de março e 1º de abril a partir das 21 horas: http://desarquivandobr.wordpress.com/2013/03/24/vii-blogagem-coletiva-desarquivandobr/



sexta-feira, 11 de maio de 2012

Desarquivando o Brasil? Os nomes da Comissão Nacional da Verdade

Após alguns meses da aprovação da lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, o governo federal logrou indicar os nomes da Comissão Nacional da Verdade.
O presidente do Núcleo de Preservação da Memória Política do Memorial da Resistência em São Paulo, Ivan Seixas elogiou a escolha dos integrantes, destacando o nome de Rosa Maria Cardoso, que advogou para Dilma Rousseff e para ele, quando foram presos (e torturados) pela ditadura. Deve-se lembrar que os advogados de presos políticos eram poucos, seja pela qualidade que deveriam ter para criar saídas jurídicas apesar da abolição do habeas-corpus, seja pelos constrangimentos que tinham que passar: por vezes, eram também detidos e considerados tão subversivos quanto seus clientes.
Ela, provavelmente,  foi uma escolha pessoal de Rousseff.
Paulo Sérgio Pinheiro, com sua teoria e sua experiência nacional e internacional sobre a violência, é um nome muito interessante, bem como Maria Rita Kehl, que já atuava como jornalista na imprensa de esquerda durante a abertura política e abordou a ditadura militar em seu último livro, 18 crônicas e mais algumas. Se Pinheiro foi Secretário de Direitos Humanos na presidência de Fernando Henrique Cardoso, ela apoiou as políticas redistributivas do governo Lula (teve sua coluna no Estado de S.Paulo cancelada por esse motivo), sem ter exercido cargo público algum. 
Parece-me que eles representam a cota dos intelectuais na Comissão.
Vi quem criticasse a ausência de historiadores, porém Carlos Fico é muito convincente quando trata da impropriedade epistemológica da participação desses profissionais em uma Comissão da Verdade, que deseja criar uma "narrativa oficial, unívoca", o que não é o papel do historiador, ao menos desde o século XX. Neste vídeo de novembro de 2011, Fico trata dessa questão e explica as funções da Comissão - e elogia o nome de Paulo Sérgio Pinheiro, que já estava sendo cotado.
Na categoria dos juristas, que foi a mais contemplada na esolha presidencial, entrou o procurador-geral da república que atuou durante o governo Lula, Cláudio Fonteles (ele foi importante para a demarcação da Raposa Serra do Sol), um advogado que foi Ministro da Justiça de José Sarney, José Paulo Cavalcanti Filho, elogiado aqui por Alberto Dines a despeito de Sarney. Ele também é um recente biógrafo de Fernando Pessoa - ainda não li o livro. Do governo de Fernando Henrique Cardoso, temos outro ex-Ministro da Justiça, José Carlos Dias.
Esses três nomes denotam que o governo quis escolher membros que estivessem de alguma forma vinculados àquelas presidências, em um equilíbrio de representação política. Os anos Collor e Itamar Franco não foram contemplados, se bem entendi.
Gilson Dipp foi o perito designado pelo governo brasileiro para sustentar, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Araguaia (Gomes Lund e outros vs. Brasil) que a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 153 encerrava o problema da lei de anistia no Brasil e ponto final. Não era verdade, como se sabe. Talvez ele tenha entrado como um nome explicitamente comprometido com a lei de anistia.
O Ministro do STJ fez também declarações estranhas sobre o Judiciário brasileiro, embora o integre: "o Poder Judiciário brasileiro é um dos mais independentes e autônomos do mundo". Sabe-se, no entanto, que um dos problemas desse poder, destacado também na atuação do CNJ, ainda é a da independência dos juízes. A questão continua problemática no Brasil e foi objeto de relatório da ONU, a que referi na minha tese. Pelo menos no campo da expertise, Dipp parece-me que não era exatamente o melhor nome.
Por sinal, quem ouviu Fábio Konder Comparato discursar sobre aquele julgamento do STF não escutou a palavra "independência".
Comparato, nesta matéria publicada pela Revista Piauí, "Conciliação, de novo", de Consuelo Dieguez (a foto de abertura, de Eraldo Peres, é antológica: todos aplaudem a nova lei, exceto os homens brancos fardados), considerou, em antecipação, a Comissão Nacional da Verdade como "na melhor das hipóteses, um erro histórico; na pior, uma impostura".
Tentarei acompanhar se a prática da Comissão confirmará as palavras do grande jurista, ou se ela saberá superar os obstáculos que encontrará. Afinal, o processo político da justiça de transição já começou, mesmo antes da indicação dos nomes (eles já são um fruto desse processo), e não é possível prever em que desaguará.
Uma questão interessante é a da abrangência temporal dos trabalhos da Comissão, de 1946 a 1988, seguindo o artigo oitavo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Esse período, diferentemente do que publicou o Superior Tribunal de Justiça  e o blogue do Ministério da Justiça, não abrange o Estado Novo, que durou de 1937 a 1945 (vejam como o trabalho da Comissão será importante também para informar os Poderes políticos). Carlos Fico acertadamente afirma que essa escolha deu-se por acordo político para tirar o foco do período da ditadura militar. Decerto, mas pode também levar ao estudo das iniciativas golpistas do período 1946-1964, em que houve eleições regulares, mas também conspirações e violações aos direitos humanos.

P.S.: O novo biógrafo de Fernando Pessoa ousa terminar um poema inacabado do poeta português e, ainda por cima, colocando Cristo no meio.
Pessoa defendia o Paganismo... Vejam a singular cena a partir de 4'43'' da segunda parte da entrevista indicada nesta ligação.
P.S.2: O sítio do STJ retificou o erro histórico, deixando-o um pouco menos torto; agora, se diz que "O período vai do fim do Estado Novo"; ainda não está muito certo, pois esse regime acabou no ano anterior, 1945.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Crônicas de Maria Rita Kehl: a ditadura e o recalcado

Penso que, quando Maria Rita Kehl age, o país torna-se um pouco mais digno. E o jornalismo é uma forma de ação que ela cultiva desde a época da ditadura militar, quando a psicanalista e escritora atuou na vigiada e censurada imprensa de esquerda.
Bem mais recentes são os escritos que reuniu no seu último livro, 18 crônicas e mais algumas, publicado neste ano pela Boitempo. Na foto, ela o autografa.
Parte das crônicas que reuniu foram publicadas no Estado de S.Paulo, jornal que ruidosamente cancelou o contrato com a colunista devido a interesses eleitoreiros. Demonstrei como o jornal, quando ressuscitou a figura do delito de opinião, traiu a própria história.
Não entendo bem o título; para Christian Ingo Lenz Dunker, autor da orelha, temos aqui uma alusão ao 18 de Brumário de Marx. É possível; creio que o professor do Instituto de Psicologia da USP acerta em cheio ao ver nesta questão o cerne do livro de Kehl: "Imaginar uma separação clara e distinta entre sofrimento social e sintoma psíquico é uma das fronteiras ideológicas mais tensas e controladas de nossa época."
Tendo a autora sido testemunha da época, a ditadura militar é referida em algumas dessas crônicas. Por isso, escolhi fazer uma breve nota a respeito do livro para a Quarta Blogagem Coletiva do #desarquivandoBR, organizada pela jornalista Niara de Oliveira. O professor e jurista Murilo Duarte Costa Corrêa também está a participar.

Ao contrário de tantos escritores, ela não se vangloria do passado: "Minha modesta militância contra a ditadura não foi considerada perigosa." (p. 23). E tenta ser absolutamente lúcida: "O Brasil dói." (p. 16). Ela escreve a partir dessa dor. Em "Tortura, por que não", Kehl desvela uma pergunta que está latente na cultura autoritária brasileira; como ela escreve, "A culpa pela ferocidade da repressão recaiu sobre as vítimas. A retórica autoritária ressurgiu com a força do retorno do recalcado; quem não deve não teme; quem tomou mereceu etc. A depender de alguns compatriotas, estaria instaurada a punição preventiva no país." (p. 37-38)
Ela se refere às famílias Teles e Merlino, que tentam responsabilizar judicialmente o coronel Ustra pelas torturas e assassinatos cometidos durante a ditadura militar, bem como ao escandaloso julgamento no Supremo Tribunal Federal que considerou válida a Lei de Anistia.
Mas a crônica inicia-se com a tortura e o assassinato de um motoboy, Eduardo Pinheiro dos Santos, por nada menos do que doze (honestos e corajosos, veja-se) policiais militares: "O assassinato de Pinheiro é mais uma prova trágica de que os crimes silenciados ao longo da história de um país tendem a se repetir." (p. 37). Eis o retorno do recalcado.
Em "Educação sentimental", em que trata dos festivais de música da década de 1960, ela ironicamente lembra que Chico Buarque e Tom Jobim não precisariam de um festival "para compor a mais bela música de exílio que o país já mereceu." (p. 60) - a "Sabiá".
Em "O impensável", temos uma espécie de atualidade do DOI-Codi ("Onde o filho chora e a mãe não escuta" - frase inexata para os casos em que pais e filhos foram torturados juntos, como aconteceu com a família Teles) nos assassinatos cometidos pelo Exército no Morro da Providência, em 2008, no Rio de Janeiro.
O que seria o impensável? A princípio, julguei que era o horror da tortura e da execução. Mas talvez Kehl esteja a dizer que impensável também seja aquilo que ela solicita, que a "Zona Sul" das cidades brasileiras (lembremos, porém, que a Zona Sul do Rio de Janeiro tem muitas favelas) mostre-se contrária às execuções extrajudiciais de negros e pobres.
Ou talvez esta interpretação seja apenas o que penso, fruto de minha experiência. Um exemplo: semana passada ouvi um jovem professor de direito constitucional (fiquei a imaginar como ele explica a eficácia dos direitos fundamentais...) lamentando que não haja castração química para pobres; um outro professor, de ciência política, reagiu prontamente: "Nesse caso, eu não teria nascido." Eu tampouco, acrescentei. E o pior que posições autoritárias como essa não são incomuns no ensino jurídico - há quem sustente publicamente, sem ruborizar, que os torturadores são velhinhos de pijama que não podem ser punidos porque houve mais de uma teoria da justiça na história da humanidade - e então não saberíamos o que é justo...
Quem o saberia - o pau-de-arara? É dessa miséria teórica, galhardamente reproduzida em faculdades de direito, que se nutrem os juristas que irão servir ao poder.
Se essa cultura está presente (e Kehl bem o demonstra nesse livro), por que a ditadura não volta? Creio que o retorno formal da ditadura não se dá porque ela não é necessária. Uma democracia em que possam ocorrer Belo Monte e os esquadrões de morte não precisa de um ditador que roube os direitos da cidadania. O risco de volta à ditadura somente será real se a democracia tornar-se efetiva...

P.S.: Vejo agora que o historiador Fabiano Camilo e também o blogue Ousar lutar! Ousar vencer! participam desta campanha.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Edições, história, censura: a imprensa de ontem e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

A Imprensa Oficial do Estado de São Paulo tem cumprido a função que uma editora pública deve assumir: a publicação de obras de grande valor que são desprezadas e/ou ignoradas pelas editoras comerciais, ou que simplesmente exigem investimentos muito grandes, que uma empresa privada relutaria em fazer.
Hubert Alquéres, que foi seu diretor desde 2003, deixa-a. O governador Alckmin escolheu para substituí-lo Marcos Monteiro, tesoureiro do PSDB (função que provavelmente lhe conferiu alguma experiência em edição).
Quero destacar somente duas das várias iniciativas de recuperação da memória por esta editora. Uma delas, na gestão de Sérgio Kobayashi, a coedição com o atual Correio Braziliense do periódico homônimo do século XIX: o primeiro jornal brasileiro, editado por um homem só, Hipólito José da Costa.
Ele era impresso em Londres (no Império britânico havia liberdade de imprensa, não no português) e era distribuído aqui mais ou menos clandestinamente. O jornalismo brasileiro teve que nascer em exílio.
Circulou entre 1808 e 1822. Com a independência do Brasil, o jornal foi extinto por seu dono e redator, pois a missão estaria cumprida.
A edição fac-similar reserva momentos como esta reflexão, publicada pelo jornalista em dezembro de 1815 a partir da abolição do tráfico de escravos na França:

Consideramos por fim a utilidade da aboliçaõ da escravatura em outro ponto de vista. Nós temos sempre insistido na necessidade de abolir a forma de governo militar nas provincias do Brazil, o nosso periodico está cheio de clamores contra tudo quanto he authoridade arbitraria; temos mil vezes arguido, que os povos do Brazil tem direito a gozar daquella liberdade racionavel, que consiste em naõ estar sugeito se naõ ás leys, e naõ ao arbitrio dos que governam; &c. Ora ¿ como pòde um senhor, no Brazil, gozar destes beneficios; quando tem debaixo de seu poder um escravo, para quem olha quasi com a mesma consideraçaõ, como para o seu caõ, ou o seu cavallo?
¿ Como he possivel, que o homem branco profira os seus desejos de gozar de liberdade, tendo ao pé de si o negro escravo em todo o rigor da palavra?

A mentalidade escravista não morreu, e a ditadura militar deu-nos vários exemplos disso. Ainda no campo da história da imprensa brasileira, outro caso é o jornal ex-, que durou muito menos do que o anterior (de novembro de 1973 a dezembro de 1975) e foi fechado pela censura direta (militares na redação, prisão e tortura de jornalistas) e indireta (ameaças aos anunciantes) do governo ditatorial.
Em 2010, foi relançado, de forma fac-similar, em coedição da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo com o Instituto Vladimir Herzog.
É de lembrar que foi esse jornal o que fez a reportagem pioneira sobre o assassinato de Vladimir Herzog no Destacamento de Operações Internas do II Exército, o que precipitou o fim do periódico, mas abriu portas para outros veículos da imprensa.
De um número extra desse jornal, de setembro de 1975, retiro citações que contrastam com certas posições sobre a imprensa brasileira de hoje.
Escrevi sobre o fim da coluna de Maria Rita Kehl no Estado de S. Paulo, como expressão de uma função censória. Li, no entanto, pessoas que sustentaram que os jornais devem expor apenas a voz do dono, que é dono das vozes que emprega (mesmo os colunistas!), pelo que nada demais teria ocorrido.
O que eu não sabia é que o acontecido colidiu com valores que já foram defendidos pelo próprio jornal, contrários à posição dessas pessoas. Pelo menos é o que se pode deduzir de fala de Ruy Mesquita, então diretor do Estado de S. Paulo e do Jornal da Tarde, no Grupo Educacional Equipe em São Paulo em 1o. de setembro de 1974.

[os jornalistas do Estado de S. Paulo] nos seus 98% discordam da orientação dos diretores do jornal e têm absoluta liberdade de escolher as notícias, assim como para estabelecer a hierarquia das notícias. O jornal O Estado de São Paulo, como todos os outros grandes jornais noticiosos do mundo, procura dar toda informação possível, sem nenhum critério ideológico ou político. (p. 4)

Quanto à orientação do jornal, é evidente: não há liberdade quanto à orientação da página editorial - quem dá a orientação são os diretores do jornal. Quanto ao trabalho dentro do jornal, há total liberdade com uma única recomendação: de se manter a objetividade humanamente possível na elaboração do noticiário. (p. 5)

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Nota sobre duas vezes Kehl

Escrevo por conta de duas menções feitas neste mês de dezembro de 2010 à autora. A última edição da revista Cult (153) apresenta na capa Maria Rita Kehl, sobre quem já escrevi a partir a propósito do fim de sua coluna no Estado de S. Paulo. Não é a matéria mais interessante do número, pois a entrevista passa ao largo de suas obras. Outra que está no mesmo número, com Eduardo Viveiros de Castro, é mais reveladora. Estranhamente, pois o número conta com um dossiê sobre o tempo, nada se perguntou sobre o tema (sobre O tempo e o cão, pode-se ler esta entrevista concedida ao Estado de S. Paulo). Pelo menos, da mesma forma que na entrevista que concedeu a Caros amigos de tempos atrás, seu trabalho com o MST foi destacado.
O último número (41) da edição brasileira de Le monde diplomatique conta não com uma entrevista, mas um texto sobre ela, escrito por Fábio Salem Daie com uma boa dose de ironia: Kehl estaria "fora de moda" ao lembrar que existem classes sociais, contra certas correntes teóricas multiculturalistas e vertentes neoliberais. Isso teria levado ao fim de sua coluna quinzenal.
De fato, ela busca pensar livremente, sem se moldar por conformismos, seja intelectuais, seja midiáticos. Lembro desta passagem de Videologias (São Paulo: Boitempo, 2004, livro que reúne ensaios seus e de Eugênio Bucci):

[...] quanto às análises empreendidas, tive a impressão de que a preocupação com o rigor acadêmico tolheu a liberdade e a criatividade dos autores, que em geral descrevem exaustivamente os respectivos campos de investigação, mas não arriscam muito na interpretação teórica dos dados. (p. 175)

Kehl não teme arriscar. Nas vezes que a vi falar (sobre utopia, arte, tevê), seu discurso sempre era animado por alguma audácia - que pode ser conferida nos livros e no portal da autora. Na entrevista dada à Cult, lemos que "A clínica nos obriga a ter humildade; não se faz teoria aplicada."
Essa humildade diante da realidade, creio, obriga a essa audácia de não se deixar acorrentar pela teoria. Se tivesse se dedicado à docência, teria conseguido manter essa postura? Creio que sim: os carreiristas é que não a mantêm, bem como aqueles que não possuem pensamento próprio.
Mas se, apesar de sua formação acadêmica, Kehl não se dedicou a uma carreira docente universitária, ela não deixa, a seu modo, de ensinar. Tento aprender.