O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Ah! non credea mirarti: Maria Callas no cinema

A exposição sobre a grande cantora não veio ao Brasil, porém o filme de Tom Wolf, "Maria by Callas", "Maria Callas em suas próprias palavras", chegou aqui um ano depois do lançamento.
O filme tem como princípio apresentá-la a partir de suas entrevistas e de cartas, algumas inéditas, que são lidas por Fanny Ardant, a célebre atriz que a interpretou no "Callas Forever", filme de Zeffirelli.
A escolha das cartas foi, na realidade, bem estreita; nenhuma das que enviou ao Meneghini, o ex-marido, por exemplo, foi citada. As entrevistas para a tevê não incluem aquela, "L'invitée du Dimanche", de 1969 com Visconti e Pierre Desgraupes, em que ela fala dos problemas vocais que havia enfrentado e a tinham feito interromper a carreira. No entanto, é recuperada uma entrevista, a mais citada ao longo da exibição, em que ela (como em outra, dada a Bernard Gavoty em 1964) explica que há duas mulheres, a Maria e a Callas, que possuem, no entanto, a mesma base espiritual.
Trata-se de uma opção. A versão inicial do filme tinha quatro horas. O que foi escolhido para ficar não trata muito de música, na verdade, e do repertório que ela ajudou a redescobrir e da nova maneira de interpretá-lo; compreendo a crítica de Fernando-Joseph Meyer, que detestou o resultado.
No entanto, o filme funciona, creio, por tentar jogar luz, com base nas cartas e imagens inéditas, mais em Maria, a pessoa privada, do que em Callas. A infelicidade da trajetória pessoal da cantora, que acaba por abreviar sua carreira artística, não deixa de emocionar, mesmo que o retrato seja inevitavelmente lacunoso. David A. Lowe, no livro Callas - as they saw her, de 1986, chegou a afirmar que seria impossível uma biografia íntima de Callas, uma história da mulher atrás da lenda, pois ela seria inacessível.
O filme preocupa-se em criar uma narrativa em ordem cronológica com algumas licenças, embora a escolha dos fatos apresentados seja bem incompleta (por exemplo, o sensacional emagrecimento não é mencionado, ou disputas com outras cantoras), e eles sejam alinhados sem muita explicação. Por exemplo, aparecem imagens filmadas do diretor Luchino Visconti e do tenor Giuseppe di Stefano (para mencionar somente um dos diretores cênicos com que ela teve alguns de seus maiores sucessos, e o tenor com que ela mais gravou) sem que haja nesse momento indicação de seus nomes, tampouco explicação sobre esses artistas e sua relação com Callas.
Apesar disso, "Maria Callas em suas próprias palavras" forja uma narrativa convincente em seus próprios termos: uma artista genial que a) começou a estudar bem cedo sua profissão e passou por dificuldades (muito maiores do que o filme sugere); b) tornou-se uma grande estrela, porém vítima de injustiças da imprensa e do meio musical; c) conheceu um célebre empresário grego, e eles apaixonaram-se; d) deixou gradativamente sua carreira e acabou perdendo a coragem de apresentar-se em público; e) foi traída pelo homem que amava e, para voltar à ativa, fez um filme, sem cantar, com Pasolini, "Medea", um papel que já era, como ela mesmo diz, uma culminação e um fim (com efeito, ela jamais faria outro); f) fez uma turnê que seria sua despedida do público; g) seu grande amor retorna, o casamento dele tendo naufragado, mas morre logo depois (o filme nada diz, mas ele foi afetado por miastenia); g) ela, deprimida, falece repentinamente aos 53 anos, quando ainda se preparava para retornar à ópera.
Callas era uma artista muito original, e por isso continua, pelo que li, a ser a cantora de ópera que mais vende discos no mundo, quarenta e um anos depois de sua morte, quando tantos colegas de geração se tornaram meros nomes, ou foram esquecidos.
Ela foi muito combatida: se estava certa, a crítica, a imprensa e os outros músicos, animados por outras concepções, mais antiquadas, do que significava o drama musical, deveriam estar errados, e ela foi alvo de ataque de todos esses setores; não por acaso, as imagens filmadas de seus grandes anos na Itália não passam de flashes: apresentações como o Macbeth, de Verdi, no Scala de Milão, ou a Lucia di Lammermoor, de Donizetti, em Nápoles foram filmadas pela televisão, mas apagadas para que outros programas fossem gravados por cima, como se fazia com tudo que não se achava ter valor histórico.
Por essa razão, seus anos de celebridade, antes de 1958, são mostrados no filme com meros flashes, muitos deles de bastidores ou de aplausos no fim de apresentações, ao som de uma das gravações de estúdio mais impressionantes que ela fez, o "Bolero" de I Vespri Siciliani, de Verdi, com o mi sobreagudo no final: extensão e agilidade extraordinárias que, ao contrário de outros cantores, não se reduzem a um fim em si mesmo, pois estão a serviço da expressão. Realizando as indicações da partitura, Callas aponta para além da música e sabia habitar de sentido até mesmo as pausas. Vejam, por exemplo, este começo da ária do último ato de Don Carlo, de Verdi (ela não está no filme): https://www.youtube.com/watch?v=g4R0ROFxLsk
Boa parte dessas pequenas passagens filmadas de Callas nos anos 1950 foi colorizada no filme de Tom Wolf. Os originais são todos em preto e branco, inclusive a "Casta diva", da ópera "Norma", de Bellini, que ela interpretou em sua estreia na Ópera de Paris, com uma fraca execução do coro, apesar de estarem todos os cantores (menos a solista, claro) com as partituras na mão.
Um momento interessante, bem no início do filme, é o dos flashes dela em Chicago cantando a entrada da Butterfly, de Puccini (o filme não o diz, mas a jovem Leontyne Price assistiu Callas nessa produção, em Puritani e Norma na mesma cidade e, maravilhada, decidiu dedicar-se à ópera). Não temos, infelizmente, o som dessa apresentação; no entanto, em alguns momentos, consegue-se coincidir a breve cena de entrada da personagem com a gravação de estúdio que ela fez com Karajan.
Temos apresentações completas filmadas de ópera de outros grandes artistas da época; de Callas, a maior de todos, nenhuma. O mais próximo disso é o segundo ato da Tosca, de Puccini, em Londres, em 1964, seu penúltimo ano em ópera. O filme mostra a cantora interpretando a ária, "Vissi d'arte", enxertando um aplauso falso no fim (a apresentação ao vivo não foi interrompida nesse momento).
Foi a imprensa italiana que decidiu destruí-la quando ela momentaneamente perdeu a voz, doente por causa da falta de aquecimento, durante o inverno, na Ópera de Roma, e não completou a apresentação de Norma em 2 de janeiro de 1958. Inventa-se que ela decidiu não continuar a récita para insultar o presidente italiano e o próprio país. Algumas pessoas acharão estranho que uma cantora de ópera cancelar uma apresentação se torne a principal notícia de jornais no mundo, mas tal era a celebridade de Callas e os ânimos e controvérsias que ela despertava. Era a época em que, para explicar a importância da China, o príncipe do Camboja afirmou para o jornal Le Monde: "Em resumo, a China é como a Callas" (isso não está no filme, porém).
Ópera, especialmente a italiana, é algo muito passional. Tanto que ela recebeu diversas ameaças de morte na Itália. Quando voltou ao Scala de Milão, poucos meses depois, havia policiais até no palco.
Sergio Segalini (no livro Callas: les images d'une voix) vê nesse escândalo mundial o começo do fim da carreira de Callas, e Tom Wolf também o trata assim. Ouvimos, para enfatizar essa virada, "Addio del passato", da Traviata, que Callas cantou em Lisboa em 1958. Essa récita subsistiu integralmente em áudio; passagens do segundo e do terceiro atos, em vídeo.
No fim do mesmo ano (1958; a legenda em português do filme erra indicando 1953), ela foi despedida do Metropolitan, e as declarações dela, na época, sobre a "rotina" e os baixos padrões artísticos daquele teatro eram bem verdadeiras (a situação hoje é muito distinta; James Levine, desde os anos 1970, elevou em muito os padrões musicais). Novo escândalo. Outro maior viria, porém, depois de alguns meses: a imprensa mundial entrou em polvorosa em razão do romance com Onassis e da separação do marido italiano em 1959.
Em 1957, o filme não mostra, ela já havia tido muitos problemas: entre eles, havia sido traída pelo Scala de Milão por conta de apresentações em Edimburgo e foi ameaçada de não poder mais cantar nos Estados Unidos, em queixa movida pela ópera de San Francisco simplesmente porque ela teve problemas de saúde e não pôde aparecer nos ensaios de Lucia. Callas cancelou poucas apresentações em sua carreira e foi tratada com uma severidade imensa quando o fez, além de ter sido alvo contumaz do que hoje se chama de fake news. Em "Os grandes anos", a seção escrita por Gerald Fitzgerald no volume Callas, dele e de John Ardoin, o autor cita o tenor Jon Vickers, que aprendeu com Callas muito sobre o palco, "mas também como se pode distorcer a imagem pública de um artista. Era uma companheira formidável".
Entende-se que ela tenha desistido de lutar. Mas, sem luta, não há arte, ao menos neste gênero. O filme mostra o início de apresentação dela na Grécia, em 1964, com piano, cantando "Voi lo sapete, o Mama", da Cavalleria Rusticana, de Mascagni; Eu nunca tinha visto aquelas imagens: ela confessa ao público que fazia meses que não praticava o canto (nesta ligação, temos apenas um filme mudo dessa ocasião; nesta outra, o áudio do início da ária; o filme também não mostra o trecho completo).
Da mesma forma que um maratonista não pode ficar meses sem treinar, um cantor lírico não pode ficar inativo: os músculos e a respiração se ressentem. René Fleming, creio que com razão, aponta o problema de apoio como a principal razão do declínio vocal de Callas. O filme não trata disso, no entanto lembro que muitos atribuem o problema ao emagrecimento radical que ela sofreu, mas sua amiga e colega, Giulietta Simionatto, grande meio-soprano, acreditava que as raízes eram bem anteriores: na Grécia, ainda adolescente, Callas cantou Cavalleria Rusticana; Tosca, aos 18 anos, algo que nenhum professor de canto recomendaria hoje. Depois, interpretou Tiefland e Fidelio! Se não tivesse viajado para os Estados Unidos, ainda teria interpretado a Senta de Wagner... Com esses papéis pesados, assumidos tão cedo, ela teria comprometido o diafragma, o que explicaria a vacilação temporária no registro agudo mesmo durante seu auge vocal, que se tornou constante de 1960 em diante, época em que passou a viver com Onassis.
No cruzeiro do milionário grego, conta Zeffirelli em sua autobiografia, não havia piano: o companheiro da maior cantora não gostava de ópera nem de ouvi-la praticando. O declínio vocal certamente foi acelerado por isso, além das diversas doenças que ela teve, que mal são mencionadas no filme.
Paralelamente a isso, ela perdeu a coragem. O barítono Tito Gobbi, que esteve ao lado de Callas nas suas últimas apresentações de Tosca, e com ela gravou essa ópera duas vezes (bem como outras,  foi o barítono com quem ela mais trabalhou em estúdio), e não é mencionado no filme, disse que Callas parou não por causa da voz, e sim dos nervos, e é o que ela confessa nas cartas que são citadas no filme.
"Maria Callas em suas próprias palavras", vale, enfim, pelo magnetismo da cantora, os flashes tão sugestivos, as árias filmadas ao vivo. É grande o impacto de sua voz na sala de cinema. Felizmente, o som dos concertos nos anos 1970 não foi reproduzido.
Além das que mencionei, aparecem as árias "Vieni, t'affretta!", de Macbeth, em Hamburgo em 1959, sem o recitativo, provavelmente cortado por Wolf no filme porque ela emitiu mal o dó agudo nesse trecho, estando muito resfriada na ocasião; "Ah! non credea mirarti" da Sonnambula em 1965 para a tevê francesa (também, no filme, sem o recitativo, provavelmente por razões de tempo); a "Habanera" da Carmen em concerto Londres em 1962.
Esse impacto é o que faz suspender o juízo crítico. Não importa que o filme não esteja à altura da sua personagem, nem mesmo consigo imaginar um cineasta que seria capaz de tal façanha. Da primeira vez que o vi, não consegui nem mesmo ler os créditos, pois, enquanto eles correm, do outro lado da tela vemos Callas cantar "O mio babbino caro" com a regência de Prêtre para a tevê francesa em 1965, e não é possível prestar atenção em mais nada enquanto ela recria o mundo.

domingo, 16 de dezembro de 2018

O roteiro da humanidade segundo Alberto Pimenta: Pensar depois No caminho


Quando um escritor da dimensão de Alberto Pimenta lança livro novo, sobram motivos de júbilo não apenas para o meio literário português, ou para o lusófono, mas para todos os falantes da língua: pois ele, o autor, a amplia, a renova, quando renova a si mesmo. E é o que continua a fazer, depois de ter completado oitenta anos de vida, ao lançar o volume Pensar depois No caminho (Lisboa: Edições do Saguão, 2018).
Neste ano, foi lançado o genial filme de Edgar Pêra, "O Homem-Pykante - Diálogos com Alberto Pimenta" (em Portugal, em maio; no Brasil, foi exibido em outubro), que trata do performer, artista plástico, professor, escritor, todas essas atividades de Pimenta. Este livro não entrou no filme, mas ouso dizer que ainda ampliaria o retrato cinematográfico do autor, se tivesse havido tempo para tratar desta nova publicação.
Hugo Pinto Santos, para O Público, escreveu a resenha "A épica do presente contínuo", destacando os traços surpreendentes das configurações que o épico encontra nesse livro: "nem seria improvável encontrar no poema de Alberto Pimenta um plano dos deuses, um plano da História, da viagem, e do poeta." O crítico afirma, com razão, que "todo o trabalho de Pimenta é risco e imoderação. A sua actuação é de uma permanente imponderabilidade. O poema, este poema, é uma imparável máquina produtora (e revolucionária) de sentidos."
Hugo Pinto Santos destaca que ele fez algo parecido com Autocataclismos, livro de 2014, em que duplas de tercetos, postas lado a lado na mesma página, podiam ser lida separadamente ou em conjunto, uma após a outra ou juntando os versos da mesma linha dos tercetos diferentes (como neste).
A capa, de Rui Miguel Ribeiro a partir de uma ideia do próprio poeta, anuncia a curiosa estrutura do livro: no começo, temos apenas Pensar depois; na página 63, irrompe No caminho que, impresso com uma fonte diferente, passa a ocupar as páginas ímpares. Os livros podem ser lidos separadamente ou como uma unidade. Pimenta experimenta a forma do livro, que, ademais, não termina quando seria previsível: vejam a página do colofão, ele continua. Talvez não tenha terminado ainda, assim como o próprio caminho.
Pensar depois começa com uma cosmogonia satírica, que parte dos deuses greco-romanos e do deus e do diabo cristãos. O tempo é algo mascado por deus, um chiclete

com que o velho senhor
por falta de melhor
ensaliva as suas velhas gengivas
estica a sua infinita língua
ao longo do espaço sem fim
depois encolhe outra vez
é o fio a encolher
e quando adormece e o chiclé cai
é uma estrela cadente
ou se arrota é um vulcão
serve só para o acordar
o diabo coça a orelha
é de facto uma pastilha

o tempo
é uma grande pastilha

a esta imagem do tempo universal
feita do chiclé do velho
o diabo e os homens
criaram a economia
as reservas esticam e encolhem
depois caem
são um longo arroto [p. 53]

Chegam as transações mercantis, a moeda, depois o capitalismo e o uso dos combustíveis fósseis. Nesse momento, No caminho surge: "rumo a este mundo n ovo", com "o verbo f eito verba" e uma assembleia geral de acionistas, recheado de textos estatutários de sociedades anônimas. Ele é mais abertamente experimental do que o outro livro, em razão dos procedimentos de colagem e da espacialização dos versos e das palavras.
Os dois livros, separados ou juntos formando um terceiro, marcam-se, evidentemente, pelo anticapitalismo. Neste volume, o capital explodirá, mas não contaremos como.
A devastação ambiental e a divisão de classes voltam a ser objeto da poesia de Pimenta; cito este trecho de Pensar depois:

ora
composto  mundo de agora
em essência e substância
de pessoas comuns
mais o lixo que lhes pertence
que ainda não é comum
mas vai ser
os que tossem
quando mexem nele
consideram-no tóxico
mas saber isto ao certo
vai no fim depender
de serena composta
interdisciplinar reflexão governamental
a realizar na primeira sessão do ano
porque é este
o mundo que está
e em que todos estão
o lixo comum mais
as suas pessoas [p. 110]

Aqui temos uma crítica ao "O AN  T    R AP          O C        E NO" (p. 196), que, após a explosão que acontece perto do fim do volume, vai transformando-se em trapos, "ant      a trapo  sem   o". Este é o guião ou roteiro da humanidade que Pimenta ousa apresentar neste volume.

  Tróia      já   passou
   ficou       o   rasto   cresc   eu
  aqui ainda    é     o resto
   acabou-se
a história é histo
     a festa        acabou
     ficou     a louça   para  lavar

venceram os heróis
   não    eram    ainda
                    accionistas
          mas  já  se  adivinhava
que  viriam  a  ser [p. 79]

Se lemos isoladamente No caminho, o livro das páginas ímpares, esta passagem da página 81 tem como sujeito os acionistas, mencionados na página 79:

-----------simplesmente
enquanto ----eles
---fizeram -o -deles- para
--ganhar -------para si ---e para nós
---noite e dia
para dia
nós
---fizemos -para -nós
-----------e --os nossos
os- nossos -filhos
---e netos  ---muitos são --
--------------grandes-- influencers
com-- incontáveis--- milhares
---de followers

No entanto, se lemos os dois livros como se fossem um só, esta passagem da página 81 tem como sujeito deus e diabo, referidos ao fim da 80: "como deus gosta/ e o diabo também".
Nesse ponto, como em outros do volume, Pimenta parece sugerir que esses termos, não propriamente da economia ou campo da administração, e sim para chegarmos à degradação teórica que rege o imaginário de hoje, do marketing digital (e Pimenta já havia tratado das consequências funestas dessa degradação do imaginário no al-Face book, livro de 2012), são (parodio Carl Schmitt aqui) conceitos teológicos secularizados. Ou talvez sugira que a fé típica do capitalismo, para empregar um trocadilho de Heine, seja o crédito... A cosmogonia satírica de Pensar depois encontra seu lugar como crítica desse imaginário.
A sátira é elevada ao nível formal: havendo dois livros que realizam um terceiro (pensando depois no caminho da leitura...), Pimenta adotou a santíssima trindade como estrutura...  A dimensão escatológica do livro, adequada à dimensão do fim do mundo própria do capitalismo e do antropoceno, encontra a forma propícia.
Por sinal, pode-se entender que os sujeitos possíveis da página 81 são iguais, e que deus e o diabo são os acionistas majoritários de uma grande empresa de guerra e destruição, e que é "mais difícil resolver/ sem ser por morte esfaimada/ a sorte dos estropiados de guerra" (p. 148).
Neste longo roteiro que Pimenta traça da humanidade, passam o nazismo e seus fãs atuais, ainda com seus fãs em Portugal (nem preciso lembrar do Brasil, onde as eleições os deixaram animados), tentando sequestrar a cultura para a glorificação do extermínio:

mas houve quem
por esse tempo escrevesse
um braço no papel e o outro erguido
que sem as Fugas de Bach
a Marcha Hohenfriedeberg
a gloriosa Marcha dos batalhões nazis
perdia o seu sentido
assim como o Fausto
se tornava mero jogo no vazio
sem o som das
botas prussianas a marchar

não experimentei
tenho ali o texto
falta-me o disco
com a marcha da Prússia
e aqui fica mais este conselho às
lusas habilidosas
bibliosas indústrias
talvez a marcha
devesse acompanhar
o heróico uivo
do Adolfkampf
que tantos fãs e afãs congrega
neste país onde ainda cantam galos
e cresce a uva colhão deles um só
como parece que era o caso [p. 160]

Perto do final de um dos grandes livros de teoria literária da segunda metade do século XX, O silêncio dos poetas, publicado pela primeira vez em italiano pela Feltrinelli há 40 anos (uma efeméride), Pimenta fez algo que somente um poeta ousaria fazer: um poema antes do epílogo, "Terceiro excurso" (na edição de 2003, o "Epílogo a modo de epílogo" seria substituído por outro poema, e assim o livro passou a acabar com dois poemas), que representa um caminho para o silêncio. Ele começa com "Já reparaste que tens o mundo inteiro/ dentro da tua cabeça".
Esses dois versos retornam, transformados, nesta obra de 2018 perto do fim do volume: "já reparaste como tiveste o mundo inteiro" como nota final de Pensar depois, e "dentro da tua cabeça", que exerce a mesma função em No caminho.
Ao roteiro da humanidade que Pimenta audaciosamente traça neste volume, o poeta dá esse final melancólico, já anunciado no decorrer do(s) poema(s), especialmente depois de referir-se à descoberta da radioatividade e à Madame Curie. Pimenta confisca a ópera de Manuel de Falla para seus fins:

logo passado um ano
Manuel de Falla
compôs para tanto avanço
A Vida Breve
tão pouco dia para tanto ocaso
tanto sol e tanta sombra
durante todo
o rápido solfejo da vida
sustenida progressão
até ao bemol final
tanta satisfação da riqueza
até à penúria final [p. 118]

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Desarquivando o Brasil CL: Notas sobre o AI-5 nas comissões da verdade brasileiras

Já escrevi uma nota mais longa sobre o Ato Institucional n. 5 (AI-5) em 2013, quando ele fez quarenta e cinco anos. tentando explicar o que ele significou para o direito brasileiro. 13 de dezembro de 2018 foi o dia do cinquentenário, e o #DesarquivandoBR chamou um tuitaço para a ocasião: https://twitter.com/desarquivandoBR/status/1071887497959890944
O AI-5 foi uma porta de entrada para ações arbitrárias, como os crimes contra a humanidade que eram o modus operandi do governo, não por tê-los legalizado, mas por ter cerceado o direito de defesa e as liberdades em geral, inclusive a de imprensa, e também para uma série de normas repressivas, como o Decreto-Lei nº 477, de 26 de fevereiro de 1969, que tinha como finalidade reprimir os trabalhadores da educação e os estudantes.
O AI-5 fez uma previsão geral, e as punições individualizadas eram feitas por meio dos atos complementares. Apesar de ser uma norma, em seu espírito, incompatível com o constitucionalismo, políticos antidemocráticos alinhados com o regime propuseram que o AI-5 fosse incorporado à Constituição; foi o caso de Paulo Maluf, como lembra Elio Gaspari em A ditadura escancarada.
A norma também foi utilizada "como instrumento de política econômica e até mesmo em matéria fiscal.", como lemos no parágrafo 90 do tomo I do volume 1 do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV). A CNV o denomina de "segundo ato fundador da autodesignada revolução", o que é verdadeiro.
No entanto, o mais interessante na CNV, a meu ver, sobre o AI-5, é a relação dessa norma com os genocídios cometidos contra os povos indígenas durante a ditadura militar. A matéria está no segundo volume do relatório. O relatório divide dois períodos: " o primeiro em que a União estabeleceu condições propícias ao esbulho de terras indígenas e se caracterizou majoritariamente (mas não exclusivamente) pela omissão, acobertando o poder local, interesses privados e deixando de fiscalizar a corrupção em seus quadros; no segundo período, o protagonismo da União nas graves violações de direitos dos índios fica patente, sem que omissões letais, particularmente na área de saúde e no controle da corrupção, deixem de existir. [...] A transição entre os dois períodos pode ser datada: é aquela que se inicia em dezembro de 1968, com o AI-5." Além disso, "O ano de 1968, na esteira do endurecimento da ditadura militar com o AI-5, marca o início de uma política indigenista mais agressiva – inclusive com a criação de presídios para indígenas."
A Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva" explicou, por sinal, como o AI-5 teve o efeito de paralisar a investigação parlamentar sobre os crimes contra os povos indígenas, aberta em 1968 depois da divulgação dos crimes cometidos pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Cito o capítulo "Violações aos direitos dos povos indígenas" da Comissão estadual. Criou-se a
[...] CPI “Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a estudar a legislação do indígena e investigar a situação em que se encontram as remanescentes tribos de índios no Brasil”, por meio da Resolução nº 55/68, de 1º de maio de 1968, presidida pelo Deputado do MDB Nelson Carneiro. Ela conseguiu trabalhar até a edição do AI-5.
Com esse ato institucional, ao Congresso Nacional foi imposto um recesso. Com o fim dele, quase um ano depois, a CPI realizou uma reunião final, em 18 de novembro de 1969, em que foi aprovado seu encerramento, proposto por seu presidente, fundamentado no cerceamento constitucional criado pela ditadura militar contra as comissões parlamentares de inquérito, na letra g do parágrafo único do artigo 30 da Constituição de 1969: “a comissão parlamentar de inquérito funcionará na sede do Congresso Nacional, não sendo permitidas despesas com viagens para seus membros”. Era impossível investigar o SPI sem realizar essas viagens pelos Estados brasileiros.
O cerceamento dos poderes do Legislativos tinha como efeito evidente impedir maiores investigações sobre o Executivo; neste caso, em um período de agravamento do genocídio indígena.
A Comissão "Rubens Paiva" tratou dos advogados que atuaram na defesa dos presos políticos, contrastando com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que apoiou o golpe civil-militar em 1964 e o AI-5 em 1968. Uma das principais finalidades do ato institucional era cercear o direito de defesa e impedir a apreciação judicial dos atos cometidos com base nos poderes arbitrários concedidos por essa norma. O fim do habeas-corpus para os crimes contra a segurança nacional era uma das medidas
Por essa razão, as autoridades alarmaram-se quando o jovem advogado Júlio Fernando Toledo Teixeira (1946-1979; ele morreu cedo, de enfarte) apresentou a tese de que se poderia, nesses casos, apresentar mandado de segurança para substituir o habeas-corpus. Ele o fez na V Conferência Nacional da OAB, em 1974, importante evento que poderia aprovar teses a serem adotadas pela Ordem. Essa tese a colocaria em oposição direta ao governo ditatorial.
Eis um dos documentos do DEOPS-SP que está no capítulo "A atuação dos advogados na defesa dos presos políticos" da CEV Rubens Paiva, e que menciona a tese indesejável para as autoridades:


O original está no Fundo DEOPS/SP do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Com efeito, como previam os agentes policiais, a tese não seria aprovada pela Conferência, embora tenha sido bastante discutida. Já escrevi neste blogue como esta Conferência da OAB foi acompanhada pela ditadura militar. Poucos anos depois, quando a Ordem passou a se alinhar às forças democráticas da sociedade, ela sofreria atentados terroristas.
Dito isso, como as outras comissões da verdade trataram o AI-5? Houve aquelas que não o pesquisaram. A Comissão Estadual da Verdade Paulo Stuart Wright, de Santa Catarina, não fez jus ao nome que a batizou e ignorou a norma repressiva. Cito integralmente dois capítulos do relatório final, de novembro de 2014:
Capítulo 5 – Fundamentos políticos e jurídicos da institucionalização de órgãos e procedimentos associados a graves violações aos direitos humanos: O período de 1946 a 1988;
A Comissão Estadual da Verdade não apurou os fundamentos políticos e jurídicos da dos órgãos associados as violações dos direitos humanos no período compreendido entre 1946 a 1988.
Capítulo 6 – Fundamentos políticos e jurídicos da institucionalização de órgãos e procedimentos associados a graves violações aos direitos humanos: caracterização do golpe de Estado de 1964 e a ditadura civil-militar.
Não foi apurado pela Comissão Estadual da Verdade.
Tão somente essas linhas.
A Comissão Camponesa da Verdade também ignorou a malfadada norma - mas seria verdade que o AI-5 não surtiu efeitos sobre os trabalhadores no campo?
A Comissão da Verdade da USP tratou do AI-5 enfatizando que um de seus autores e signatários era professor da faculdade de Direito da Universidade, o então ministro da justiça Gama e Silva, que tinha voltado a usar sua posição privilegiada dentro do governo para realizar perseguições políticas na USP. Cito o volume 6 do relatório, que trata especificamente daquela faculdade:
[...] a atuação do então ministro da Justiça, o Prof. Gama e Silva, foi determinante para radicalizar a atuação do regime militar. Além de criar os caminhos legais necessários para viabilizar a repressão política, o Prof. Gama e Silva teve participação decisiva na perseguição aos docentes da Universidade de São Paulo alinhados com ideias consideradas subversivas. Para colocar em prática essa perseguição, um decreto do dia 25 de abril de 1969, publicado no dia 28 e assinado pelo presidente militar e pelo próprio ministro da Justiça, com fundamento no AI-5, aposentava compulsoriamente 42 pessoas da administração pública federal e atingia, também, 3 professores da USP: Florestan Fernandes, Jayme Tiomno e João Batista Vilanova Artigas (ADUSP, 2004, p. 45).
A arbitrariedade desse decreto foi imediatamente atacada pelo vice-reitor em exercício da USP, o Prof. Hélio Lourenço de Oliveira, que substituía o reitor nomeado Prof. Gama e Silva, afastado de suas funções para ocupar o cargo de ministro da Justiça. O protesto do reitor Hélio Lourenço teve resposta imediata. Dois dias depois, em 30 de abril de 1969, outro decreto, dessa vez dirigido especialmente à USP, aposentava o próprio reitor em exercício e outros 23 professores (ADUSP, 2004, p. 47).
Os efeitos funestos dessa norma - na realidade, da ditadura - para a inteligência nacional nunca poderão ser propriamente medidos.
Para algumas comissões, o AI-5 representou um limite da pesquisa. Para a Comissão da Memória e Verdade da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),  que publicou seu relatório em abril de 2018, foi difícil encontrar documentos referentes ao período após aquele ato institucional:
Estes diferentes períodos foram abordados em graus distintos de profundidade e o Relatório Final reflete esta situação, tendo chegado a um maior detalhamento sobre a UFSC nos anos 1960. Para este período inicial da ditadura, um grande número de documentos estavam disponíveis e puderam ser acessados pela Comissão, o que justifica em parte que os anos 1960 fossem mais detalhados no Relatório. O período posterior ao AI-5 nos anos 1970 está mais carente de informações precisas e necessitaria ainda de um esforço grande no sentido de buscar outras fontes além das encontradas: arquivos de órgãos públicos como o da Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina que não puderam ser consultados por falta de tempo e de pessoas disponíveis para efetuar a pesquisa, arquivos dos centros de ensino e acervos dos ex-reitores que não foram ainda solicitados e também arquivos pessoais de protagonistas da época.
O relatório da Comissão Nacional da Verdade da União Nacional dos Estudantes (UNE) usa a referência do AI-5 para lembrar que havia uma ditadura antes disso, e não uma "ditabranda", expressão que a Folha de S.Paulo empregou poucos anos atrás. A UNE pode perfeitamente ser testemunha disso, pois sua sede foi não só incendiada, como metralhada já nos primeiros momentos do regime:
A União Nacional dos Estudantes foi marcada pelas garras da ditadura desde o primeiro momento do golpe e sabe, com toda certeza, que o regime de 1964 até 1968, não foi, como muitos querem afirmar, uma “ditabranda”. Existe um setor da sociedade que tenta desconstruir o caráter cruel do regime militar alegando que não teria sido um período tão truculento, mas até bastante permissivo com os setores intelectuais e culturais, e de que a ditadura, de fato, só se daria após o Ato Institucional nº5 (AI-5). Para além do incêndio criminoso da sede da UNE, no primeiro dia do golpe, e a prisão de vários de seus dirigentes, podemos elencar uma série de exemplos que negam essa afirmação: o governo do regime militar foi extremamente autoritário com a cassação de mandatos, aposentadorias compulsórias no funcionalismo público, a repressão e desmantelamento dos movimentos sociais.
Um fator de grande interesse das comissões estaduais, municipais, universitárias, sindicais e de outras categorias foi o de tratar de casos que a Comissão Nacional da Verdade não chegou a analisar. Aludo aqui a um caso da Comissão Estadual da Verdade do Paraná Teresa Urban.
Como se sabe, a cúpula do Poder Judiciário foi favorável ao golpe de 1964, apesar dos magistrados cassados já desde o primeiro ato institucional. O presidente do Tribunal de Justiça do Paraná dessa época, Alceste Ribas de Macedo, elogiou o AI-5 (uma norma contrária às garantias constitucionais e que reprimiu fortemente os direitos de defesa e as prerrogativas da advocacia, o que explica que encontrasse tantos defensores dentro do Judiciário), mas depois foi cassado, com o vice-presidente do tribunal, com base nos próprios poderes formalizados por esse ato institucional...
A Comissão não logrou determinar exatamente por que razão eles foram atingidos (como se sabe, as pessoas eram cassadas sem direito de defesa e sem justificativa), mas sugere que "provavelmente" ocorreu por causa da "atuação do presidente do Tribunal de Justiça do Paraná em questões relacionadas aos aumentos dos subsídios dos magistrados, à distribuição de cartórios e também à disputa política deflagrada pelo agravamento do estado de saúde do então governador Parigot de Souza, uma vez que as circunstâncias do momento colocavam o presidente do Tribunal à frente da linha sucessória".
Com a Lei de Anistia, eles puderam retornar à magistratura:
Provavelmente em decorrência dessa disputa local, os desembargadores Alceste Ribas de Macedo e José Pacheco Junior, que ocupavam respectivamente os cargos de presidente e vice-presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, foram atingidos pela aposentadoria compulsória por decreto do presidente da República publicado em 30 de maio de 1973.
Com o advento da Lei da Anistia, em 28 de agosto de 1979, o Tribunal de Justiça do Paraná constituiu uma comissão para receber e avaliar os pedidos de recondução ao cargo de magistrados aposentados compulsoriamente no período dos governos militares. Integrada pelos desembargadores Ronald Accioly Rodrigues da Costa, Jorge Andriguetto e Clementino Schiavon Puppi, essa comissão manifestou-se favoravelmente aos pedidos recebidos e os juízes que postularam seu retorno à atividade profissional tiveram seus pleitos acolhidos [...]
Em seu discurso de retorno ao Tribunal o desembargador Alceste Ribas de Macedo se refere ao fato de, em 1969, ter saudado a edição do AI-5 como mais um reação do regime militar a ameaças de conspiradores à segurança nacional, complementando que ironicamente acabou atingido pelo autoritarismo quando teria se recusado a renunciar a sua candidatura para uma segunda reeleição à presidência do Tribunal. 
A autocrítica do magistrado é típica daqueles que apoiam a repressão por se acharem intocáveis, isto é, por se manterem alheios ao princípio republicano. A intocabilidade, porém, não é garantida nem mesmo em regimes que negam as garantias fundamentais, eis que disputas sempre podem surgir entre as elites.
Tendo em vista a ilegalidade fundamental de todo o sistema, aconteceu de as próprias autoridades perceberem que haviam se equivocado na punição (mesmo segundo os parâmetros da arbitrariedade oficial; é claro que para os padrões de um direito democrático todas as sanções com base nos atos institucionais eram ilegítimas). Notavam, porém, que não tinham como rever as punições tomadas com base no AI-5.
A Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba constatou-o no tocante à aposentadoria compulsória de onze magistrados desse Estado. O governo acabou por notar que eles não eram subversivos ou corruptos, porém, e que
[...] o posicionamento do Serviço Nacional de Informação de que o ato de aposentadoria dos 11 magistrados paraibanos foi “apoiado em bases precárias”, sugerindo, assim, ao ministro da justiça que encaminhasse os “autos” ao Departamento de Polícia Federal para investigar “A veracidade das denúncias apresentadas pelo Tribunal de Justiça e que motivaram o Decreto Presidencial de aposentadoria dos 3 magistrados em 27-2-69”. Entretanto, o consultor deixa claro inexistir “na legislação revolucionária possibilidade de revisão das punições aplicadas com base no Ato Institucional nº 5” (Grifo nosso), sugerindo, assim, que sejam arquivados pelo ministro da justiça os requerimentos os magistrados paraibanos (p. 331).
A Comissão apurou que "os dez juízes e uma juíza aposentados (a) compulsoriamente por ato da ditadura militar foram vítimas de uma disputa política envolvendo os interesses do governador João Agripino e do presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Onesipo Aurélio de Novais."
Tempos de exceção sempre se mostram propícios para perseguições políticas.
Um dos efeitos do AI-5 no campo da educação foi análogo ao do atual projeto "Escola sem Partido".
Entre tantos, cito o depoimento de Jorge Luiz de Souza, dado à Comissão da Verdade da Universidade Federal do Espírito Santo. Cito o relatório final, publicado em 2016:
Logo depois do AI5, se instalou um regime de muito terror mesmo e, semanas depois, eu entrei na Universidade. No primeiro semestre nosso era um horror, porque as pessoas tinham medo de, por exemplo, você estudando Economia, tinha que ler certos livros, mas os professores tinham medo da gente. O livro estava na biblioteca e o professor tinha medo de deixar a gente ler. As pessoas tinham, imagina você, medo de pegar um livro sobre Mais Valia na biblioteca. Eram aqueles primeiros anos da ditadura, de 69 a 72, quer dizer, até o processo que se deu a escolha do Geisel, esse período que vai do AI-5 até o momento que eu estava preso, até a metade da minha prisão, era um período de terror na Universidade.
Ele foi preso em 3 de dezembro de 1972, no mesmo dia de Míriam Leitão, torturada com uma cobra na cela, que também pertencia ao PCdoB.
Em relação à perseguição no plano das artes, pode-se lembrar da censura à II Bienal de Artes plásticas. Juarez Paraíso, professor da Escola de Belas Artes da UFBA e o organizador da Bienal. Cito o depoimento que concedeu em 2013 à Comissão Estadual da Verdade da Bahia:
No dia seguinte à publicação do AI-5, o jornalista do Jornal da Bahia Anísio Félix foi à minha procura onde estava sendo realizada a Bienal e, diante de vários artistas, entrevistou-me para que eu declarasse o que achava do referido Ato Institucional. Declarei, como já disse anteriormente, que se tratava de algo inconcebível, monstruoso e um verdadeiro atentado à Democracia.
Logo no dia seguinte apareceram dois agentes da Polícia Federal na minha casa, na Rua Aristides Ático, antiga Rua do Gado – ali atrás do Forte do Barbalho; da minha casa eu ouvia os gritos dos torturados - intimando-me a comparecer à sede da Polícia Federal. Interrogado pelo coronel Luiz Arthur se realmente aquelas afirmações eram da minha autoria, respondi que sim. O coronel Luiz Arthur, que hoje tem nome de rua em Salvador, declarou que o Alto Comando do Exército estava muito contrariado e já que eu confirmava o que estava escrito na entrevista, ele me dava ordem de prisão e que logo eu seria conduzido para outro lugar.
Ele ficou preso por trinta dias no quartel do 19 BC, no Cabula. Foram apreendidas 10 das 1005 obras: "Os artistas excluídos foram Lênio Braga (três trabalhos), Antônio Manuel (um trabalho), Manuel Henrique (um trabalho) e um desenho de Farnese Andrade, representante do Brasil na Bienal de Veneza."
A Comissão Municipal da Verdade D. Waldyr Coelho - Volta Redonda investigou a Operação Gaiola, que se abateu sobre o Sindicato dos Metalúrgicos e o Movimento Justiça e Paz da Diocese de Volta Redonda.
As prisões que ocorreram na chamada “OPERAÇÃO GAIOLA”, em 13 de dezembro de 1968, que em Volta Redonda foi executada pelos militares do 1º BIB, sob comando do Coronel Armênio Pereira Gonçalves, são reveladoras dessa aliança progressista que foi duramente reprimida com prisões, torturas, perseguições, Inquéritos na Justiça Militar e demissões.
Pela terceira vez, uma diretoria sindical metalúrgica, em Volta Redonda, sofre repressão do poder do Estado e seus membros são cassados arbitrariamente e autoritariamente: a primeira intervenção, em 1946, quando os comunistas fundaram o Sindicato dos Metalúrgicos de Barra Mansa, Volta Redonda, Resende e Barra do Piraí, no Governo Dutra; a segunda, em 1964, quando do Golpe que depôs João Goulart; e a terceira intervenção no Golpe do AI-5.
O relatório da Comissão da Verdade do Rio trata da repressão aos homossexuais nos anos 1960; neste caso, o AI-5 também foi um divisor de águas. O "boletim informal" O Snob, que publicou cem números entre 1963 e 1969, teve sua circulação encerrada:
Logo depois do AI-5, pararam de editar o jornalzinho por causa de um incidente com a polícia na Cinelândia e da preocupação em ser confundido com publicações “subversivas”. Segundo Agildo Guimarães, o editor d’O Snob, o acirramento da violência estatal também os atingira: passaram a ser interpelados (“agarrados”, segundo Agildo) quando distribuíam seus jornais e boletins, pois os agentes da repressão julgavam que fossem panfletos da resistência ao regime.
Em 1976, a polícia impediria uma reunião no Rio de Janeiro da União do Homossexual Brasileiro nos jardins do Museu de Arte Moderna. Apenas em 1978, com o jornal Lampião da Esquina e o Núcleo de Ação pelos Direitos dos Homossexuais, que se tornaria o Somos, o movimento homossexual conseguiria se constituir no Rio.

Mencionados apenas estes casos, entre diversos outros, é de lamentar que, diante das proporções e da variedade de danos causados e de categorias e meios sociais atingidos pelo AI-5, que os únicos partidos políticos presentes na Câmara na "descomemoração" dos cinquenta anos da funesta norma foram, segundo a ordem alfabética, o PCdoB, PDT, PSB, PSOL e PT, pelo que vejo aqui: https://twitter.com/depChicoAlencar/status/1073281699566497793
Isso significa que os outros partidos estão realmente se orientando fora do princípio democrático? Ou que hoje não seria necessário fechar o Congresso Nacional para ter uma norma semelhante aprovada?
Gostaria, no fim desse texto, lembrar de Eunice Paiva, um exemplo de dignidade para todo o país (ao contrário dos deputados federais que se ausentaram do ato), que morreu exatamente no dia dos 50 anos da norma do criminoso regime responsável pelo sequestro, tortura, execução extrajudicial e desaparecimento forçado de seu marido, o deputado Rubens Paiva.

Lista dos relatórios mencionados:
Comissão Nacional da Verdade
Comissão da Verdade do Estado de São Paulo "Rubens Paiva"
Comissão Estadual da Verdade Paulo Stuart Wright
Comissão Camponesa da Verdade
Comissão da Verdade da Universidade de São Paulo
Comissão da Memória e Verdade da Universidade Federal de Santa Catarina 
Comissão Nacional da Verdade da União Nacional dos Estudantes
Comissão Estadual da Verdade do Paraná Teresa Urban
Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba
Comissão da Verdade da Universidade Federal do Espírito Santo
Comissão Estadual da Verdade da Bahia
Comissão Municipal da Verdade D. Waldyr Coelho - Volta Redonda
Comissão da Verdade do Rio