O aluno que encontrasse contradição entre as declarações mereceria uma nota baixa. É evidentemente possível ser pessoalmente contra algo que se queira descriminalizar. Não acho que adultério deva ser crime, porém não pretendo cometê-lo nem quero que o façam comigo.
É difícil entender isso? Difícil é fazer com que isso não se entenda, mas a esse nefasto ofício (uma forma de privatização da esfera pública) se dedicam veículos impressos como esse.
A aposta na irracionalidade por essa imprensa no Brasil explica que a inteligência tenha de ser demitida, como foi o caso de Maria Rita Kehl no Estado de S. Paulo.
Conheço pessoalmente a escritora e psicanalista. Sua trajetória na imprensa começa no fim dos anos 1970, quando, muito nova, militou na imprensa alternativa. Em minha pesquisa nos documentos do DEOPS/SP, vi como ela e outros eram acompanhados pela ditadura militar.
Conheço pouco de psicanálise, porém me atrevo em dizer que a considero um dos maiores intelectuais brasileiros. O que escreve e diz vai muito além dos muros de uma disciplina: convoca os diversos saberes sociais, como se vê em seu O tempo e o cão (ainda se pode votar nesse livro para o prêmio popular Jabuti de não ficção: http://www.cbl.org.br/jabuti/telas/voto-popular/). Nada mais adequado para uma fala vocacionada para a esfera pública.
Contra essa fala, os conservadores empunham a censura. Ela acabou depois da vedação na Constituição de 1988? Como órgão do Estado, apenas. A censura continua, inscrita no seio da sociedade, como bem lembra meu brilhante amigo Alexandre Nodari: http://jornalurtiga.blogspot.com/2009/08/censura-ja-nao-precisa-mais-de-si-mesma.html (e sobre que eu mesmo escrevi, numa perspectiva do direito internacional: http://idejust.files.wordpress.com/2010/04/ii-idejust-fernandes1.pdf)
Chico Buarque, no disco Almanaque, gravou a canção "A voz do dono e o dono da voz", em que retratou sua briga com a Polygram. Quando o jornal faz com que todas as vozes submetam-se ao mesmo dono, troca-se a polifonia por um ruído de uma nota só. O empobrecimento é evidente.
Que a única voz seja a voz do dono, eis a distopia dessa imprensa; Kehl escreveu bem o oposto em sua última coluna para o Estado de S. Paulo, dedicada a desmistificar preconceitos contra o Bolsa-Família, que encobrem outros: http://www.cartacapital.com.br/politica/dois-pesos%E2%80%A6-maria-rita-khel-diz-tudo A desvalorização do voto dos pobres revela o desejo de que não sejam donos de sua própria voz. Eis o que indigna tantos: qualquer odor, mesmo distante, de justiça social, de mudança na partilha do comum. Trata-se de um exemplo de "escândalo democrático", como diria Rancière.
A mesma postura estava no texto "Repulsa ao sexo" http://antoniocicero.blogspot.com/2010/10/maria-rita-kehl-repulsa-ao-sexo.html, também publicado naquele jornal, em que argumentava como a criminalização do aborto representava um aspecto do domínio patriarcal sobre o corpo da mulher, e do castigo por separar o prazer sexual do dever de procriação.
Volta-se, pois, ao aborto, bandeira aparentemente abandonada por Mônica Serra, mas reavivada há pouco pela voz teocrática de Ratzinger (talvez esperando que Locke estivesse certo ao afirmar que os católicos obedeceriam ao soberano de Roma).
Algo semelhante ocorreu há pouco em Portugal. Eduardo Pitta conta, em seu blogue Da literatura (indico a ligação ao lado), o uso de declarações da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen pelo PPV, Partido Português Pró-Vida:
Um deles, Maria Andresen, é peremptória: «Uma coisa era a minha mãe ser pessoalmente contra o aborto e outra estar contra a sua legalização. Conversámos imensas vezes sobre isso e sei que a minha mãe sempre recusou militar em qualquer movimento anti-aborto, precisamente por respeitar a liberdade de consciência de cada um.»
http://daliteratura.blogspot.com/2010/10/invocar-sophia-em-vao.html
Porém, em Portugal, esse partido só teve 0,15% dos votos... Seria tão bonito que o mesmo ocorresse no Brasil...
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