O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras. Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem".

domingo, 16 de dezembro de 2018

O roteiro da humanidade segundo Alberto Pimenta: Pensar depois No caminho


Quando um escritor da dimensão de Alberto Pimenta lança livro novo, sobram motivos de júbilo não apenas para o meio literário português, ou para o lusófono, mas para todos os falantes da língua: pois ele, o autor, a amplia, a renova, quando renova a si mesmo. E é o que continua a fazer, depois de ter completado oitenta anos de vida, ao lançar o volume Pensar depois No caminho (Lisboa: Edições do Saguão, 2018).
Neste ano, foi lançado o genial filme de Edgar Pêra, "O Homem-Pykante - Diálogos com Alberto Pimenta" (em Portugal, em maio; no Brasil, foi exibido em outubro), que trata do performer, artista plástico, professor, escritor, todas essas atividades de Pimenta. Este livro não entrou no filme, mas ouso dizer que ainda ampliaria o retrato cinematográfico do autor, se tivesse havido tempo para tratar desta nova publicação.
Hugo Pinto Santos, para O Público, escreveu a resenha "A épica do presente contínuo", destacando os traços surpreendentes das configurações que o épico encontra nesse livro: "nem seria improvável encontrar no poema de Alberto Pimenta um plano dos deuses, um plano da História, da viagem, e do poeta." O crítico afirma, com razão, que "todo o trabalho de Pimenta é risco e imoderação. A sua actuação é de uma permanente imponderabilidade. O poema, este poema, é uma imparável máquina produtora (e revolucionária) de sentidos."
Hugo Pinto Santos destaca que ele fez algo parecido com Autocataclismos, livro de 2014, em que duplas de tercetos, postas lado a lado na mesma página, podiam ser lida separadamente ou em conjunto, uma após a outra ou juntando os versos da mesma linha dos tercetos diferentes (como neste).
A capa, de Rui Miguel Ribeiro a partir de uma ideia do próprio poeta, anuncia a curiosa estrutura do livro: no começo, temos apenas Pensar depois; na página 63, irrompe No caminho que, impresso com uma fonte diferente, passa a ocupar as páginas ímpares. Os livros podem ser lidos separadamente ou como uma unidade. Pimenta experimenta a forma do livro, que, ademais, não termina quando seria previsível: vejam a página do colofão, ele continua. Talvez não tenha terminado ainda, assim como o próprio caminho.
Pensar depois começa com uma cosmogonia satírica, que parte dos deuses greco-romanos e do deus e do diabo cristãos. O tempo é algo mascado por deus, um chiclete

com que o velho senhor
por falta de melhor
ensaliva as suas velhas gengivas
estica a sua infinita língua
ao longo do espaço sem fim
depois encolhe outra vez
é o fio a encolher
e quando adormece e o chiclé cai
é uma estrela cadente
ou se arrota é um vulcão
serve só para o acordar
o diabo coça a orelha
é de facto uma pastilha

o tempo
é uma grande pastilha

a esta imagem do tempo universal
feita do chiclé do velho
o diabo e os homens
criaram a economia
as reservas esticam e encolhem
depois caem
são um longo arroto [p. 53]

Chegam as transações mercantis, a moeda, depois o capitalismo e o uso dos combustíveis fósseis. Nesse momento, No caminho surge: "rumo a este mundo n ovo", com "o verbo f eito verba" e uma assembleia geral de acionistas, recheado de textos estatutários de sociedades anônimas. Ele é mais abertamente experimental do que o outro livro, em razão dos procedimentos de colagem e da espacialização dos versos e das palavras.
Os dois livros, separados ou juntos formando um terceiro, marcam-se, evidentemente, pelo anticapitalismo. Neste volume, o capital explodirá, mas não contaremos como.
A devastação ambiental e a divisão de classes voltam a ser objeto da poesia de Pimenta; cito este trecho de Pensar depois:

ora
composto  mundo de agora
em essência e substância
de pessoas comuns
mais o lixo que lhes pertence
que ainda não é comum
mas vai ser
os que tossem
quando mexem nele
consideram-no tóxico
mas saber isto ao certo
vai no fim depender
de serena composta
interdisciplinar reflexão governamental
a realizar na primeira sessão do ano
porque é este
o mundo que está
e em que todos estão
o lixo comum mais
as suas pessoas [p. 110]

Aqui temos uma crítica ao "O AN  T    R AP          O C        E NO" (p. 196), que, após a explosão que acontece perto do fim do volume, vai transformando-se em trapos, "ant      a trapo  sem   o". Este é o guião ou roteiro da humanidade que Pimenta ousa apresentar neste volume.

  Tróia      já   passou
   ficou       o   rasto   cresc   eu
  aqui ainda    é     o resto
   acabou-se
a história é histo
     a festa        acabou
     ficou     a louça   para  lavar

venceram os heróis
   não    eram    ainda
                    accionistas
          mas  já  se  adivinhava
que  viriam  a  ser [p. 79]

Se lemos isoladamente No caminho, o livro das páginas ímpares, esta passagem da página 81 tem como sujeito os acionistas, mencionados na página 79:

-----------simplesmente
enquanto ----eles
---fizeram -o -deles- para
--ganhar -------para si ---e para nós
---noite e dia
para dia
nós
---fizemos -para -nós
-----------e --os nossos
os- nossos -filhos
---e netos  ---muitos são --
--------------grandes-- influencers
com-- incontáveis--- milhares
---de followers

No entanto, se lemos os dois livros como se fossem um só, esta passagem da página 81 tem como sujeito deus e diabo, referidos ao fim da 80: "como deus gosta/ e o diabo também".
Nesse ponto, como em outros do volume, Pimenta parece sugerir que esses termos, não propriamente da economia ou campo da administração, e sim para chegarmos à degradação teórica que rege o imaginário de hoje, do marketing digital (e Pimenta já havia tratado das consequências funestas dessa degradação do imaginário no al-Face book, livro de 2012), são (parodio Carl Schmitt aqui) conceitos teológicos secularizados. Ou talvez sugira que a fé típica do capitalismo, para empregar um trocadilho de Heine, seja o crédito... A cosmogonia satírica de Pensar depois encontra seu lugar como crítica desse imaginário.
A sátira é elevada ao nível formal: havendo dois livros que realizam um terceiro (pensando depois no caminho da leitura...), Pimenta adotou a santíssima trindade como estrutura...  A dimensão escatológica do livro, adequada à dimensão do fim do mundo própria do capitalismo e do antropoceno, encontra a forma propícia.
Por sinal, pode-se entender que os sujeitos possíveis da página 81 são iguais, e que deus e o diabo são os acionistas majoritários de uma grande empresa de guerra e destruição, e que é "mais difícil resolver/ sem ser por morte esfaimada/ a sorte dos estropiados de guerra" (p. 148).
Neste longo roteiro que Pimenta traça da humanidade, passam o nazismo e seus fãs atuais, ainda com seus fãs em Portugal (nem preciso lembrar do Brasil, onde as eleições os deixaram animados), tentando sequestrar a cultura para a glorificação do extermínio:

mas houve quem
por esse tempo escrevesse
um braço no papel e o outro erguido
que sem as Fugas de Bach
a Marcha Hohenfriedeberg
a gloriosa Marcha dos batalhões nazis
perdia o seu sentido
assim como o Fausto
se tornava mero jogo no vazio
sem o som das
botas prussianas a marchar

não experimentei
tenho ali o texto
falta-me o disco
com a marcha da Prússia
e aqui fica mais este conselho às
lusas habilidosas
bibliosas indústrias
talvez a marcha
devesse acompanhar
o heróico uivo
do Adolfkampf
que tantos fãs e afãs congrega
neste país onde ainda cantam galos
e cresce a uva colhão deles um só
como parece que era o caso [p. 160]

Perto do final de um dos grandes livros de teoria literária da segunda metade do século XX, O silêncio dos poetas, publicado pela primeira vez em italiano pela Feltrinelli há 40 anos (uma efeméride), Pimenta fez algo que somente um poeta ousaria fazer: um poema antes do epílogo, "Terceiro excurso" (na edição de 2003, o "Epílogo a modo de epílogo" seria substituído por outro poema, e assim o livro passou a acabar com dois poemas), que representa um caminho para o silêncio. Ele começa com "Já reparaste que tens o mundo inteiro/ dentro da tua cabeça".
Esses dois versos retornam, transformados, nesta obra de 2018 perto do fim do volume: "já reparaste como tiveste o mundo inteiro" como nota final de Pensar depois, e "dentro da tua cabeça", que exerce a mesma função em No caminho.
Ao roteiro da humanidade que Pimenta audaciosamente traça neste volume, o poeta dá esse final melancólico, já anunciado no decorrer do(s) poema(s), especialmente depois de referir-se à descoberta da radioatividade e à Madame Curie. Pimenta confisca a ópera de Manuel de Falla para seus fins:

logo passado um ano
Manuel de Falla
compôs para tanto avanço
A Vida Breve
tão pouco dia para tanto ocaso
tanto sol e tanta sombra
durante todo
o rápido solfejo da vida
sustenida progressão
até ao bemol final
tanta satisfação da riqueza
até à penúria final [p. 118]

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